O que faz um Psicanalista

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Núcleo de Estudos e Pesquisas em psicanálise

A psicanálise O que faz um Psicanalista? Uma trajetória para formação de uma Ano I /2013

Psicanálise genuinamente Brasileira Profº Sérgio Costa


T O QUE FAZ UM PSICANALISTA? PARA SER GRANDE, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim era cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive.

Profº Sérgio Costa.

O psicanalista cria um cenário, um setting, e o coloca à disposição da clientela. Monta consultório, oferece atendimentos que duram em torno de cinqüenta minutos, recomenda divã, concede poltrona, prefere sessão individual, propõe honorários minguantes pelo seu trabalho. A partir de uma entrevista inicial, surge a proposta de uma psicanálise, de uma terapia. Nomes que, para os leigos, eqüivalem-se. Propõe ao cliente fazer associações livres, coisa que poucos conseguem. Tenta permanecer naquela confortável posição, por detrás do cliente, assumindo uma atitude de pesca, algo assim como quem não quer nada. Procura ser neutro


ou, até, benevolente. Mas, não raramente, investe-se de uma contratransferência negativa, que alguém preconizou como a atitude básica mais favorável ao analista. Mantém-se calado e intencionado a só interpretar. O quê? As formações, as pulsações do inconsciente, claro. O Isso assomando. O tempo passa, o cliente não segue o modelo, o psicanalista se rói de angústia. O cliente sofre. Projeta. Provoca. Mexe com o psicanalista. Irritao, instiga-o, surpreende-o. Contamina-o com a peste dele. E, de repente, passados quinze minutos do início da primeira sessão, o terapeuta se flagra intervindo, perguntando, investigando. Ao cabo de meia hora, já sugeriu uma ou duas coisas absolutamente banais (e pertinentes). Nesse momento, o psicanalista se amua. Cala-se. Frustra-se. Até o momento em que acha que o cliente, pobrezinho, não aguenta mais. O psicanalista fala então alguma coisa inteligente sentenciosa. Algo que lera em um livro. Ou que ouvira no Círculo recentemente. A partir daí, fica louco para que a sessão termine promete-se que da próxima vez será mais "psicanalista", e o cliente não parece de todo decepcionado. O próximo cliente "paga o pato": o terapeuta adota, de saída, uma "postura de neutralidade", que o mais puro psicanalista aprovaria.


No entanto, seis, oito, dez, doze horas diárias, quem agüenta? Gente, como nós, não suporta. Só fanáticos, instruídos e comandados pela ideia sobrevalorizada de que estão com a verdade e a certeza. Chagas de Cristo têm força! Então, o que se faz, inconfessadamente? Pergunta aqui, sugere ali, arrisca-se acolá. Aconselha, orienta. Cala-se. Muda de posição. Intervém. Tolera. Projeta. Corta. Some. Reaparece. Recusa-se. Isenta-se. Escuta. Oferece hipóteses viáveis, plausíveis. Interpreta o aqui e agora com o lá e então. Oferece-se como modelo identificatório. Debocha de si mesmo. Exorta. Estimula. Apoia. Torce. Goza. Brinca. Ri junto. Sofre com. Fica irritado. Briga. Disputa um pedaço de osso. Suporta. Persevera. Escuta e fala bobagens. Reconcilia-se. Cria e descobre caminhos. Odeia. Desespera-se. Reconstrói. Analisa até. Ganha seu dinheiro dessa forma. Como gente. É como se passa no mercado da vida mesma. São vontades de potências se digladiando, jogando. São táticas e estratégias. Aporias, dificuldades, sofismas, falsos raciocínios, má-fé, o tempo todo. E impasses. Rupturas e abandonos. Reconciliações e prossecuções. Idealidades, preconceitos e ideologias. Objetivos divergentes. E paradoxos, o tempo todo


paradoxos. Aí está a especificidade da clínica do psíquico. Ela não se apreende de coisa positivista, de se botar a mão. Não se define a ponto de poder ser colocada no dicionário. Também não suporta um recorte escolástico ou mesmo fenomenológico. Ou positivista. Nem empirista. A clínica psi é feita de mil teorias que vão a reboque do evento clínico, tentando dar conta dele. Teorias que ela logo desborda, ultrapassa, debochosa, pois, sendo proteiforme, mirífica, por excelência, não se deixa capturar por nenhuma armadilha teórica, por mais sofisticada que seja. No entanto, a clínica psi é nosso carma, nossa condenação. Estamos condenados ao mais difícil, que é ganhar (como ganhar? Alguém lanha, a não ser o banqueiro?) dinheiro com ela, por meio dela, apesar dela. A propósito, alguém já disse: - Clínica psi? Que coisa mais esquisita... COMO TRABALHO NA CLÍNICA PSI? Evoluí da psiquiatria para a psicanálise, a que me dediquei por tempo demais. A psicanálise não consegue lidar com a quarta instância psíquica, a realidade. Diante dela, a prática, a teoria e o método psicanalítico refugam,


resvalam e, por fim, recuam. No entanto, a realidade atravessa o cenário analítico o tempo todo. Ela tem seu curso próprio, e não dá atenção às estritas formulações psicanalíticas. Recorta, invade e perturba o dispositivo psicanalítico a cada instante. Acossado, o psicanalista tende a se refugiar no seio da teoria, rapidamente transformada em doutrina. Como, desde os dezesseis anos, aprendi a viver sem fé em deuses e dispenso doutrinas, tornei-me um terapeuta peculiar. Alguém já me comparou a um lutador de rua. Como é que faço para mudar? Utilizo um amplo quadro referencial, abrangendo uma conjuntura maior que o ortodoxo cenário analítico. Faço questão de descortinar sempre uma visão estratégica em cada caso que aceito para tratamento. Não quero mudar nada, nem ninguém. Aceito o cliente assim como está, assim como vem, assim como é. Escuto. Até o momento em que a fala do cliente remexe com minhas entranhas e faz balance com certas circunvoluçõezinhas que tenho no cérebro. Aí, intervenho. Com a experiência, esse intervalo de escuta plena tem decaído: às vezes, cinco minutos, na


maioria, entre dez e quinze. Raramente passo meia hora sem nada ter a dizer a um cliente novo. A partir do momento em que intervenho, criase um campo de interação de alta intensidade com o cliente. Procuro explorar seus limites, provocar seus afetos, balançar suas idealidades. Se ele suporta o simpático jogo e volta, estarei todo inteiro ali, a seu serviço. Almas mais delicadas não gostam. Como alguns tímidos e todos os pernósticos. O que me incita é a fina percepção sobre aquilo do material do cliente que é vivo, é dinâmico. Então, empurro, dou toque, dou força àquilo vivo. Só. Cada vez mais me convenço de que meus clientes e, de resto, todo o povo brasileiro funcionam com o cassete errado. Parece que o disquete que comanda suas vontades, suas expectativas, suas cabeças, enfim, foi confeccionado na década de 40 - quando nem sequer havia disquete. Esse disquete é composto por uma miscelânea de preceitos judaico-cristãos, baseados no catolicismo de Woytila, misturado com fidalgas recomendações coloniais portuguesas, uma boa dose de brasilufanismo e uma crença desbotada em valores anacrônicos, do tipo "honestidade com jeitinho", "boa colocação", "amor verdadeiro",


"meus direitos", "a Constituição garante", "tem que ser assim". Esse disquete comanda um molde estreito, acanhado, que já não consegue lidar com as diversidades e os diasparagmos que estraçalham e atravessam a vida do sujeito. Ele, o povo brasileiro, tem um amontoado de idéias tolas, de pretensões ridículas e um código de ética ultrapassado. Vive ilusões à-toa. Acredita em "ordem", em "hierarquia". Seu pensamento é o de um fascista. Ares conservadores. E sofre como um cão. Pensa com "lógica". Acredita na "Verdade". Vê o mundo pegando fogo e quer que alguém imponha ordem. Acaba de ser roubado por aquele que elegeu, mas, meses depois, deposita o escasso fruto de seu trabalho - ou de sua privação - na única coisa "segura" com que lhe acenam. Quer porque quer que um demiurgo lhe diga que há papai-do-céu. Anseia por um demagogo colorido que acene com um "Plano". Acredita em "salvação". E em todo Natal, secretamente, espera o Papai Noel. Enfim, meu cliente - um brasileiro qualquer - é um sujeito anacrônico que me procura para "análise". Na verdade, ele precisa é de uma "geral". Análise é muito pouco.


Instintivamente, fui-me apercebendo disso. Minha relação com a psicanálise sempre foi de grande envolvimento, plena devoção, mas sempre me coloquei de viés, com um olho no mundo. Meus residentes, anos após anos, teimavam em me trazer casos e situações que não se ajustavam a uma boa teoria psicanalítica. Foi assim que aprendi a trabalhar a transferência do cliente como um componente misturado a uma conjuntura maior e mais complexa. Dessa forma, recebo toda demanda, acolho umas, recuso outras, separo. Levo em conta a realidade do sujeito como o decisivo fator de resistência. Busco obter resultados terapêuticos e geralmente os obtenho. Meço-os por alguns parâmetros: 1. As minhas sessões permitem que a cadeia significante do sujeito continue desenrolando-se. 2. Há um lento, mas progressivo, incremento da capacidade operatória do cliente em sua atuação na realidade e no mundo. 3. Está em andamento o processo de desimaginarização e de desidealização, por parte do cliente, em relação aos outros que o constituíram. Em decorrência, haverá um constante acréscimo do sujeito sobre si mesmo. 4. Inevitavelmente exposto, às vezes funciono como objeto de identificação do cliente.


Identificar-se é preciso. Mas não tenho pejo em criticar e debochar da "figura do analista" e da própria "análise", para ajudar a manter a capacidade crítica do cliente. 5. Em casos que se aproximam da análise clássica, sei que o cliente precisará utilizar-me como uma extensão de si mesmo, como um selfobjeto, no sentido que lhe atribui Kohut. 6. Funciono como avalista, como fiador da continuidade necessária do processo terapêutico. Endosso a relação que entre mim e ele se estabelece. 7. Sou respeitado como profissional. Expert. Mentor. Raramente abro mão disso. Sou um prestador remunerado de serviços, que conduz seu alento, seu soul. Funciono como mestre. Elemento de ligação, pontífice, entre o obscuro indizível-indefinível-sintomático e o logos, a fala, a luz do dia, o óbvio, a consciência. Sou alguém que possui alguma familiaridade com esses processos. Que conhece alguns desses circuitos. Um guia turístico. Precisamente isso: capaz de mostrar, de revelar algumas das maravilhas das catedrais internas bem como os horrores das catacumbas dos ínferos do psiquismo cio sujeito. Uma pessoa capaz de nomear, de significar, de inserir um roteiro que não apresenta falhas. O cliente tem de ficar


convencido de que valeu o tempo, o esforço e o dinheiro despendidos em sua análise. Satisfação garantida, porque não terá seu dinheiro de volta. 8. Avalio se o processo capacita o cliente a assumir gradativamente suas características negativas, de passividade, de insuficiência, de falta de talento, de ignorância, de incapacidade afetiva, de inadequação emocional. Ainda, de falhas básicas, de defeitos, de falta de caráter. E, a partir delas, ainda assim, sou capaz de tomar novas atitudes de experimentação. 9. O cliente mantém a confiança em mim e persiste no desejo de continuar o relacionamento comigo. 10. Minimalista, procuro dar força ao que funciona, faz efeito, gera movimento, cria um produto, traz resultado. 11. Aprendi que vale o fluir, o ir adiante, a alegria. Que o desejo é um objeto "beija-flor", que se realiza com qualquer coisa, desde que adequada. Que a vida é pura positividade, em que valem os bons achados, os encaixes bem feitos, os encontros profícuos e o contato com tudo aquilo que aumenta e expande o ser. O principal critério de cura é possibilitar ao cliente vivenciar as potencialidades ainda não vividas de seu ser.


12. Ao longo da terapia, o cliente vai-se desiludindo das projeções absolutistas polipotentes que acalentava acerca da "análise". Passa a inventariar aquilo de positivo que dela obteve, desistindo daquilo que ela não tem para dar. Como resultado, o cliente apropria-se do próprio poder. Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. () ∗

13. Trabalho em função da prestação de serviço a quem me procura, àquele que me distingue e me paga. Tenho por objetivo resultados terapêuticos positivos. Se estudo e pesquiso, é exatamente para saber melhor o que é isso: terapêutico. Nesse empenho, aprendi a lançar mão de tudo o que a clínica provou ser válido. Daquilo que minha pequena inteligência descortina, que minha pouca coragem se atreve e minha crônica preguiça permite fazer. Daquilo, ainda, que meu parco talento consegue criar. Se tudo isso é tão pouco, é o bastante para sair do convencional. Já não tenho filiação de escola, método a  ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.


defender, técnica a prescrever, teoria a me reger como estrela-guia. Uso todos os recursos que me caem às mãos. Utilizo-os como ferramentas com seu grão de adequação e especificidade. Adapto-me, quando posso, ao cliente. Deixo que ele me use, enquanto suporto. Empresto-lhe minha cabeça. Coloco a seu serviço meu conhecimento e minha experiência. Sou seu serviçal. 14. Já não dou tanta importância à psicanálise pura. Não sou obsessivo quanto à análise de transferência. Empurro o que move. O importante é ir manejando o navio através da barra cia vicia, entre os arrecifes, os bancos de areia, por dentro das tempestades, em direção a um bom porto. Ou ao mar oceano. Chamo a isso processo terapêutico. 15. Trabalho buscando imiscuir-me por qualquer fresta, visando a obter melhoria psíquica. Sei hoje que qualquer melhoria alivia a carga de sofrimento do cliente, amplia sua autoestima, expande sua possibilidade como ser e reforça sua confiança no processo terapêutico. Busco acréscimo de personalização, recuperação do poder pessoal, incremento de qualidade pessoal e resultados terapêuticos. Trata-se de uma psicoterapia objetivada. Às vezes, trabalho para manter o status quo ou para


que o indivíduo não piore muito, quando se trata de casos severamente afetados pela doença mental. De há muito, já não viso a uma forma ideal de psiquismo ou de pessoa. Não trabalho mais com idealidades "científicas" ou a priori superteórico. Aprendi que cada um tem o direito de ser como consegue ser. Minha ética diz que, se o indivíduo é minimamente capaz de se voltar sobre si e investir, um pouco que seja, no incremento de seu potencial humano, isso é o bastante para que não se estupidifique. Já não tenho nenhuma "forma" onde colocar o indivíduo. Não acredito em sujeito analisado como um ser humano resolvido, pronto, preparado para enfrentar qualquer insurgência da vida. "Análise", melhor dito, psicoterapia, hoje, para mim, é uma caminhada com um companheiro esperto, durante um certo tempo, ao longo de um circuito. Depois, o sujeito prossegue só ou em outras companhias. O que fica é a saudade e a amizade. E a satisfação de um trabalho bem feito. Todos somos substituíveis. 16. Não sou um analista neutro, um simples espelho que reflete aquilo que o cliente traz. Não sou "um resto". Não sou "um morto", embora possa, às vezes, estar um tanto desligado. Sou


eu. Todo. Inteiro. Um cara grandioso e fajuto. Brilhante e, também, estúpido. Capaz de sintonia fina, de interpretações brilhantes e de "foras" sensacionais. Um sujeito que comete erros. E acertos. Mais acertos que erros. Mal-humorado e compassivo. Intolerante muitas vezes. Outras, complacente como um hímen de moça. Esperto. Espertalhão. Boboca. Ridículo, sempre. Gozador, brincalhão. Moleque. Bondoso. Bravo como meu avô. Palhaço. Venal. Sincero. Capaz de odiar e de gostar. Sem pejo. Numa palavra: gente. Alguém revestido do avental de "analista". Ê assim que opero, que curo. Entre todos os modelos preconizados e seguidos pelos colegas, hoje, na minha cidade, sou mais eu mesmo. Freud propôs que cada analista tivesse seu próprio jeito de trabalhar na clínica. Guimarães Rosa me tranqüilizou definitivamente: Mas minha competência foi comprada a todos os custos, caminhou com os pés da idade. ()

CONTROVÉRSIAS NO ATENDIMENTO DO ADOLESCENTE


Voa, pra ser livre valem os riscos Voa, foge lá prós altos picos Canta pra chamar a companheira

O adolescente sofre perdas relativas ao corpo e à concepção de mundo infantis. Obtém ganhos por meio do crescimento do corpo e da expansão da sua participação no mundo. Vive impasses e indefinições, sobretudo quanto à sexualidade e à escolha de gênero. Está autorizado a experimentar uma enorme relação de veredas que estão ao dispor de sua liberdade. O agente cultural - a família -sustenta-o, ao longo dessas vivências. Algum recurso se dissipa. Atos antisociais acontecem nesse período de calibragem juvenil. O adolescente é imaturo. Parte para a vida, ignorante - quase inocente. Desinformado, busca avidamente modelos identificatórios provisórios. Dotado de plasticidade afetiva, eivado de boas intenções, procura fazer certo, fazer bem feito e fazer o bem. Desastrado, inábil, destempera tudo. Começa de novo. Aprende a aprender. Aprende com a experiência. Cheio de energia, desenvolve  "Gaiolas abertas". João Donato - Maninho da Vila. CD Coisas tão simples. 1995.


uma verdadeira pluripotencialidade, investindo e interessando-se por muitas atividades, simultaneamente. Pressente que tem de sair do confortável pântano pegajoso, remo do ctônico, que prevalece no ambiente familiar, e ir em direção às linhas retas e excelsas da claridade apolínea. Ao deixar o corpo da mãe, tem de se haver com a falta renitente das coisas do mundo, que teimam em ir embora. Suplanta a falta, projetando-se no mundo, conceitualizando e abduzindo, substituindo a materialidade das coisas pela etérea e alusiva certeza dos conceitos, das abstrações e das idéias. Objetaliza as coisas. Cria a lei, a beleza, a ordem, a riqueza o produto. Traz á luz um novo mundo, um heterocosmo claro preciso, reto, útil, brilhante, notável. Artificial. Aos poucos, sente que terá de constituir-se como indivíduo em constante processo de vir-aser. Não existe. Não é, a não ser enquanto se está tornando, como ser de ação e de conduta própria. E compelido a erigir-se como pessoa instruída pelo próprio código de valor. Este também é fruto depurado dos constantes embates dos elementos contraditórios que abriga dentro de si, em conflito perene. Comandado por sua arete, torna-se aquele que, de fato, é, no exercício da plenitude inexorável


das possibilidades de seu horizonte histórico. Vacilante, errático, incongruente, em eterna transição, é constantemente convidado a se identificar. Metamórfico, sua identidade muda o tempo todo.(';) Ê como se fosse renitentemente lembrado que deve à sociedade uma pessoa. Espera adquirir capacidade de aprender a viver a vida, extraindo dela sentido, usufruindo prazer, elegendo destino, assumindo responsabilidade pessoal por si mesmo. Eazer tudo isso com dignidade c pré-requisito para que possa urdir e tecer uma obra. O jovem é imbuído pela masculinidade que o impele para além de si mesmo. Ser jovem é aventurar-se, correr riscos, saborear a variedade da vida. Duas pulsões sexuais parciais cumprem seu papel: a Bemächtigungstrieb ou pulsão de assenhoreamento do objeto, pulsão de domínio, que impulsiona ao ato, ao feito, à façanha; e a "pulsão beija-flor", que o impele ao contato múltiplo, variegado, abrindo o leque das possiblidades de sua experiência. Adolescer é crescer, expandir-se. Ao longo desse período de vida, o jovem passa por transformações diversas que enriquecem a sua existência. O adolescente perde • o corpo cia infância


• os pais cia infância • a identidade infantil • a concepção do mundo infantil com suas convicções e certezas • a antiga inserção edípica na novela familiar • a indiferenciação sexual. Ganha • um corpo novo, desastrado, insuficiente, forte • uma nova floração da sexualidade • amplitude espacial • amplitude conceitual.

belo,

Estranha • o corpo novo vivenciado com inquietude e estranheza • a sexualidade e a agressividade emergentes • o mundo adulto • a leveza arfante da liberdade. Interroga: • quem sou eu? • qual é o meu lugar no mundo? Integra


• • • • •

informações vivências descobertas experiências conceitos.

O adolescente é • • • • •

imaturo inseguro indiferenciado ambíguo incongruente.

Tem licença para experimentar de tudo sem pagar os preços sociais exigidos. Cometerá atos anti-sociais. Provocará dissipação de recursos. Perdas ocorrerão. Terá de trabalhar em seqüência. Congruentemente. Integrará e elegerá modos e práticas de sexualidade. Evoluirá para relações objetais mais sofisticadas, culturalmente mais eficazes. Integrará num único caudal identificatório as miríades de identificações ocorridas ao longo da infância.


Aprenderá a modular anseios ctônicos regressivos, que convidam à dependência e à passividade. Desenvolverá técnicas de emprego da energia agressiva para vir a adquirir denodo, garra, persistência e capacidade de luta. Controlará e manejará a culpabilidade inerente ao fato de estar vivo. Esboçará defesas imperiosas que consigam impedir lesões que menoscabam sua provisão narcísica. Atravessará ritos de passagens, saindo de condutas típicas da infância para comportamentos de rapaz e de moça. Empregará sua vitalidade estuante para provar as coisas todas do mundo, postas ao alcance de seu interesse. Escapará da tendência filicida, que a geração mais velha lhe oferece, de várias maneiras sutis. Desenvolverá capacidade de percepção ampliada, enxertada na imaginarização que expande o alcance das vivências. Tornar-se-á também capaz de conceitualizar, de criar hipóteses, abduções, conceitos que possam representar a "coisa" - o objeto -, desde quando ela se foi como presença. Passa a operar no campo dos ideais, criando um novo mundo, cheio de arte, filosofia, ciência, política, religião,


leis. Para vencer a aspereza e a dureza das coisas do Mundo da realidade - o Mundo tal como é -, erige afanosamente, em heterocosmo, uma cultura. Nesse, e nesta, instala um nicho de idealidade, concebendo formas ideais de ser e de estar. Aprende a transitar com os dois pés metidos no chão da prosaica realidade, as mãos bardando o barro da obra em processo de confecção - poíesis -, o corpo arfante e suado pelo trabalho exercido, e a cabeça metida nas nuvens das idéias e dos ideais, aspirando, com a ingente ação de seu ser, a realizar a utopia que o instrui. O adolescente usa a liberdade pessoal, estribada pelo suporte afetivo e económico dos pais, para ampliar a sua participação no espaço e no mundo. Viagens, acampamentos, cursos, namoros, relações, empregos. Festas e acontecimentos. Iniciativas são tomadas e, logo, abandonadas. O jovem é um perfeito amante do movimento: um filobata. Um corpo em dança constante. Em pleno balé de autoconfecção. Uma pulsão de crescimento impele o jovem a sair de si. A desenovelar-se. A transformar entranhas em atos, em feitos. O jovem macho é propelido pelo turgor de sua sexualidade a estender-se em direção ao outro. O pênis, ativado pela testosterona, indica a direção: "- É


lá!" Lá adiante: em direção ao outro. É no outro que está o complemento. E nele que acontece o milagre da satisfação e do prazer. O macho parte em iniciativa. Ousa, faz, busca. E encontra. Um milagre acontece. A força que o propulsa para além de si, para além do conforto do convívio com seus pais, é enxertada por uma pulsão parcial heterossexualizada. Compelido a deixar o pantanoso regaço materno em direção às vastidões desassombradas do mundo, o jovem queima seus navios: não há mais retorno possível ao seio ctônico da úmida refusão com a grande-mãe. No entanto, o princípio feminino é hegemónico e prevalente. Um corpo novo, sedutor, verdadeiro sucedâneo da mãe, será descoberto e encontrado. Tal corpo captura a atenção e o interesse do homem, convidando-o a nele se instalar. A natureza cobra o seu preço, impõe-se como sexualidade segmentada, diferenciada primeiro, para, em seguida, impor a composição, o apropinquamento das bordas e das diferenças. Sábia, lenta, longa, experiente, a natureza houve por bem partir o patrimônio genético em duas parcelas. Ninguém é tão poderoso que detenha o poder de gerar a si mesmo. Assim, a natureza impõe ao homem a associação, a parceria. E garantiu-se com o


privilégio da possíveis.

diversidade

das

composições

Os sexos são dois: masculino e feminino Masculino depende da afirmação c dos bons olhos do outro. Externaliza a pulsão. Aponta. Intruge. Penetra. Separa. Age. Faz. E súbito, rápido, imperioso. Escancarado. Bruto. Quer agora. Usa tempos curtos. Espamódicos. Brilhante. E pura ação. Fogoso. Aéreo. Celeste. Conceitualizador. Tem de se constituir. Para tanto, apropria-se da coisa, do objeto, dela. Transeunte. Façanhudo. Apolíneo. Luminoso. Explícito. Desassombrado. Feminino enovela e entranha a pulsão. Acolhe. Recebe. Compraz. Funde. Seduz. Lento, vaporoso, lânguido. Suave e charmoso. Sofisticado. "Quem sabe se..." Tempos largos. Extenso. Pantanoso. Úmiclo, aquoso. Terráqueo. Ctônico. Indiferenciado. E, já, em si. Substrato. Estabelecido. Dado posto. Ponto de inserção. De partida e de chegada. Interno, velado, obscuro. Tergiverso. Sombrio. Enigmático.

Os sexos são três


Quando há uma biologia sexual determinada, instruída por um espírito que anseia por outro sexo, o sexo da alma não corresponde em absoluto ao do corpo. E o que se encontra em Mademoiselle de Maupin, de Gautier, citada por Camille Paglia. Como a natureza não erra, apenas impõe, o terceiro sexo arromba a sexualidade ocidental cristã, contingenciada na estreita e inconfortável partição binária de masculino e feminino. A sexualidade escancara suas fauces: é múltipla, poliversa, terrivelmente perturbadora. Absolutamente indecente, não convencional. Obscena. Busca-se fazer coincidir empuxo pulsional com biologia e psiquismo. Quando os três se encaixam, é bastante confortável. Quando não, o indivíduo é obrigado a transitar pela periferia do sistema e se safar de qualquer jeito. O jovem inicia sua vida sexual alocompartida e heterocompartida. A angústia aflora: a delícia e o horror da excitação. A atração pelo sexo e o nojo dele. A nudez e as secreções secretas. O inferno e o céu do repúdio e do bem-querer. A longa espera do macho. A constante tergiversação da fêmea. O inesperado, o escândalo da proposta indecente, o susto, a interrupção. A culpa por se deixar possuir pelos anseios da sexualidade. O recomeço. O espanto


com o "- Tão bom'" ou "- E só isso?" A recidiva. A compulsão do eterno continuar querendo. Camille Paglia afirma que "o sexo é o elo ritual entre o homem e a natureza." Sexo é ligação direta com o sagrado que habita o homem. Sexo também é a recompensa, a prenda imensa pelas lutas renhidas que o homem tem de empreender para afastar-se da atração indiferenciadora do regaço materno. Ao afastar-se do pólo ctônico, reino da grande-deusa-mãe, o homem tem de conceber-se como identidade. Para isso, erige um heterocosmo próprio, pessoal, secretado na imaginação, erguido a partir das extrapolações conceitualizantes que comete. Um mundo artificial é criado. Composto de leis, cie arte, de religião, de filosofia, de ciência e de artefatos, este o mundo cia cultura. Um mundo marcado pela brutalidade masculina. Pela incompletude das possibilidades. Condenado pela insatisfação vigente e pela injustiça prevalente. No entanto, é um mundo onde há normas consensualizadas, há direitos vigentes, riqueza em abundância, produtos em pletora. Pelo menos, para uma minoria, há beleza, objetos de arte, vida afluente, medicina de qualidade, seguros para fazer face aos eventos de vida infaustos. Para a maioria, há trabalho mal remunerado. Há estudo e educação


para grande parte. Saber, para alguns. Liberdade, para quase todos. A esperança é inconstante, tremeluzente. Este é o outro mundo, heterocosmo, civilizador, criado pelo homem, para fugir cia obscuridade pegajosa da mãe a quem deve sua vida e que c sua insistente tentação de recaptura. O adolescente propende a afastar-se de sua família. Do contrário, permanece preso à indiferenciação pessoal, misturado aos fortes atratores papai-mamãe-vovós-irmãos-tios. Para fazer isso, o adolescente tem de ser ingrato. Junta todo o saldo negativo da relação paterno-filial, denigre os pais, denuncia suas falhas e insuficiências, desqualifica sua família e empreende a metanóia. Sai de casa com o legado dos tesouros absorvidos e assimilados nos muitos quinze, vinte, vinte e cinco anos de convívio familiar. Todo adolescente é um filho perdulário, pródigo, dissipador cio amor, cia boa vontade c do patrimônio paternos. Vai para o mundo, vasto mundo, com sua capanga mal cheia. O mundo habitualmente o trata de sua maneira típica: com áspera indiferença c obtusa opacidade. O filho anela, transita, conhece, "quebra a cara".


Mas, disso tudo, tira um resultado, pois, como Melim-Meloso, verifica sua pequena potência, sua finitude: Era sujeito a morrer: por isso, queria antes dar uma vista no mundo, achar a forma do seu pé. Quando volta, já é outro, maior, acrescido, transmentalizado. Saiu de casa um fedelho rebelde. Retorna homem feito.(1) Ferido, suado, depurado de ilusões e bobagens. Experiência não se herda nem se transmite. Adquire-se. Os pais, a família funcionam como esteio de suprimento afetivo, emocional, existencial. Os pais propiciam a base econômica da experiência. Suportam a dissipação de recursos. Sobrevivem à rejeição e ao abandono. Estão cônscios de que fizeram aquilo que lhes pareceu o melhor possível para o filho. Para os pais, é doloroso descobrir que os bons conselhos, as sábias predicações e todo o seu patrimônio experiencial-vivencial, postos à disposição dos filhos, não têm quase nenhum valor, a partir do momento em que eles fazem 14, 15 anos. Ser jovem é assumir como carma ter de ir sozinho, experimentar sozinho, "quebrar a cara" por sua vez. O adolescente tem por


maldição ter de ir lá ver qua’é?, medir por sua própria medida. Ele é seu único mestre e seu único adepto. E claro que a turma ajuda, faz onda, vai junto. Mas o processo de amadurecimento é interno, pessoal, solitário, intransferível. Por isso, é tão trabalhoso para nós, adultos, entrar em sintonia com o adolescente. Ele está em algum estágio inapreensível de sua caminhada, cujo processo é difícil de se perceber e de se avaliar. O jovem precisa deixar a família. Como um filho pródigo.'1'Mas tem de sentir que ela existe, está lá, a sua disposição, para quando quiser ou precisar voltar. Quando volta, já é outro. Deve ser recebido com júbilo. Sem perguntas. Amor é um sentimento incondicional. Por isso, é nobre, grandioso, espiritual. A sexualidade é o natural da condição humana. Escraviza-nos e se contém na armadura das necessidades do corpo. Sexualidade é luta. Titãs conflagram-se dentro de nós. Um deles atrai-nos para a gostosa refusão ctônica com a deusa-mãe-primeva. "Amor? Só de mãe..." Convite à regressão, à indiferenciação, à úmida desagregação/ deliqüescência com a mãenatureza. Puro anseio de moleza. O princípio masculino é outro titã que nos impele a fugir, fobicamente, do colo materno. Ele


nos impulsiona a buscar as vastidões desassombradas das coisas do Mundo. Indica que há vida, mais e melhor, nos espaços abertos, nesse vasto campo de caça e de captura do objeto satisfator, no Mundo Externo. O adolescente quer empenho, façanha, coragem, desempenho, conquista. Macho-masculinohomem: abandonar o útero seguro, aprender a transitar pelo precário e pelo transitório, constituir-se em plena tarefa. Construir um outro mundo, um heterocosmo, a partir do desamparo que magoa o ser humano. Tudo o que está aí, de ruim e de bom, de belo e de grandioso, foi erguido pela ação do princípio masculino. E bom orgulhar-se disso. Sobretudo, nesse momento, no Ocidente, onde o homem-macho está sob o ataque denegridor de todos e de tudo. É hora também de as mulheres, com seu poderoso princípio feminino, darem uma contribuição até mais efetiva para amenizar as durezas e as iniqüidades da vida. O repto é esse: com o que a mulher, o feminino, pode contribuir para melhorar essa sociedade injusta e excludente que os homens criaram? O homem está cansado de enfrentar sozinho as chuvas, as marcas, as lutas contra o rei e as discussões com Deus (com sua licença, meu padinho Chico.)


E necessário um pouco de inteligência, de saber fazer e de mais diligência. O que o Homem quer e demanda (além da prenda imensa "dos carinhos teus", coisa, de resto, já obtida para o usufruto comum) é mais solidariedade na tarefa de viver, e disso ele precisa. Caminhante não há caminho se faz caminho ao caminhar... Os versos de António Machado mostram que o Homem é um ser em constante confecção. Ele não é substrato, ciado posto, jazigo, como pode ser a mulher. E um ser de tresaventura. Mário Euzinho. Ser de travessia. A sexualidade é o carma e a condenação do homem: o corpo sempre pede mais do que obtém. Compelido a só pensar "naquilo", a brusquidão é o seu impulso; o estalido, sua expressão; a inquietude, seu modo-de-estar. Estabanado, sua maldição é continuar querendo... Por sua vez, ela, a mulher, é tão cara: tão difícil, tão querida, tão onerosa, tão rala! O homem conceitualiza. Fuça, inventa, descobre. "Bola" e investe. Já, já, perverte. Quem não tem


cão caça com rato. Não pode é experimentar, que gosta. Gostou, acostuma-se. Acostumado, vira hábito, costume, até preferência. Você já comeu tatu? Jacaré? Escargot? Bunda de tanajura? O Homem descobre as "zil" possibilidades da sexualidade. Elege suas preferências. Sexualidade é mexilhão barbado. Puras perversões. Cada um come o que gosta. Refusão de nossas doces quentes coisas ensopadas de turgor. Vivemos numa luminosa sociedade em que o privilégio da liberdade é usufruído por todo cidadão. O Brasil é um país livre. O brasileiro desfruta de liberdade. O jovem e cioso de sua liberdade. Liberdade é autarquia - capacidade de se autoconduzir. Implica autonomia - cada um elege os caminhos que lhe parecem mais convenientes. Liberdade é a grande conquista da Revolução Francesa. Igualdade ainda é um anseio comunista. E fraternidade, bem... a fraternidade... ainda permanece sob a égide de Caim. A liberdade é curiosa. Liberdade é a possibilidade de escolher compromisso. Compromisso é amarra, prisão, restrição de liberdade. Pois é isso: liberdade é uma bolsa cheia de moedas com que me apresento no mercado da vida, para escolher aquelas


transações que mediatizam aquilo de que preciso. É claro que faço bons negócios, empenho minha pecúnia e obtenho satisfação. Portanto, a liberdade não é para ser arrogantemente ostentada. É para ser empregada, segundo o meu alvedrio. Não há vida social sem contrato, sem compromisso, sem consensual restrição de liberdade. Uhuuuuuuuuu! Ululante, diria o Nelson. Liberdade é poder dirigir um automóvel. Liberdade é poder exercer a sexualidade. Liberdade é poder oferecer-se no mercado de trabalho. Liberdade é ocupar espaço sem prejudicar o outro. Liberdade é aprender a saber o "seu direito e respeitar o direito do outro. De todos os outros. De milhões de outros. Liberdade implica responsabilizar-se por seus atos e por suas opções. Este, o difícil e duro jogo da vicia adulta: suas ações têm implicações e conseqüências. Ninguém tem o direito de prejudicar outros. Liberdade é autoconduzir-se com responsabilidade. Há normas, há mores, há costumes, há leis vigentes na sociedade. É preciso obedecer à sinalização. Ela é a garantia de um caminho


seguro. Fiança de ulterior ato de liberdade do jovem. O jovem tem acerbada consciência de sua liberdade. Isso é bom. É necessário, no entanto, ensiná-lo a assumir a responsabilidade que lhe cabe no jogo social adulto em que se inicia. Carro é coisa de vida adulta. Sexo é brinquedo de adulto. Precaução, responsabilidade, regras e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. O jovem costuma ser trancado. Evasivo. Rebelde e evitativo. O médico trabalha com demanda, queixa principal, pedido de ajuda. O paciente apresenta-se à consulta aberto em ferida, com uma queixa dolorosa e um pedido de alívio, uma solicitação de lenitivo e uma expectativa de encontrar ajuda eficaz. A prática médica está lastreada na biologia do paciente. Corpo que adoece, carcaça que encerra e pesa, a biologia é a base da vida. Por meio de disfunções e de sintomas, o corpo exprime seus achaques. A natureza adoece. O médico colhe a anamnese, procede ao exame, instaura toda a propedêutica, dispõe de subsídios para estabelecer um diagnóstico. Se tudo acontece a partir da natureza do corpo, mediante alterações fisiopatológicas e anatomopatológicas, estamos no terreno


tradicional da doença orgânica. Apanágio da medicina. Se acaso a semiologia não encontra substrato, pode-se expandir a pesquisa para o âmbito das queixas subjetivas do paciente. É quase certo delinear-se um quadro psicopatológico, este sim, mais afeito ao cotidiano de atuação do médico psiquiatra. Malestares convivenciais, hábitos de vida viciosos, condutas autodeletérias, erros de julgamento, defeitos de expressão e de comunicação, más escolhas de vicia, tudo isso configura um enorme campo gerador de inquietação, de angústia, de infelicidade, de dor psíquica e de sofrimento. Este, o campo específico de atuação do psicoterapeuta. O médico lida com corpo, dor, sintoma, achaque, ameaça à integridade da vida. Ouve, diagnostica e prescreve. Opera com técnicas consensualmente validadas, com procedimentos consagrados pela clínica, com medicamentos e com intervenções cirúrgicas. Recebe confidências e intimidades. Deve utilizá-las a favor do diagnóstico e do tratamento. O médico estabelece uma transação de confiança com seu cliente. A partir do motivo da consulta, estrutura-se a relação. O médico é alguém dotado de dispositivos hábeis em avaliar


as causas orgânicas subjacentes ao incômodo do paciente. Uma vez evidenciada a doença, o médico é o forte condutor do processo terapêutico. O poderio de sua voz é contrapartida necessária à responsabilidade que assume. O médico procura ser empático com o cliente em relação ao seu sofrimento e às suas peculiaridades. Feita sua avaliação, pode decidir informar o paciente sobre a dinâmica de seus incômodos, bem como fornecer subsídios médicos atualizados sobre medidas psicohigiênicas, esclarecendo crendices, contribuindo para dissolver a ignorância e os preconceitos. O médico não abre mão de ser um instrutor de alta qualidade, no que se refere à saúde de seu paciente. Ele é um verdadeiro agente psicopompo - condutor de alentos -, um mentor que indica e direciona os passos futuros na vida do cliente. Informa, esclarece, explica, clareia. Mostra os caminhos. Exige implicação e responsabilidade por parte do paciente, a fim de atingir os objetos terapêuticos colimados. Dispõe-se, facilmente, a formar uma aliança com seu cliente, visando a combater a enfermidade. O adolescente é trancado, reservado? O médico está aí, apresenta-se na posição de receptividade. Oferece-se duas, três vezes ao


jovem. Se este não se abre, paciência, fica para a próxima. O adolescente é rebelde, provocativo? Um pouco de empatia, uma boa pitada de humor, acrescidos- de uma certa maneabilidade de "entrar na sua" - na do jovem - costumam ser o bastante para construir uma relação suficiente para que o médico possa realizar seu sério trabalho. O adolescente é tímido, ressabiado? O médico deve acolhê-lo com calor humano, facilitando sua expressão, interrogando-o sobre questões óbvias cie seu interesse. O adolescente é sedutor, provocativo, reservado? O médico deve cingir-se à sua postura profissional, tolerar certo grau de deboche e não ter pejo de corrigir a situação, chamar a atenção para esta e aquela atitude excessiva do jovem. O moço ou a moça está iniciando sua vida sexual? O médico deve fornecer informações sobre as dificuldades do relacionamento sexual heterocompartido. O jovem consulente traz suas angústias de desempenho sexual? Não consegue ter ereção com certa mulher muito querida? "Broxou" ontem e hoje? Ejaculou no varal da cama? Não


consegue penetrar? Teme ser depreciado pelo olho crítico da parceira? Tudo isso são acidentes de trabalho, acontecimentos possíveis na vida erótica cio macho. Sem motivo para alarme. Diferenças anatômicas entre os sexos serão mostradas. Diferenças de fisiologia sexual serão explicadas. Sobretudo, mostrar-se-á ao jovem a importância de se ir montando o dispositivo do relacionamento amoroso, pouco a pouco, ao longo do tempo, mediante prática repetida. A moça traz sua angústia diante da defloração? Receia a dor do coito? Fantasia que irá esvair-se em sangue? Teme ser danificada pela poderosa verga do homem? Sabe usar métodos anticoncepcionais práticos e eficazes? Ambos os parceiros cuidam de sua saúde física e sexual? Ambos têm consciência de que o delicioso exercício da sexualidade é uma brincadeira de adultos e que, portanto, implica responsabilidade pessoal no que se refere a intimidade, a doença sexualmente transmissível e, sobretudo, a gravidez? O jovem consulente vem ao médico com um segredo escabroso? Se o segredo for revelado, o médico amortece a bola no peito e bota no terreno: os seres humanos têm a grande incapacidade de nada inventar de novo que já


não esteja na Bíblia. O médico partilha a confidência, divide o peso cio segredo e, quase certamente, poderá mostrar ao paciente aspectos amenos, humanos, daquilo que ele cliente, considera tão insólito. O jovem revela que acaba de cometer um crime e pede que mantenha o fato em segredo? Ele deve dar conta à sua própria consciência e levar em consideração a lei vigente na sociedade. Cabe ao médico induzi-lo a partilhar o delito com sua família e com a autoridade competente. O rapaz; anuncia que irá praticar um crime? Ou que irá suicidar-se e pede sigilo ao médico? Este tem de clarear a situação com o jovem, durante a consulta. Logo a seguir, convocar a família, e com ela estabelecer uma estratégia de contenção das ameaças do jovem, visando a protegê-lo dos seus próprios demônios. O médico tem uma posição pessoal depurada nos longos anos de sua prática clínica. Professa ajudar o paciente, aliviando-o de dores e de angústias, sempre que possível. Visa a estimular o cliente a vislumbrar uma senda, até então insuspeita, por onde ele possa levar sua vida adiante. Antevê certos caminhos inadequados que elevem ser evitados, prevenindo o pior.


Acima de tudo, o médico amola, diuturnamente, o bisturi da sua incisiva competência, mantendo sempre claro o descortino do grau de sua potência - abdicando de arrogar-se onipotente. Ao assim proceder, o médico sabe que está em plena prerrogativa do exercício da clínica. Clínica médica: esta nobre prática que permite ao homem preparado, diferenciado, dotado de arete, colocar-se ao alcance de seu semelhante e de seu diferente para ajudá-lo. O dois - médico e paciente - com as mãos na mesma colher. Espantando a ignorância e "sacaneando" a morte...


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