NEPP - NÚCLEO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM PSICANÁLISE
TEORIA I
“O INCONSCIENTE”
PROFESSORO SÉRGIO COSTA
2
“E FREUD ENCONTROU O CAMINHO ABERTO PARA UMA REGIÃO IMENSAMENTE FÉRTIL EM NOVOS CONHECIMENTOS”
O INCONSCIENTE - Freud – vol. XIV – 1915. Escrito em menos de três semanas. Ponto culminante da sérieARTIGOS SOBRE METAFÍSICA. Para a Teoria Psicanalítica o conceito, segundo o qual, existem processos mentais inconscientes é fundamental.O interesse de Freud não era filosófico e sim prático. Achava que sem fazer essa suposição, era incapaz de explicar ou mesmo de descrever a grande variedade de fenômenos com que se defrontava. Por outro lado, encontrou o caminho aberto paras uma região imensamente fértil em novos conhecimentos. O reconhecimento da edis dos processos mentais inconscientes desempenhou papel essencial no sistema Herbart. Apesar disso, Freud não adotou essa hipótese nas primeiras fases de suas pesquisas psicopatológicas, mesmo sentindo a força desse argumento, segundo o qual “restringir os fatos mentais aos que são conscientes e entremeá-los de fatos puramente físicos e neurais, (rompe as continuidades psíquicas e introduz lacunas ininteligíveis na cadeia de fenômenos observados)”. Essa dificuldade poderia ser superada de duas formas superar os fatos físicos , e adotar a hipótese de que as lacunas são preenchidas com eventos mentais inconscientes desprezar os fatos mentais conscientes e estruturar uma cadeia puramente física, ininterrupta, que abrangeria todos os eventos da observação. Para Freud, a princípio, neurologista e voltado para a fisiologia, essa segunda possibilidade mostrou-se irresistivelmente atraente. A Psicanálise concebe a vida psíquica como evolução incessante de forças elementares, antagônicas, compostas ou resultantes, com um conceito dinâmico do psiquismo.
3
Freud criou a metapsicologia servindo para coordenar aos elementos estruturais de sua teoria. Como na maior parte das teorias científicas, parece, a princípio algo fantasioso, o que é necessário e pode manterse quando reúne condições que permitam conciliar as exigências práticas com os resultados das Científica”, encaminhada a Fliess em Setembro/ Outubro de 1895. Essa surpreendente produção visa escrever e explicar toda a gama do comportamento humano, normal e patológico, por meio de uma manipulação complicada de duas entidades materiais - o neurônio e a quantidade numa condição de fluxo, uma energia física ou química não especificada.experiências. Para Freud, a princípio, neurologista e voltado para a fisiologia, essa segunda possibilidade mostrou-se irresistivelmente atraente. Freud começou por adotar o método neurológico por descrição dos fenômenos psicopatológicos. Ficou intelectualmente fascinado pela possibilidade de construir uma psicologia a partir de ingredientes puramente neurológicos. Dedicou vários meses do ano de 1895 a essa tarefa e em Abril desse ano, (Freud, 1950 - Carta 23), escrevia ele a Fliess (Estou tão profundamente mergulhado na Psicologia para Neurologistas, que ela me consome inteiramente, a ponto de me ver obrigado a interromper minhas atividades por excesso de trabalho. Jamais estive tão intensamente preocupado com alguma coisa. E será que isso redundará em alguma coisa). Isso redundou em alguma coisa muitos meses depois – “O Projeto Para uma Psicologia A necessidade de postular quaisquer processos mentais inconscientes foi, dessa forma inteiramente evitada. A cadeia de eventos físicos era ininterrupta e completa. Muitas razões contribuíram para que O Projeto tenha sido concluído. O motivo principal foi que, o neurologista estava sendo separado e deslocado por Freud o psicanalista. O elaborado mecanismo dos sintomas neurônico era grosseiro demais para lidar com as sutilezas, que estavam sendo trazidas à luz pela análise psicológica, sutilezas que só poderiam ser explicadas nos processos mentais. Freud em “A Interpretação dos Sonhos” –Capítulo VII pela primeira vez revelou o inconsciente como era, como funcionava, como diferia de outras partes da mente e quais eram suas relações recíprocas com elas. Inconsciente Numa fase anterior evidenciou que era ambíguo.
4
Ao investigar essa ambigüidade, estabelecera a diferença entre os empregos : • • •
Descritivo Dinâmico Sistemático
Repete as distinções na Seção II deste artigo contraste entre consciente e inconsciente. Volta a elas em “O Ego e o ID” (1923)- posição em seu todo posta em perspectiva introduziu um novo quadro estrutural da mente. E na “Conferência XXXI” das New Introductory a Lectures (1933 ) Esse critério é, em última análise, nosso único farol nas trevas da psicologia profunda.
O INCONSCIENTE Aprendemos com a Psicanálise que a essência do processo de repressão não está em destruir a idéia que reprime um instinto, mas em evitar que se torne consciente. Quer dizer que a idéia se encontra no estado inconsciente - e como tal pode produzir efeitos, inclusive alguns que atingem a consciência. Tudo que e reprimido deve permanecer inconsciente, mas o reprimido não abrange tudo que é inconsciente. O alcance do inconsciente e mais amplo—o reprimido e apenas uma parte do inconsciente. Devemos chegar ao conhecimento do inconsciente – somente depois que ele sofreu a transformação ou tradução para algo consciente. O trabalho psicanalítico nos mostra, a cada dia, que esse tipo de tradução e possível. A fim de isso aconteça o analisando deve superar certas resistências, como aquelas que transformou o material rejeitado em algo reprimido rejeitando-o do consciente. Esse trabalho de supor a existência de algo mental inconsciente, e seu emprego visando às finalidades científicas, tem sido vastamente contestado. Freud responde que sua suposição a respeito do inconsciente é NECESSÁRIA e LEGÍTIMA e que dispomos de numerosas provas de sua existência. 5
NECESSÁRIA porque os dados da consciência apresentam um grande número de lacunas, tanto nos sadios como nos doentes ocorrem com freqüência ATOS PSÍQUICOS que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais a consciência não oferece qualquer prova. Estes não só incluem parapraxias e sonhos em pessoas sadias, mas também tudo aquilo que é descrito como sintomas psíquicos ou como obsessão nos doentes. A suposição da existência do inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bem sucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. Devemos adotar também a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo o quanto acontece na mente deve também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação insustentável. O conteúdo da consciência e muito pequeno, a maior parte do que chamamos de conhecimento consciente deve permanecer por consideráveis períodos de tempo, num estado de latência, isto é, deve estar psiquicamente inconsciente. Quando todas as nossas lembranças latentes são levadas em consideração, fica totalmente incompreensível que a existência do inconsciente possa ser negada. Aqui, encontramos a objeção que essas lembranças latentes já não podem mais ser descritas como psíquicas, pois correspondem a resíduos de processos somáticos a partir dos quais o psíquico pode mais uma vez aflorar- uma lembrança latente e um resíduo inquestionável de um processo psíquico. A equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inadequada: - Ela rompe as continuidades psíquicas; - mergulha-nos nas dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico; - esta sujeita a censura de superestimar o papel desempenhado pela consciência; - forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos. Está claro que os estados latentes da vida mental, cuja existência é inegável, devem ser concebidos como estados mentais conscientes
6
ou como estados físicos. O que difere os estados latentes dos estados conscientes e precisamente a consciência. Assim não hesitaremos em tratá-los como objetos de pesquisas psicológicas e, em manipulá-los na mais íntima conexão com estados mentais conscientes. LEGÍTIMAVisto que ao postulá-la não nos estamos afastando um só passo de nosso habitual e aceito modo de pensar. A consciência torna cada um de nós cônscio apenas de seus próprios estados mentais. Que também outras pessoas possuam uma consciência, e uma dedução que inferimos por analogia, a fim de que sua conduta fique inteligível para nós. Atribuímos, a todos os demais, a nossa própria constituição, e portanto, também a nossa consciência e que essa identificação é uma condição “sine qua non” para a nossa compreensão. A Psicanálise exige que também apliquemos esse processo de inferência a nós mesmos - procedimento que não estamos por natureza inclinados (todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e, que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem), devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa. A experiência mostra que compreendemos muito bem como interpretar em outras pessoas os mesmos atos que nos recusamos a aceitar como mentais em nós mesmos. Algum impedimento mental desvia nosso investigação de nosso próprio eu, impedindo que obtenhamos dele um conhecimento real. Esse processo de inferências, quando aplicado ao próprio indivíduo apesar da oposição interna, não leva a revelação de um inconsciente, leva a suposição de uma outra segunda consciência está unido à consciência que se conhece. Críticas mostram-nos: 1. uma consciência a respeito da qual seu possuidor nada conhece e algo muito diferente de uma consciência pertencente a outra pessoa. Que tal consciência desprovida de sua característica mais importante, mereça qualquer exame. Aqueles que resistiram a suposição de um elemento psíquico inconsciente, provavelmente não estão dispostos a trocá-lo por uma consciência inconsciente. 2. a análise revela que os diferentes processos mentais latentes que inferimos, desfrutam de um alto grau de independência mutua, como 7
se não tivesse ligação um com o outro, e nada soubessem um do outro. Nesse caso devemos estar preparados para supor a existência em nós, não apenas de uma segunda consciência mas de um número ilimitado de estados de consciência, todos desconhecidos para nós e desconhecidos entre si. 3. Devemos levar em conta que a investigação analítica revela alguns desses processos latentes como possuidores de características e peculiaridades que parecem estranhas a nós, ou mesmo incríveis, e que vão diretamente de encontro aos atributos da consciência que nos são familiares. Temos motivos para modificar nossa inferência a respeito de nós mesmos (o que está provado não é a existência de uma segunda consciência em nós, mas a existência de atos psíquicos que carecem de consciência.) Na Psicanálise podemos afirmar que os processos mentais são inconscientes em si mesmos. E assemelhar a percepção deles por meio da consciência a percepção do mundo externo, por meio dos órgãos sensoriais. A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova expansão de animismo primitivo, que nos fez ver cópia de nossa própria consciência em tudo que nos cerca. Por outro lado, assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devem ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível é percebido, assim também a Psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. A correção da percepção interna, não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa; Os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo. II - Vários significados do inconsciente O ponto de vista topográfico O inconsciente abrange: 8
Atos que são meramente latentes, temporariamente inconscientes, mas que não diferem dos conscientes. Atos reprimidos, que caso se tornem conscientes, estariam propensos a sobressair num contraste mais grosseiro com o restante dos processos conscientes. Acabaríamos com todos os mal-entendidos se, - descrevêssemos os vários tipos de atos psíquicos; -desprezássemos a questão de saber se são conscientes ou inconscientes -classificássemos e correlacionássemos apenas em função de sua relação com instintos e finalidades, de sua composição e da hierarquia dos sistemas psíquicos a que pertencem. Isto é impraticável, pois não podemos escapar (a) ambigüidade de empregar as palavras consciente e inconsciente num sentido descritivo e num sentido sistemático, sendo que neste último, elas significam inclusão em sistemas particulares e a posse de certas características. Temos que especificar os motivos pelos quais distinguimos os sistemas psíquicos, e, ao fazê-lo, talvez não sejamos capazes de fugir ao atributo de sermos conscientes, pois ele constitui o ponto de partida de todas as nossas investigações. Vamos empregar pelo menos por escrito a abreviação Cs. para consciência e Ics. para o que é inconsciente, quando estivermos usando as duas palavras em seu sentido sistemático. Um ato psíquico passa por duas fases quanto a seu estado, entre as quais se interpõe uma espécie de teste (censura). 1. Na primeira fase o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics. . Se no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase. Diz-se então que foi reprimido devendo permanecer inconsciente. 2. Se passar pelo teste da censura, entrará na segunda fase pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. Mas o fato de pertencer a esse sistema ainda não determina de modo inequívoco sua relação com a consciência.
9
Ainda não é consciente, embora seja capaz de se tornar. Em vista dessa capacidade de se tornar consciente, também denominamos o sistema Cs. de (pré-consciente) . Se ocorrer, que uma certa censura desempenhe o papel em determinar se o pré-consciente se torna consciente, procederemos a uma discriminação mais acentuada entre os sistemas Pcs. E Cs. Por ora contentemo-nos em ter em mente que o sistema Pcs. participa das características do sistema Cs., e que a censura rigorosa exerce sua função no ponto de transição do Ics. para o Pcs. (ou Cs.).
-
Aceitando a existência desses dois (três) sistemas psíquicos, a Psicanálise desviou-se mais um passo da (psicologia da consciência) descritiva e, levantou novos problemas, adquirindo um novo conteúdo. Difere, principalmente : devido a seu conceito dinâmico dos processos dos mentais; e agora leva em conta, a topografia psíquica; indica em relação a determinado ato mental, dentro de que sistema ou entre que sistemas ela se verifica; Recebeu a denominação de Psicologia Profunda; Poderá ser bem mais enriquecida se ainda se levar em conta um outro ponto de vista.
“O Projeto” l900 Introdução A intenção é prover uma psicologia que seja ciência natural: isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais especificáveis, tornando assim esses processos claros e livres de contradição. Duas são as idéias principais envolvidas: [1] A que distingue a atividade do repouso deve ser considerada como Q, sujeita às leis gerais do movimento. (2) Os neurônios devem se encarados como as partículas materiais. N e Q — Hoje em dia as experiências desse tipo são freqüentes. [1] (a) Primeiro Teorema Principal: A Concepção Quantitativa Deriva diretamente das observações clínicas patológicas, especialmente no que diz respeito a idéias excessivamente intensas — na histeria e nas obsessões, nas quais, como veremos, a característica quantitativa emerge com mais clareza do que seria
10
normal. Processos, como estímulos, substituição, conversão e descarga que tiveram de ser ali descritos [em conexão com esses distúrbios], sugeriram diretamente a concepção da excitação neuronal como uma quantidade em estado de fluxo. Parecia lícito tentar generalizar o que ali se comprovou. Partindo dessa consideração, pôde-se estabelecer um princípio básico da atividade neuronal em relação a Q, que prometia ser extremamente elucidativo, visto que parecia abranger toda a função. Esse é o princípio de inércia neuronal: os neurônios tendem a se livrar de Q. A estrutura e o desenvolvimento, bem como as funções [dos neurônios], devem ser compreendidos com base nisso.
[2] (b) Segundo Teorema Principal: A Teoria do Neurônio Em primeiro lugar, o princípio da inércia explica a dicotomia estrutural [dos neurônios] em motores e sensoriais, como um dispositivo destinado a neutralizar a recepção de Q, através de sua descarga. O movimento reflexo torna-se compreensível agora como uma forma estabelecida de efetuar essa descarga: a origem da ação fornece o motivo para o movimento reflexo. Se retrocedermos ainda mais, poderemos, em primeira instância, vincular o sistema nervoso, como herdeiro da irritabilidade geral do protoplasma, com a superfície externa irritável [de um organismo], que é interrompida por extensões consideráveis de superfície não-irritável. Um sistema nervoso primário se vale dessa Q, assim adquirida, para descarregá-la nos mecanismos musculares através das vias correspondentes, e desse modo se mantém livre do estímulo. Essa descarga representa a função primária do sistema nervoso. Aqui existe espaço para o desenvolvimento de uma função secundária. Pois, entre as vias de descarga, são preferidas e conservadas aquelas que envolvem a cessação do estímulo: fuga do estímulo. Em geral, aqui se verifica uma proporção entre a Q de excitação e o esforço requerido para a fuga do estímulo, de modo que o princípio da inércia não seja abalado por isso. Desde o início, porém, o princípio da inércia é rompido por outra circunstância. À proporção que [aumenta] a complexidade interior [do organismo], o sistema nervoso recebe estímulos do próprio elemento somático — os estímulos endógenos — que também têm que ser descarregados. Esses estímulos se originam nas células do corpo e criam as grandes necessidades: como, respiração, sexualidade. Deles, ao contrário do que faz com os estímulos externos, o 11
organismo não pode esquivar-se; não pode empregar a Q deles para a fuga do estímulo. Eles cessam apenas mediante certas condições, que devem ser realizadas no mundo externo. (Cf., por exemplo, a necessidade de nutrição.) Para efetuar essa ação (que merece ser qualificada de “específica”), requer-se um esforço que seja independente da Q endógena e, em geral, maior, já que o indivíduo se acha sujeito a condições que podem ser descritas como as exigências da vida. Em conseqüência, o sistema nervoso é obrigado a abandonar sua tendência original à inércia (isto é, a reduzir o nível [da Q a zero). Precisa tolerar [a manutenção de] um acúmulo de Q suficiente para satisfazer as exigências de uma ação específica. Mesmo assim, a maneira como realiza isso demonstra que a mesma tendência persiste, modificada pelo empenho de ao menos manter a Q no mais baixo nível possível e de se resguardar contra qualquer aumento da mesma — ou seja, mantê-la constante. Todas as funções do sistema nervoso podem ser compreendidas sob o aspecto das funções primária ou secundária impostas pelas exigências da vida. A idéia de combinar esse teoria da Q com o conhecimento dos neurônios, estabelecido pela histologia contemporânea, constitui o segundo pilar desta tese. A essência dessas novas descobertas é que o sistema nervoso se compõe de neurônios distintos e construídos de forma similar, que estão em contacto recíproco por meio de uma substância estranha, que terminam uns sobre os outros como fazem sobre porções de tecido estranho, [e] nos quais se acham estabelecidas determinadas vias de condução, no sentido de que eles [os neurônios] recebem [excitações] através dos processos celulares [dendritos] e [deles se descarregam] através de um cilindro axial [axônio]. Além disso, possuem inúmeras ramificações de vários calibres. Se combinarmos essa descrição dos neurônios com a concepção da teoria da Q, chegaremos à noção de um neurônio catexizado, cheio de determinada Q, ao passo que, em outras circunstâncias, ele pode estar vazio. O princípio da inércia [em [1]] encontra expressão na hipótese de uma corrente que parte das vias de condução ou processos celulares [dendritos] em direção ao cilindro axial. Cada neurônio isolado é, assim, um modelo de todo o sistema nervoso, com sua dicotomia de estrutura, sendo o cilindro axial o órgão de descarga. A função secundária [do sistema nervoso], porém, que requer a acumulação da Q [em [1]], torna-se possível ao se admitir que existam resistências opostas à descarga; e a estrutura dos neurônios torna 12
provável a localização de todas as resistências nos contactos [entre os neurônios], que desse modo funcionariam como barreiras. A hipótese de barreiras de contacto é frutífera em vários sentidos. [1]
[3] As Barreiras do Contacto A primeira justificativa para essa hipótese resulta da consideração de que a via de condução passa, a essa altura, através do protoplasma indiferenciado, e não (como se dá afora isso, dentro do neurônio) através do protoplasma diferenciado, que provavelmente se adapta melhor à condução. Isso faz sugerir que a capacidade de condução esteja ligada à diferenciação, de modo que se pode esperar que o próprio processo de condução criará uma diferenciação no protoplasma e, com isso, uma melhor capacidade condutora para a condução subseqüente. Além disso, a teoria das barreiras de contacto pode resultar nas seguintes vantagens. Uma das principais características do tecido nervoso é a memória; isto é, em termos muito gerais, a capacidade de ser permanentemente alterado por simples ocorrências — característica que contrasta tão flagrantemente com o modo de ação de uma matéria que permita a passagem de um movimento ondulatório, para logo voltar a seu estado primitivo. Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a “memória”. Ora, qualquer explicação dessa espécie se depara com a dificuldade de admitir, por um lado, que, depois de cessar a excitação, os neurônios fiquem permanentemente modificados em relação a seu estado anterior, ao passo que, por outro lado, não se pode negar que as novas excitações, em geral, encontrem as mesmas condições de recepção que encontraram as excitações precedentes. Desse modo, parece que os neurônios teriam que ser ao mesmo tempo, indiferenciadamente, influenciados e inalterados. Não se pode imaginar, de improviso, um aparelho capaz de funcionamento tão complicado; a solução, portanto, consiste em atribuir a uma classe de neurônios a característica de ser permanentemente influenciada pela excitação, ao passo que a imutabilidade — a característica de estar livre para excitações inéditas — corresponderia a outra classe. Daí surgir a atual distinção entre “células perceptuais” e “células 13
mnêmicas” — distinção, porém, que não se aplica a nenhum outro contexto, e nada pode recorrer a seu favor. A teoria das barreiras de contacto, se adota essa solução, pode ser expressa nos termos que se seguem. Há duas classes de neurônios: [1] os que deixam passar a Q como se não tivessem barreiras de contacto e que, da mesma forma, depois de cada passagem de excitação permanecem no mesmo estado anterior, e (2) aqueles cujas barreiras de contacto se fazem sentir, de modo que só permitem a passagem da Q com dificuldade ou parcialmente. Os dessa última classe podem, depois de cada excitação, ficar num estadodiferente do anterior, fornecendo assim uma possibilidade de representar a memória. Assim, existem neurônios permeáveis (que não oferecem resistência e nada retêm), destinados à percepção, e impermeáveis (dotados de resistência e retentivos de Q), que são portadores da memória e, com isso, provavelmente também dos processos psíquicos em geral. Daqui por diante chamarei ao primeiro sistema de neurônios de e, ao segundo, de . Seria conveniente agora esclarecer quais as suposições acerca dos neurônios que são imprescindíveis para abranger as características mais gerais da memória. O argumento é o seguinte. Esses neurônios ficam permanentemente alterados pela passagem de uma excitação. Se introduzirmos a teoria das barreiras de contacto: as barreiras de contacto deles ficam em estado permanentemente alterado. E como o conhecimento psico[lógico] demonstra a existência de algo assim como um re-aprender baseado na memória, essa alteração deve consistir em tornar as barreiras de contacto mais capazes de condução, menos impermeáveis e, assim, mais semelhantes às do sistema . Descreveremos esse estado das barreiras de contacto como grau de facilitação [Bahnung]. Pode-se então dizer: a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios . Suponhamos que todas as barreiras de contacto estejam igualmente facilitadas ou (o que vem a dar no mesmo) ofereçam resistência idêntica; nesse caso, evidentemente, as características da memória não emergiriam. Pois, em relação à passagem da excitação, a memória é evidentemente uma das forças determinantes e orientadoras de sua direção, e, se a facilitação fosse idêntica em todos os sentidos, não seria possível explicar por que motivo uma via teria preferência sobre outra. Por isso, pode-se dizer de maneira ainda mais
14
correta que a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios . De que depende, então a facilitação nos neurônios ? Segundo o conhecimento psico[lógico], a memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz contínua) depende de um fator que se pode chamar de magnitude daimpressão e da freqüência com que a mesma impressão se repete. Traduzido em teoria: a facilitação depende da Q que passa pelo neurônio no processo excitativo) e do número de vezes em que esse processo se repete. Daí se vê, portanto, que Q é o fator operativo e que a quantidade mais a facilitação que resultam de Q são ao mesmo tempo algo capaz de substituir Q. Somos, aqui, quase involuntariamente obrigados a recordar que a tendência do sistema nervoso, mantida durante cada modificação, é a de evitar que ele fique carregado de Q ou a de reduzir a carga ao mínimo possível. Sob a pressão das exigências da vida, o sistema nervoso se viu forçado a guardar uma reserva de Q [em [1]]. Para esse fim, teve de aumentar o número de seus neurônios, que precisaram ser impermeáveis. Agora evita, pelo menos em parte, ficar cheio de Q (catexia), recorrendo a facilitações. Verifica-se, pois, que as facilitações servem à função primária. [do sistema nervoso]. A necessidade de encontrar um lugar para a memória requer algo um pouco à parte da teoria das barreiras de contacto. É preciso que a cada neurônio correspondam, em geral, diversas vias de conexão com outros neurônios — isto é, de várias barreiras de contacto. Disso depende, com efeito, a possibilidade da escolha determinada pela facilitação [em [1]]. Isto posto, torna-se bastante evidente que o estado de facilitação de cada barreira de contacto deve ser independente do de todas as demais barreiras do mesmo neurônio , do contrário não haveria de novo nenhuma preferência, ou seja, nenhuma motivação. Daí pode-se tirar uma conclusão negativa a respeito da natureza do estado “facilitado”. Se imaginarmos um neurônio cheio de Q — isto é, catexizado — só poderemos supor que essa Q [sic] esteja distribuída uniformemente por todas as regiões do neurônio e, portanto, também por todas as suas barreiras de contacto. Por outro lado, não há dificuldade em imaginar que, no caso de Q em estado fluente, seja tomada apenas uma via particular através do neurônio; de modo que somente uma de suas barreiras de contacto fique sujeita à ação da Q fluente e depois conserve a facilitação que esta lhe proporciona. Por conseguinte, a facilitação não pode basear-se numa catexia que
15
permaneça retida, pois isso não produziria as diferenças de facilitação nas barreiras de contacto de um mesmo neurônio. Resta observar em que consiste, além disso, a facilitação. Uma primeira idéia poderia ser: na absorção da Q pelas barreiras de contacto. Será, talvez, esclarecido mais tarde. [Cf. em. [1]] A Q que deixou para trás a facilitação é, sem dúvida, descarregada — precisamente em conseqüência da facilitação, que, com efeito, aumenta a permeabilidade. Além disso, não é imprescindível o caso em que a facilitação que persiste depois de uma passagem de Q seja maior, como deveria ser durante a passagem. [Ver em [1].] É possível que apenas subsista uma fração dela como facilitação permanente. Da mesma forma, por enquanto ainda é impossível determinar se uma única passagem de Q:3 é equivalente a três passagens de uma Q. Tudo isso terá que ser levado em consideração à luz das aplicações posteriores da teoria aos fatos psíquicos.
[9] O Funcionamento do Aparelho Agora já é possível elaborar o seguinte quadro de funcionamento do aparelho constituído por . As cargas de excitação do exterior penetram até as extremidades do sistema . Primeiro esbarram nos dispositivos de terminações nervosas, que as fragmentam em frações cuja ordem de magnitude é provavelmente superior à dos estímulos intercelulares (quem sabe não pertenceriam, afinal de contas, à mesma ordem?). Aqui nos deparamos com um primeiro limiar: abaixo de determinada quantidade não se pode constituir nenhuma fração eficaz, de modo que a capacidade efetiva dos estímulos fica, até certo ponto, limitada às quantidades médias. Além disso, a natureza dos invólucros das extremidades nervosas atua como uma peneira, de maneira que nem todo tipo de estímulo pode operar nos diversos pontos terminais. Os estímulos que realmente chegam aos neurônios possuem uma quantidade e uma característica qualitativa; no mundo externo, formam uma série da mesma qualidade e de uma quantidade que vai desde o limiar até o limite da dor. Enquanto, no mundo externo, os processos exibem uma sucessão contínua em duas direções, segundo a quantidade e o período (qualidade), os estímulos correspondentes [aos processos] ficam, no que diz respeito à quantidade, em primeiro lugar reduzidos e, em segundo, limitados em virtude de uma excisão, e, no que diz respeito à 16
qualidade, ficam descontínuos, de modo que certos períodos nem sequer atuam como estímulos. [Fig. 12.]
Fig. 12 A característica qualitativa dos estímulos se propaga então sem empecilhos por , por meio de para , onde produz sensação; é representada porum período particular do movimento neuronal, que certamente não é o mesmo do estímulo, mas tem uma determinada relação com ele, segundo uma fórmula de redução que desconhecemos. Esse período não persiste por muito tempo e desaparece em direção ao lado motor; e, como pode passar sem dificuldade, tampouco deixa qualquer lembrança em seu rastro. A quantidade do estímulo excita a tendência do sistema nervoso à descarga, transformando-se numa excitação motora proporcional. O aparelho da motilidade está diretamente ligado a . As quantidades assim traduzidas produzem um efeito que lhes é quantitativamente muito superior, penetrando nos músculos, glândulas etc. — atuando ali, ou seja, por uma liberação [da quantidade], ao passo que entre os neurônios só ocorre uma transferência. Além disso, nos neurônios terminam os neurônios . Para estes últimos é transferida uma parte da Q, mas apenas uma parte — uma fração, talvez, correspondente à magnitude de um estímulo intercelular. A essa altura pode-se perguntar se a Q transferida para não aumenta em proporção à Q que passa para , de modo tal que um estímulo maior produza um efeito psíquico mais forte. Aqui parece manifestarse um dispositivo especial, que mais uma vez mantém a Q afastada de . Pois a via sensorial de condução em possui uma estrutura peculiar. Ela se ramifica continuamente e apresenta vias de espessura variável que vão desembocar em numerosos pontos terminais — provavelmente, com o significado seguinte: um estímulo mais forte segue uma via diferente de um mais fraco. [Cf. Fig. 13.]
Fig. 13 17
Por exemplo, [1] Q percorre unicamente a via I e, no ponto terminal , transmitirá umafração a . 2 (Q) não transmitirá uma fração dupla em a, mas poderá passar também pela via II, que é mais estreita, e abrirá outro ponto terminal para [em b]. 3 (Q) abrirá a via mais estreita [III] e a transmitirá também por . É assim que a via única de fica aliviada de sua carga; a maior quantidade em será expressa pelo fato de ele catexizar vários neurônios em em vez de um só. As diferentes catexias dos neurônios podem, nesse caso, ser mais ou menos iguais. Se a Q em produzir uma catexia em , 3 (Q) se expressará por uma catexia em 1 + 2 + 3. Logo, uma quantidade em se expressa por um enredo em . Por meio disso, a Q fica afastada de , ao menos dentro de certos limites. Isso lembra muito as condições impostas pela lei de Fechner, que poderiam ser localizadas. Desse modo, ψ é catexizado a partir de φ em Qs que são normalmente pequenas. A quantidade da excitação de φ se expressa em ψ por enredamento; sua qualidade se expressa topograficamente, uma vez que, segundo suas relações anatômicas, os diferentes órgãos sensoriais só se comunicam através de φ com determinados neurônios ψ. Mas ψ também recebe catexia do interior do corpo; e é provável que os neurônios ψ devam ser divididos em dois grupos: os neurônios de pallium, que são catexizados a partir de φ, e os neurônios nucleares, catexizados a partir das vias endógenas de condução.
ARTIGOS SOBRE METAPSICOLOGIA INTRODUÇÃO DO EDITOR INGLÊS Freud publicou o primeiro relato ampliado de seus conceitos sobre teoria psicológica no sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos (1900a) (Edição Standard Brasileira, Vols. IV-V, IMAGO Editora, 1972), que incorpora, de forma transmudada, parte da substância de seu ‘Projeto’ anterior e inédito (1950a [1895]). Afora breves apreciações ocasionais, como a do Capítulo VI de seu livro sobre chistes (1905c), dez anos se passaram antes que ele tornasse a penetrar profundamente nos problemas teóricos. A um artigo exploratório sobre ‘The Two Principles of Mental Functioning’ (1911b) seguiram-se outras abordagens mais ou menos experimentais — na Parte III de sua análise de Schreber (1911c), em seu artigo em inglês sobre o inconsciente (1912g), e na longa discussão sobre o narcisismo
18
(1914c). Finalmente, na primavera e no verão de 1915, ele mais uma vez empreendeu uma exposição completa e sistemática de suas teorias psicológicas. Os cinco artigos que se seguem formam uma série interligada. Conforme sabemos por uma nota de rodapé ao quarto desses artigos (ver em [1]), fazem parte de uma coletânea que Freud havia originalmente planejado publicar em forma de livro sob o título Zur Verbereitung einer Metapsychologie (Preliminares a uma Metapsicologia). Ele acrescenta que a intenção da série era proporcionar um fundamento teórico estável à psicanálise. Embora os três primeiros desses artigos tivessem sido publicados em 1915 e os dois últimos em 1917, sabemos pelo Dr. Ernest Jones (1955, 208) que de fato todos foram escritos num período de cerca de sete semanas entre 15 de março e 4 de maio de 1915. Também sabemos pelo Dr. Jones (ibid., 209) que mais sete artigos foram acrescentados à série durante os três meses seguintes, tendo sido toda a coletânea de doze concluída em 9 de agosto. Esses outros sete artigos, contudo, nunca foram publicados por Freud, parecendo provável que numa data posterior ele os tenha destruído, uma vez que não se encontrou vestígio algum dos mesmos. Na realidade, sua própria existência permaneceu desconhecida ou esquecida até que o Dr. Jones veio a examinar as cartas de Freud. Na época em que escrevia, em 1915, manteve seus correspondentes (Abraham, Ferenczi e Jones) informados do seu andamento, mas parece existir apenas uma única referência aos mesmos depois, numa carta a Abraham, em novembro de 1917. Esta deve ter sido escrita mais ou menos na mesma época da publicação dos dois últimos artigos vindo a lume, e parece dar a entender que os sete outros ainda existiam e que ele ainda pretendia publicá-los, embora sentisse que o momento oportuno não havia chegado. Temos conhecimento dos assuntos tratados por cinco dos últimos sete artigos: Consciência, Ansiedade, Histeria de Conversão, Neurose Obsessiva e as Neuroses de Transferência em Geral, e podemos descobrir possíveis referências aos mesmos nos artigos remanescentes. Podemos até mesmo adivinhar os assuntos que talvez tenham sido abordados pelos dois artigos não especificados — a saber, Sublimação e Projeção (ou Paranóia) —, pois há alusões mais ou menos claras a eles. A coletânea dos doze artigos teria sido assim abrangente, tratando dos processos subjacentes na maioria das principais neuroses e psicoses (histeria de conversão, histeria de 19
angústia, neurose obsessiva, insanidade maníaco-depressiva e paranóia) bem como nos sonhos, com os mecanismos mentais de repressão, sublimação, introjeção e projeção, e com os dois sistemas mentais da consciência e o inconsciente. É difícil exagerar o que perdemos com o desaparecimento desses artigos. Havia uma conjunção sui generis de fatores favoráveis na época em que Freud os escreveu. Seu principal trabalho teórico (o sétimo capítulo de A Interpretação de Sonhos) fora escrito quinze anos antes, numa etapa relativamente inicial de seus estudos psicológicos. Agora, contudo, ele contava com cerca de vinte e cinco anos de experiência psicanalítica em que basear suas construções teóricas, estando no ápice de sua capacidade intelectual. E foi nessa época que a circunstância acidental da redução de sua clínica, devida à irrupção da Primeira Guerra Mundial, lhe deu o necessário lazer durante cinco meses, nos quais pôde levar a cabo seu projeto. Uma tentativa de consolo reside, sem dúvida, na reflexão de que grande parte do conteúdo dos artigos desaparecidos deve ter chegado aos escritos ulteriores de Freud. Mas muito daríamos para possuir apreciações conexas sobre assuntos tais como consciência ou sublimação, em lugar das alusões dispersas e relativamente escassas com as quais temos, de fato, de nos contentar. Em vista da importância especial dessa série de artigos, a fidelidade de seu raciocínio e a ocasional obscuridade dos tópicos de que tratam, foram enviados esforços extraordinários para exprimi-los com exatidão. A tradução em todos os seus pormenores (e especialmente onde há trechos duvidosos) acompanhou tão de perto o texto alemão quanto possível, mesmo correndo o risco de tornar árida a sua leitura. (Termos não-ingleses como, por exemplo, ‘o reprimido’ e ‘o mental’ foram empregados com o máximo de liberdade.) Embora a versão publicada em 1925 tenha servido de base, a que se segue é uma tradução inteiramente nova. Também se afigurou razoável incluir mais do que a quantidade comum de material introdutório, anotar o texto com o máximo de liberdade e, em particular, apresentar amplas referências a outras partes dos escritos de Freud que possam lançar luz sobre quaisquer obscuridades. Uma relação dos seus trabalhos teóricos mais importantes será encontrada num apêndice, no fim da série (ver em [1]). Trechos das traduções publicadas em 1925 de ‘Os Instintos e suas Vicissitudes’, ‘Repressão’ e ‘Luto e Melancolia’ foram incluídos em A
20
General Selection from the Works of Sigmund Freud, de Rickman (1937, 79-98, 99-110 e 142-161).
I - JUSTIFICAÇÃO DO CONCEITO DE INCONSCIENTE Nosso direito de supor a existência de algo mental inconsciente, e de empregar tal suposição visando às finalidades do trabalho científico, tem sido vastamente contestado. A isso podemos responder que nossa suposição a respeito do inconsciente é necessária e legítima, e que dispomos de numerosas provas de sua existência. Ela é necessária porque os dados da consciência apresentam um número muito grande de lacunas; tanto nas pessoas sadias como nas doentes ocorrem com freqüência atos psíquicos que só podem ser explicados pela pressuposição de outros atos, para os quais, não obstante, a consciência não oferece qualquer prova. Estes não só incluem parapraxias e sonhos em pessoas sadias, mas também tudo aquilo que é descrito como um sintoma psíquico ou uma obsessão nas doentes; nossa experiência diária mais pessoal nos tem familiarizado com idéias que assomam à nossa mente vindas não sabemos de onde, e com conclusões intelectuais que alcançamos não sabemos como. Todos esses atos conscientes permanecerão desligados e ininteligíveis, se insistirmos em sustentar que todo ato mental que ocorre conosco, necessariamente deve também ser experimentado por nós através da consciência; por outro lado, esses atos se enquadrarão numa ligação demonstrável, se interpolarmos entre eles os atos inconscientes sobre os quais estamos conjeturando. Uma apreensão maior do significado das coisas constitui motivo perfeitamente justificável para ir além dos limites da experiência direta. Quando, ademais, disso resultar que a suposição da existência de um inconsciente nos possibilita a construção de uma norma bemsucedida, através da qual podemos exercer uma influência efetiva sobre o curso dos processos conscientes, esse sucesso nos terá fornecido uma prova indiscutível da existência daquilo que havíamos suposto. Assim sendo, devemos adotar a posição segundo a qual o fato de exigir que tudo quanto acontece na mente deve também ser conhecido pela consciência, significa fazer uma reivindicação insustentável. Podemos ir além e afirmar, em apoio da existência de um estado psíquico inconsciente, que, em um dado momento qualquer, o conteúdo da consciência é muito pequeno, de modo que a maior parte
21
do que chamamos conhecimento consciente deve permanecer, por consideráveis períodos de tempo, num estado de latência, isto é, deve estar psiquicamente inconsciente. Quando todas as nossas lembranças latentes são levadas em consideração, fica totalmente incompreensível que a existência do inconsciente possa ser negada. Aqui, porém, encontramos a objeção de que essas lembranças latentes já não podem ser descritas como psíquicas, pois correspondem a resíduos de processos somáticos a partir dos quais o psíquico pode mais uma vez aflorar. A resposta óbvia a isso é a de que uma lembrança latente é, pelo contrário, um resíduo inquestionável de um processo psíquico. Contudo, é mais importante conceber claramente que essa objeção se baseia na equivalência — que, na verdade, não é explicitamente declarada, embora considerada axiomática — entre o consciente e o mental. Essa equivalência ou é um petitio principii, que incorre em petição de princípio ao supor que tudo que é psíquico é também necessariamente consciente, ou é uma questão de convenção, de nomenclatura. Nesse último caso, como qualquer outra convenção, não está evidentemente sujeita à refutação. Permanece, contudo, a questão de saber se a convenção é suficientemente adequada para estarmos propensos a adotá-la. A isso podemos responder que a equivalência convencional entre o psíquico e o consciente é totalmente inadequada. Ela rompe as continuidades psíquicas, mergulha-nos nas dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está sujeita à censura de, sem um motivo óbvio, superestimar o papel desempenhado pela consciência, forçando-nos prematuramente a abandonar o campo da pesquisa psicológica sem ser capaz de nos oferecer qualquer compensação de outros campos. Está claro, em todo caso, que essa questão — a de saber se os estados latentes da vida mental, cuja existência é inegável, devem ser concebidos como estados mentais conscientes ou como estados físicos — ameaça transformar-se numa controvérsia verbal. Portanto, é melhor focalizarmos nossa atenção naquilo que conhecemos com certeza a respeito da natureza desses estados controvertidos. No que se refere às suas características físicas, elas nos são totalmente inacessíveis: nenhum conceito psicológico ou processo químico pode dar-nos qualquer idéia a respeito de sua natureza. Por outro lado, sabemos com certeza que possuem abundantes pontos de contato com processos mentais conscientes; com o auxílio de um pouco de trabalho podem ser transformados em processos mentais conscientes ou substituídos por eles, e todas as categorias que empregamos para 22
descrever os atos mentais conscientes, tais como idéias, propósitos, resoluções, e assim por diante, podem ser aplicadas a eles. Na verdade, somos forçados a dizer de alguns desses estados latentes que o único aspecto em que diferem dos estados conscientes é precisamente na ausência de consciência. Assim, não hesitaremos em tratá-los como objetos de pesquisa psicológica, e em manipulá-los na mais íntima conexão com atos mentais conscientes. A obstinada recusa em atribuir um caráter psíquico aos atos mentais latentes se deve à circunstância de que a maioria dos fenômenos em foco não fora estudada fora da psicanálise. Basta que qualquer pessoa não familiarizada com os fatos patológicos, que considera as parapraxias de pessoas normais como acidentais, e que está satisfeita com o velho adágio de que os sonhos são futilidades [‘Träume sind Schäume‘], ignore mais alguns problemas da psicologia da consciência, para abster-se de qualquer necessidade de admitir uma atividade mental inconsciente. Incidentalmente, mesmo antes da época da psicanálise, as experiências com a hipnose, especialmente a sugestão pós-hipnótica, já tinham demonstrado tangivelmente a existência e o modo de operação do inconsciente mental. A suposição de um inconsciente é, além disso, uma suposição perfeitamente legítima, visto que ao postulá-la não nos estamos afastando um só passo de nosso habitual e geralmente aceito modo de pensar. A consciência torna cada um de nós cônscio apenas de seus próprios estados mentais; que também outras pessoas possuam uma consciência é uma dedução que inferimos por analogia de suas declarações e ações observáveis, a fim de que sua conduta fique inteligível para nós. (Indubitavelmente, seria psicologicamente mais correto expressá-lo da seguinte maneira: que sem qualquer reflexão especial atribuímos a todos os demais a nossa própria constituição, e portanto também a nossa consciência, e que essa identificação é uma condição sine qua non para a nossa compreensão.) Essa inferência (ou essa identificação) foi anteriormente estendida pelo ego a outros seres humanos, a animais, a plantas, a objetos inanimados e ao mundo em geral, e revelou-se útil enquanto sua semelhança com o ego individual era esmagadora; contudo, tornou-se menos digna de confiança na medida em que a diferença entre o ego e esses ‘outros’ aumentou. Hoje em dia, nosso julgamento crítico já se põe em dúvida quanto à questão da existência de consciência nos animais; recusamo-nos a admiti-la nas plantas e encaramos como misticismo a suposição de sua existência nas coisas inanimadas. Mas, mesmo 23
onde a inclinação original à identificação resistiu à crítica — isto é, quando os ‘outros’ são nossos semelhantes — a suposição da existência de uma consciência neles se apóia numa inferência, e não pode participar da certeza imediata que possuímos a respeito de nossa própria consciência. A psicanálise exige apenas que também apliquemos esse processo de inferência a nós mesmos — procedimento a que, na verdade, não estamos por natureza inclinados. Se o fizermos, deveremos dizer: todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo, e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa. Além disso, a experiência mostra que compreendemos muito bem como interpretar em outras pessoas (isto é, como encaixar em sua cadeia de eventos mentais) os mesmos atos que nos recusamos a aceitar como mentais em nós mesmos. Aqui, evidentemente, algum impedimento especial desvia nossas investigações de nosso próprio eu, impedindo que obtenhamos dele um conhecimento real. Esse processo de inferência, quando aplicado ao próprio indivíduo, apesar da oposição interna, não leva, contudo, à revelação de um inconsciente; leva, logicamente, à suposição de uma outra segunda consciência que, no próprio eu do indivíduo, está unida à consciência que se conhece. Mas, a essa altura, certas críticas mostram-se cabíveis. Em primeiro lugar, uma consciência a respeito da qual seu próprio possuidor nada conhece é algo muito diferente de uma consciência pertencente a outra pessoa, e é discutível que tal consciência, carente, como está, de sua característica mais importante, mereça qualquer exame. Aqueles que resistiram à suposição de um elemento psíquico inconsciente provavelmente não estão dispostos a trocá-lo por uma consciência inconsciente. Em segundo lugar, a análise revela que os diferentes processos mentais latentes que inferimos desfrutam de alto grau de independência mútua, como se não tivessem ligação um com o outro, e nada soubessem um do outro. Nesse caso, devemos estar preparados para supor a existência em nós não apenas de uma segunda consciência, mas também de uma terceira, de uma quarta, talvez de um número ilimitado de estados de consciência, todos desconhecidos para nós e desconhecidos entre si. Em terceiro lugar — e este é o mais convincente de todos os argumentos —, devemos levar em conta o fato de que a investigação analítica revela alguns desses processos 24
latentes como possuidores de características e peculiaridades que parecem estranhas a nós, ou mesmo incríveis, e que vão diretamente de encontro aos atributos da consciência que nos são familiares. Assim, temos motivos para modificar nossa inferência a respeito de nós mesmos e dizer que o que está provado não é a existência de uma segunda consciência em nós, mas a existência de atos psíquicos que carecem de consciência. Também estaremos certos em rejeitar o termo ‘subconsciência’ como incorreto e enganoso. Os casos notórios de ‘double cosncience‘ (divisão da consciência) nada provam contra nossa concepção. Podemos descrevê-los com o máximo de propriedade como casos de uma divisão das atividades mentais em dois grupos, e dizer que essa mesma consciência se volta, alternadamente, para um ou outro desses grupos. Na psicanálise, não temos outra opção senão afirmar que os processos mentais são inconscientes em si mesmos, e assemelhar a percepção deles por meio da consciência à percepção do mundo externo por meio dos órgãos sensoriais. Podemos mesmo esperar que novos conhecimentos sejam adquiridos a partir dessa comparação. A suposição psicanalítica a respeito da atividade mental inconsciente nos aparece, por um lado, como uma nova expansão de animismo primitivo, que nos fez ver cópias de nossa própria consciência em tudo o que nos cerca, e, por outro, como uma extensão das correções efetuadas por Kant em nossos conceitos sobre percepção externa. Assim como Kant nos advertiu para não desprezarmos o fato de que as nossas percepções estão subjetivamente condicionadas, não devendo ser consideradas como idênticas ao que, embora incognoscível, é percebido, assim também a psicanálise nos adverte para não estabelecermos uma equivalência entre as percepções adquiridas por meio da consciência e os processos mentais inconscientes que constituem seu objeto. Assim como o físico, o psíquico, na realidade, não é necessariamente o que nos parece ser. Teremos satisfação em saber, contudo, que a correção da percepção interna não oferecerá dificuldades tão grandes como a correção da percepção externa — que os objetos internos são menos incognoscíveis do que o mundo externo.
F) O INCONSCIENTE E A CONSCIÊNCIA - REALIDADE Numa consideração mais detida, percebe-se que aquilo que o debate psicológico das seções precedentes nos leva a presumir não é a
25
existência de dois sistemas próximos da extremidade motora do aparelho, mas a existência de dois tipos de processos de excitação ou modos de sua descarga. Para nós, dá no mesmo, pois temos de estar sempre preparados para abandonar nosso arcabouço conceptual se nos sentirmos em condição de substituí-lo por algo que se aproxime mais de perto da realidade desconhecida. Portanto, tentemos corrigir algumas concepções que poderiam levar a mal-entendidos enquanto víamos os dois sistemas, no sentido mais literal e grosseiro, como duas localizações no aparelho anímico — concepções que deixaram vestígios nas expressões “recalcar” e “irromper” [ou “penetrar”, “durchdringen”]. Desse modo, podemos falar num pensamento inconsciente que procura transmitir-se para o pré-consciente, de maneira a poder então penetrar na consciência. O que temos em mente aqui não é a formação de um segundo pensamento situado num novo lugar, como uma transcrição que continuasse a existir junto com o original; e a noção de irromper na consciência deve manter-se cuidadosamente livre de qualquer idéia de uma mudança de localização. Do mesmo modo, podemos falar num pensamento préconsciente que é recalcado ou desalojado e então acomodado pelo inconsciente. Essas imagens, derivadas de um conjunto de representações relacionadas com a disputa por um pedaço de terra, podem tentar-nos a supor como literalmente verdadeiro que um agrupamento psíquico situado numa dada localização é encerrado e substituído por um novo agrupamento em outro lugar. Substituamos essas metáforas por algo que parece corresponder melhor ao verdadeiro estado de coisas, e digamos, em vez disso, que uma catexia de energia é ligada a um determinado agrupamento psíquico ou retirada dele, de modo que a estrutura em questão cai sob a influência de uma dada instância ou é subtraída dela. O que fazemos aqui, mais uma vez, é substituir um modo tópico de representar as coisas por um modo dinâmico. O que consideramos móvel não é a própria estrutura psíquica, mas sua inervação. Não obstante, considero conveniente e justificável continuar a fazer uso da imagem figurada dos dois sistemas. Podemos evitar qualquer possível abuso desse método de figuração lembrando que as representações, os pensamentos e as estruturas psíquicas em geral nunca devem ser encarados como localizados em elementos orgânicos do sistema nervoso, mas antes, por assim dizer, entre eles, onde as resistências e facilitações [Bahnungen] fornecem os 26
correlatos correspondentes. Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interna é virtual, tal como a imagem produzida num telescópio pela passagem dos raios luminosos. Mas temos justificativas para presumir a existência dos sistemas (que de modo algum são entidades psíquicas e nunca podem ser acessíveis a nossa percepção psíquica), semelhante à das lentes do telescópio, que projetam a imagem. E, a continuarmos com esta analogia, podemos comparar a censura entre dois sistemas com a refração que ocorre quando o raio de luz passa para um novo meio. Até agora, vimos fazendo psicologia por nossa própria conta. Já é tempo de considerarmos os pontos de vista teóricos que dominam a psicologia atual e examinarmos sua relação com nossas hipóteses. O problema do inconsciente na psicologia é, nas vigorosas palavras de Lipps (1897), menos um problema psicológico do que o problema da psicologia. Enquanto a psicologia lidou com esse problema através de uma explicação verbal no sentido de que “psíquico” significava “consciente”, e de que falar em “processos psíquicos inconscientes” era de um contra-senso palpável, qualquer avaliação psicológica das observações feitas pelos médicos sobre os estados psíquicos anormais estava fora de cogitação. Médico e filósofo só podem unir-se quando ambos reconhecerem que a expressão “processos psíquicos inconscientes” é “a expressão apropriada e justificada de um fato solidamente estabelecido”. Só resta ao médico encolher os ombros quando lhe asseguram que “a consciência é uma característica indispensável do psíquico”, e talvez, se ainda sentir respeito suficiente pelos enunciados dos filósofos, ele possa presumir que eles não estavam tratando da mesma coisa ou trabalhando na mesma ciência. É que até mesmo uma única observação criteriosa da vida anímica de um neurótico, ou uma única análise de um sonho, terá de deixá-lo com a inabalável convicção de que os processos de pensamento mais complexos e mais racionais, aos quais decerto não se pode negar o nome de processos psíquicos, podem ocorrer sem excitar a consciência do sujeito. É verdade que o médico não pode saber desses processos inconscientes até eles produzirem na consciência algum efeito que possa ser comunicado ou observado. Mas esse efeito consciente pode exibir um caráter psíquico inteiramente diverso do caráter do processo inconsciente, de modo que não há como a percepção interna encarar um deles como substituto do outro. O médico deve sentir-se livre para avançar, por inferência, desde o efeito consciente até o processo psíquico inconsciente. Assim, ele se inteira 27
de que o efeito consciente é apenas um resultado psíquico remoto do processo inconsciente, e de que este não se tornou consciente como tal; além disso, constata que este já estava presente e atuante, mesmo sem trair de nenhum modo sua existência para a consciência. É essencial abandonar a supervalorização da propriedade do estar consciente para que se torne possível formar uma opinião correta da origem do psíquico. Nas palavras de Lipps [1897, 146 e segs.], devese pressupor que o inconsciente é a base geral da vida psíquica. O inconsciente é a esfera mais ampla, que inclui em si a esfera menor do consciente. Tudo o que é consciente tem um estágio preliminar inconsciente, ao passo que aquilo que é inconsciente pode permanecer nesse estágio e, não obstante, reclamar que lhe seja atribuído o valor pleno de um processo psíquico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica; em sua natureza mais íntima, ele nos é tão desconhecido quanto a realidade do mundo externo, e é tão incompletamente apresentado pelos dados da consciência quanto o é o mundo externo pelas comunicações de nossos órgãos sensoriais. Agora que a velha antítese entre vida consciente e vida onírica foi reduzida a suas exatas proporções pelo estabelecimento da realidade psíquica inconsciente, uma série de problemas oníricos com que os autores anteriores se preocuparam profundamente perdeu sua importância. Assim, algumas dasatividades cuja boa execução nos sonhos despertava assombro já não devem hoje ser atribuídas aos sonhos, mas sim ao pensamento inconsciente, que é tão ativo durante o dia quanto à noite. Se, como disse Scherner [1861, 134 e seg.], os sonhos parecem empenhar-se em fazer representações simbólicas do corpo [em [1]], sabemos agora que essas representações são o produto de certas fantasias inconscientes (derivadas, provavelmente, de moções sexuais), que encontram expressão não apenas nos sonhos mas também nas fobias histéricas e outros sintomas. Se o sonho dá prosseguimento às atividades diurnas e as conclui, chegando até a trazer à luz idéias novas e valiosas, tudo o que precisamos fazer é despi-lo do disfarce onírico, que é o produto do trabalho do sonho e a marca do auxílio prestado por obscuras forças procedentes das profundezas da alma (cf. o diabo no sonho de Tartini com a sonata); essa realização intelectual se deve às mesmas forças anímicas que produzem todos os resultados semelhantes durante o dia. É provável que também nos inclinemos muito a superestimar o caráter consciente da produção intelectual e artística. As comunicações que nos foram fornecidas por alguns dos homens mais 28
altamente produtivos, como Goethe e Helmholtz, mostram, antes, que o que há de essencial e novo em suas criações lhes veio sem premeditação e como um todo quase pronto. Não há nada de estranho que, em outros casos em que se fez necessária uma concentração de todas as faculdades intelectuais, a atividade consciente também tenha contribuído com sua parcela. Mas é privilégio muito abusado a atividade consciente, sempre que tem alguma participação, ocultar de nós todas as demais atividades. Mal valeria a pena tratarmos a importância histórica dos sonhos como um tópico separado. Talvez um sonho tenha impelido algum líder a se aventurar numa empreitada audaciosa cujo êxito modificou o curso da História. Mas isso só levanta um novo problema se o sonho for encarado como uma força estranha, em contraste com as outras forças mais familiares da alma; tal problema não persiste quando o sonho é reconhecido como uma forma de expressão de moções que se encontram sob a pressão da resistência durante o dia, mas que puderam, durante a noite, achar reforço em fontes de excitação situadas nas camadas profundas.O respeito conferido aos sonhos na Antigüidade, entretanto, baseia-se num discernimento psicológico correto e é a homenagem prestada às forças incontroladas e indestrutíveis do espírito humano, ao poder “demoníaco” que produz o desejo onírico e que encontramos em ação em nosso inconsciente. Não é sem intenção que falo em “nosso” inconsciente, pois o que assim descrevo não é a mesma coisa que o inconsciente dos filósofos ou mesmo o inconsciente de Lipps. Neles, esse termo é usado simplesmente para indicar um contraste com o consciente: a tese que eles contestam com tanto ardor e defendem com tanta energia é a tese de que, à parte os processos conscientes, há também processos psíquicos inconscientes. Lipps leva as coisas mais adiante, ao afirmar que a totalidade do psíquico existe inconscientemente e que parte dele existe também conscientemente. Mas não foi para estabelecer esta tese que invocamos os fenômenos dos sonhos e da formação dos sintomas histéricos; a simples observação da vida normal de vigília bastaria para provar isso fora de qualquer dúvida. A nova descoberta que nos foi ensinada pela análise das formações psicopatológicas e do primeiro membro dessa classe — o sonho — reside no fato de que o inconsciente (isto é, o psíquico) é encontrado como uma função de dois sistemas separados, e de que isso acontece tanto na vida normal quanto na patológica. Portanto, há dois tipos de inconsciente, que ainda não foram distinguidos pelos psicólogos. Ambos são 29
inconscientes no sentido empregado pela psicologia, mas, em nosso sentido, um deles, que denominamos de Ics., é também inadimissível à consciência, enquanto ao outro chamamos Pcs., porque suas excitações — depois de observarem certas regras, é verdade, e talvez apenas depois de passarem por uma nova censura, embora mesmo assim, sem consideração pelo Ics. — conseguem alcançar a consciência. O fato de, para chegarem à consciência, as excitações terem de atravessar uma seqüência fixa ou uma hierarquia de instâncias (o que nos é revelado pelas modificações nelas efetuadas pela censura) permitiu-nos construir uma analogia espacial. Descrevemos as relações dos dois sistemas entre si e com a consciência dizendo que o sistema Pcs. situa-se como uma tela entre o sistema Ics. e a consciência. O sistema Pcs. não apenas barra o acesso à consciência, mas também controla o acesso ao poder da motilidade voluntária e tem a seu dispor, para distribuição, uma energia de catexia móvel, parte da qual nos é familiar sob a forma de atenção. [Ver em [1].] Devemos também evitar a distinção entre “supraconsciente” e “subconsciente”, que se tornou tão popular na literatura mais recente sobre as psiconeuroses, pois tal distinção parece servir precisamente para enfatizar a equivalência entre o psíquico e o consciente. Mas que papel resta em nosso esquema para a consciência, outrora tão onipotente e que ocultava tudo o mais? Apenas o de um órgão sensorial para a percepção de qualidades psíquicas . De acordo com as idéias subjacentes a nosso ensaio de um quadro esquemático, só podemos encarar a percepção consciente como a função própria de um determinado sistema e, para este, a abreviação Cs. parece apropriada. Em suas propriedades mecânicas, encaramos esse sistema como semelhante ao sistema perceptivo Pcpt., ou seja, como suscetível à excitação por qualidades, mas incapaz de reter traços das alterações, isto é, sem memória. O aparelho psíquico, que se volta para o mundo exterior com seu órgão sensorial dos sistemas Pcpt., é, ele próprio, o mundo externo em relação ao órgão sensorial da Cs., cuja justificação teleológica reside nesta circunstância. Aqui encontramos mais uma vez o princípio da hierarquia das instâncias, que parece reger a estrutura do aparelho. O material excitatório aflui para o órgão sensorial da Cs. vindo de duas direções: do sistema Pcpt., cuja excitação, determinada por qualidades, é provavelmente submetida a uma nova revisão antes de se converter numa sensação consciente, e do interior do próprio aparelho, cujos processos 30
quantitativos são sentidos como uma série de qualidades de prazerdesprazer quando, sujeitos a certas modificações, penetram na consciência. Os filósofos que se deram conta de que é possível haver formações de pensamento racionais e altamente complexas, sem que a consciência tenha qualquer participação nelas, tiveram dificuldade em atribuir qualquer função à consciência; pareceu-lhes que ela não podia ser mais do que uma imagem reflexasupérflua do processo psíquico consumado. Nós, por outro lado, somos resgatados desse embaraço pela analogia existente entre nosso sistema Cs. e os sistemas perceptivos. Sabemos que a percepção por nossos órgãos sensoriais tem como resultado dirigir um investimento de atenção para as vias pelas quais se propaga a excitação sensorial adveniente: a excitação qualitativa do sistema Pcpt. atua como um regulador da descarga da quantidade móvel no aparelho psíquico. Podemos atribuir a mesma função ao órgão sensorial sobreposto do sistema Cs. Ao perceber novas qualidades, ele presta uma nova contribuição ao direcionamento das quantidades móveis de investimento e a sua distribuição de maneira conveniente. Com a ajuda de sua percepção de prazer e desprazer, ele influencia a circulação dos investimentos dentro do que, em outros aspectos, é um aparelho inconsciente que atua por meio dos deslocamentos de quantidades. Parece provável que, no começo, o princípio do desprazer regule automaticamente o deslocamento dos investimentos, mas é muito possível que a consciência dessas qualidades introduza, além disso, uma segunda regulação, mais discriminadora, que pode até opor-se à primeira e que aperfeiçoa a eficiência do aparelho, capacitando-o, em contradição com seu plano original, a investir e elaborar até mesmo aquilo que está associado à liberação de desprazer. A psicologia das neuroses nos ensina que esses processos de regulação efetuados pela excitação qualitativa dos órgãos sensoriais têm uma importante participação na atividade funcional do aparelho. O domínio automático do princípio primário do desprazer e a conseqüente restrição imposta à eficiência são interrompidos pelos processos de regulação sensorial, que, por sua vez, são também automatismos. Constatamos que o recalque (que, embora de início sirva a um propósito útil, acaba conduzindo a uma renúncia prejudicial à inibição e ao controle anímico) afeta muito mais facilmente as lembranças do que as percepções porque as primeiras não podem receber nenhum investimento extra advindo da excitação dos órgãos sensoriais 31
psíquicos. É verdade, por um lado, que um pensamento que tem de ser rechaçado não se pode tornar consciente, por ter sofrido recalcamento, mas, por outro, às vezes um desses pensamentos só é recalcado por ter sido subtraído da percepção consciente em virtude de outras razões. Estas são indicações das quais tiramos proveito, em nosso procedimento terapêutico, para desfazer recalcamentos já consumados. Em seu aspecto teleológico, não há melhor ilustração do valor da hipercatexia posta nas quantidades móveis pela influência reguladora do órgão sensorial da Cs. do que sua criação de uma nova série de qualidades e, conseqüentemente, de um novo processo de regulação que constitui asuperioridade do homem sobre os animais. Os processos de pensamento, em si próprios, carecem de qualidade, exceto pelas excitações prazerosas e desprazerosas que os acompanham e que, em vista de seu possível efeito perturbador sobre o pensamento, têm de ser mantidas dentro de limites. Para que os processos de pensamento possam adquirir qualidades, eles se associam, nos seres humanos, com lembranças verbais, cujos resíduos de qualidade são suficientes para atrair para si a atenção da consciência e para dotar o processo de pensar de um novo investimento móvel oriundo da consciência. [Ver em [1] e [2].] Toda a multiplicidade dos problemas da consciência só pode ser apreendida por uma análise dos processos de pensamento na histeria. Estes causam a impressão de que a transição de um investimento préconsciente para um investimento consciente é marcada por uma censura semelhante à existente entre o Ics. e o Pcs. Também essa censura só entra em vigor acima de certo limite quantitativo, de modo que as estruturas de pensamento de baixa intensidade lhe escapam. Toda sorte possível de exemplos de como um pensamento pode ser apartado da consciência ou irromper nela, dentro de certas limitações, encontram-se reunidos no arcabouço dos fenômenos psiconeuróticos, e todos apontam para as relações íntimas e recíprocas entre a censura e a consciência. Encerrarei estas reflexões psicológicas com um relato de dois desses exemplos. Fui chamado em consulta, no ano passado, para examinar uma jovem inteligente e de aparência desembaraçada. Estava vestida de maneira surpreendente. É que, embora as roupas de uma mulher costumem ser criteriosamente cuidadas até o último detalhe, ela trazia uma das meias dependurada, e dois dos botões de sua blusa estavam desabotoados. Queixou-se de sentir dores na perna e, sem ser 32
solicitada, expôs a panturrilha. Mas aquilo de que se queixava principalmente era, empregando suas próprias palavras, uma sensação no corpo, como se houvesse algo “enfiado nele”, que se “mexia para frente e para trás” e que a “sacudia” de cima a baixo; às vezes, fazia todo o seu corpo ficar “teso”. Meu colega médico, ali presente ao exame, olhou para mim; não teve dificuldade em compreender o significado da queixa da jovem. Mas o que a ambos nos pareceu extraordinário foi o fato de isso não significar nada para a mãe da paciente; ela própria deveria ter-se encontrado muitas vezes na situação que sua filha estava descrevendo. Aprópria moça não tinha noção do alcance de seus comentários, porque, se o tivesse, nunca os teria pronunciado. Nesse caso, fora possível lograr a censura levando-a a permitir que uma fantasia que normalmente seria mantida no pré-consciente emergisse na consciência sob o inocente disfarce da formulação de uma queixa. Aqui temos outro exemplo: um rapaz de quatorze anos procurou-me para tratamento psicanalítico, sofrendo de um tic convulsif, vômitos histéricos, dores de cabeça, etc. Comecei o tratamento assegurandolhe que, se fechasse os olhos, ele veria imagens ou teria idéias que então me deveria comunicar. Respondeu por imagens. Sua última impressão antes de me procurar foi revivida visualmente em sua memória. Estivera jogando damas com o tio e via o tabuleiro em sua frente. Pensou em várias posições favoráveis ou desfavoráveis, e em jogadas que não deveriam ser feitas. Viu então um punhal sobre o tabuleiro — um objeto pertencente a seu pai, mas que sua imaginação colocara sobre o tabuleiro. Logo havia uma foice sobre o tabuleiro e, em seguida, uma alfange. Apareceu então a imagem de um velho camponês cortando a grama em frente à longínqua casa do paciente com uma alfange. Passados alguns dias, descobri o sentido dessa sucessão de imagens. O rapaz se afligira com uma situação familiar infeliz. Tinha um pai que era um homem duro, sujeito a acessos de cólera, infeliz no casamento com a mãe do rapaz e cujos métodos educacionais consistiam em ameaças. O pai se divorciara da mãe, mulher meiga e afetuosa, casara-se outra vez e um dia trouxera para casa uma moça que deveria ser a nova mãe do rapazinho. Foi nos primeiros dias depois disso que eclodiu a doença do rapaz de quatorze anos. Sua fúria sufocada contra o pai é que havia construído aquela seqüência de imagens, com suas alusões compreensíveis. O material para elas fora fornecido por uma recordação da mitologia. A foice era aquela com que Zeus castrara o pai; a alfange e a imagem 33
do velho camponês representavam Cronos, o velho violento que devorara seus filhos e de quem Zeus se vingara de maneira tão pouco filial. [Ver em [1].] O casamento do pai dera ao rapaz a oportunidade de retribuir as censuras e ameaças que ouvira dele muito tempo antes, por brincar com seus órgãos genitais. (Cf. jogar [brincar com as] damas; as jogadas proibidas; o punhal que podia ser usado para matar.) Nesse caso, as lembranças recalcadas por muito tempo e seus derivados que haviam permanecido inconscientes é que se infiltraram na consciência por um caminho indireto, sob a forma de imagens aparentemente sem sentido. Assim sendo, eu buscaria o valor teórico do estudo dos sonhos nas contribuições que ele faz ao conhecimento psicológico e no esclarecimentopreliminar que traz aos problemas das psiconeuroses. Quem poderá imaginar a importância dos resultados passíveis de se obter através de uma compreensão completa da estrutura e das funções do aparelho anímico, se até o estado atual de nossos conhecimentos nos permite exercer uma influência terapêutica favorável sobre as formas curáveis de psiconeurose? Mas, e quanto ao valor prático desse estudo — já posso ouvir a pergunta — como meio de se chegar a uma compreensão da alma, a uma revelação das características ocultas de cada um? Acaso as moções inconscientes expressas pelos sonhos não têm o peso de forças reais na vida anímica? Será que se deve fazer pouco da significação ética dos desejos suprimidos — desejos que, assim como levam aos sonhos, podem um dia levar a outras coisas? Não me sinto autorizado a responder a essas perguntas. Não dediquei maior consideração a esse aspecto do problema dos sonhos. Penso, contudo, que o imperador romano estava errado ao mandar executar um de seus súditos por ter sonhado que estava assassinando o imperador. [Ver em [1].] Ele deveria ter começado por tentar descobrir o que significava o sonho; é muito provável que seu sentido não fosse o que parecia ser. E, mesmo que um sonho com outro conteúdo tivesse por sentido esse ato de lesa-majestade, acaso não seria acertado ter em mente o dito de Platão, de que o homem virtuoso se contenta em sonhar com o que o homem perverso realmente faz [em [1]]? Penso, portanto, que o melhor é absolver os sonhos. Se devemos atribuir realidade aos desejos inconscientes, não sei dizer. Ela deve ser negada, naturalmente, a todos os pensamentos transicionais ou intermediários. Se olharmos para os desejos inconscientes, reduzidos a sua expressão mais fundamental e verdadeira, teremos de concluir, 34
sem dúvida, que a realidade psíquica é uma forma especial de existência que não deve ser confundida com a realidade material. Portanto, não parece haver justificativa para a relutância das pessoas em aceitarem a responsabilidade pela imoralidade de seus sonhos. Quando o modo de funcionamento do aparelho anímico é corretamente avaliado e se compreende a relação que há entre consciente e inconsciente, descobre-se que desaparece a maior parte daquilo que é eticamente objetável em nossa vida onírica e de fantasia. Nas palavras de Hanns Sachs [1912, 569]: “Se olharmos em nossa consciência para algo que nos foi dito por um sonho sobre uma situação contemporânea (real), não deveremos ficar surpresos ao descobrir que o monstro que vimos sob a lente de aumento da análise revela-se um minúsculo infusório”. As ações e opiniões conscientemente expressas são, em geral, suficientes para a finalidade prática de julgar o caráter dos homens. As ações merecem ser consideradas antes e acima de tudo, pois muitos impulsos que irrompem na consciência são ainda reduzidos a nada pelas forças reais da vida anímica, antes de amadurecerem sob a forma de atos. Com efeito, tais impulsos muitas vezes não encontram nenhum obstáculo psíquico a seu progresso, exatamente porque o inconsciente tem certeza de que serão detidos em alguma outra etapa. De qualquer modo, é instrutivo tomar conhecimento do terreno tão revolvido de onde brotam orgulhosamente nossas virtudes. É muito raro a complexidade de um caráter humano, impelida de um lado para outro por forças dinâmicas, submeter-se a uma escolha entre alternativas simples, como levaria a crer nossa doutrina moral antiquada. E quanto ao valor dos sonhos para nos dar conhecimento do futuro? Naturalmente, isso está fora de cogitação. [Ver em [1].] Mais certo seria dizer, em vez disso, que eles nos dão conhecimento do passado, pois os sonhos se originam do passado em todos os sentidos. Não obstante, a antiga crença de que os sonhos prevêem o futuro não é inteiramente desprovida de verdade. Afinal, ao retratarem nossos desejos como realizados, os sonhos decerto nos transportam para o futuro. Mas esse futuro, que o sonhador representa como presente, foi moldado por seu desejo indestrutível à imagem e semelhança do passado.
35
SUGESTÃO DE FILME : - “O Fabuloso Destino de Amélia Polain” FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PSICANÁLISE “A aceitação de processos psíquicos inconscientes”, o reconhecimento da doutrina da resistência e do recalcamento e a consideração da sexualidade e do Complexo de Édipo são os conteúdos principais da Psicanálise e os fundamentos de sua teoria, e quem não estiver em condições de subscrever todos eles não deve figurar entre os psicanalista”. S.FREUD
-
36