Núcleo de Estudos e Pesquisas em psicanálise
A psicanálise Historia da loucura Uma trajetória para formação de uma Ano I /2013
Psicanálise genuinamente Brasileira Profº Sérgio Costa
HISTÓRIA DA LOUCURA Índice Índice INTRODUÇÃO À PSIQUIATRIA O QUE É LOUCURA? Definição BREVE HISTÓRIA DA LOUCURA A doença mental na Pré-história Os distúrbios mentais na Antigüidade As primeiras classificações A loucura na Idade Média Outras sistematizações Idade Moderna e segregação Novas formulações Psiquiatria, Ciência Contemporânea Os primeiros passos Reações contra a nosografia clássica SOCIOPSIQUIATRIA AS POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL
INTRODUÇÃO À PSIQUIATRIA
Um breve histórico da loucura e das políticas de saúde mental, para facilitar ao profissional de enfermagem a compreensão do trabalho de diagnóstico e terapêutica da doença mental.
O QUE É LOUCURA?
Dificilmente qualquer conceituação consegue responder integralmente à desconcertante realidade da loucura. Mesmo atualmente, a loucura é sempre definida, explícita ou implicitamente, de maneira relacional: designa-se por louco ou insano aquele indivíduo cuja maneira de ser é “diferente” em comparação com uma outra maneira de ser, considerada pela sociedade “normal”.
Insano (do latim in= negação + sanus = são) é um termo empregado juridicamente para designar um indivíduo cujo distúrbio mental ou psicose é de tal gravidade que impossibilita de responsabilidade ou capacidade legal.
No entanto, quando se observam todas as singularidades culturais, sociais, éticas, filosóficas, religiosas etc. de diferentes grupos humanos, como se poderia definir o que é um indivíduo “normal”?
Definição
Geralmente, loucura é:
para
o
senso
comum,
um estado de perda de consciênciade-si-no-mundo, condenando a pessoa a existir como se fosse coisa;
uma doença, isto é, um estado físico-mental: como o cérebro sofre danos, o indivíduo passa a agir de forma descontrolada, agressiva, tornando-se perigoso no convívio com os demais;
um distúrbio orgânico ou um desequilíbrio emocional cujo efeito é um desvio de comportamento em relação às normas sociais;
um conjunto de distúrbios emocionais ou somáticos cuja origem é o desajustamento do indivíduo à sociedade em que vive;
um estado progressivo de desligamento ou fuga de uma realidade (objetiva) para outra realidade (subjetiva) em decorrência de insatisfações do indivíduo;
uma profunda autoconsciência.
tomada
de
Todas essas são conceituações de loucura usadas em nossos dias. Mas, além de estarem repletas de preconceitos, nem sempre elas corresponderam ao que se considerava loucura no passado. Nem sempre a loucura foi vista como uma doença ou um problema de integração social.
BREVE HISTÓRIA DA LOUCURA
Atualmente a Psiquiatria é um ramo da medicina que estuda o diagnóstico, a assistência e o tratamento das pessoas com doenças mentais. Mais a origem da maior parte dos conceitos científicos psiquiátricos deve ser buscada no passado.
Uma breve retomada da história da loucura, das concepções e políticas voltadas à restauração da saúde mental e o surgimento da Psiquiatria ajuda a compreender o caminho percorrido pela humanidade, através dos séculos, em sua relação com a doença mental. Pois, assim como a conceituação sobre loucura, os cuidados dedicados a pessoa com transtornos de comportamento variaram no decorrer dos tempos e sempre foram fortemente influenciados por crenças, costumes, rituais, religião, política e mesmo pelo estatuto legal de cada época.
A doença mental na Pré-história
Estudos de tribos primitivas permitiram que se observassem os primórdios de vários conceitos atualmente utilizados em Psiquiatria. Evidenciaram a influência modificadora da cultura sobre expressões sintomatológicas das psicopatologias.
Assim, permitiram esclarecer as deficiências de certas explicações teóricas do comportamento humano que, embora se pretendessem universais, carregavam marcas dos padrões de uma determinada cultura e de um determinado período. O homem primitivo atribuía todas as doenças à ação de forças externas ao corpo humano, forças sobrenaturais como os maus espíritos, os bruxos, os demônios, os deuses. Essas explicações demonológicas eram particularmente usadas para explicar doenças que afetavam a conduta, ou seja, as doenças mentais. Talvez o sonho com o retorno dos mortos e a lembranças de ameaças, pedidos e afeições destes tenham encorajado a crença na influência do além. A observação de comportamento insensatos, destituídos de sentido, impertinentes e destrutivos de indivíduos delirantes, bem como a apreensão causada por ataques convulsivos e o esforço para explicar o fenômeno podem ter fortalecido o conceito de possessão demoníaca como causa das mudanças peculiares ou assustadoras no comportamento percebidas por familiares.
Acredita-se que nos tempos préhistóricos as pessoas com distúrbios de comportamento eram atendidas em rituais tribais ou simplesmente abandonadas à própria sorte.
Os distúrbios mentais na Antigüidade
A Antigüidade é o período que abrange o desenvolvimento das antigas civilizações orientais e clássicas (egípcia, mesopotâmica, hebraica, persa e principalmente greco-romana), terminando com a queda do Império Romano do Ocidente. Na Grécia e na Roma antigas, os loucos gozavam de certo grau de “extraterritorialidade”: não existiam procedimentos e espaços sociais destinados especificamente a eles. Os de famílias mais abastadas eram mantidos em suas residências, com a atenção de acompanhantes. Já os pobres circulavam livremente pelas ruas, tendo sua
subsistência garantida pela caridade pública ou pela realização de trabalhos simples para particulares. A loucura era experimentada em “estado livre”, no convívio com toda a sociedade, que freqüentemente considerava as crises de agitação manifestações de cunho sobrenatural, decorrentes de possessões demoníacas, e não resultantes de doenças mentais. A atenção aos loucos era diluída porque, por um lado, havia um pequeno número de indivíduos que hoje chamaríamos de doentes mentais e estes, como o restante da população, tinham uma baixa expectativa de vida; pro outro, a loucura era conceituada com base nos aspectos exteriores, no comportamento diretamente observável do indivíduo __ principalmente quando este se traduzia em embaraço para a família ou para a comunidade. Isso não significa que sociedades da Antiguidade fossem benevolentes em relação aos loucos, pois há inúmeros relatos históricos de violências aplicadas na época, como flagelação, acorrentamento, prisão etc.
O indivíduo louco ou insano era visto como um problema privado ou familiar, não como problema social. Por isso, o poder público só interferia quando a loucura envolvia assuntos ligados ao Direito, como invalidação ou anulação de casamentos por enlouquecimento de um dos cônjuges ou proteção patrimonial de insanos perdulários.
As primeiras classificações
Na história da humanidade, as primeiras referências a distúrbios mentais aparecem em escritos da Antigüidade, produzidos no Egito, Índia, China, Grécia e Roma. Eles permitem que se conheçam as idéias primordiais das principais correntes que pautam o pensamento e a ação da Psiquiatria atual. Por exemplo, a atitude humanitária propugnada atualmente pela Psiquiatria Social pode ser encontrada também na Grécia de 860 a.C., quando os
sacerdotes gregos completavam os encantamentos destinados aos mentalmente perturbados com recomendações de que eles fossem tratados com bondade e com sugestões de que lhes fossem proporcionadas atividades físicas. Na antiguidade grega, os médicos, filósofos e outros tinham grande consideração com os doentes. Os templos e hospitais eram construídos de maneira a permitir que os usuários desfrutassem de ar fresco, água pura, luz solar. Mestres, alunos e doentes faziam caminhadas, encenações teatrais (dramatizações) para melhorar o “humor”.
Humor (do lat. Humor, preferentemente umor) significa “líquido, fluido, humores do corpo”, que influiriam no caráter dos indivíduos, donde a acepção antiga de “temperamento ou gênio”.
Entretanto, mesmo na Grécia Antiga, pacientes que não reagiam aos métodos de tratamento eram submetidos à inanição e à flagelação. Há registros sobre doenças mentais __ tanto em textos de Hipócrates considerado o pai da medicina __ quanto nos de filósofos como Platão e Aristóteles. Hipócrates (nascido em 460 a.C.) criou os primeiros fundamentos científicos para diagnosticar doenças mentais, com base na teoria do desequilíbrio dos quatro humores: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela. É dele uma classificação inicial dos distúrbios mentais em:
melancolia __ estado mórbido de tristeza e depressão, causada pelo excesso de bile negra;
histeria __ explosão emocional própria das mulheres, causada por útero inquieto, acompanhada freqüentemente por gritos, gargalhadas e contrações.
Ainda no âmbito das doenças mentais, Hipócrates também procurou as causas naturais para a epilepsia __ considerada na época a “doença sagrada”__, a frenite e a paranóia. Há ainda indícios de que teria conhecimentos sobre psicose pós-parto e síndromes cerebrais agudas (estados delirantes) que ocorrem após estados infecciosos e hemorragias. Hipócrates rejeitou a intervenção dos deuses como causadores de doença mental e influenciou atitudes sociais e jurídicas, principalmente quanto ao indivíduo classificado como paranóico.
Platão (429-347 a.C.) descreveu dois tipos de demência (do latim dementia):
causada por deterioração progressiva e irreversível das funções mentais intelectuais, em que a alma apetitiva (instintos) perde o domínio da alma racional;
provocada e ou inspirada pelos deuses.
É dele a proposta de que a biografia psicológica do indivíduo fosse escrita a partir dos seus primeiros anos de vida, com base em seu relacionamento com os membros da família e com os educadores, para explicar seu comportamento mais tarde como adulto.
Aristóteles (384-322 a.C.) descreveu os afetos: desejo, raiva, medo, coragem, inveja, alegria, ódio e pena. Empédocles (490-430 a.C.),por sua vez tratou da importância das emoções e assinalou que o amor e o ódio eram fundamentais na determinação de alterações do comportamento humano. Sabe-se também que, durante o século VI a.C., os curandeiros gregos já se interessavam pela observação e experimentação, constituindo-se em precursores das ciências biológicas. Alemacon, por exemplo, dissecou e anotou conexões dos órgãos dos sentidos com o cérebro, a partir das quais inferiu que a razão e a alma estavam localizadas nesse órgão. Na Roma Antiga, Galeno (130-200 d.C.) consolidou os pensamentos de Hipócrates e dos filósofos e estudiosos gregos __ principalmente, a idéia de que a depressão era causada pelo excesso de bile negra, formulação que exerceu influência até o
século XIX, ele e outros médicos da Antigüidade romana tratavam os doentes mentais com sangrias, purgantes e banhos sulfurosos. Galeno estudou ainda a anatomia e fisiologia do sistema nervoso, concluído que o cérebro era a sede da alma, e postulou que a existência de sintomas em uma parte do corpo não indicava que esse órgão ou parte dele fosse afetado pela enfermidade. Também é dele a teoria da alma racional dividida em uma parte externa e uma interna. No final da Antigüidade, o advento do Cristianismo trouxe considerável respeito à figura do louco, que passou a ser visto como “pobre de espírito”. Sob a influência do cristianismo, durante praticamente toda a Idade Média a loucura foi vista com grande tolerância.
A loucura na Idade Média
A Idade Média é um imenso intervalo de tempo entre a Antigüidade Clássica e a Idade Moderna ou modernidade. Alguns historiadores situam seu início entre o ataque dos bárbaros a Roma, após a morte de Teodósio (395 d.C.) e a tomada de Roma por Alarico (410 d.C.) ela termina em torno de 1453, ano da tomada de Constantinopla pelos turcos.
Nesse período, sob a influência do cristianismo, acreditava-se que o mundo era um todo organizado de acordo com os desígnios de Deus. Por isso, tudo e todos obedeciam à ordem divina. Os insanos,
assim como os retardados e os miseráveis, eram considerados parte da sociedade e o principal alvo da caridade dos mais abastados, que assim procuravam expiar seus pecados. Os dentes mentais eram chamados de insanos, “lunáticos” (do latim luna = Lua, pois acreditava-se que a mente das pessoas era influenciada pelas fases da lua) ou “pecadores” (do latim peccatu = pecado, indicando a transgressão de qualquer preceito religioso ou a existência de certos defeitos ou vícios nos indivíduos). A doença mental era decorrente de uma relação defeituosa entre o homem e a divindade, um castigo pro faltas morais e pecados cometidos, ou provocada pela penetração de um espírito maligno no organismo do indivíduo ou, ainda, pela evasão da alma do corpo da pessoa. Ainda assim, os loucos desfrutavam de relativa liberdade de ir e vir: suas famílias confiavam na caridade alheia para garantir a sobrevivência de seus filhos e aceitavam seus impulsos e características peculiares como expressão da vontade de Deus.
Muitas vezes, esses insanos”, “lunáticos” ou “pecadores” eram submetidos a rituais religiosos de exorcismo ou adorcismo. Os padres, beatos, “homens santos” e membros da nobreza que praticavam esses rituais não agiam com crueldade física.
Exorcismo: cerimônia católica destinada a expulsar os maus espíritos do corpo do possuído, com aspersão com água benta, sinal-da-cruz, imposição das mãos, orações, salmos, conjurações etc. Adorcismo: ação mágico-terapêutica que buscava restabelecer no indivíduo sua alma “perdida”. Doentes com distúrbios mentais mais graves ou mais agressivos eram flagelados, acorrentados, escorraçados, submetidos a jejuns prolongados, sob a alegação de estarem “possuídos pelos demônios”. Podiam até ser queimados, por serem
considerados feiticeiros. No final da Idade Média, vários indivíduos de comportamento “desviante”, de loucos a contestadores, foram assim perseguidos, julgados e queimados vivos nas fogueiras da Santa Inquisição.
Outras sistematizações Entre os autores que se dedicaram ao tema das doenças mentais na Idade Média destacam-se Avicena e Constantino. Avicena (980-1037), filósofo e médico árabe, nascido na Pérsia, que em sua obra Cânone da Medicina reconheceu que certas doenças físicas eram causadas por transtornos emocionais. Essa obra foi amplamente lida por médicos cristãos e maometanos. Constantino, o Africano (1010-1087), médico nascido na Algéria que, em seu livro que, a partir da primeira escola de medicina em Salerno, divulgou por toda a Europa Ocidental as idéias de Galeno sobre a depressão. Idade Moderna e segregação
A idade moderna inicia-se com a tomada de Constantenopla pelos turcos em 1493 e termina com a Revolução Francesa de 1789. A partir do século XIV as instituições e as idéias da época feudal começaram começaram a apresentar sinais de decadência. Iniciava-se então a fase conhecida como Renascimento ou Renascença, em que a filosofia escolástica e religiosa medieval foi substituída por uma retomada do pensamento e da cultura greco-latina nas artes, na literatura e nas ciências. Isso significou a retomada de princípios racionalistas na observação e descrição das doenças mentais, em oposição ao misticismo religioso. Com o final do feudalismo, que caracterizou a Idade Média, e o desenvolvimento do mercantilismo, iniciouse um processo de acelerada formação de cidades, com o início da concentração de população. Por volta do século XVII problemas sociais e sanitários começaram a afligir as cidades que, cada vez mais populosas e afastadas das fontes de abastecimento, viram os gêneros alimentícios encarecerem e o número de mendigos cedesse lugar à mentalidade materialista, tipicamente burguesa: novos
valores se impuseram, substituindo a prática da caridade pública. A situação para os doentes mentais já havia sido agravada a partir do século XVI porque, em meio às mudanças provocadas pela Reforma protestante, mosteiros e igrejas deixaram de abrigar os insanos nas casas de caridade, casas de contrato ou asilos seculares. Os doentes mentais violentos, não violentos, não podendo permanecer nas ruas das cidades, foram trancados em celas e masmorras de prisões. Nesse período, pobres e loucos passaram a ser vistos como desocupados e como séria ameaça a toda a sociedade. Como não trabalhavam e não produziam riquezas, eram considerados marginais e improdutivos, não podendo compartilhar o espaço dessa nova sociedade. O fato de a doença mental não ser uma enfermidade apenas orgânica dificultava ainda mais uma mudança de concepção sobre os loucos que, considerados doentes de “alma”, eram vistos como uma ameaça a toda a humanidade. Para eliminar a pobreza, as cidades passaram a expulsar os mendigos. Os loucos, que vagavam em relativa liberdade pelas propriedades e vilas medievais,
auxiliados pela caridade pública, passaram a ser considerados responsabilidade privada de suas famílias, a quem cabia mantê-los. Para os doentes mentais e os miseráveis sem família, o isolamento. Surgiram então os hospitais gerais, instalados nos antigos leprosários, já que a lepra epidêmica praticamente desaparecera da Europa. Nesses hospitais eram internados não só os loucos, mas toda a população marginalizada pelos padrões da época. Mesmo durante o renascimento, a “demonologia” ainda inspirou os piores excessos nessas instituições. Os mais inofensivos saíam às ruas para pedir esmolas e alguns executavam pequenos serviços para os mais afortunados, mas os insanos que se rebelavam contra o aprisionamento eram submetidos a procedimentos cruéis, como ingestão excessiva de purgantes, flagelamentos e sangrias. Como tais “tratamentos” obviamente os tornavam mais agressivos, eram acorrentados em terríveis masmorras, junto a bandidos e assassinos, como animais. Henrique VIII, rei da Inglaterra de 1509 a 1547 e fundador do anglicanismo, tentou remediar a situação e criou, em Londres, o
Hospital Bethlehem, um asilo exclusivo para lunáticos ou insanos. No entanto, ali eles continuaram a ser maltratados, como mostra a charge de Hogarth, cartunista da época, que desenhou os guardas do hospital cobrando dois pences (moeda inglesa) à pessoa que desejava ver os pacientes presos em “jaulas” como animais furiosos. Muitas resistências tiveram de ser vencidas para que se aceitasse a idéia de que feiticeiras, bruxos, magos e “possuídos” pudessem estar sofrendo de uma doença mental. Essa mudança de perspectiva em relação aos doentes mentais foi sendo construída com o passar do tempo, com a contribuição da Reforma religiosa e a formulação dos princípios de “Liberdade Individual” que marcaram a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea. Só então a Psiquiatria se estabeleceu como ciência na França. Porém, apesar de a psiquiatria passar a ser considerada uma ciência médica e de os indivíduos portadores de patologias serem vistos como “alienados”, a proposta de tratamento continuava a ser o isolamento em celas ou cubículos, com os doentes quase sempre acorrentados.
Novas formulações Entre os estudiosos da doença mental nesse período destacam-se Paracelso, Johann Weyer e Paolo Zachia. PARACELSO (1493-1588) afirmou que as doenças mentais são naturais, e não, como se supunha, causadas por demônios. Fez uma classificação dessas doenças e propôs seu tratamento com substâncias químicas. JOHANN WEYER (1515-1588), médico belga, estudou em Paris e escreveu Praestigiis Daemonum, obra de grande repercussão na qual, com base em diversos estudos de caso, derrubou as acusações de bruxaria contra pessoas que apresentavam distúrbios de comportamento, demonstrando que os supostos bruxos perseguidos na época eram, em sua maioria, indivíduos mentalmente doentes. Só escapou da perseguição pela Igreja Católica por ser protegido de um nobre ao qual servia. PAOLO ZACHIA (1584-1659) italiano, precursor da Psiquiatria Forense, sustentou que caberia a um médico, e não a um padre ou advogado, avaliar as responsabilidades de um paciente com distúrbios de comportamento.
Psiquiatria, Ciência Contemporânea No final do século XVIII, que marca o início da Idade Contemporânea com a Revolução Francesa de 1789, as idéias do Iluminismo, os princípios da Revolução Francesa e a declaração Universal dos Direitos Humanos fizeram crescer os protestos e denúncias contra as internações arbitrárias dos insanos, contra as práticas de confinamento indistinto junto a outros marginalizados e contra as torturas que lhe eram infringidas. Começava a construção de uma nova abordagem, mais humanitária do doente mental. Nessa época construíram-se asilos especificamente destinados aos insanos, que já não eram mais mantidos acorrentados; em contrapartida, os loucos permaneciam subjugados por formas de violência velada, como ameaças e privações. O movimento de reforma iniciado nessa época criou uma distinção entre os loucos e os outros marginais, e fez com que a loucura passasse a ser considerada uma doença, que exigia condições e tratamentos específicos. É só na Idade Contemporânea, portanto, que a loucura passa a ser objeto de uma
ciência médica, a Psiquiatria, contemplada pelas instituições.
e
Os primeiros passos Em 1793, no Hospital Geral de Bicêtre, em Paris, o médico francês PHILIPPE PINEL (1745-1826) quebro as correntes que prendiam alienados ou insanos. Com isso, libertou-os de sua condição de socialmente reprovados para considera-los doentes. Ao tomar essa decisão, Pinel solicitou apoio público para dar aos doentes mentais o mesmo tratamento humanitário e de igualdade. Apesar disso, os loucos permaneciam presos por outras correntes, jurídicas e asilares. Considerado o pai da Psiquiatria, Pinel sintetizou um movimento já iniciado pelo PADRE JOFRE, na Espanha, por WILLIAM TUKE, na Inglaterra, por CHIARUGI, na Itália, e por DEQUIM, nos Estados Unidos. Pinel classificou as doenças mentais em quatro classificações básicas e estabeleceu o “tratamento moral da insanidade”, um tratamento novo e humano para os internos dos hospitais mentais. Inicia-se com a conformação do sistema nosográfico, que limita a “repressão social”. Na Itália de 1798, VICENZO CHIARUGI (1759-1820) fizera uma das primeiras
tentativas de tratar de maneira humana e sem contenções os insanos internos em hospitais psiquiátricos. Os trabalhos de Willian, Samuel e Daniel Tuke na Inglaterra também foram fundamentais para a Psiquiatria. Em 1796, William fundou o Retiro de York, uma casa especialmente destinada ao tratamento moral dos doentes mentais; Samuel descreveu a organização e as práticas do Retiro, influenciando o tratamento dos doentes em todos os hospitais do país, da Europa e dos Estados Unidos;Daniel escreveu o primeiro livro-texto abrangente da Psiquiatria. O norte-americano BENJAMIM RUSH (1745-1813) foi o primeiro médico a realizar estudos metódicos sobre doenças mentis. Captou o significado da relação médicopaciente na obtenção de certas curas e encorajava os médicos a reconhecerem a importância de sua posição social de autoridade. Já percebia que as atividades anti-sociais tinham sua origem em distúrbios emocionais, recomendando a bondade nos contatos com os deprimidos, a firmeza para com os maníacos e ações que exigissem atenção firme com os distraídos. Rush observava que, em alguns casos, eram necessários ameaças indutoras de
medo para modificar os comportamentos anti-social. Todos esses médicos e pesquisadores foram fundamentais para que o tratamento dos doentes mentais passasse a basear-se em princípios humanitários. Por isso, esse movimento alinhou-se às forças políticas e sociais que impulsionaram os movimentos revolucionários nos países da Europa Ocidental e América do norte que propugnavam o direito e o dever de a condição humana ser melhorada pelo esforço dos próprios homens. Do final do século XIX até os dias de hoje, grande número de médicos vem fazendo esforços para melhorar o atendimento a pacientes com distúrbios mentais. Nessa caminhada merecem destaque: • a instituição das primeiras descrições de quadros clínico e evoluções típicas, no início do século XIX, esquema indispensável à observação, diagnóstico e prognóstico dos distúrbios mentais (BAYLE, em seu livro Paralisia geral de 1882); • os trabalhos de perspectiva orgânica por ESQUIROL e LASEGUE, na França, assim como por Wernicke e Kraepelin, na Alemanha. Esses pesquisadores
desenvolveram estudos biológicos (hereditariedade, intoxicação, endocrinologia) e anatomopatológicos (arteriesclerose, tumores cerebrais, encefalites etc.). O médico alemão EMIL KRAEPELIN (1859-1926) é considerado o pai da psiquiatria nosológica ou clássica (inicio do século XX). Foi o autor da primeira descrição adequada do que supunha constituir doença mental. Antes, a atenção dos médicos se concentrava nos sintomas, que eram identificados como a doença. Kraepelin pressupôs que os distúrbios mentais constituíam entidades nossológicas definidas, análogas às doenças físicas e caracterizadas pela etiologia, sintomatologia, evolução e prognóstico. Ressaltou a importância das observações clinicas, pois na época era quase impossível chegar ao diagnóstico por meio de exames laboratoriais, e buscou origens físicas para as doenças mentais. A psiquiatria das entidades chegou ao apogeu com kraepelin, que revelou também seus limites. A importância da kraepelin foi enorme, colocando em pauta a necessidade de compreensão da etiologia das doenças mentais. No final do século XIX, foram
criados vários institutos voltados para o estudo das doenças clínicas gerais na Europa Ocidental. Nos Estados Unidos, surgiu o The New York State Psychiatric Institute, que, além de estudas a etiologia dos distúrbios mentais então conhecidos, procurou desenvolver medidas terapêuticas e preventivas. Esse movimento reuniu um grande número de cientistas de diversos __ campos anatomistas, histologistas, patologistas, microbiologistas, psicólogos, antropólogos etc. __ em busca de melhorar o atendimento aos doentes mentais. Reações contra a nosografia clássica O início do século XX foi caracterizado como um momento de reação à nosografia que vinha se constituindo. A chamada nosografia clássica havia avançado nas descrições das doenças mentais (monomanias, mania de perseguição, psicoses periódicas ou maníacodepressivas, demência precoce etc.) como “doenças essenciais”. BLEULER, MEYER, HOCH e outros psiquiatras, entretanto, propuseram outra abordagem, considerando as doenças mentais síndromes semiológicas ou evolutivas que indicam etiologias diversas. Para eles, portanto, a tipicidade de estrutura e
evolução dessas síndromes só poderia ser assimilada a uma especificidade absoluta da natureza. A superposição de conceitos e suas manifestações, complicações, gerou dois grandes movimentos no começo do século: 1. A afirmação de concepções psicogênicas ou psicodinâmicas que paulatinamente se sobrepuseram ao enfoque orgânico e anatomopatológico. As descobertas fundamentais da estrutura do inconsciente e de seu papel patogênico, feitas por Ferud, revolucionaram a psiquiatria clássica ou Kraepeliana. 2. O estabelecimento da psiquiatria dinâmica que, tendo por eixo a descoberta do inconsciente, faz uma interpretação mais dinâmica do papel da atividade psíquica na formação dos quadros clínicos. Na verdade, os primórdios dessa corrente foram lançados por volta de 1775 em Ellenberg por MESMER, que, em seus trabalhos sobre o magnetismo animal, já destacava a idéia de “doenças nervosas causadas por um fluido”. O termo “fluido” tinha, à época, o significado que hoje é dado a “espírito”, pelo
espiritismo, hipnotismo.
e
a
“sugestão”,
pelo
Paralelamente, entretanto, desenvolveram-se também as teorias de cunho heredobiológico da loucura, isto é, que associavam a doença mental à constituição biológica, de caráter hereditário, do indivíduo, isso ocorreu num período de intensificação dos processos migratórios, que acentuou a discriminação e a segregação racial. E a psiquiatria muitas vezes foi usada como instrumento de marginalização dos imigrantes: vale lembrar que, em 1893, 67% dos internados no Hospital de Worcester, nos Estados Unidos, eramestrangeiros. Essa tendência perde terreno a partir do final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. SIGMUND FREUD (1853-1939) é considerado o pai da teoria psicanalítica por ter descoberto que o homem possui um inconsciente e que este tem manifestações próprias que podem ser utilizadas no tratamento psiquiátrico. Ele descobriu ainda a sexualidade infantil e como sua experiência se apresenta nas disfunções sexuais adultas. A partir de Freud e de PIERRE JANET (1859-1947), a possessão do neurótico foi encarada como uma
possessão pelo automatismo inconsciente e pelas pulsões inconscientes reprimidas. No campo da Psicanálise destacam-se outros nomes importantes, como os de ADLER, CERLETTRI, BINNI,CADE, ERICSSON, JUNG, MEYER E LACAN. Suas contribuições foram essenciais para que os estudiosos das doenças mentais passassem a ver o homem de um ponto de vista holístico, lançando mão dos avanços efetuados por outras ciências, como a Neurologia, a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia etc. SOCIOPSIQUIATRIA A postura humanitária no tratamento dos doentes mentais foi se firmando progressivamente. O movimento do hospital aberto, na Inglaterra, e na promulgação do British Health Actm, nos anos 50, são exemplos claros do avanço dessa perspectiva.nos Estados Unidos, por meio do National Mental Health Act, de
1946, o governo passou a dar apoio a programas nacionais de saúde mental comunitária e à formação de especialistas e pesquisadores em doenças mentais. Por outro lado, a importância dos fatores sociais e ambientais (história das relações do indivíduo com o grupo familiar e com o ambiente cultural, reações a diferentes situações etc.) na formação da individualidade levou pesquisadores anglosaxões de linha psicanalítica a derrubar o conceito de saúde mental. Essa revolução de idéias presidiu uma mudança fundamental no pensamento e no tratamento psiquiátricos: o asilo, concebido como local onde as formas ditas fatias de alienação eram aprisionadas, foi substituído pelo hospital psiquiátrico ou por serviços abertos de tratamento, criados como organismos de atendimento destinados a tratar de doenças freqüentemente mais curáveis do que se acreditava. Desenvolveram-se ainda pesquisas que contribuíram para diferenciar a “psiquiatria pesada” (ou asilar), voltada para as grandes psicoses, da “psiquiatria leve”, destinada ao
tratamento das neuroses. A psiquiatria moderna ainda vive a contradição entre as duas tendências. De um lado, os que se alinham com a psiquiatria pesada, que se concentra nas formas clássicas de alienação, muitas vezes tendem a considerar mais a doença do que o doente; de outro, os que defendem a psicologia leve, cujo eixo são as reações neuróticas, tendem a concentrar-se no doente e esquecer a doença. Mesmo assim, a psiquiatria está buscando seu caminho no estabelecimento do diagnóstico e do tratamento das doenças mentais. Nas universidades e hospitaisescola de todo o mundo, institutos de pesquisa aprofundam o conhecimento sobre funcionamento da personalidade, as psicopatologias, a estrutura e as funções cerebrais. Surgem novas abordagens terapêuticas e preventivas, integradas à ciência médica. Hoje as doenças mentais são consideradas anomalias de origem tanto psicológica como orgânica. AS POLÍTICAS DE SAÚDE MENTAL NO BRASIL Entende-se como política um conjunto de metas das quais decorrem práticas
concretas que se desenvolvem numa relativa continuidade geográfica e temporal. Na área da saúde mental, entretanto, nunca existiu uma política específica. Conseqüentemente não se dispõe sequer das informações mais elementares (como as características da clientela, os modos de admissão ao sistema de assistência mental, indicadores sobre terapêuticas etc.) sobre o setor. O que se pode tentar empreender nesse campo é um levantamento histórico de como a sociedade brasileira entendeu e se
relacionou com as doenças mentais, influenciada pelo quadro internacional. No Brasil, o marco institucional da assistência psiquiátrica é o ano de 1852, quando é inaugurado o Hospício D. Pedro II, no Rio de Janeiro. A partir de então, foram construídos vários hospitais psiquiátricos, sobre os quais, entretanto, a classe médica tinha pouca influência, inclusive na admissão de pacientes. No período da Proclamação da República, no final do século XIX, o Brasil viveu profundas transformações, principalmente nos núcleos mais urbanizados, como São
Paulo. A urbanização acelerada do período foi acompanhada de:
Grande concentração populacional, devido às migrações internas e externas;
Deterioração das condições de vida da população trabalhadora, com a proliferação de cortiços e favelas;
Aumento da medicância nas ruas e disseminação de focos de desordem;
Deterioração das condições de higiene e saneamento, com a ampliação de focos de vetores de doenças infecciosas;
Eclosão de surtos epidêmicos, atingindo principalmente os estrangeiros recém-chegados.
Todos esses processos mostraram a precariedade da estrutura assistencial em saúde, inclusive na área de saúde mental. Nessa época, a assistência pública a alienados deixava muito a desejar no país. A exceção era o estado de São Paulo, onde o dinamismo econômico exigia grandes investimentos em saneamento e saúde pública para garantir o crescente afluxo de mão-de-obra, inclusive estrangeira. Em 1898, com FRANCO DE
ROCHA, foi construído o Hospício de Juqueri. Nesse final do século XIX, 46% do orçamento estadual dói aplicado nas áreas citadas. Os anos imediatamente posteriores à proclamação da República marcaram o estabelecimento da psiquiatria científica brasileira. Com a república, a assistência à saúde passou a ser atribuição do Estado e os representantes da classe médica passaram a deter o controle das instituições de saúde. O antigo Hospício D. Pedro II, por exemplo, sob o novo nome de Hospício Nacional de Alienados, teve
seu primeiro diretor médico. TEIXEIRA BRANDÃO. No início do século XX, o médico JULIANO RODRIGUES assumiu a direção do Hospício Nacional. Juntamente com OSWALDO CRUZ, ele buscou promover um amplo processo de saneamento no Rio de Janeiro. Embora o resultado tenha sido o encerramento dos alienados no asilo, quando possível havia tentativas de recupera-los. Nesse período, 31% dos internos eram estrangeiros __ o que fez surgirem proposituras de repatriação destes.
O estereótipo do brasileiro como preguiçoso deu abertura para que vadiagem fizesse parte do rol dos delitos e contravenções passíveis de punição (detenção). Assim, em pleno regime republicano, o indivíduo não era considerado cidadão por sua simples pertinência à comunidade nacional; para gozar do status de cidadão, ele deveria fazer parte de uma categoria profissional legalmente reconhecida. No início do século começaram a proliferar colônias agrícolas para tratamento de doentes mentais. Numa economia ainda predominantemente agrícola, essas
instituições encontraram campo fértil para florescer. Porém, do ponto de vista terapêutico, os hosícios-colônias não cumpriram um papel significativo, tendo servido simplesmente para excluir o doente mental do convívio das social. Adiante é apresentada a Tabela I, com uma listagem das instituições psiquiátricas criados no Brasil, de 1841 a 1954. Como se observa na tabelam, nos diversos estados brasileiros as colônias agrícolas constituíram solução complementar e, em muitos casos, exclusiva para a assistência a doentes mentais.
Em 1950, depois de dois conflitos mundiais e em meio a um acelerado processo de industrialização capitalista de cunho fordista, uma resolução da Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendava que os governos investissem em ações de saúde mental. Nessa época, alguns dos Institutos de Aposentadorias e Pensões que existiam no Brasil incorporaram parcialmente e incipientemente a assistência psiquiátrica entre seus benefícios. Em 1955, a introdução das drogas antipsicóticas abriu novas perspectivas no tratamento dos doentes mentais.
No final da década de 50, a situação na área de saúde mental era caótica: semente no Juqueri havia mais de 15 mil doentes mentais internados. A superlotação era agravada pelo fato de que a assistência psiquiátrica brasileira não acompanhava as atualizações terapêuticas que se processavam no exterior. Somente após 1964, a psiquiatria passou a se caracterizar como pratica assistencial de massa, quando começou a abranger os trabalhadores e seus dependentes. Isso fez com que proliferassem entidades privadas de assistência psiquiátrico, ao mesmo tempo que a rede ambulatorial
pública era obviamente subdimensionada. Houve, portanto, um nítido privilegiamento da função produtiva da psiquiatria, fazendo florescer e expandir a indústria hoteleira psiquiátrica. As internações triplicaram e, entre os internos nos hospitais psiquiátricos, começaram a aparecer quadros de pacientes neuróticos e alcoolistas. O início da década de 70, marcado por um grande aquecimento na economia, passou a demandar cada vez mais mão-de-obra, mesmo a menos qualificada. Nesse quadro, ganhou força a idéia de que o
objetivo no convívio social, evitando-se afasta-lo de suas atividades de trabalho. Vivia-se o período de “milagre econômico”, fase em que, exposta a jornadas mais extensas, que fizeram aumentar o índice de acidentes de trabalho, a massa trabalhadora amargava a diminuição de seu poder de compra, com reflexos em suas condições de saúde, principalmente nas grandes cidades. Ao longo desse período, o governo tentou intensificar ações de assistência médica emergenciais, exceto na área psiquiátrica.
A situação de negligência quando à saúde mental persiste, em graus variados, até os dias atuais. Uma situação nefasta, comparável à vivida pelos doentes mentais na Antiguidade ou na Idade Média. Para tentar reverte-a despontam novas possibilidades assistenciais, com base na perspectiva antimanicomial, inclusive sob um novo enquadramento legal.