RENALDI FEITOSA BRITO
© 2015, José Renaldi Feitosa Brito Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita do Editor.
Coordenação Editorial
Beth Cataldo Revisão
Suely Gehre Projeto Gráfico e formatação
Sérgio Luz Desenhos
Francisco Paiva Brito Foto da capa
Mônica Mirtes Foto do autor (orelha)
Maria Aparecida Vasconcelos Paiva Brito
RENALDI FEITOSA BRITO
1ª Edição José Renaldi Feitosa Brito Belo Horizonte 2015
A Cida, Pedro e Francisco. A Santana (BeĂnha) e MĂŁe Tila, duas sertanejas.
Apresentação Alguns dos textos reunidos neste livro tratam de memórias esparsas sobre as quais não tenho certeza absoluta se refletem os acontecimentos exatamente como foram vividos por uns ou narrados por outros. São o meu ponto de vista − e não necessariamente coincidem com outros testemunhos dos acontecimentos. Os minicontos são totalmente ficcionais. Confesso que usei relatos ou observações que ajudaram a compor alguns personagens. Algumas histórias foram costuradas com lembranças de mais de uma pessoa, mas nenhuma delas aconteceu da forma como foi contada. As pessoas inspiraram uma frase, um ato ou um comportamento. O restante é pura imaginação. Os dois últimos capítulos são observações diárias, e alguns dos outros se confundiram um pouco com as memórias. São relatos despreocupados sobre pessoas, muitas delas desconhecidas, e situações corriqueiras. A maioria foi publicada no Facebook, sem pretensões literárias. Tive a ambição de escrever quase sempre sobre pessoas, mas tentando, ao mesmo tempo, comentar sobre o ambiente e a época dos acontecimentos. Os eventuais leitores poderão avaliar se tive algum sucesso, e espero que encontrem algo interessante em pelo menos um ou outro texto. Agradeço aos amigos do Facebook pelo incentivo e cobrança de colocar meus pensamentos em um livro. Minha gratidão a Beth Cataldo, responsável pela edição do material, pela paciência e benevolência para extrair o melhor dos textos. Agradeço também
a Sérgio Luz pelo projeto gráfico e a Suely Gehre pela revisão linguística. Ao meu filho Francisco agradeço pelos desenhos, e a Mônica Mirtes Cordeiro, pela cessão da foto da capa. Finalmente, sou grato a minha família pela paciência comigo em todos os momentos, particularmente nestes últimos anos.
Prefácio Em que momento falar de nós mesmos? Na adolescência, quando fervilham anseios e descobertas? Na maturidade, que nos surpreende ainda alheios à finitude da vida? O momento é sempre, poderia responder José Renaldi Brito em seus textos, repletos de histórias e personagens que transpiram as cores e os ares do sertão de sua alma. É como se a urgência de expressar-se o assaltasse a cada instante e nos franqueasse as janelas de um mundo solar e misterioso, a um só tempo. O universo pessoal e social em que ele transita instiga a leitura e acende a imaginação. Podemos acompanhá-lo, a passos meticulosos e sensíveis, pelas calçadas de sua Tabira natal, que carrega a magia de Pernambuco e os enredos que o assombram na primeira infância. Ao seu lado, percorremos as páginas dos livros emprestados ao jovem e ávido leitor e nos sentamos para ouvir rádio nas casas vizinhas, naquele tempo em que a tecnologia ainda não nos aprisionara por completo em suas armadilhas. Corremos com Jura o pé de ladeira e nos inquietamos com Jorge, às voltas com sua mãe mordida de sete raposas – seja lá o que isso signifique. E Deus nos livre de encontrar aquele diabo na Rua do Rio, com seu olho brilhante e avermelhado. Também sentimos falta do alarido das festas de São João, da exuberância da dança ao som da música tradicional, do gosto das comidas típicas, ah, a pamonha e a canjica, dos rostos iluminados pela fogueira e a excitação das brincadeiras. Onde os cheiros dos caminhos da roça, com seus umbuzeiros gigantes, folhas miúdas e frutos prometidos? Dos tempos da água armazenada em potes
de barro, escondiam-se envergonhadas as famílias das moças que engravidavam sem o ritual prévio do casamento. As pequenas cidades sertanejas, como nos retrata Renaldi, não escaparam da revolução dos costumes dos anos 1960 e, à sua moda, conviveram com a vida virada pelo avesso. O autor pisa com firmeza também no terreno da ficção e desfila personagens densos, muitas vezes aprisionados pela rotina asfixiante de vidas previsíveis e enfadonhas. Outras, o inesperado emerge e nos surpreende com trajetórias inusitadas e desfechos insuspeitos. Ele tece a trama das histórias de vidas miúdas, entrelaçando-as cuidadosamente para nos revelar seus segredos mais íntimos, como se jogasse luz sobre as sombras de existências adormecidas e atormentadas. Uma pitada de fina ironia completa o seu ambiente ficcional, como nas desventuras do rapaz que não se gostava e buscava incessantemente transformar seu corpo, sem que fosse capaz de reinventar seu espírito. E o que dizer do olhar agudo de Renaldi sobre o cotidiano, marcado pelos desencontros de uma sociedade em construção e que já é ruína, se pudermos recorrer aos versos precisos de Caetano. Nada escapa à sua visão atenta, dos passageiros típicos das viagens de ônibus aos hábitos de pontualidade, ou impontualidade, dos brasileiros. A sua saudável capacidade de indignar-se diante das desventuras da vida de todos os dias nos soa bem-vinda, como se nos ajudasse a enxergar as dobras de uma realidade indigesta que nos acostumamos a aceitar. Há espaço também para o cientista inquieto, que aparece para questionar a escassez de médicos em meio à proliferação de faculdades de Medicina no país. Ou para invocar a sua condição
de veterinário, que ainda prefere o cheiro do povo ao dos cavalos, invertendo a lógica do último dos generais de plantão. Mas que não se confunda essa declaração de fé com a arrogância dos homens no trato com os animais, o que ele rejeita de pronto. Há algo mais perfeito do que um cavalo? – pergunta-nos com a simplicidade dos que conhecem os seres desse mundo e caminharam pelas trilhas encantadas de Santiago de Compostela. Pensar a experiência humana, refletir sobre o nosso tempo – eis alguma coisa que podemos detectar com certeza em seus textos mais confessionais. O capítulo que dedica a indagações sobre a vida e seu sentido nos traz a respiração mais pausada e o mergulho mais fundo em águas existenciais. O caminho é longo e pode até comportar acidentes de percurso, como a visita de Mr. Parkinson, mas os anjos acidentais estão por toda parte, como ele nos ensina. Conseguir rir do próprio infortúnio é um dos trinta motivos que ele encontra para se sentir feliz. É como nos sentimos ao encontrar sua palavra límpida e corajosa. Beth Cataldo
Sumário Capítulo 1. Memórias O pau de arara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Meu pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 O dia que eu vi o olho do diabo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24 O que eu lia e o que não lia em Tabira (1950-1964) . . . . . . . . . . 26 As sete raposas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Urubu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Tibes! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Coisas de que sinto falta... da infância, do sertão . . . . . . . . . . . . . 33 Banho de chuva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 Luizinha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 Dona Quitéria Cordeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38 Dona Do Carmo Viana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40 Dona Tereza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43 Sobre papa-figos e outras assombrações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 O dia que deu cobra no jogo do bicho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 Mazu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51 Glamour sertanejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 Revolução sexual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Dezessete anos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 Esnobismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58 Do olfato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60 Como vivíamos no tempo da ditadura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64 Pão e feijoada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65 Pedro e Francisco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Loucos e suas manias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71
Profissões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Padre Hugo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Maria . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mr. Parkinson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Meu batismo no SUS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Papo de velho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo 2. Minicontos quase crônicas A garota que moldou seu destino . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88 Donzelice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 Fera ferida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 O anjo da imburana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 O caso do vestido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104 O cientista que entendia a linguagem das vacas . . . . . . . . . . . . 108 O diabo da Suçuarana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 O homem que se estranhou . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117 O mausoléu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 O rapaz que não se gostava . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126 Reencontro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128 Sem assunto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130 Velhice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134
Capítulo 3. Um olhar sobre o cotidiano A quem possa interessar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 Sobre ciência e tecnologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141 Sobre as várias maneiras de morrer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 As dores de ser pai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 144 Sobre o significado do tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145
Da dor de ser brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 O homem e os vulcões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148 Pontualidade britânica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 Manias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 Geni-fé . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 Arrogância e hipocrisia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152 O que não se aprende na escola . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153 A revolução dos estetoscópios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 154 Posando pra foto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 Viajando de ônibus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157 Reivindicações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160 Belo, bonito, perfeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161 Palavras, palavras, palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Sobre anjos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 Você tem fome de quê? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 167 Mulheres quilombolas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168 Idiotas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Linguagem e a pedra lascada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170 Pobreza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 Bairrismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 172 Quase caos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174 Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175 Seres invisíveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176 Lixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177 Fofocas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 Uma pitada de cultura inútil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180 Viajar é se mover em estado de encantamento . . . . . . . . . . . . . . 181 Dúvidas existenciais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183 Vida besta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185 Aparecida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185
Perdão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Abraço . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Só louco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Canalhice . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A felicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cinquenta por cento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Sobre palavrões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O reverso do espelho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Visão da janela . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O suicídio dos pombos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pobre terça-feira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Pernas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ora, árvores! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Leveza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A cidade dentro da cidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Capítulo 4. Confissões Aprender a esquecer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 204 Átomos e células . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205 Portas e janelas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 A ponte e o rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 206 Saudade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 Jesus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208 Etiqueta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 210 Nossas escolhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 O dia que amanheci blue . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 Preguiça utópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212 Trajetória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
Mais dĂşvidas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213 O lugar de todos os lugares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 214 Amigo imaginĂĄrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 Milagres e magia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 215 ExistĂŞncia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 216 Saudades do mar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220 Arrependimento e remorso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221 esespero . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Dor emocional profunda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222 Atletas de Deus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 223 Sorte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 Prazo de validade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224 Trinta motivos para se sentir feliz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 225
Cap铆tulo 1
Mem贸rias
Visita: Hugo Paiva, Renaldi e Cida Brito.
O pau de arara Ouço a música O último pau de arara e lágrimas me escorrem pelo rosto. Está chovendo em Juiz de Fora, mas o que me vem à mente é a seca de 1958 que atingiu o Nordeste. Eu tinha oito anos e recordo que os adultos comentavam que era a pior seca que tinham visto, ou que era a pior do século, coisas desse tipo. Encontrar frutas e verduras na feira era difícil. Foi a primeira vez que vi o fruto do mandacaru sendo vendido como fruta. Eu me recordo também do cheiro de animais mortos – da carniça adocicada e penetrante e dos restos das ossadas cobertas de pele ressecada. A terceira coisa que me vem à lembrança é a despedida de minha tia Otília, em cima de um pau de arara, cujo destino era São Paulo. Mãe Tila, como eu a chamava, era pequena e tinha cabelos pretos, olhos azuis penetrantes e muito sofrimento nas costas. Deveria ter uns 50 anos na época, e eu a considerava minha avó. Ela era a mais velha de mais de dez irmãos e substituíra a mãe que morrera ainda jovem, tomando conta dos irmãos, inclusive do meu pai. Daí o nome Mãe Tila – não avó, uma segunda mãe. Ela vivia da agricultura e morava na casa chamada Bolandeira, nas Covoadas, propriedade que pertencera aos meus avós e que fora dividida, como herança, entre os filhos. Não tenho certeza se Bolandeira derivava da roda de um engenho de açúcar. Talvez fosse, mas lá também se plantava algodão, e esta pode também ser a origem do nome. A Bolandeira era uma típica casa do sertão: tinha uma cozinha grande, um ou dois quartos e uma sala grande onde se amarravam as redes. As paredes eram altas, escuras, e o chão era de terra batida. Havia uma única cama para o casal mais velho. O restante,
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RENALDI FEITOSA BRITO
crianças, adolescentes e adultos, dormia em redes. Na frente da casa havia um umbuzeiro muito antigo e que ocupava a maior parte do terreno. No quintal de trás, havia goiabeiras, mangueiras e alguns pés de pinha. Mãe Tila plantava milho, feijão e criava galinhas. Não me recordo de outros animais, mas é provável que tivesse algumas cabras, e uma pequena horta para cebolinha, coentro e tomates, como era comum. Com a longa seca, ficou impossível viver da agricultura, e ela foi morar na cidade, onde pelo menos havia água. Sua casa na cidade era pobre e eu adorava comer o feijão que ela fazia, e um tipo de bolo de milho, chamado bolo de caco. Não sei o que desencadeou sua decisão de se mudar para São Paulo. Deve ter sido o mesmo motivo de milhares de nordestinos desesperançados com as condições de obter renda da terra ou, melhor dizendo, com a falta dessas condições. Ao contrário de hoje, não me lembro de ter chorado no dia da sua partida, porque parecia a coisa natural a se fazer. Era como se houvesse um destino a ser cumprido e, cedo ou tarde, todos iriam fazer o mesmo. Ou talvez aos oito anos eu não soubesse o significado exato de palavras como saudade, despedida, mundo desconhecido, desesperança e desespero. Nos anos de seca na década de 1950, as pessoas desempregadas, ou que perdiam tudo, ou desesperadas, ou falidas, só tinham uma saída: subir num pau de arara e ir tentar a vida em São Paulo. Para mim, São Paulo era não só o centro do Brasil, mas o centro do mundo e do universo. Vários dos amigos e irmãos do meu pai, e vários dos filhos dos outros que não tinham mais idade de enfrentar a viagem, trabalhavam em São Paulo. A visão de Mãe Tila na carroceria de um caminhão, com seus poucos pertences reunidos em uma mala pequena, e com a cara e
SERTÕES DA MINHA ALMA
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a coragem para recomeçar a vida numa cidade desconhecida, até hoje me comove, especialmente quando ano após ano as notícias da seca se repetem. É como se eu colocasse uma imagem verdadeira na poesia da canção. A diferença é que nos dias de hoje não há mais paus de arara e certamente o afluxo de nordestinos para trabalhar em São Paulo não se compara à verdadeira diáspora sertaneja que ocorreu entre as décadas de 40 e 60 ou 70 do século passado. Pouco convivi com Mãe Tila depois que ela se mudou para São Paulo. Ela não retornou ao sertão de Pernambuco enquanto lá eu vivia. Ou talvez tenha retornado uma vez. Reencontrei-a algumas vezes na década de 1980, quando tive oportunidades de passar por São Paulo, viajando entre o Sul e o Sudeste. Apesar das dificuldades que enfrentou, ela não me parecia envelhecida. Tinha poucos cabelos brancos. Nunca perguntei como ela conseguiu sobreviver, se havia encontrado trabalho ou se tinha uma aposentadoria. Ela vivia num pequeno apartamento alugado, nos fundos de uma casa, em Utinga, Santo André. Nessa região moravam dois de seus irmãos e alguns sobrinhos. Quando ela estava com aproximadamente 80 anos, foi morar em um pequeno apartamento com a família de um dos irmãos, Ivo. Ela sempre me tratou como um neto e me contava sobre a sua infância no sertão pernambucano, o que incluía cangaceiros, assombrações e outras histórias dos tempos em que no sertão não havia carros, nem eletricidade, nem gás encanado, nem telefone e muito menos internet. Ela se lembrava de acontecimentos do início do século, mas se queixava de que sua memória falhava e que esquecia tudo. Só fui entender isso quando passei dos 60 anos. Ela manteve o carinho maternal por meu pai e pelos irmãos e se preocupava com todos. Viveu até os 92 ou
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93 anos – eu nunca soube sua idade exata, mas que importância isso tinha? Ela fazia questão de diminuir pelo menos dois anos de sua idade, e se a gente acreditava, ela se sentia mais jovem e seus olhos brilhavam.
Meu pai Meu pai era um homem comum. Não era um ser especial, desses que ganham nome de rua ou estátua quando morrem. Era um homem mediano, bom pai, bom marido, honesto, trabalhador, e tinha vícios também. Enfim: um homem como tantos outros. Morreu com a idade que terei em alguns meses. Às vezes penso que não é justo ele ter morrido tão jovem, poderia ter esperado alguns anos para conhecer os netos e bisnetos. Poderia ter vivido para ter uma velhice como todos os avós merecem. Mas, pensando bem, quem sou eu para definir o que é justo e o que é injusto para a existência das pessoas. Hoje eu gostaria de lhe dar um abraço, como os muitos que deixei de dar. A gente sempre acha que depois haverá um tempo para conversar, para abraçar ou para compartilhar a vida. Esse é um pedido de desculpas a meu pai, mais do que uma homenagem. Eu sinto imensamente sua falta.
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O dia que eu vi o olho do diabo Morávamos numa rua, na entrada da cidade, bem ao lado do único posto de gasolina. Naquela época não havia a praça, depois construída e finalmente destruída por um prefeito que não tinha compromisso com a história local. Em lugar da praça foi construída uma rodoviária fantasmagórica e desnecessária. Eu tinha uma tia e primos, da minha idade, que moravam noutra rua, perto do rio, por isso conhecida como a Rua do Rio. Eu frequentava a casa deles e, às vezes, dormia por lá mesmo. Josefa trabalhava e morava com a família dos meus tios. Era dessas pessoas que parecem fazer parte da família ou, no mínimo, parte da mobília da casa. Ela tinha um sinal no braço. Era arredondado, enorme, escuro e cheio de cabelos. Parecia um relógio de pulso, desses grandes. Era conhecida por Zefa e tinha autoridade para nos dizer que era hora de dormir, para mandar limpar os pés ou comer sem deixar sobras no prato. Uma noite, estávamos brincando além da hora de ir para a cama, quando ela nos chamou e disse que o diabo estava no quintal esperando por nós. Eu prontamente acreditei, porque acreditava em tudo que os mais velhos contavam. Ouvia histórias de um diabo que aparecera na Suçuarana (um sítio próximo de Tabira) e os casos de botijas que deveriam ser desenterradas à meia-noite, sempre num lugar esquisito e ermo. Botijas eram vasos cheios de moedas que as pessoas avarentas enterravam para não dividir com ninguém. Se essas pessoas não os desenterrassem em vida, depois de mortos apareciam às pessoas para pedir que fizessem o serviço, podendo ficar com o tesouro. Essa era a explicação para muita gente que fazia fortuna do dia para a noite. Caso ninguém desenterrasse a botija, seus proprietários ficariam vagando como almas penadas
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para sempre. As pessoas medrosas que decidissem desenterrar a botija durante o dia, para evitar assombrações à meia-noite, encontravam apenas moedas de barro sem nenhum valor. A morte e qualquer coisa relacionada, especialmente o caixão ou a rede – pois os muito pobres não tinham como pagar um caixão e eram transportados e sepultados numa rede -, eram motivos de perda de sono e de longas horas de olhos arregalados no escuro esperando as almas aparecerem. E não faltavam casos para alimentar o medo. Havia os casos de defuntos que se levantavam pouco antes de serem enterrados, ou, pior ainda, de pessoas que eram enterradas vivas porque tinham tido um ataque de catalepsia e eram consideradas mortas. E, ainda, de mulheres vestidas de vermelho e de batom vermelho que pediam carona a motoristas que viajavam à noite sozinhos. Quando o motorista olhava para o banco do carona, ela tinha desaparecido. Não sei qual o motivo que levava essas almas penadas a pedir carona. Dessa forma, eu e meus primos não tínhamos escolha senão acreditar que o diabo estava no quintal. Morrendo de medo, acompanhamos Zefa até a cozinha, e ela abriu uma fresta na porta para a gente observar. No centro do quintal se erguia um poste e no alto do poste tinha uma luz avermelhada. Zefa apontou para a luz e disse que aquele era o olho do diabo, que ficaria ali a noite toda. Acabamos com nossa brincadeira e fomos para a cama imediatamente. Por muitos anos eu acreditei que aquele era mesmo o olho do diabo que poderia estar a me observar. Se alguém duvida, é só ir até a Rua do Rio e procurar uma casa com quintal que vai até a margem do rio. Se lá ainda existir um poste e a noite não for de lua, é possível que o olho apareça. Pode ser que nesse local se encontre uma botija cheia de moedas de ouro e prata. Eu prefiro morrer pobre.
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O que eu lia e o que não lia em Tabira (1950-1964) Antes da internet, da TV por assinatura, antes dos iPads e dos computadores portáteis, havia livros, revistas, jornais e rádio. Pessoas endinheiradas tinham acesso a tudo isso, e pessoas menos aquinhoadas, como eu, liam livros e revistas emprestados, ou ouviam rádio na casa dos vizinhos. Naqueles anos – até meados da década de 60 – havia uma censura no ar aplicada a crianças e adolescentes pelos pais, professores e adultos em geral. Essa censura dificultava até a respiração. Havia livros, como A carne, de Júlio Ribeiro, que eram expressamente proibidos (por sinal, nunca li, nem escondido). Consultei o Google e copiei a seguinte descrição dessa obra: é um romance naturalista publicado em 1888 que aborda temas até então ignorados pela literatura da época, como divórcio, amor livre e um novo papel para a mulher na sociedade. Só agora percebo como era subversiva, para usar uma palavra da época. Entre os livros permitidos havia os de Monteiro Lobato, Humberto de Campos, Olavo Bilac e outros, contanto que não falassem de sexo. Jorge Amado, nem pensar. Havia também a literatura importada e lembro-me de ter lido mais de um livro de um escritor americano chamado Dale Carnegie, que deve ser a fonte de inspiração para a torrente de escritores de livros de autoajuda de hoje. Os livros de Dale Carnegie, morto em 1955, tinham títulos objetivos: Como fazer amigos e influenciar pessoas, Como evitar preocupações e começar a viver, A arte de falar em público, Como desenvolver confiança e influenciar pessoas – e outros do mesmo estilo. Esse autor, por meio da fundação que tem seu nome, continua influenciando pessoas até hoje. Havia também a coleção Tesouro da Juventude, que eu devorava quando tinha oportunidade.
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Estar no paraíso para mim era ler as revistas Manchete e O Cruzeiro, especialmente pelas crônicas de Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Otto Lara Rezende, Fernando Sabino e Raquel de Queiroz. E, ainda, pelas “charges” como “O amigo da Onça”, de Péricles, um cartunista genial. Era como uma brisa de modernidade para quem lia Dale Carnegie, totalmente fora de contexto. Lia também gibis – como chamávamos as HQ da época: Tarzan, Superman, Mandrake, Batman, Bolinha e Luluzinha eram meus preferidos. Eu não só lia como fantasiava que participava dos enredos. Aos 14 anos, terminei o curso ginasial, equivalente ao atual ensino fundamental, e fui estudar num colégio interno, em Patos, na Paraíba. Fiquei amigo de um dos padres puramente por interesse, não tenho vergonha de dizer: ele tinha uma biblioteca, nome que eu dava a qualquer coleção de dez ou mais livros. Infelizmente, a maioria desses livros parecia ter sido escrita para explicar como todos nós iríamos acabar no inferno e o que encontraríamos por lá. Quem lesse A carne certamente teria cadeira cativa perto do caldeirão mais quente. Tenho trauma até hoje por conta dessas leituras. No colégio, recebi de herança de outro colega mais velho a tarefa de escrever o jornal mural. Toda semana o jornal era atualizado, e por falta de colaboradores (ou de gente com menos juízo), eu escrevia tudo: crônicas, poemas, curiosidades, notícias e enchia o jornal de fotos cortadas das revistas que encontrava. Tenho absoluta certeza de que eu era o único leitor do jornal, razão pela qual não havia uma seção de Cartas dos Leitores. Pensando bem, se fosse mais esperto, teria inventado essa seção e eu mesmo escreveria várias cartas, com nomes fictícios. Essa lição não fazia parte dos manuais de Dale Carnegie.
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As sete raposas Éramos quatro, cinco ou seis, dependendo do horário das aulas e das tarefas demandadas pelos mais velhos. Tínhamos entre 12 e 14 anos e nossa maior diversão eram as excursões (que preferíamos chamar de aventuras) para o sítio ou fazenda de algum conhecido, especialmente na época das chuvas, que os sertanejos chamam de inverno. Ao nosso grupo se juntou Luiz. Não fazia parte das brincadeiras, pois era alguns anos mais velho. Calculo que teria uns 17 anos e era meu colega de classe no ginásio. Luiz era simpático e parecia ansioso para fazer parte do nosso grupo, porque parecia deslocado dos outros rapazes. Ele veio transferido da capital, onde morava com quatro irmãos mais velhos que eram militares. Sua mãe era viúva e vivia com seus dois irmãos mais novos num sítio a aproximadamente quatro quilômetros da cidade. Aparentemente seus irmãos mais velhos ajudavam nas despesas do sítio e da casa da rua, onde eles ficavam no período das aulas e nos dias de feira e de festas. Num final de semana, Luiz nos convidou para passar o dia no sítio da sua família. Lá passava um riacho e, disse ele, tinha goiabas e mangas à vontade. Ele explicou que iríamos almoçar em sua casa. Nós não nos preocupávamos com água para beber ou algo para comer nas nossas excursões. Na maioria das vezes caminhávamos de volta sedentos, famintos, molhados, suados, sujos e felizes. Chegamos cedo ao sítio e fomos para a beira do riacho. Não sei quantas horas ficamos pulando dos galhos das árvores na água e nadando, mas nada de goiaba ou de manga, ou qualquer outra fruta. Perto de meio-dia, ou talvez até antes, a fome apertou. Decidimos encerrar a diversão e voltar para nossas casas. Nosso anfitrião se dirigiu para casa e nós o seguimos. Ele indicou que
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esperássemos na frente da casa, enquanto ele ia investigar sobre o almoço. O silêncio do meio-dia, de sol a pino, e sem animais por perto, era total, de modo que ouvimos toda a conversa entre ele e sua mãe. Era evidente que ele, como todos nós, não tinha a mínima ideia do que era organizar almoço para seis pessoas sem aviso prévio, e sem provisão da matéria-prima. Ela dizia que não tinha almoço nenhum, onde já se viu! Mas mãe, nem uma carne assada com arroz e feijão? Não. Nem uma canja? Não. Nem uma farofinha de cuscuz? Não. Nem um café com leite e bolachas? Não. Mas mãe, o que meus amigos da cidade vão pensar? Olha Luiz, teus irmãos trabaiam e botam comida na mesa aqui em casa. Tu não trabaia, vive só na malandrage e ainda vem com esses rapaiz da rua pra me dá prejuízo. Mas mãe, eles são filhos de gente importante da cidade. Então manda eles caçá lugar de gente importante. O assunto parecia estar definitivamente encerrado, mas ele não se dava por vencido, porque voltava a conversar e insistir, buscando uma saída. Para nós, parecia que ele estava ficando alterado e não sabíamos o que fazer. Sua mãe não tinha instrução formal. Cortava letras, não usava o plural das palavras, e ele se sentia constrangido. Ouvimos mais uns murmúrios e de repente ele se alterou e gritou que sua mãe parecia estar mordida das sete raposas. Aí ela se enfureceu e lhe disse que já chegava. Que ele também não tinha almoço e que fosse procurar comida noutro lugar com seus colega da cidade. Aí ele usou um argumento que lhe pareceu definitivo e disse que ia sair de casa para sempre, que nunca mais voltaria, que estava decepcionado e que estava passando vergonha na frente dos colegas do ginásio. Então ouvimos a sentença final, dita entredentes e pausadamente: Po-de ir Lu-iz, se um me a-ba-do-na, tem seis que me a-ga-sa-ia.
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O silêncio caiu de vez feito uma tempestade de verão, e nós não saímos correndo porque não tínhamos pernas. Demorou uns minutos para ele reaparecer e fizemos de conta que não havíamos escutado nada. Apenas dissemos que estava na hora de voltar para casa, porque não tínhamos avisado nossos pais que iríamos voltar tarde. Luiz se despediu de nós e entrou em casa. Não ficamos sabendo do desfecho, se ele fez as pazes com a mãe, ou se arrumou um trabalho, ele nos evitava. Alguns dias depois pediu transferência e foi morar com seus irmãos que serviam na capital. Até hoje, quando leio as palavras abandono e agasalho, me lembro desse caso. Nunca descobri o que faz uma pessoa ser mordida por sete raposas.
Urubu Nós morávamos quase todos na mesma rua. Havia mais dois meninos que moravam e trabalhavam na olaria com o pai. Esses moravam mais afastados, fora da área urbana. Todos nós tínhamos apelidos, ou quase todos. Havia um menino que destoava dos demais: era negro, baixinho, quase anão, e muito feio. Tinha a cabeça grande para o corpo, era como se a cabeça fosse de um adulto no corpo de uma criança pequena. Seu apelido era Urubu. Nós o chamávamos de Urubu e ele atendia. Era um doce de pessoa. Ficava feliz quando brincávamos juntos. Aos 14 anos saí de casa para estudar interno num colégio. Nunca mais encontrei o Urubu. Eu sei que não havia maldade quando o tratávamos assim. Nós o tratávamos sem preconceito (a
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não ser pelo apelido, que não sei a origem), mas no fundo do meu coração sinto tristeza pela sua ausência no resto da minha vida. Provavelmente, quando atingiu a idade adulta, emigrou para o Sudeste à procura de emprego, ou arranjou um subemprego que não exigisse uma aparência ou altura adequada. Penso que seria recusado na polícia ou no exército, por exemplo. Provavelmente trabalhou como pedreiro, ou como agricultor. Até a adolescência podemos ser todos mais iguais do que no resto das nossas vidas, mas a adolescência pode ser uma época cruel para quem é mais desigual. Já encontrei muitos “Urubus” pelas ruas.
Tibes! Nas férias íamos com frequência para a Fazenda São Joaquim, que ficava a aproximadamente sete quilômetros de Tabira. Ficávamos entre o açude (quando estava cheio), o leito quase sempre seco do rio e as árvores. Inventávamos brincadeiras e nos divertíamos pregando peças uns nos outros. Beto, o filho do dono da fazenda, tinha uma bicicleta e nós a usávamos em rodízio. Funcionava assim: dois seguiam na frente na bicicleta e um voltava para pegar mais um, enquanto o da frente continuava a caminhada. Essa bicicleta deveria ter se tornado um monumento! Geralmente nos esquecíamos de levar algo para comer. Depois de nadar e correr e subir nas árvores, fazíamos um inventário do que tínhamos para comer. Às vezes, alguém levava uma lata de sardinha e um pão para dividir entre todos. Era sorte quando era época de alguma fruta. Mas era sempre divertido. Jura – Jurandir
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Cordeiro – era um dos mais novos do grupo, e o mais forte, e sempre saía na frente para tentar pegar uma carona em algum raro veículo que passasse na estrada, para deixar a bicicleta com dois somente. Raramente conseguíamos carona porque éramos muitos, e o jeito era seguir a pé e na bicicleta. Inventávamos jargões que duravam o tempo das férias ou até mais de um ano. Uma vez ouvimos o caso de alguém (que não era do nosso grupo) que justificou não fazer uma tarefa dizendo que não a tinha feito mode cobra – no linguajar sertanejo significa por causa de uma cobra. Naquelas férias usamos essa expressão sempre que queríamos nos negar a fazer algo. Um dia, estávamos particularmente cansados, saindo da fazenda, que dava direto na rodovia. Jura, como sempre, se adiantou ao ouvir um barulho de carro. Estávamos no pé do morro, sem fôlego e sem forças para correr. Ele correu na direção oposta, subindo o morro e gritando para nós “corre que aí é pé de ladeira”, o que significava que não haveria chance de o carro parar para depois subir o outro morro. Nisso, o veículo passou na velocidade máxima possível, sem dar a mínima para nós. Ele voltou desanimado e se juntou a nós, agora mais cansado. Dali em diante, usávamos a expressão “corre que aí é pé de ladeira”, para significar algo que exigia esforço para nenhum resultado. Marcos, primo de Beto, era mais velho uns quatro ou cinco anos, e não era da nossa turma. Ficamos sabendo que um dia ele seguia pela estrada e encontrou Benvinda, uma mulher que parecia estar sempre zangada e que falava sem parar. Nesta questão, Marcos era páreo duro para ela. Ele falou o tempo todo, sem dar chance para Benvinda, que foi ficando impaciente. Em dado momento ela exclamou: Tibes! Que menino falador, e se afastou dele. Daí em diante, a palavra tibes virou nossa interjeição
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preferida e foi adotada por nós sempre que queríamos expressar desdém ou surpresa. De todas essas expressões, a que ficou para nós (pelo menos na minha família) foi a de dona Tereza de Jesus, que ao entrar em casa, depois de uma romaria para o Padre Cícero, exclamou: “Vai embocando Tereza de Jesus”. Sempre que estávamos juntos, ao entrar em algum lugar, repetíamos o dito de dona Tereza. Jura morreu muito cedo, quando era estudante de Engenharia. Beto morreu mais velho, mas, para nós, ainda muito cedo. Suas ausências me deixaram um buraco no peito. Sempre imagino os dois entrando no céu e dizendo “Vai embocando...” E imagino a cara de São Pedro abrindo os braços e dizendo: — Tibes! Como vocês demoraram.
Coisas de que sinto falta... da infância, do sertão Milho verde assado na brasa. Merece o prêmio Nobel quem descobrir um jeito de assar milho em fogão a gás ou forno micro-ondas com o mesmo sabor e aparência. Sacanear Seu João Costa. Seu sítio praticamente tinha divisas com a rua onde morávamos eu e a maioria dos meus amigos. Ele não gostava de invasores na sua propriedade. A gente brincava de mocinho e bandido e o sítio era ideal para essas brincadeiras, porque era cheio de pedras enormes e pequenos morros. Quando ele nos via, corria atrás com um pedaço de pau e gritava que ia enfiar leite de avelós no lugar que vocês estão imaginando do primeiro que ele pegasse. A gente sempre ganhava a corrida, porque
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ele era já idoso naquela época. Ficava só o medo de ele se queixar aos nossos pais, coisa que ele jamais fez. Goiabas roubadas do sítio de Seu Cícero Mascena. Eram as melhores goiabas do mundo e o sítio ficava praticamente encostado nas ruas do centro da cidade. Até onde eu tenha conhecimento, Seu Cícero não se importava com nossos furtos. Biscoitos feitos pela minha avó. Ela fazia os biscoitos e levava para assar na padaria de Luiz Cordeiro, próxima a nossa casa. Os biscoitos tinham cheiro e sabor especiais. Umbuzeiro carregado de umbus de vez e maduros. Manga espada colhida do pé. Matinê no cinema, com direito a seriado após o filme. Brincadeira na rua até tarde da noite, sem medo. Histórias de assombração, de cangaceiros e de toda sorte de gente valente, contadas por quem viu e conheceu os personagens.
Banho de chuva. Previsão do tempo pelos mais velhos – explicando onde estava caindo chuva e quando ela chegaria para nós. Padrinho Bino era especialista em prever a chuva e a seca. Alfenim, batida e melado. Ainda quentes, diretamente dos engenhos de cana de açúcar. Não há melhores doces no mundo. Festa de São João. Com direito a música tradicional, batata-doce assada, pamonha, canjica e outras comidas típicas, fogueira e adivinhações. Desafio de poetas repentistas como os irmãos Batista e Pinto de Monteiro.
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Jogo de buraco na casa de João Cordeiro – e ouvir Graças contar as cartas pela décima vez e reclamar que só tinha qua-tro-car-tas-bê-ba-das, assim, bem explicado.
Luizinha Em 1962, aos doze anos, compareci a uma reunião na casa da Oficial do Registro Civil, Iracy Pires Leite Padilha, e me recordo de que, além dela, estava presente, entre outras pessoas, minha antiga professora do curso primário, Neusa Vidal. Elas me mostraram uns livros grandes, pesados e cheios de folhas, como eu nunca tinha visto. E me explicaram que eu tinha que caprichar com a letra porque iria trabalhar no cartório e escrever naqueles livros. Mostraram-me alguns exemplos e me explicaram que deveria tentar escrever com o mesmo estilo. Achei de imediato que era impossível a tarefa. Os registros daqueles livros eram feitos por uma fada, eu pensei. Eu jamais iria escrever com aquela elegância – e me apaixonei de imediato pela caligrafia da pessoa que escrevia nos livros. Eu já a conhecia, ela desenhava muito bem, e hoje sei que era autodidata. Eu tinha um desenho dela na capa de uma pasta organizada pela professora Neusa Vidal, a qual continha a coleção de provas mensais da segunda série do curso primário. A dona da caligrafia era Luiza Gouveia de Lima, escrevente juramentada do Cartório de Registro Civil. Luizinha, como a chamávamos, ia somente de vez em quando ao cartório, mas, quando aparecia, eu ficava abobalhado. Ela era bonita, independente, despachava as coisas com rapidez e tratava as pessoas de um modo
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que elas saíam felizes do cartório, mesmo que não levassem consigo a certidão que estavam buscando, para retornar dali a algumas horas, ou alguns dias, dependendo do volume de trabalho. Naquela época as certidões, como tudo o mais, eram feitas à mão, ou à máquina (eu era datilógrafo). No cartório, além dos registros de nascimento, casamento, óbito e documentos correlatos, eram entregues os certificados de isenção do serviço militar, que eram expedidos em Caruaru. Os reservistas faziam o juramento à bandeira, recebiam o certificado e iam embora. Luizinha organizava os juramentos, e eu me divertia. Sempre achava aquilo meio sem nexo, porque não entendia muito bem o significado da cerimônia. Um dia, ela resolveu ditar o juramento sem consultar o texto. Apoderei-me do texto e passei a seguir o que ela dizia e os rapazes repetiam. Num dado momento, ela fugiu totalmente do texto, porque esquecera tudo, mas seguiu em frente colocando sentenças de sua invenção, que lembravam vagamente o texto oficial. Ela não encontrava um jeito de concluir, mas não perdeu a compostura. Por outro lado, eu estava aflito e não podia fazer nada, porque ela se mantinha tranquila e dona da situação, como se aquilo fosse a maneira normal. Era cômico ver os rapazes repetindo as sentenças que ela inventava, e eu só não ria porque estava preocupado com a situação. Dei graças a Deus quando afinal o juramento foi concluído. Luizinha se vestia de maneira diferente das pessoas que eu conhecia mais de perto. Uma vez ela contou que queria um vestido novo para ir a um baile. Comprou um tecido barato, cheio de fios dourados, que anos depois poderia ser classificado como cafona, retirou todos os fios e o tecido surgiu sem a aparência de um tecido barato, mas perdeu a firmeza. Ela usou os fios dourados para costurar o vestido e o resultado foi deslumbrante. Era
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um vestido diferente de todos os demais, mas os fios não eram muito fortes e o resultado é que o vestido corria o risco de se desmanchar. Nós morávamos ao lado do clube, chamado Grêmio Litero Social Tabirense, onde aconteciam os bailes. Nessas noites, as moças que moravam mais distante batiam à nossa porta, pedindo para entrar para arrumar o cabelo, ir ao banheiro, beber água, descansar e, às vezes, chorar por conta de um desentendimento amoroso ou coisa parecida. Nessa noite, Luizinha pediu a minha mãe alguma coisa para amarrar o tal vestido na cintura. A única coisa disponível àquela hora da noite era um pedaço de barbante, que ela sem pestanejar ajustou à cintura e manteve firme o vestido. Retornou para o baile, linda e elegante. Eu a admirava por essas criações e pelo seu destemor. Nunca consegui escrever com a caligrafia de Luizinha. Nas horas vagas, tentava copiar a maneira como ela desenhava as letras A, G, J, L, M, N, P e Z. Não sei até hoje por que essas letras eram especiais, mas eram as letras que ela escrevia com maior inventividade e sofisticação, e eu me lembro perfeitamente de cada uma delas, apesar de terem se passado mais de 50 anos. Talvez a maioria das pessoas tivesse nome e sobrenome que começassem com essas letras. Nessa idade, eu acredito, a gente começa a enriquecer o vocabulário. Eu aprendia novas palavras, como resultado da vivência com adultos no cartório, ou pelas leituras que fazia de livros e revistas. Lembro-me de ter ouvido ou lido a palavra sofisticação pela primeira vez nessa época. Eu precisava associar um fato, ou pessoa, ou acontecimento, para conseguir incorporar cada nova palavra ao meu vocabulário. Luizinha personificava a sofisticação – e sua caligrafia era a maior prova disso. Se alguém
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tiver curiosidade, consulte os livros de registro de nascimentos de números 46 a 48 correspondentes aos anos de 1958 a 1960, aproximadamente. Fiquei mais de 40 anos sem notícias de Luizinha, até que há aproximadamente sete ou oito anos recebi uma carta dela, escrita à mão, contando de uma exposição de seus quadros em Recife. Ela obteve meu endereço por um amigo comum: Beto Pires. Escreveu também para lamentar a morte dele. Fiquei emocionado quando revi sua caligrafia, agora modificada pela dificuldade que parecia ter para escrever por conta de uma enfermidade que a deixou em uma cadeira de rodas. Ela anexou a cópia de um recorte de jornal com um texto muito bonito sobre sua arte, escrito por uma jornalista que era sua admiradora. A Luizinha de 1962 permanece viva na minha memória: uma das pessoas inesquecíveis da minha vida.
Dona Quitéria Cordeiro Na época em que trabalhei no Cartório de Registro Civil de Tabira precisava ser repreendido a toda hora. Era desatento, mas cumpria os horários e atendia as pessoas com responsabilidade. Como morava perto do cartório, era chamado para atender a todas as demandas por documentos fora de horário. Havia pessoas que vinham de cidades distantes no final de semana e pediam várias certidões. Então eu passava momentos preciosos de minha folga dos sábados e domingos, às vezes, fazendo buscas e escrevendo certidões. Ou então alguém morria e a família
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precisava do atestado de óbito para fazer o enterro. Não preciso dizer que fazia esses serviços extras com extremo mau humor. Era comum se realizar o casamento civil na casa dos pais da noiva (em geral), com presença do juiz de direito e do escrivão do cartório. O casamento era geralmente marcado para o meio da manhã, de modo que ao final era servido um almoço para a família e convidados. Nesse tempo as mulheres costumavam esconder a idade. Isso significava que ninguém passava dos 30 anos, especialmente se ainda era solteira, e ao chegar aos 40, algumas ficavam indefinidamente sem virar a folhinha. Quando eu tinha 12 anos, minha mãe tinha 31 – e para mim ela era quase idosa, conclusão a que eu chegava com relação a todas as pessoas. Dona Quitéria Cordeiro era uma dessas pessoas que a gente costuma considerar como um tipo inesquecível. Ela era viúva, morava numa casa em um lado da Praça Gonçalo Gomes, a principal da cidade, e era proprietária de um bar que ficava no lado oposto da mesma praça. Ela fazia parte daquele grupo de senhoras cuja idade era um verdadeiro mistério; tinha três filhas e um filho, quase todos com idade superior ou igual à de minha mãe. O filho casou e o casamento foi celebrado na casa da família, como de costume. Acompanhei Olga Ramos, que era escrevente e responsável por lavrar o termo do casamento. Minha função era pegar informações dos noivos, dos pais e testemunhas, e avisar ao juiz quando tudo estivesse pronto para a realização do ato do casamento, com as perguntas de praxe. No livro de casamentos, onde constava a filiação de cada nubente, após os nomes do pai e da mãe se acrescentava a idade, a profissão e o domicílio. Olga me chamou e recomendou que eu procurasse Dona Quitéria e lhe pedisse, com
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a máxima discrição, a informação sobre sua idade. Fui até Dona Quitéria e indaguei sua idade, ao que ela, para minha surpresa, respondeu tranquila e de imediato: 35 anos. Essa era a idade aproximada do filho que estava casando. Voltei e informei à Olga e consideramos que não era possível colocar no registro a mãe tendo a mesma idade do filho. Mais do que recomendado, voltei para negociar com Dona Quitéria. Disse-lhe a idade do filho, caso ela tivesse esquecido, e que não seria correto constar que ela tinha a mesma idade. Ela então regateou para 40 anos. Novamente eu lhe expus que ainda não era possível, mas já estava receoso de ser chamado à atenção pela impertinência. Ela então me olhou como se avaliasse minha capacidade de resistência e cochichou no meu ouvido, de modo que ninguém ouvisse: 45 anos, nem um ano a mais. Considerei aquilo uma vitória e assim constou a sua idade nos autos. Se alguém consultar o livro de casamentos desse ano, verá que ela teve o filho bem antes dos oito anos de idade. Dona Quitéria passou a ser uma das minhas personagens tabirenses preferidas: decidida, elegante e vaidosa. Não era bonita, nem feia tampouco, mas aqueles predicados a faziam uma mulher diferenciada. Para mim, ela permaneceu com 45 anos pelo resto da vida.
Dona Do Carmo Viana Dona Do Carmo Viana (ou Do Carmo de Tião) era amiga da minha mãe. Morávamos na mesma rua, separados por três casas, então éramos quase vizinhos. Na sua casa tinha uma radiola.
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Para quem tem menos de 40 anos, radiola era um móvel que ocupava lugar de destaque na sala – e tinha embutidos rádio e toca-discos (disco de verdade, LP). Quando Beto Pires chegava de Recife com um novo disco, corríamos para pedir para colocar o disco na radiola de Dona Do Carmo. Eram, quase sempre, Elis Regina, Jair Rodrigues, Nara Leão, Sérgio Ricardo, e depois Chico Buarque. De vez em quando Beto trazia um disco de música francesa, lembro-me de Françoise Hardy e Dalida. (Um parêntese: Françoise Hardy fez relativo sucesso no Brasil na década de 1960, e mesmo na França era considerada uma cantora cult. Em 1982 fui convidado para jantar na casa de amigos franceses. Eles me perguntaram o que eu conhecia de música francesa. Se espantaram quando mencionei Françoise Hardy, porque achavam que ela era completamente desconhecida fora da França). Dona Do Carmo era alegre e tinha uma risada inconfundível. Era uma mulher batalhadora e trabalhadora. Era especial porque nos dava atenção (tínhamos de 14 a 15 anos). Naquela época crianças e adolescentes até essa idade não participavam das conversas de adultos, a não ser quando eram chamados para dar recados, ou explicações, responder perguntas ou receber xingamentos. Mas Dona Do Carmo (como, acho, minha mãe) era diferente. Ela conversava e participava das nossas conversas, só não aprovava nosso gosto musical. Tudo era muito moderno para ela, que preferia os seresteiros e os sambas pré-bossa nova. Ela dizia que as nossas músicas pareciam música de velório. Era a época de O Fino da Bossa e ouvíamos Carcará, Reza, Maria do Maranhão, A voz do morro, Preciso aprender a ser só e muitas outras. Depois teve a febre dos Beatles e deixamos o cabelo crescer, o meu não se adaptava muito bem, era muito
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encaracolado. Minha fase de cabelo da moda só chegou com os hippies e Caetano Veloso, alguns anos depois. Bastava molhar e não pentear. Dona Do Carmo achava um horror homem de cabelo comprido! Ela não se conformava, dizia que tínhamos cabelo de mulher e fingia pegar uma tesoura para cortar nossas cabeleiras. Um de nós, sabendo da sua religiosidade, atacou com uma sentença que pensamos ser definitiva: — Até Jesus tinha cabelos compridos! A resposta de Dona Do Carmo veio fulminante: — Sei lá, ele também nunca se casou! Dona Do Carmo era casada com Seu Tião Viana, irmão de Enoque e Manoel. Manoel Viana era excelente músico. Tocava violão e saxofone como um profissional. Ficamos sabendo que para se casar Seu Tião teve que roubar a noiva, costume que existiu até a década de 1950, se não me engano. O roubo era realizado caso os pais da noiva se opusessem ao casamento. Parece que funcionava da seguinte maneira: o noivo juntava os amigos e uma pessoa mais velha para se responsabilizar pela integridade da noiva, combinavam uma noite e a noiva fugia de casa – ou seja, era roubada. Ficava hospedada na casa de uma família responsável até que os pais, vencidos, consentiam o casamento. Porque a saída era casar mesmo. Na minha imaginação isso era a coisa mais romântica que se podia imaginar. E eu imaginava algo como uma mistura de Zorro e Rapunzel, ele arriscando a vida e se esgueirando no meio da noite para livrar a amada da prisão dos pais, e ela se atirando de uma janela nos seus braços. Na década de 1960 esse costume já estava em desuso, porque não ouvi falar de outros casos.
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Dona Tereza Em Tabira, entre muita gente pobre, havia pessoas ainda mais pobres que só tinham um cômodo para morar, com uma única porta que dava para a rua. Nesse cômodo funcionava a cozinha, a sala, e havia um catre, ou uma rede, e o que mais as poucas posses permitissem. Num desses cômodos, não muito longe da casa dos meus pais, morava Dona Tereza. Ela era alta, branca e, para mim, muito velha. Não dava confiança a crianças, mas, no tempo das tanajuras, ela nos pedia para lhe levar algumas. Nós saíamos pela rua cantando cai, cai, tanajura que teu pai já morreu... Dona Tereza torrava as bundas das tanajuras e dizia que eram gostosas, embora eu não me lembre com certeza se usava essa palavra. Na época das romarias, em frente à casa dos meus pais parou o caminhão pau de arara que levaria os romeiros para Juazeiro do Padim Cícero. Entre os romeiros, estava Dona Tereza. Foi um trabalhão para ela subir, porque não admitia ajuda e muito menos que algum homem a tocasse, o que seria recomendável, pois não havia escada, e os romeiros deviam se equilibrar sobre as rodas e passar uma perna, e depois a outra, por cima da grade da carroceria. Depois de várias tentativas, lá se foi Dona Tereza. Esquecemo-nos dela e, alguns dias depois, ela estava de volta. Dessa vez, minha avó (que devia ser mais forte e mais nova) estava em frente de casa quando o caminhão estacionou. Um dos romeiros avisou que Dona Tereza não estava muito bem e pediu ajuda. Ela passara mal durante a viagem e pouco tinha comido. Imediatamente minha avó nos convocou (eu, um primo e outro amigo) para ajudar Dona Tereza. Ela desceu do caminhão com
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dificuldade, e o romeiro nos passou um saco com roupas, outro saco com comida (farinha de mandioca, batata-doce) e um terceiro saco com a rede dobrada e lençóis. Cada um de nós pegou um saco e minha avó avisou a Dona Tereza que iríamos acompanhá-la até sua residência (como ela chamava seu cômodo). Dona Tereza imediatamente se recuperou e adotou sua posição altaneira de dama. Olhou-nos com curiosidade e a superioridade de uma rainha – eu imaginei que era assim que as rainhas olhavam seus servos – e nos disse: — Os carregadores me sigam. E nós a seguimos em procissão. O medo nos impedia de rir, mas estávamos preparados para tudo. Ao chegar à porta da sua residência, Dona Tereza se virou e nos disse: — Os carregadores podem parar e esperar. Paramos e esperamos. Ela abriu a porta, observou se estava tudo em ordem e, abrindo os braços, fez uma reverência para a imagem do Padim Cícero que sobressaía no interior. Depois fez o sinal da cruz e disse, em voz alta, enquanto adentrava o aposento: — Vai embocando Tereza de Jesus! Aí eu vi que ela tinha sobrenome, e sobrenome ilustre. Já dentro do cômodo, ela se lembrou de nós e da sua bagagem e voltou à porta: — Os carregadores podem entrar! Entramos e colocamos cuidadosamente e lentamente os sacos um ao lado do outro, enquanto olhávamos para tudo disfarçando e tentando retardar o máximo nossa permanência de modo a satisfazer nossa curiosidade. Não tinha muita coisa para ver. Ela tinha apenas o mínimo indispensável de utensílios de cozinha, um pote com água e talvez um penico. Roupas eram penduradas em pregos, e havia uma mala de madeira,
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um catre e, num canto, um banquinho tosco de madeira. No outro canto havia uma pequena prateleira com imagens de santos, onde sobressaía a do Padim Cícero, e um rosário de contas. — Os carregadores podem ir embora, ela nos disse com voz firme, e quase nos empurrou para fora, fechando a porta em seguida. Achei que ela piscou um olho. Dona Tereza ainda viveu muitos anos. Eu lhe devo essas memórias que me mostraram ser possível ter dignidade e visão, mesmo morando num quarto sem janelas.
Sobre papa-figos e outras assombrações Hoje em dia as crianças crescem, felizmente, sem os medos de antigamente, pelo menos de quando eu era criança. Alguns medos eram reais, com pessoas de verdade; outros, pura fantasia, invenções de adultos. Vita era uma senhora que tinha um olho cego. Ela andava com uma bengala, e quando eu não queria dormir, minha mãe ou alguém mais velho me dizia para fechar os olhos porque o Olho de Vita estava me vigiando. Eu morria de medo do Olho de Vita, que se transformou numa entidade, com existência autônoma. Havia uma falha no telhado, e dava para enxergar a claridade da lua através dela – e essa claridade era o tal Olho. Sempre que encontrava Vita na rua, eu tentava não conversar com ela nem passar muito tempo ao seu lado. Ao contrário dos nossos hermanos, eu tinha certeza de que bruxas existiam, e ela era uma. Havia homens que comiam fígado de crianças. Eram os papa-figos. Como eu rezava para não cruzar com esses monstros!
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Dizia-se que as orelhas deles cresciam sem parar, e por isso era fácil reconhecer um. Eu sempre olhava com atenção as orelhas dos desconhecidos. O domingo de carnaval era o dia dos papangus: homens mascarados que saíam dando “banho de talco” nas moças. Acho que o banho não era só de talco. Eu os evitava porque tinha um medo sem explicação: acreditava que, ao colocar a máscara, eles se transformavam em lobisomens ou outros bichos. Tinha um senhor, chamado Manoel Rodrigues, que diziam ter uma perna de borracha. Contavam que perdera a perna na Segunda Guerra Mundial e ganhara aquela prótese. Ou então que tinha se alistado no cangaço, e que desaparecia para fugir da polícia, reaparecendo noutro lugar. Eu acreditava, como acreditava em qualquer coisa. Havia um homem metido a valentão. Penso que quando não estava bêbado (e valente), ele era pintor de paredes – por isso era conhecido como João Pincel. Diziam que ele andava com uma peixeira afiada e que mataria qualquer um de quem não gostasse ou que atravessasse o seu caminho. Eu tinha medo de que ele não gostasse de mim. Tuberculose era uma doença mortal e terrivelmente perigosa. Quem era tuberculoso era estigmatizado, e acho que ninguém foi mais estigmatizado do que Zé Né. Ele era magro, curvado, tossia sem parar e escarrava nas calçadas. Virou sinônimo de tuberculoso – uma pessoa a ser evitada. Naturalmente, eu morria de medo de cruzar com ele na rua e ser contaminado. Mas meu maior medo era dos defuntos. Havia o costume em algumas famílias de tirar fotos do defunto no caixão, antes do enterro. Em algumas casas, essas fotos eram colocadas em molduras e exibidas na parede. Eu evitava olhar as fotos, mas não
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conseguia evitar ter pesadelos com os defuntos. E havia ainda o risco dos vampiros e das almas penadas que não encontravam sossego no outro mundo e que precisavam nos pedir que fizéssemos algo em seu favor, para liberá-las do fogo eterno. Uma tênue esperança eu tinha. Diziam que as almas só apareciam para os fortes e corajosos. Medo de almas era parte da infância. Quando íamos para a casa dos meus tios nas Covoadas, tínhamos que dormir em redes, porque só havia cama para os casais. Antes de dormir, os mais velhos contavam histórias de almas, que sempre apareciam por volta da meia-noite. A gente tomaria conhecimento da sua presença quando elas balançassem a rede. Penso que eu era o último a dormir e não dormia enquanto não rezasse por todos os mortos de que tivesse lembrança, como se comprasse um compromisso de não ter minha rede escolhida naquela noite. Escuro era fatal: podia-se esperar “de tudo”. Casa onde tivesse morrido alguém estava condenada a receber assombrações. Então, quanto mais velha a casa, maiores os riscos. Alguém muito entendido me garantiu que as almas precisam do escuro para se tornar visíveis, acho que tem a ver com a estrutura de plasma que elas têm, e por isso não aparecem à luz do dia ou em ambientes iluminados. A maior parte dessas fantasias era alimentada pelas histórias contadas pelos mais velhos e pelos livretos de cordel. Até hoje estou curioso para saber se alguém já viu um papa-figo. Não acredito que existam, pero que los hay... los hay. Quem sabe, evoluíram, ou involuíram, e estão agora envolvidos com tráfico de órgãos.
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O dia que deu cobra no jogo do bicho Nossos vizinhos do lado esquerdo eram viciados em jogo do bicho e em cheirar rapé. Os homens cheiravam rapé com mais frequência, ou seja, sempre. Não sei ao certo se era também um costume feminino, mas jogar no bicho era atividade diária e geral. Seu Pedro Marciano era proprietário de um caminhão e Dona Zefinha era sua esposa. Ele era grande e gordo, ela era miúda e magrinha. Tiveram um casal de filhos. A filha, Inácia, era mais velha, casou e teve também um casal de filhos. Seu esposo era motorista de caminhão e um dia ela o acompanhou numa viagem para entregar uma carga de algodão em Recife. A carga era imensa de chamar a atenção. Naquela época a estrada só era asfaltada de Recife até Caruaru, o restante era estrada de terra. Na Serra de Mimoso, perto de Arcoverde, houve um problema com o caminhão, que caiu numa ribanceira, pegou fogo e Inácia morreu queimada. Ouvi muitas histórias a respeito e, na minha imaginação, o local do acidente era um despenhadeiro de centenas de metros, onde quem caía não sobrevivia. O corpo da finada Inácia (como ficamos nos referindo a ela), embora queimado, foi velado em um caixão descoberto, na sala da sua casa, que ficava à esquerda da casa dos seus pais. Não tive coragem de ver, mas me lembro do cheiro de queimado e das conversas dos adultos contando os detalhes do acidente. Durante muitos dias, talvez semanas, devo ter sonhado com um corpo em chamas. Para complicar, naqueles dias houve também o caso de uma moça de Afogados da Ingazeira, que se suicidou da maneira mais dramática possível: embebeu suas roupas em álcool e tocou fogo no próprio corpo. A explicação era que o
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noivo havia rompido o casamento. Eu também ouvia essa história e sonhava com fogo. O pai de Dona Zefinha vinha todas as manhãs conversar com ela sobre os palpites para o jogo do bicho. Ele retornava à tarde com os resultados do bicho, da dezena, da centena e do milhar. Quando não tinham um palpite, interpretavam os sonhos um do outro. Quando não conseguiam se lembrar dos seus sonhos, perguntavam a quem estava por perto. Assim, eu e minhas irmãs, de vez em quando, também contribuíamos para o exercício de decifração de sonhos. Depois que era divulgado o resultado do jogo, geralmente por volta das 16 horas, o pai, cujo nome a minha memória se nega a lembrar, retornava para reinterpretar os sonhos. Geralmente eles erravam, eu pensava, porque ouvia mais palavras de decepção do que de celebrações. Sempre havia um detalhe que lhes escapava e que logicamente se ajustava com as características do bicho do dia. Mas, no final, todo erro era uma oportunidade de aprendizado para o futuro, porque no dia seguinte eles voltavam a confabular, entre uma pitada de rapé e outra. Um dia sonhei com fogo e coincidiu de me perguntarem, mas a interpretação era difícil porque não tinha muitos detalhes para ajudar. Eu deveria estar no segundo ano do curso primário. Naquele dia ganhei 1 cruzeiro (que na época grafava-se Cr$ 1) para comprar o lanche, mas como tive que parar para narrar meu sonho, me atrasei e não tive tempo de passar na mercearia. Era um dia de sorte, porque não havia banana em casa. Eu detestava banana, ainda mais porque até a hora do lanche ela ficava amassada e com manchas pretas, o que acontecia quase sempre. Com o dinheiro era diferente, porque eu podia comer o que mais gostava: sanduíche (naquela época não se usava essa palavra) de
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goiabada. Era um pão francês ou pão doce e um pedaço de goiabada, que vinha embrulhado em papel transparente. Achava o máximo comer pão com goiabada. Bem ao lado do portão do Grupo Escolar Carlota Breckenfeld, onde eu estudava, vi uma cobra morta, pela primeira vez na vida. Aquilo não me saiu da cabeça toda a manhã. A nota de 1 cruzeiro queimava no meu bolso, e quando saí da escola, passei pela banca do jogo do bicho e joguei na cobra. À tarde voltei à banca para conferir, impaciente, o resultado. Para minha felicidade, deu cobra. O prêmio foi de 18 cruzeiros, mas um segredo para não ser compartilhado em hipótese alguma, especialmente com meus pais. Por muitos dias comi pão com goiabada até enjoar. Dona Zefinha e seu pai ficaram desolados, porque acho que haviam jogado um bom dinheiro no touro. Não sei como analisaram meu sonho para chegar no touro, ou talvez tenham encontrado outro palpite mais adequado. Como estava particularmente interessado em saber por que não acertaram na cobra, prestei bastante atenção no que eles falavam (da nossa sala de jantar se ouvia a discussão da casa vizinha). Assim, pude ouvir a interpretação correta do sonho que, como sempre, começava com uma frase do tipo “como é que não vimos que...”. Dessa vez a explicação era bastante lógica: o fogo é violento (como uma picada de cobra), bruxuleante (como uma cobra se movendo) e traiçoeiro e perigoso, exatamente como as cobras costumam ser. Como eles não enxergaram essas obviedades era um mistério e mais uma lição a ser aprendida. Eu nunca mais joguei no bicho e acho que minha chance de ganhar na loteria foi zerada nesse episódio. Todos nós sabemos que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, nem na Serra de Mimoso, acredito.
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Mazu Era costume, no sertão, os prefeitos (ou outra autoridade) despejarem na entrada da cidade vizinha as pessoas indesejadas em suas comunidades. Entre essas pessoas estavam incluídos mendigos e doentes mentais (muitos deles considerados loucos ou doidos varridos). Elas passavam a viver de esmolas na nova cidade, até que fossem despejadas em outro local. Ou talvez simplesmente pegavam a estrada e sumiam. Era uma versão caricata e medonha de A Nau dos Insensatos, só que em vez de rios e mares, havia estradas de rodagem. De vez em quando Tabira ganhava um desses moradores de rua. Eles ficavam por alguns dias ou semanas e desapareciam da mesma forma como chegavam. Em geral eram adultos, alguns já de idade avançada, o que para mim era qualquer um com mais de 30 anos. Numa ocasião, apareceu uma jovem andando pelas ruas. Usava roupas rasgadas, estava sempre suja e seu nome era Mazu. Talvez por ser jovem, ela estava sempre por perto das nossas brincadeiras de adolescentes. Um dia, estávamos brincando onde hoje é a Praça Pedro Pires Ferreira. Mazu chegou e ficou olhando interessada na algazarra. Então fizemos uma roda e começamos a cantar, com a letra modificada, uma marchinha de carnaval: Para dentro e para fora, Mazu, Mazu, Para dentro e para fora Mazu, Mazu, Mazu Cantávamos e rodávamos em velocidade crescente. Mazu entrou na brincadeira e no ritmo da música. Quando dizíamos “para dentro”, ela entrava na roda, para sair quando dizíamos “para fora”. Até que caiu, cansada. Não sei se ela estava feliz ou
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infeliz, mas tínhamos consciência da nossa maldade. Adolescentes podem ser cruéis e, quando são cruéis, são capazes de ferir fundo. Felizmente, essa fase passa. Deve fazer parte do aprendizado de transição da inocência para a realidade do mundo dos adultos. Não demorou muito e Mazu foi embora, da mesma forma que veio. Nunca mais soubemos dela.
Glamour sertanejo Nas décadas de 1950-1970 em Tabira e, como imagino, na maioria das cidades, as pessoas usavam roupa feita sob medida. Hoje diríamos roupa de alfaiataria. Acho que é por isso que nas fotos antigas todos parecem tão elegantes (e muito magros, para os padrões atuais). O comércio de Tabira era marcado por várias lojas de tecidos, entre elas a Loja do Povo (de Zequinha Pires) e as lojas de Miguel Batista, Tonho Pires, Bernardino e José Alves, todas em volta da Praça Gonçalo Gomes, que fica em frente à Igreja Matriz de Nossa Senhora dos Remédios. E havia a alfaiataria de meu tio e padrinho Bino. Lembro-me ainda de uma pessoa muito especial, Elizete Patriota, que morava na minha rua e que só costurava camisas masculinas. Não era para qualquer mortal que ela costurava, porque podia escolher a freguesia e tinha lista de espera. Sua predileção era por tecidos de cambraia de linho. Ter uma camisa feita por ela (hoje as pessoas diriam “by Elizete”) era garantia de elegância. Minha mãe tinha como segunda profissão a de caseadeira – ela fazia as casas e pregava os botões dos ternos e calças da alfaiataria de seu cunhado Bino. Eram ternos e calças de linho branco (um
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pesadelo!). E os cuidados para não sujar, ou deixar cair qualquer coisa, numa casa com um monte de filhos e um monte de crianças vizinhas entrando e saindo a toda hora? Eu ajudava desalinhavando, e morrendo de medo de estragar os ternos de casimira inglesa, de tropical ou de linho. Os ternos de tropical eram os mais complicados porque ficava a marca no tecido se se puxasse a linha do alinhavo com força. Mas os ternos brancos de linho eram um desafio porque a linha era da mesma cor, e eu já era bem míope naquele tempo. Eu não gostava desse serviço, mas adorava ficar ao lado da minha mãe enquanto ela caseava e cantarolava músicas, nem sempre com a letra certa, o que era motivo de muitas risadas. Hoje as alfaiatarias estão desativadas. Ainda me lembro da maestria com que padrinho Bino riscava e cortava os tecidos, e os transformava em ternos e calças perfeitas. Seus ajudantes eram João “Prequeta” (era assim que ele era conhecido) e Seu Chico Alfaiate. Além de mãe, tinha outra mulher (da rua de cima) que também finalizava as roupas da alfaiataria. À nossa maneira sertaneja, as pessoas eram elegantes e tinham glamour.
Revolução sexual Entre 1963 e 1964 houve uma verdadeira revolução sexual em Tabira, bem antes ou no início da revolução hippie da paz e do amor (livre, como se dizia, como se o amor pudesse não ser livre). Como a pílula e outros anticoncepcionais ainda não eram popularizados (ou existentes), as consequências foram, em alguns casos, desastrosas.
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Essa revolução foi geral e atingiu todas as classes sociais, que em Tabira se limitava aos remediados e à classe média. Eu trabalhava no Cartório de Registro Civil e vi muitas cenas que podiam ser classificadas como interessantes (do ponto de vista sociológico), engraçadas (do meu ponto de vista) ou tristes (do ponto de vista dos envolvidos). De repente, houve uma coincidência de casos (muitos) de moças defloradas, como era costume dizer. O epicentro do fenômeno ocorreu na Rua do Rio, assim chamada porque era a mais próxima do rio que banha a cidade, e onde moravam as pessoas que eu chamo de remediadas. Assim, virou piada ser morador da Rua do Rio. Dessas moças se dizia que haviam “se perdido”. A notícia corria no formato: “Fulana se perdeu”, e já se deduzia que a fulana residia na Rua do Rio. A consequência para essas moças era que, se não se casassem com o deflorador, poderiam ser classificadas como “mulheres perdidas” (além de defloradas, etc.) Para aquelas que não conseguissem se casar restavam as opções de se “comportar” e esperar por um milagre, ou seja, um novo namorado, noivo e marido; mudar-se e recomeçar a vida noutro lugar (ex. São Paulo); ou se considerar perdida mesmo, e fosse lá o que Deus quisesse e dispusesse. O problema maior era quando, além de “perdidas”, elas ficavam grávidas. Nesses casos, o casamento era “a” alternativa. Não havendo casamento, eram pelo menos duas vidas despedaçadas. Havia ainda um complicador. Alguns dos rapazes estavam envolvidos com mais de uma moça. O que significava que ele assumiria um compromisso com aquela que tivesse maior poder de barganha, ou que tivesse família mais poderosa. Na minha classe do ginásio houve dois ou três casamentos com meninas (da classe média, fora do círculo da Rua do Rio)
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um pouco mais velhas do que eu, e que já mostravam gravidezes avançadas. Naquela época, os jovens com menos de 21 anos precisavam de autorização dos pais para casar. Caso tivessem menos de 16 anos, era necessária autorização especial, com explicação do motivo. Esse reconhecimento de um problema que justificasse a pressa para casar era um constrangimento, porque o pai ou responsável, em sua falta, tinha que explicar e deixar registrado o motivo da necessidade do casamento da menor. Os homens geralmente não tinham esse problema porque quase sempre eram mais velhos, mas não a ponto de serem considerados pedófilos, que, aliás, não era um termo comum na época. Houve pelo menos um caso muito dramático, que envolveu duas famílias de pessoas muito valentes de um distrito de Tabira. Um rapaz foi acusado de deflorar a moça, que aparentemente (para mim) era sua namorada. Mas ele negava que tinha responsabilidade no caso, explicação que a família dela não aceitava. Esse rapaz foi preso e veio direto da cadeia para o cartório, para casar, “na marra”, como se dizia. Não sei se para proteger o noivo dos parentes da noiva, mas parecia que toda a tropa policial o acompanhou, a pé, da cadeia até o cartório. Isso significava, praticamente, cruzar a cidade de uma ponta a outra. E é fácil imaginar a atenção que isso atraía. Para adicionar suspense à tragicomédia, quando perguntado pelo juiz se estava ali por livre e espontânea vontade, o rapaz respondeu: Não. Naquela época, se a pessoa dissesse “não” nesse momento, não poderia mais se casar naquele dia. Teria que ser marcada outra data para novamente responder se aceitava se casar de livre e espontânea vontade. Não tenho certeza, mas acho que depois de ameaçado de morte pelos parentes da noiva, o
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rapaz disse o “sim” no dia seguinte. Acabada a cerimônia, com constrangimentos de parte a parte, o rapaz dali mesmo escafedeu-se. Não me recordo se ele sequer olhou para a cara da noiva. Mas a honra dela estava salva, e isso era o que importava. Dizia-se que o filho que ela esperava era de um parente, não sei ao certo se de um irmão ou de um tio. Mas eu era ainda criança para tomar parte nessas conversas, ainda mais quando envolvia sexo, gravidez e incesto. Eu era criança, mas não era surdo. Tinha ouvidos, ouvi e nunca esqueci.
Dezessete anos Em 1967, com 17 anos, estudei em Serra Talhada. De dia, de segunda a domingo, trabalhava num posto de gasolina em troca da alimentação. O dono do posto pagava o colégio também e me dava alguns trocados. Eu frequentava o colégio à noite e dormia na casa de uma senhora maravilhosa: dona Baíca. Minha rotina era mais ou menos assim: chegava ao trabalho antes das 7 horas e conferia as bombas (gasolina e óleo diesel) para ver quanto o vigia da noite havia vendido. Depois assumia o papel de gerente do posto, sem ter nenhuma experiência de gerência. Aos poucos aprendi, com meu patrão e sua esposa, como fazer o trabalho. O expediente terminava às 18 horas, quando o vigia da noite retornava. Eu novamente conferia as bombas, fechava o posto, tomava banho, jantava e ia para o colégio. Eu tinha muito tempo livre, então passava o expediente lendo ou estudando. As pessoas com quem convivia mal sabiam ler e achavam que eu perdia meu tempo.
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O posto funcionava num bairro conhecido como “A Bomba”, que ficava a mais ou menos três quilômetros do centro da cidade. Nesse lugar havia oficinas, borracharias, outros postos de combustível, restaurantes e algumas outras lojas e residências. As estradas não eram asfaltadas, mas o movimento de caminhões, principalmente, era grande. Eram caminhões que vinham do sul na direção de Recife ou vice-versa. A Bomba não tinha boa reputação: era um lugar onde havia prostitutas disfarçadas de garçonetes e muitos forasteiros circulando. Tive uma namorada, que era estudante e morava no centro da cidade. Ela foi obrigada pelos pais a encerrar o namoro quando eles descobriram que ela estava namorando um rapaz da Bomba. Convivi com as garçonetes prostitutas, pois elas me serviam o café, o almoço e o jantar num restaurante do lado do posto. Fiquei amigo delas. O maior, ou talvez o único, sonho dessas moças era receber o convite de um caminhoneiro, do sul de preferência, para se juntar a ele. Dois fatos desse período não me saem da memória. Havia um menino, de 12 anos mais ou menos, que vagava de um posto a outro e era viciado em cheirar gasolina. Quando ninguém estava olhando, ele pingava algumas gotas da gasolina que restava na mangueira em um chumaço de algodão ou bucha de limpeza, ou algo parecido, e ficava cheirando. Esse menino era da cor de palha, de um amarelo doentio. Não durou muito. Às vezes eu ajudava a abastecer os carros quando havia muito movimento. Um dia atendi o motorista de uma caminhonete. Ele estava com uma das caras mais tristes que eu já vi. Ao seu lado havia um menino, seu filho, provavelmente com menos de dez anos. Eu nunca tinha visto uma pessoa como o menino. Tinha a cara da dor e do sofrimento. Perguntei o que havia com ele. O
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pai respondeu que o menino estava muito doente e que ele estava indo para Arcoverde com a esperança de encontrar tratamento no hospital de lá. Nas condições de estrada da época, o percurso entre as duas cidades levava algumas horas. O menino havia sido mordido por um cachorro com raiva e já mostrava os sinais da doença. O pai talvez soubesse que não havia cura, mas não desistiu. Não sei o que aconteceu com eles. Tive um professor de Biologia chamado Inocêncio de Oliveira. Ele era médico recém-formado. Não me lembro de suas aulas, mas depois soube que ele havia sido um aluno brilhante na Faculdade de Medicina da UFPE. Não foi tão brilhante quando entrou na política. Não tenho saudades dos meus 17 anos. Fiquei em Serra Talhada de março a novembro, quando concluí o curso científico, como se dizia na época. Meu patrão queria que eu continuasse por lá, mas eu tinha outros planos. Ele viajava muito e me pedia para ficar mais uns dias até ele voltar. Numa dessas viagens, e depois que peguei o certificado de conclusão do curso, me demiti. Juntei meus livros, as poucas roupas, o par de sapatos e fui embora.
Esnobismo Pois eu sou de um tempo em que se bebia água em canecas de alumínio. A água era armazenada em um pote de barro. Havia dois tipos de caneca: com asa e sem asa. A caneca com asa era para retirar a água do pote. As canecas comuns, sem asa, eram mais numerosas e eram usadas para beber a água despejada da caneca com asa. Dessa forma, não havia o risco de derramar o
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sobejo de volta ao pote. Pura questão de higiene. Nas casas dos meus tios, na roça, bebíamos água em copos de barro. E havia, ainda, famílias que usavam canecas de latão, por serem mais baratas. Depois, os copos de vidro surgiram e, com o tempo, ficaram baratos e, por isso, populares, mas quebradiços. Já as canecas de alumínio eram econômicas, duravam gerações. Caíam e não quebravam, mas com o tempo ficavam bastante amassadas. Quando um desses amassados dava lugar a um furo, as canecas ficavam imprestáveis e eram substituídas. De alguns anos para cá, surgiram os copos de requeijão de vidro, que os mais abastados devem desconhecer, mas que são comuns em muitas casas. Mas mesmo entre as famílias mais pobres, há sempre alguém esnobe. Imagino a cena de amigas conversando sobre seus copos de vidro (de requeijão). A esnobe diz que só bebe água, suco ou cerveja em copos da marca Danúbio, que são mais elegantes e finos. As demais se entreolham humilhadas, porque seus copos ou são Itambé ou Poços de Caldas, mais comuns e grosseiros. Aí uma terceira, que não entende de esnobismo, arremata que seus copos são Nutella. Todas se voltam, horrorizadas: copos Nutella, apesar de bonitinhos, são copos americanos, se prestam para doses de uísque, nunca para água, suco e muito menos cerveja! Quando eu morava com meu primo Hermes Pires (e dona Leônia Monteiro Pires, a quem tenho eterna gratidão) na Vila do IPSEP, em Recife, nos divertíamos com o esnobismo de uma senhora da mesma rua que fazia questão de dizer que na sua casa só se consumia manteiga Turvo. Essa manteiga era facilmente reconhecida nas prateleiras do supermercado: vinha embalada em latas vermelhas, como muitos produtos lácteos, era importada
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de Minas Gerais e era a mais cara, embora não necessariamente a melhor, e muito menos a mais fresca. Cada um é esnobe como pode, e à sua maneira.
Do olfato Quando tinha aproximadamente 50 anos, depois de duas cirurgias (desvio de septo e hipertrofia dos cornetos nasais), perdi o olfato: não sinto o cheiro de quase nada. Isso tem um lado ruim – uma vez estava vazando gás do fogão e eu nem desconfiava. Cida chegou e se apavorou com o cheiro forte e identificou imediatamente o vazamento. Mas tem também um lado bom: não sinto quase nenhum mau cheiro. Às vezes entro num banheiro público e ouço reclamarem do fedor. Ou alguém comenta que há aquele cheiro de suvaco no ar. E eu não sinto nada. O que mais sinto falta são os cheiros de comida – dos temperos, da carne, do feijão, de peixe, de tudo enfim. Sempre ouvi dizer que quando se ganha um limão, deve-se fazer dele uma limonada. Então uso a imaginação para sentir os cheiros de que gosto: de coentro, de pimenta, de cominho, de milho cozido, da chuva. Nunca é a mesma coisa, mas a gente acostuma. Só preciso fechar os olhos e imaginar, lá no passado, como era o cheiro que vinha das cozinhas da minha mãe ou da minha avó. Um dia, vivendo longe daqui, bateu uma daquelas saudades que a gente sente vez ou outra, quando tudo parece sem sentido e a gente, no fundo, sabe que não pertence ao lugar. Nessas horas, escrevo para espantar meus fantasmas. Só precisei fechar os olhos e me transferir para minha infância no alto sertão pernambucano,
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quando tinha certeza de pertencer ao lugar onde vivia. Escrevi este texto: Os cheiros do sertão Os caminhos da roça tinham um cheiro especial Que vinha das árvores da caatinga que nem pareciam árvores de tão retorcidas E exalavam uma essência bruta, selvagem, que penetrava lá dentro. E que eu carrego comigo como quem carrega um amuleto, Como quem guarda uma joia antiga que vale mais pelo que sugere. E havia o cheiro pressentido Da falta do que só existia na imaginação, do que se buscava no longe, nos inexistentes frutos De umbuzeiros mágicos, gigantes, de folhas miúdas e frutos prometidos E que pareciam nunca chegar a amadurecer, Frutos eternamente verdes. Indisponíveis para minha pressa de menino. E havia o cheiro dos juás amarelinhos, embandeirando de brasil os juazeiros de folhas verdes, O tronco e as folhas sagradas dos juazeiros Dos juás que só nasciam em juazeiros antigos Como só nascem na caatinga Rodeados de pedra, Que tiravam água das pedras para permanecer verdes no cinza. E havia o cheiro indefinido da seca
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Que não deixava vivo animal (ou será que morriam da doença em vez de sede?) E havia o cheiro das carcaças apodrecidas dos cachorros Tão mortos! E havia o cheiro dos chiqueiros de porco, das criações em chiqueiro de um só porco. E como eram pretos aqueles porcos pretos E havia esse cheiro da lavagem, restos de comida que engordava os porcos. E havia o cheiro dos mortos, cansados de compartilhar um mundo que não era mais deles, Já plenamente aceitos na sua morte infligida, E que se misturava aos cheiros dos vivos De suor, de cansaço, sentido entre o balbuciar mecânico de terços e ave-marias Entre pedidos de descanso eterno, E talagadas de cachaça E, sobretudo, o cheiro dos cravos de defunto, misturado ao cheiro das velas derretidas, Entranhando o cheiro dos defuntos na minha imaginação. Mas quando chovia, havia o cheiro da chuva Cheiro do barro amassado esperando para se tornar cavalos, bois e vaqueiros, E o cheiro da água escorrendo das goteiras, das telhas de barro, Mas, sobretudo, o cheiro da chuva caindo Que trazia consigo promessas de milho verde, pamonha e canjica, E o cheiro do café sendo torrado, do cuscuz, da tapioca, Das bolachas de milho, da nata batida quase azeda, da paçoca e da manteiga de garrafa,
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E o cheiro alucinante e exótico dos queijos do reino de Minas Guardados em latas redondas, vermelhas. E tão caros, Que só apareciam na mesa no Natal e na Semana Santa, Para poucos. E havia ainda os cheiros do coentro e da cebolinha verde, picados, Do colorau, do cominho e da pimenta-do-reino, Que me faziam sonhar com culinárias distantes. E eu acabava saciado com a singeleza local da sopa de feijão da minha mãe. Ah! o cheiro da sopa de feijão com coentro Ah! esse cheiro de sertão que me penetra ainda hoje o pensamento. O cheiro do mato que renascia aos borbotões Depois da primeira chuva. Brotando, inesperado, por toda parte, A misturar fragrâncias de mimosa, acácia e imburana, Mandacaru, facheiro e baraúna, Aroeira, maniçoba e macambira, Cheiros que traziam promessas de mudança, de fartura. Ah! esse cheiro dos sertões. Ah! esses cheiros de Tabira...
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Como vivíamos no tempo da ditadura Para quem não lembra, ou para quem não era nascido na época, vão aqui alguns comentários sobre fatos que presenciei de 1969 a 1972 quando estudei em Recife. Em alguns períodos pegava dois ônibus para ir da Vila do IPSEP (Ibura), onde morava, até a Universidade Federal Rural de Pernambuco, em Dois Irmãos. Quase duas horas durava o percurso e eu costumava ler ou estudar no ônibus. Um dia, estava lendo um livro de Otto Maria Carpeaux, uma coletânea de crônicas publicadas nos jornais do Rio e São Paulo e, portanto, liberadas pelo governo militar. Uma senhora sentou-se ao meu lado e me aconselhou a fechar o livro, porque um olheiro estava muito interessado nos meus movimentos. Era assim que a gente vivia: com medo, podendo a qualquer hora ser preso por motivos bobos como ler um livro que era comprado em qualquer livraria, ou até por causa de uma música. Em todas as turmas da universidade havia um ou mais alunos militares, e mais de uma vez as saídas da UFRPE foram fechadas, porque havia suspeita de “subversivos” atuando por lá. Numa dessas vezes, haveria uma reunião com os dirigentes da UNE que, evidentemente, foi cancelada. Não tenho certeza, mas acho que foi em 1974, quando eu já estava trabalhando, depois de concluído o curso de Veterinária, Marcos Freire era candidato a governador pelo MDB (partido de oposição ao governo militar). Coloquei um adesivo de Marcos Freire no meu carro, mas fui chamado pelo diretor da empresa, que exigiu que o adesivo fosse retirado. Por ordens superiores, como se dizia. Em 1975, estava cursando o mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro. O MPB4 iria se apresentar no Centro de Ciências da Saúde, como parte de alguma celebração dos estudantes. O
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anfiteatro estava lotado. No início do show, um dos integrantes do MPB4 avisou que das vinte músicas ou mais que eles iriam cantar, só cinco haviam sido liberadas pelo censor para serem apresentadas. O show demorou pouco mais que vinte minutos. Era assim que a vida era vivida. Com medos, com sobressaltos. Os jornais eram censurados diariamente, e as notícias inconvenientes eram substituídas por tarjas pretas. Podia ser qualquer notícia. E como os brasileiros não se tornaram corruptos após a democracia, é de se supor que muita bandalheira foi proibida de ser divulgada. Cida teve colegas e amigos de 15, 16 anos que foram presos. Em pelo menos um caso o corpo foi devolvido à família em um caixão lacrado. O enterro foi vigiado para se certificarem de que ninguém abriria o caixão. Certamente para que a família fosse poupada das marcas da tortura. Mas nem todas as famílias tiveram a oportunidade de se despedir e de enterrar seus mortos, porque muitos jovens e adultos simplesmente desapareceram. Eu não tenho saudades da ditadura. Com todos os defeitos, com a democracia podemos escolher quem nos governa: basta usar o poder do voto e aprender a respeitar a vontade da maioria.
Pão e feijoada Vivi com a Cida e nossos dois filhos na Inglaterra, de 1984 a 1989, enquanto estudávamos para obter o PhD. Tenho boas recordações dessa época, apesar das dificuldades econômicas, com nossa moeda desvalorizada, e com outros detalhes como a posição do volante do carro e do lado de dirigir, com a correria para
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pegar os meninos no colégio pontualmente às 15h30, e tendo que trabalhar na tese, num laboratório em uma cidade vizinha. Ah, e com o clima horroroso. Um dia o meteorologista do noticiário resumiu a previsão do tempo para todo o Reino Unido assim: se onde você estiver não estiver chovendo, logo mais chove. Mas, acima de tudo, foi um tempo divertido e do qual até hoje tenho saudades. Os ingleses eram polidos e faziam as coisas sempre dentro de um padrão e organização de dar inveja. Uma tarde fui até o centro da vila onde morávamos para comprar pão. O padeiro disse que não tinha mais pão. Mas vi que havia vários pães na prateleira e apontei para eles. Ele disse que não poderia me vender, porque aqueles pães não eram frescos. Haviam sobrado do turno da manhã e seriam descartados. Eu disse que não me incomodaria de levar um deles, qualquer um dos que estavam expostos. Ele pacientemente me embrulhou um que apontei. Quando fui pagar, ele não quis receber e me olhou com a cara mais estranha que poderia fazer. O pão estava perfeito e de qualquer maneira iria sobrar para o outro dia. Depois me arrependi por não ter pedido para ele embrulhar mais uns dois, pelo menos. Noutro dia, tivemos a visita de um brasileiro do Paraná que ficamos conhecendo na universidade. Cida resolveu fazer uma feijoada porque raramente tínhamos contatos com brasileiros e ele estava com saudade de comer arroz e feijão. Fui ao açougue da vila e expliquei para o açougueiro que precisava de pés e orelhas de porco, e outros pedaços de carne que, naquela ocasião, soavam esquisitos até para mim. Ele me olhou com o olhar inglês de estranheza, como se imaginasse que eu estivesse planejando um jantar para uma reunião de bruxaria. Perguntou o que eu iria
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fazer com “aquilo”. Expliquei o que era uma feijoada, mas duvido que ele tenha entendido. Embora demonstrasse que aquele pedido era muito estranho, ele acabou por me atender, de maneira muito educada, como de costume. Em poucos minutos, trouxe os pés de porco limpinhos e tudo o mais. Ele também se recusou a receber o pagamento: explicou que nunca havia vendido um pé de porco e que aquelas partes eram descartadas (não perguntei onde). De novo me arrependi de não ter pedido para ele embrulhar mais uns dois ou três pés de porco.
Pedro e Francisco Pedro tinha dois anos e oito meses e Francisco tinha um ano e três meses (ainda usava fraldas) quando nos mudamos para a Inglaterra, em 1984, para estudar na Universidade de Bristol. Encontramos alguns brasileiros lá, que nos chamaram de loucos (acho que na verdade queriam dizer que éramos irresponsáveis), diante do desafio de enfrentar dois cursos de PhD com dois filhos daquela idade. Tivemos a sorte de minha irmã, Sônia Brito, nos acompanhar para ajudar no início, especialmente com os dois, pois tínhamos que cumprir o prazo para concluir os cursos em quatro anos. Depois de alguns meses em Bristol, nos mudamos para perto de Langford, onde ficava a Escola de Veterinária. Alugamos uma casa em Winscombe (uma cidadezinha a poucos quilômetros de Langford). Os proprietários pediram a casa após dois anos e nos mudamos para um pequeno apartamento que fazia parte de uma
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casa de fazenda tombada pelo patrimônio histórico e que ficava na mesma rua. A casa tinha paredes de pedra de mais de meio metro de largura e era difícil de ser aquecida, mas era muito bom morar lá. O dono da fazenda era o Mr. Mabbet. Seu filho mais velho, John Mabbet, era o chefe do Corpo de Bombeiros. O outro filho era um militar aposentado que havia lutado na guerra da Coreia e recebido uma condecoração da rainha Elizabeth. Eles guardavam a foto desse momento. A rainha devia estar no começo do seu reinado, porque parecia muito jovem. Um dia, John colocou Pedro e Francisco no carro de bombeiros e tocou a sirene. Eles ficaram maravilhados. Mr. Mabbet cedia os brinquedos dos netos, então todos adultos, para Pedro e Francisco brincarem no quintal da casa. Além disso, havia sempre um cachorro na fazenda que fazia festa com os meninos. Os Mabbets produziam leite e tinham vacas Guernsey. Era um rebanho fechado, no linguajar técnico. Isso significava que há mais de cem anos não entravam animais no rebanho, só o sêmen para inseminação das vacas. Ficamos nesse apartamento até retornarmos para o Brasil, em fevereiro de 1989. Na Inglaterra é costume dar nomes às casas, e os nomes das ruas geralmente têm um significado prático. Nós morávamos na Church Road, que tinha esse nome porque a rua terminava numa igreja. Em geral a rua que vai dar noutra cidade recebe o nome dessa cidade. Havia uma Sidcot Lane (que era a rua que dava para uma vila chamada Sidcot). Perto de onde morávamos havia a Banwell Road – que naturalmente era a saída para outra cidadezinha chamada Banwell, onde havia um castelo que avistávamos da nossa casa. A rua principal é quase sempre High ou Main Street. A primeira casa onde moramos em Winscombe se chamava Hillside. Recebíamos correspondências com o nome
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Hillside em vez do número. O apartamento ficava na Nut Tree Farm. Até hoje tenho saudades desse lugar. Pedro entrou na escola primária em 1986 e Francisco em 1987. Eles aprenderam a ler e a falar inglês bem melhor que eu e Cida, e sem sotaque, ou melhor, com o sotaque do condado de Somerset. Nós éramos, de início, talvez os únicos estrangeiros em Winscombe. Pedro e Francisco chamavam a atenção na escola: eram morenos, comparados aos brancos ingleses, e tinham olhos pretos, no meio de uma multidão de olhos claros. Em Concórdia, SC, eles também eram considerados morenos, por causa da grande colônia de italianos e alemães e seus descendentes. Na escola os professores costumavam perguntar o que os alunos haviam feito nos finais de semana. Receio que Pedro e Francisco tivessem pouco para contar. Eles não tinham primos, tios ou avós, por perto, fora Sônia (tia) e, depois, Paula (prima), sobrinha de Cida. O principal problema é que não tínhamos tempo para fazer muitos passeios: às vezes tínhamos que trabalhar nos laboratórios nos finais de semana (além de cozinhar, lavar e passar roupa, e limpar a casa). Quando Cida ia trabalhar na universidade, eu brincava com os dois no campus. Quando cansávamos de brincar, eu inventava histórias. Uma das preferidas dos dois era a de dois meninos que iam com a mãe para o laboratório e lá aprontavam as maiores confusões: derrubavam frascos, abriam as gaiolas dos animais, mexiam nos computadores, abriam torneiras, entravam em lugares de acesso restrito e mil coisas desse tipo. Sem contar que o diretor sempre aparecia, e por pouco não pegava os meninos. Era sempre um suspense essa aparição, no melhor estilo dos desenhos animados. Eles sempre me pediam para recontar essas histórias, e eu tinha que inventar fatos novos. Pena que eu não me lembre
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dos detalhes. De acordo com a demora, o tempo tinha que ser preenchido e haja imaginação para encompridar as aventuras dos dois meninos travessos que sempre terminavam as aventuras como heróis. Um dia eles nos perguntaram se tinham primos. Tivemos que colocar no papel. Contamos mais de cem, entre primos de primeiro e segundo grau. De minha parte, a contribuição foi ínfima. O maior número entrou na conta de Cida, que tinha dezessete irmãos, muitos deles casados, com muitos filhos, e alguns já com netos. Pedro e Francisco ficaram radiantes, porque na escola seus colegas falavam sempre de dois ou três primos (como é natural nas famílias inglesas). E além de tudo, eles tinham 24 tios e tias de primeiro grau: 17 por parte de Cida e 7 da minha parte, o que seria um recorde numa família inglesa. Na escola havia ênfase para as crianças adquirirem hábitos de leitura, de modo que antes do final do primeiro ano, todas já sabiam ler. Diariamente, as crianças levavam livros de dificuldade crescente para casa e, em pouco tempo, construíam um rico vocabulário. Pedro e Francisco conheciam mais palavras e sabiam ler em inglês, antes de aprender a ler em português e ter um vocabulário adequado para suas idades. Quando os dois brincavam, usavam sempre o vocabulário inglês e muitas palavras eram desconhecidas para mim e para Cida. Quando voltamos para o Brasil, eles tiveram que aprender o significado de palavras pouco usadas como “ave” e a falar certos nomes, como os das frutas, por exemplo. Lembro-me da cara preocupada de Francisco por não saber falar pêssego. Ele só conhecia a palavra inglesa “peach”. Contratamos uma professora para ensinar português aos dois, mas em menos de uma semana ela achou que eles estavam prontos. Menos tempo eles levaram para
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aprender palavrões – apesar de nem eu nem Cida termos o costume de usar esse tipo de palavreado. Para isso não precisamos contratar professor, os colegas deram conta.
Loucos e suas manias Cada louco com sua mania. Nada mais certo. Eu tenho mais de uma, então, talvez seja um pouco mais louco do que muitos. Uma das minhas manias é sentar sempre no mesmo lugar à mesa. Há quase 40 anos, sempre sento no mesmo lugar. Quando Francisco tinha mais ou menos três anos, ele aprendeu a me chamar de “seu pai” porque repetia o que Cida lhe dizia: “entregue isso a seu pai” ou “peça a seu pai” ou “pergunte ao seu pai”. Um dia ele se adiantou para se sentar à mesa e escolheu minha cadeira. Quando chegamos, ele pulava e dizia: tomei a cadeira de seu pai, tomei a cadeira de seu pai... Nesse dia, ele tomou meu lugar, mas só naquele jantar. Em consequência, nós quatro ficamos com lugares marcados até que Pedro e Francisco saíram de casa: Francisco e eu de um lado, Pedro e Cida do outro. Tenho na memória a cena da primeira refeição que fizemos depois que Pedro saiu de casa para estudar em Belo Horizonte. No café da manhã nos sentamos, Francisco e eu, do “meu” lado, e Cida do outro lado da mesa. Não resisti quando vi a cadeira de Pedro vazia. E chorei. Foi quando me dei conta de que as nossas vidas passam. Que muita coisa não tem retorno. Isso aconteceu comigo e com todos que saíram de casa para estudar ou trabalhar. E por experiência própria eu sei que a gente volta como visita.
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As cadeiras de Pedro e Francisco estão reservadas para eles. Eu continuo sentando no “meu” lugar e Cida no dela. Francisco era sistemático. Ele aprendeu a ler inglês antes de português, porque chegamos à Inglaterra quando ele tinha menos de dois anos de idade. Em casa conversávamos em português, naturalmente. E explicávamos tudo que podíamos para ele (e Pedro) terem um vocabulário apropriado quando voltássemos para o Brasil. Uma coisa difícil de entender (português) para quem fala inglês é o fato de designarmos tudo como masculino ou feminino. Então temos a cadeira, a mesa, o sofá, a bicicleta, o carro. Para quem nasce sem essas escolhas, é muito difícil saber quando uma coisa é masculina ou feminina. Ensinamos a Francisco que o masculino quase sempre terminava em “o” e o feminino em “a”, embora houvesse exceções. Francisco adorava motos, mas não conseguia chamar “a moto”, era sempre “a mota”. Afinal de contas, se dizemos “a motocicleta”, por que não “a mota”?
Profissões Há profissões que tendem a desaparecer. O noticiário cita algumas como a do agente de viagens. Nos países desenvolvidos a profissão do cobrador de ônibus sumiu, assim como a profissão dos atendentes de postos de gasolina, dos sapateiros e dos alfaiates. Pelo andar da carruagem, a profissão de caixa de banco vai sumir em breve: somos obrigados a fazer quase todas as transações bancárias nos caixas eletrônicos, ou pela internet. Há poucos dias assisti a um programa sobre a gravação de um disco do grupo de Renato Borghetti. A gaita do Borghetti desafinou e ele a
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levou para uma pessoa que ele chamou de “médico da gaita”, um afinador. Fiquei maravilhado com essa pessoa e imaginei quem irá substituí-lo um dia, porque não havia um discípulo ou ajudante para aprender seu ofício. Talvez seja mais uma profissão em vias de extinção. Quando eu era criança, havia um ferreiro em Tabira. Não lembro o nome dele, mas era fascinante observá-lo trabalhando. Não sei quanto tempo sua oficina resistiu ao avanço da modernidade, mas com certeza não há mais ferreiros em Tabira, e desconfio que não existam mais ferreiros na maioria das cidades, pois não me lembro de ter encontrado outros ferreiros ao longo dos anos. O triste é pensar que possivelmente as profissões não mereçam nem um museu para conhecimento das futuras gerações. É como, para nós, imaginar um acendedor de lampiões, um limpador de chaminés ou um condutor de carruagens. As novas gerações talvez tenham que procurar no dicionário o significado dessas palavras.
Padre Hugo Hugo de Vasconcelos Paiva morreu no dia 1º de maio de 2008. Deixou saudades e uma lacuna impreenchível em mim. Eu gostava dele. Ele foi o maior intelectual com quem tive oportunidade de conviver e um exemplo de pessoa. Era ex-padre, mas na opinião de todos nós continuou padre até morrer, só não exercia as funções litúrgicas, se é que se diz assim. Hugo celebrou o meu casamento com a Cida e, enquanto viveu, nunca acertou meu nome, nem na hora da pergunta clássica, se eu aceitava Maria
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Aparecida como minha legítima esposa, etc. Todos riam e ele continuou me chamando de vários nomes. Enquanto pôde, celebrou o casamento de quase todos na família. Todos nós aguardávamos, ansiosos, o momento em que ele se dirigiria aos noivos para dizer as palavras tradicionais. Porque ele sempre tinha as palavras certas e cheias de sabedoria para dizer. Hugo dominava vários campos do conhecimento, em especial história, filosofia e teologia. Todos que conviveram com ele são unânimes em reconhecer que o fato de ele não escrever suas palestras, seus sermões, suas ideias, ia fazer muita falta. Uma vez cheguei a propor gravar nossas conversas e depois eu mesmo digitaria e passaria o rascunho para ele corrigir. Mas esse plano também não deu certo para convencê-lo a escrever. Quando ele passava aqui em casa, ou quando nos encontrávamos em Alvinópolis, eu sempre tinha um montão de dúvidas e ele pacientemente explicava com profundo conhecimento as questões levantadas – que podiam ser sobre religião, filosofia, sociologia, ética ou política, ou sobre qualquer acontecimento ou notícia. Conhecia o Brasil como ninguém; trabalhou também na França, na África e esteve em vários países como o Chile e a Polônia. Foi apenas uma vez aos Estados Unidos, quando passamos Cida e eu uma temporada por lá. Não sei expressar com palavras a alegria que ele nos deu. Trabalhou a vida inteira com os pobres e desamparados e tinha profundo respeito pela cultura e conhecimento dessas pessoas. Uma vez ele comentou que ficara especialmente satisfeito com a resposta que um operário deu para o significado de “prefeito ou governador, ou presidente”: uma espécie de síndico, que foi escolhido para administrar uma prefeitura, um estado ou um país, nada mais do que isso. Ele era assim: conseguia que as pessoas, mesmo as mais humildes, exprimissem o conhecimento coletivo, de acordo com sua vivência.
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Era um educador nato. Foi professor do Colégio São Vicente, no Rio de Janeiro, e deu aula para muita gente da elite brasileira, incluindo um tal de Fernando Collor de Mello. No Chile, Hugo esteve com muitos exilados brasileiros. Um deles, seu amigo Paulo Freire. Hugo foi uma das primeiras pessoas a ler o rascunho da Pedagogia do Oprimido, escrito em meados de 1968. Ele não foi o único dos amigos antigos e novos de Paulo Freire a ajudar aquela obra a tomar a forma como ficou mundialmente conhecida. Outros amigos de Hugo foram Dom Hélder Câmara, que o convidou certa vez para ministrar cursos para os bispos brasileiros; e Dom Adriano Hypólito, bispo de Nova Iguaçu e seu parceiro na defesa dos mais oprimidos, especialmente aqueles da Baixada Fluminense. É fácil imaginar que essas pessoas não gozavam da simpatia da ditadura militar. Parece ter sido uma predestinação sua morte ter ocorrido no Dia do Trabalho, ele que tanto se ocupou dos trabalhadores. Mas pessoas como Hugo não morrem, ficam encantadas, como bem disse Guimarães Rosa. Permanecem vivas na memória de quem teve a sorte e o privilégio de conviver com elas.
Maria No dia 4 de junho de 2014 morreu uma grande amiga: Maria, em Concórdia, Santa Catarina. Maria trabalhava com uma família amiga da nossa, os Talaminis. Fez parte dessa família por mais de 40 anos – e por quase tanto tempo também a considerávamos como parte de nossa família. Maria era especial em vários sentidos, mas acho que o que mais chamava a atenção era sua
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capacidade de se fazer adorada pelas crianças. Tenho muitas recordações dela. Algumas tristes, mas a maioria delas é de uma alegria que contrasta com a tristeza da notícia de seu falecimento. Maria adorava futebol. Ela tinha um time de crianças de todas as idades. Conseguia campo para o time treinar, era dirigente e responsável por tudo. Meus filhos, Pedro (goleiro) e Francisco eram titulares – e aí eu acho que ela usava seu poder de “dirigente” para escalar os dois. Ela estava constantemente à procura de algo para entreter as crianças da redondeza. Isso incluía participar de campeonatos de futebol e assistir ao jogo do time de Concórdia no estádio municipal. Cida, eu e todos os pais e mães confiávamos cegamente que ela cuidaria das nossas crianças. Além do futebol e das crianças, Maria sempre tinha animais (galinhas, inclusive) e convencia o dono de um terreno baldio, nosso vizinho, a lhe ceder o terreno, onde ela plantava milho, abóbora, tomate, salsa, cebolinha, e o que mais lhe viesse à cabeça e às mãos, na forma de sementes. Aos domingos, pela manhã, na Rádio Rural de Concórdia havia um programa direcionado aos funcionários da Sadia, patrocinadora do dito programa e proprietária da emissora. O momento culminante do programa era o sorteio de um peru para quem respondesse uma pergunta de conhecimento geral. Maria ouvia o programa e era louca para ganhar um peru. Um dia, eu me dispus a tentar responder a pergunta, e daí em diante, sempre que estávamos em casa, ela chegava correndo com o rádio de pilha quando estava na hora da pergunta. Ganhamos várias vezes, a ponto de chamar a atenção dos ouvintes e, acredito, também dos funcionários da Sadia. O certo é que a regra foi mudada: num domingo o concurso era aberto a todos, noutro domingo só aos funcionários da Sadia. Na segunda-feira após o concurso, Maria
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carregava Pedro e Francisco e, em grupo, buscavam o peru na Sadia. Enjoamos de comer peru por um bom tempo. Maria mal sabia ler, mas foi com os Talaminis para Oxford, Inglaterra, quando já estávamos há alguns meses em Bristol, que ficava a mais ou menos 200 km de distância. Quando íamos a Oxford visitá-los, Pedro e Francisco pareciam ficar em estado de graça. Maria não falava inglês, mas se comunicava com crianças de vários países e, às vezes, tomava conta dessas crianças. Ela rapidamente aprendeu a se comunicar e entendia do dinheiro inglês como poucos. O que me impressionava era o fato de sua enorme timidez não impedi-la de fazer tudo isso. No dia que nos despedimos de Concórdia, em fins de 1992, ficamos todos com um nó na garganta por horas seguidas. Maria nos ajudou a colocar as últimas peças de bagagem no carro. Foi menos difícil para mim e Cida nos despedirmos, apesar das lágrimas que escorriam nos nossos rostos. A despedida foi mais difícil para ela e para Pedro e Francisco. Ela segurou o choro o máximo que pôde. Num momento, ela nos deu as costas e tentou se esconder. Acho que ela não se permitia chorar na frente dos meninos para lhes dar forças. Foi uma das despedidas mais difíceis da minha e das nossas vidas. Já escrevi que pessoas especiais não morrem, se encantam. A essas alturas, Maria já deve ter organizado um campeonato de futebol no paraíso. Os goleiros são anjinhos asmáticos e dois ou três pernas de pau (ou de asa quebrada) gozam de sua autoridade para fazer parte dos times.
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Mr. Parkinson Fui diagnosticado com a doença de Parkinson, graças aos esforços de Cida e minha irmã Sônia, que insistiram durante meses para que eu consultasse um neurologista. Mister Parkinson se apoderou do meu corpo como um encosto, e agora somos íntimos. Ele sabe dos meus pontos fracos e me enganou por mais de três, talvez mais de 10 anos. Foram muitas consultas, muitos exames, muitas dores, muito desespero, muita incerteza, muitas dúvidas. Antes de continuar, quero dizer que estou bem. Tenho sorte de ter uma doença que tem tratamento, apesar de não ter cura, e ser degenerativa e progressiva, mas não quero pensar nisso, por enquanto. Meu lema é: enfrentar um problema a cada dia e não antes dele surgir. Além disso, conforme me disse o neurologista que fez o diagnóstico, não vou morrer de Parkinson. Meus planos de vida estão todos mantidos. Continuo viajando, pensando, escrevendo e fazendo minhas caminhadas, só um pouco mais lento nos movimentos. Tive a sorte de conseguir uma vaga no Hospital Sarah Kubitschek e agora sou cadastrado como um dos pacientes (entre os mais de mil) com Parkinson. Se ainda estivesse na ativa, acho que colocaria essa informação no meu Currículo Lattes. Esperei três meses para conseguir uma consulta no Sarah. Quando chegou minha vez, fiquei preocupado quando vi a jovem médica que iria me atender pelas próximas duas horas, tempo da consulta. Era tão jovem (e bonita) que mais parecia uma estagiária. Descobri que quando se passa dos 60 anos, qualquer pessoa com menos de 40 anos é jovem. Eu esperava uma médica de óculos de grau, gordinha, autoritária e apressada. Pois me enganei redondamente: a médica jovem se mostrou compassiva, eficiente
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e profunda conhecedora da doença e seus meandros. Ela levantou dados da minha vida e quando mencionei algo sobre Santa Catarina, perguntou onde eu estivera. Para encurtar a história, ela é de Xanxerê, cidade próxima de Concórdia, onde vivi de 1977 a 1984 e de 1989 a 1992. A partir daí fiquei mais à vontade e, na minha cabeça, passamos a ser cúmplices. Como médico e paciente devem ser. Minha irmã Sandra, que me acompanhou nessa consulta, mencionou que fizera uma promessa para que eu não tivesse Parkinson (a doença). A médica recomendou que ela fizesse outra promessa, dessa vez para que eu tivesse a doença de Parkinson, que, pelo menos, tem tratamento. Comecei a tomar a medicação e, depois de mais ou menos dois meses, algumas melhoras foram visíveis, o que na opinião dos médicos confirmou a doença. Caso o remédio não funcionasse, eu poderia ter outra “doença” das várias que compõem o complexo de Parkinson, com a diferença que não teria tratamento no momento. Resultado: fiquei na torcida para ter “a” doença de Parkinson. Jamais imaginei que diria ou escreveria isso. Não tenho tremores, e fui informado de que tenho uma forma incomum da doença: enquanto a maioria dos pacientes começa o problema em um lado, eu apresento o problema nos dois e quase com a mesma intensidade (será que posso me ufanar por isso? Pensando bem, não; seria como se vangloriar de ser cego dos dois olhos em vez de um). Voltei ao Sarah uma vez para nova avaliação, quando o diagnóstico foi confirmado. Com o tratamento dando certo, espero que o senhor Parkinson descanse, tire umas férias do meu cérebro e vá incomodar os neurônios de algum cafajeste (corrupto também serve) do Planalto Central.
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Provavelmente meu primeiro sintoma apareceu há muitos anos: perda de sensibilidade do olfato. Até agora eu e Cida havíamos atribuído essa perda à cirurgia de desvio de septo nasal que fiz no final da década de 1990. Julgávamos que o cirurgião havia danificado as células responsáveis pelo sentido do olfato. Agora aprendi que esse sintoma pode aparecer muitos anos antes ou no início da doença de Parkinson. Três anos antes do diagnóstico comecei a sentir dores nas costas. Dezoito meses antes, meus movimentos ficaram lentos e passei a apresentar dificuldades para realizar atividades triviais como me vestir, dar laços nos sapatos, escovar os dentes ou me movimentar. Parei de fazer pão, bolos, sobremesas e outras coisas que me davam prazer, por causa das dores nas costas que essas atividades causavam. Por conta da rigidez muscular, comecei a engasgar com facilidade, especialmente com a ingestão de líquidos. Tive depressão e problemas de ansiedade (não conseguia me movimentar, ou digitar, por exemplo, na velocidade que minha mente estava acostumada). Minha face ficou inexpressiva. Quando o neurologista de Juiz de Fora que primeiro me atendeu acertadamente me informou sua principal suspeita, meu rosto continuou impassível, sem demonstrar emoção, espanto ou preocupação. Alguns desses sintomas ainda estão presentes, mas estou melhorando. A prova é que estou conseguindo escrever este texto até aqui, sem sentir necessidade de parar por causa da ansiedade. Antes só conseguia escrever no máximo 10 linhas, às vezes, apenas 5 linhas. Estou há vários dias sem engasgar, mesmo tomando cerca de dois litros de água por dia. Estou feliz. Estava infeliz quando sentia dores e não sabia o que era. Agora que fui apresentado ao Mr. Parkinson, quero tratá-lo como um velho conhecido. A melhor coisa é que não tenho
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restrições para quase nada. Posso tomar meus vinhos, viajar, dirigir, comer quase tudo. Então, não tenho do que me queixar. Tenho até esperança de reaver o olfato que Mr. Parkinson me roubou. Poderia ser pior: eu poderia ter o encosto de Herr Alzheimer. Como provavelmente os dois não se dão muito bem, usarei Mr. Parkinson como escudo e espero que ele seja eficiente nesse sentido. Não sei se aguentaria esses dois fazendo confusões na minha cabeça.
Meu batismo no SUS Cida e eu começamos a preencher as declarações de imposto de renda. Nesse quesito o Brasil é mais evoluído do que muitos países do primeiro mundo. O preenchimento é fácil, rápido e, praticamente, autoexplicativo, depois que descobrimos algumas manhas. Havia um item para a pessoa declarar se tinha doença grave. Entramos no site da Receita Federal para descobrir o significado de doença grave e encontramos que a doença de Parkinson é uma delas. Descobrimos que posso ter desconto no pagamento do imposto se for considerado portador da doença, mas só vale se o SUS atestar, não vale uma declaração de qualquer médico. Aí começou a minha via crucis. Liguei para o telefone tira-dúvidas da Receita Federal. Acredito que uma estagiária atendeu, porque fiquei bastante tempo explicando quais eram minhas dúvidas e desisti, porque ela não sabia nada além do que eu já sabia. Mas ela me disse que o atestado poderia ser obtido no SUS ou no INSS. Resolvi ir ao INSS. De lá, me mandaram para outra unidade, onde atendem aposentados. Felizmente era perto.
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Fui atendido com certa rapidez, mas me informaram que eu deveria primeiro trazer um atestado médico do SUS, localizado no centro da cidade. E lá fui eu para o SUS, a mais ou menos 800 m de distância. Chegando lá, fiquei sabendo que deveria marcar a consulta noutra unidade do SUS. Esta, não por acaso, ficava próxima à agência do INSS de onde eu recebera a informação pouco antes. Volto mais ou menos mil metros para a outra unidade do SUS. Nessa agência descobri que precisava do cartão do SUS (que eu não tinha). Para isso deveria voltar até a unidade do SUS do centro da cidade, a mais ou menos mil metros de distância. Precisaria também voltar (com o cartão, documento de identidade, comprovante de residência e CPF), para marcar consulta com o clínico geral, e ele decidiria se me mandaria para o especialista. Para o primeiro, posso marcar a qualquer hora do dia, mas precisarei chegar cedo para entrar na fila dos especialistas, que é grande. Expliquei que já tinha uma declaração do meu neurologista, de uma clínica particular. De nada adiantou. “Tem que ser de um médico oficial!”. Eu sabia que fatalmente teria que enfrentar filas. Levei comigo um livro de Mia Couto para ler, mas esqueci-me dos óculos de leitura, de modo que consegui ler duas ou três páginas somente. Guardei o livro e comecei a olhar em redor. Observei como nos comportamos bovinamente nessas ocasiões. Ficamos todos, solenes e impassíveis, esperando. De vez em quando alguém reclama, se levanta (havia alguns bancos extremamente desconfortáveis) e dá uma volta. Cada nova adição à fila vai até a porta da sala de emissão do cartão e finge não ver que já há pessoas esperando. Até que alguém avisa que há uma fila, que a essas alturas já dá voltas nos corredores.
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Descubro também que cada pessoa tem uma justificativa para estar ali. Cada um tem um motivo para desrespeitar a fila e ser atendido na frente dos outros, mas como todos têm motivos, ninguém é convencido a dar lugar e, além disso, a negociação teria que ser feita com todos que estão à frente. Ou seja: missão impossível. Esse foi meu batismo no SUS. Não foi uma catástrofe, mas noto que se as informações fossem mais claras e objetivas, poupariam tempo e necessidade de deslocamentos para lá e para cá. Havia muitas pessoas de mais idade e com mais problemas de locomoção do que eu, nas várias filas que enfrentei. Acho que vou tirar de letra as duas consultas que me separam de voltar ao INSS para verificar o que mais preciso fazer. Voltei no dia seguinte para marcar a consulta, agora já sabendo para onde me dirigir. Novamente, filas. Nelas, não há como deixar de se envolver, nem que seja ouvindo e de vez em quando respondendo a uma pergunta direta. Ou simplesmente balançando a cabeça na direção da pessoa que fala. A moeda de troca é a informação. Muitas pessoas sabem tudo, desde os horários de atendimento até quais são os melhores médicos e médicas e quais aqueles ou aquelas que esnobam os pacientes. Pessoas que sabem das coisas são muito procuradas e parecem ter prazer em ser úteis. Ou se sentem importantes. Já pessoas como eu, que não têm, ainda, informação para oferecer, se apagam e se recolhem à própria insignificância. No máximo os recém-chegados nos perguntam sobre nossa posição na fila, e se posicionam atrás. De longe se nota quem sabe e quem não sabe o que é importante. Pode-se identificar pelo gestual e expressões corporais. Desconfio que tudo isso faça parte do aprendizado, afinal nunca é tarde para começar.
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Nessas pessoas eu vejo representadas personagens que passaram pela minha vida. Tem a professora primária, o professor do ginásio, o médico, o tabelião, o juiz de direito, meu pai, minha mãe, meus tios e tias, minha avó. São pessoas de carne e osso que envelheceram, às vezes, bem antes do tempo. Não são peças anônimas de um tabuleiro. Todas têm uma história. Eu estou reiniciando a minha.
Papo de velho Enquanto faço minhas caminhadas encontro velhos conhecidos. Alguns deles só encontro raramente, outros quase toda semana. Quando estamos na mesma direção, caminhamos juntos por algum tempo ou até que um dos dois finalize a caminhada. O papo segue o mesmo ritmo e as conversas giram em torno da saúde e da família. Quando sabemos que o câncer de um amigo comum estacionou, respiramos aliviados. Fico sabendo que a mulher do outro quebrou o braço ao cair da escada. Comunico que minha mulher quebrou o pé há alguns anos, ao se levantar da cama, um descuido de nada. Sou informado de que o câncer de próstata de outro está controlado. Tudo é motivo de alegria. Até sou elogiado porque estou combatendo com sucesso o Mr. Parkinson. Trocamos de assunto e perguntamos um ao outro pelos filhos, pelos netos, como está a vida de aposentado, e comentamos como era chata a burocracia da Embrapa. Ao fim da caminhada nos despedimos e seguimos nossos caminhos. Fico pensando se viver
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após os 65 anos será sempre assim. Por enquanto, estamos vencendo os inimigos. Mas sinto que a vida é mais do que isso. Há ainda muita festa para ir, muitos livros para ler, muita música para ouvir, amizades para cultivar, sorrisos para cativar, família para curtir, viagens para fazer. Chego a pensar que essa é a vida que pedi a Deus.
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Cap铆tulo 2
Minicontos quase cr么nicas
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Imburana: Vegetação típica da caatinga ao fundo 87
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A garota que moldou seu destino Seu pai era um canalha e a mãe, omissa: receita cruel para uma infância de abusos e maus tratos. Quando estava no início da adolescência, o pai largou a mãe para correr atrás de uma sirigaita, como se usava chamar esse tipo de mulher. Ver sua mãe sofrer resignada levou-a a tomar uma decisão: nunca, jamais, nenhum homem a faria sofrer. Aos doze anos se sentia madura, e sem paciência para conviver com os colegas da escola, que achava tremendamente imaturos, especialmente os meninos. Pediu à mãe para parar com os estudos, pois já sabia o básico para sobreviver e não tinha paciência para frequentar a escola. A mãe lhe disse que sua vida seria muito mais difícil sem um diploma, mas ela argumentou com tanta firmeza que venceria na vida trabalhando com o que mais gostava de fazer, que a mãe se deu por vencida. Cozinhar era o que ela mais gostava de fazer. A mãe lhe deu todo o apoio, ensinando-lhe os segredos da culinária que eram muitos. Aos dezoito anos era bonita e tinha formas que chamavam a atenção por onde passava: algumas polegadas a mais nos quadris, outras tantas no busto. Tinha pernas e coxas bem torneadas e um sorriso cativante. Esses atributos atraíam muitos pretendentes. Tinha fama também de ser excelente cozinheira. Em pouco tempo estava casada com um homem mais velho, mas ainda atraente, e bem posicionado. É evidente que houve uma ajudazinha da mãe, que pensava dessa maneira garantir seu futuro. Alguns meses se passaram e ela não se sentia completamente feliz, como esperava ser. Tudo parecia perfeito, menos o lado afetivo. Para compensar, se esmerava na cozinha e todos os dias inventava uma nova sobremesa. Das suas mãos saíam pavlovas, cheesecakes, tiramisus, mousses de chocolate, de laranja e de
limão, profiteroles, pastéis de Santa Clara e, nos dias mais frios, fondue de chocolate ou torta de maçã quente com sorvete de creme. Na casa jamais faltavam os doces tradicionais de frutas que incluíam goiabadas, bananadas, pessegadas, figadas, além de rocamboles e geleias de frutas. Ao mesmo tempo, enquanto o marido a cobria de elogios, e afirmava estar vivendo no paraíso, ela comia como um passarinho, e não se descuidava de sua dieta e dos exercícios para manter a forma. Uma noite, ele tentou apimentar a relação, pedindo para que ela o chamasse de “paizinho”. Ela parou de imediato e sentiu como se um martelo fosse atirado sobre sua cabeça. Saiu do quarto e se refugiou no quarto de hóspedes, onde permaneceu o resto da noite, sem dormir e sem sossego. Muito cedo, enquanto servia o café da manhã, informou ao marido que dali em diante ele jamais a tocaria novamente. Poderiam continuar casados, se fosse o desejo dele, mas ela seria sua mulher só de mesa. Exigiu que dormissem em quartos separados. Poderiam manter as aparências de casal feliz se ele assim o desejasse. Talvez pelo avançado da idade e o receio de morar sozinho, ele aceitou suas exigências sem criar dificuldades. Certamente pesou nessa decisão, em primeiro lugar, seu apetite por doces. Ele se resignou, pediu desculpas e aceitou suas exigências. Só lhe pediu para continuar a servir os doces que o encantavam tanto. Depois de alguns meses, ele adoeceu. Tinha diabetes e não sabia. Várias hospitalizações se seguiram e um dia ele a chamou ao hospital. Havia um tabelião ao seu lado, a quem ele pediu que procedesse à leitura do seu testamento. Deixava para ela tudo que tinha, porque não tinha parentes próximos. E não era pouco: vários imóveis, investimentos e ações. Ela ficaria rica.
Ele lhe agradeceu pelos melhores momentos que vivera. Ela afirmou, com sinceridade, que pelo menos para ela os momentos que passaram juntos não foram piores do que os momentos que ela vivera antes do casamento, e ele sabia que ela falava a verdade. Poucos dias depois ele faleceu. Ela não se desesperou nem chorou demais. Apenas se comportou com dignidade de viúva. Passaram-se alguns meses. Aos poucos, novos pretendentes foram surgindo. Não pôde evitar o assédio, mas notava que quase todos os pretendentes eram homens mais velhos. Para tomar uma decisão, resolveu aceitar convites para sair e aos poucos foi formando uma ideia do que deveria fazer. Isso ocorreu porque invariavelmente os homens que a procuravam eram iguais ou muito parecidos com o falecido marido. Nessa época sua mãe faleceu, não sem antes revelar o quanto sofrera nas mãos do ex-marido, especialmente porque sabia das atitudes dele em relação à filha. Ela lembrou-se da promessa que se fizera de jamais deixar que homem algum a fizesse sofrer. Repetiu essa promessa solenemente no túmulo da mãe. Enquanto os pretendentes deram-lhe uma trégua, em respeito ao seu luto, colocou um plano em prática. Passou a investigar todos, especialmente quanto aos hábitos alimentares, vícios como fumar e beber, prática de esportes e estado geral de saúde. Explicava-lhes que tinha ficado traumatizada com a morte repentina do marido, e precisava ter certeza de que não enviuvaria novamente tão cedo. Mentalmente montou um sistema de pontuação em que quanto mais riscos existissem de o candidato adoecer, melhores suas chances. Não demorou muito e novamente estava se casando: o vencedor entre os pretendentes tinha problemas com colesterol alto
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e hipertensão, mas como acontece com a maioria dos homens, ignorava as recomendações do médico tão logo saía do consultório e raramente fazia os exames requisitados. Ela, entretanto, alegando preocupar-se com a saúde dele, passou a cuidar desses pormenores e a controlar os resultados dos exames, exigindo que ele os fizesse após a consulta semestral ao cardiologista. Enquanto isso ampliou a produção de sobremesas cremosas, cada vez mais ricas em gorduras e açúcar. Agora, tanto se esmerava nas sobremesas quanto nas carnes e frituras. Um simples cafezinho era acompanhado por biscoitos amanteigados, bolos e empadas. Raro era o dia em que não servia, no almoço e no jantar, pratos como steak au poivre, leitão assado, quiche Lorraine, linguiças fritas ou omeletes gigantescas e deliciosas, acompanhados de batatas fritas ou de maionese, sempre em excesso. Uma vez por semana, ela fazia um jantar especial. Quando fazia comida chinesa, por exemplo, usava uma técnica para justificar o sabor agridoce da maioria dos pratos. Primeiramente, colocava sal em demasia, depois acrescentava açúcar até equilibrar novamente o sabor. Em seguida, colocava mais sal, e depois, mais açúcar... Dizia ao marido que para ter saúde era imperioso viver bem, e evitar preocupações desnecessárias. Ele teve um infarto fulminante cinco anos depois do casamento, mas deixou-lhe gorda conta bancária. Antes de morrer no hospital, ele lhe agradeceu, em presença do corpo médico, pelos melhores anos de sua vida. Ela se comoveu e até derramou algumas lágrimas. Estava agora com quase trinta anos e passou a ser cada vez mais exigente. O próximo marido morreu de complicações causadas por diabetes e infarto agudo do miocárdio. Como os demais, agradeceu pelos anos felizes e lhe deixou diversos bens. Depois de enterrar o terceiro marido, ela voltou ao cemitério onde jazia sua mãe.
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Rezou, com sinceridade, e ficou pensativa por um longo período em frente ao túmulo. Tomou ali mesmo a decisão que lhe aliviou o peito: estava na hora de começar a viver a vida como achava que merecia. Viajou muito e divertiu-se como uma criança que pode comprar ingressos para todos os brinquedos de um parque de diversões, pois tinha condições financeiras para aproveitar a vida. Logo após completar quarenta anos, sentiu-se atraída por um homem da sua idade. Ele era rico, elegante, atlético e saudável. Ela contratou uma cozinheira e viveram felizes.
Donzelice Posso me considerar uma pessoa realizada. Trabalhei quando e onde quis, tenho estabilidade financeira e ninguém se mete na minha vida. Ainda assim, tenho uma lacuna na minha existência: nunca amei ninguém, ninguém me amou. Ainda me restam esperanças de encontrar o amor verdadeiro, mas começo a pensar que não me realizarei nesse sentido. Esperei a vida inteira pelo homem certo – em quem eu deveria recostar minha cabeça e me sentir protegida. Não fui obcecada por essa procura, mas desde cedo montei uma estratégia para encontrar o meu amor. Estratégia que, a bem da verdade, nunca deu certo. Assim, fiquei à sua espera, sem sucesso, nas mesas dos restaurantes, nos assentos de trens e de ônibus, nas poltronas dos cinemas e teatros. Desde pequena eu imaginei que meu amor iria chegar de mansinho, sem ser chamado, atraído apenas pela minha figura. Ele se sentaria ao meu lado, e ficaríamos calados, como se a sentir
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nossos cheiros. Avaliaríamos nossos gestos e a maneira de se portar um do outro, para termos certeza. Afinal, é assim que os animais escolhem seus parceiros, e sempre dá certo, não é? Só então conversaríamos sobre qualquer coisa. No nosso primeiro encontro, que seria numa confeitaria, pediríamos café e dois pedaços de tortas diferentes para experimentarmos dois sabores ao mesmo tempo. E nossas escolhas seriam sempre compatíveis e complementares. Não precisaríamos gastar muitas palavras – nos entenderíamos com gestos e olhares e abraços, muitos abraços. Não, isso nunca se realizou, repito. Quando embarco num trem ou vou ao cinema, ou a qualquer lugar, sempre escolho para sentar onde há mais de um assento disponível. Em várias ocasiões, desconfiei ter escolhido o local errado, e imaginei que se trocasse de lugar haveria uma chance maior dessa pessoa prometida se aproximar, mas essa estratégia também não funcionou. Uma vez só havia uma mesa disponível no restaurante e me perguntaram se aceitaria dividir a mesa com um estranho. Não me opus, e meu coração começou a bater forte, porque imaginei que meu momento havia chegado. Para esconder o nervosismo, baixei a cabeça e me pus a imaginar como seriam seus gostos, que pratos iríamos compartilhar no nosso próximo encontro. Até que ele chegou e percebi de cara que nada tínhamos em comum. Ele era esnobe e desatencioso, exibia seu relógio e suas correntes de ouro comprados em lojas duty free, suas unhas pintadas com esmalte incolor e seus dentes impecavelmente brancos como se tivesse acabado de sair de uma sessão de branqueamento. Sem me dar atenção, ele ordenou uma refeição completa e eu, mentalmente, desaprovei todas as suas escolhas. Achei que nada combinava. Nesse dia, nem pedi minha sobremesa preferida, razão maior para ter escolhido almoçar naquele restaurante. Pedi
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a conta, paguei e saí apressada. Entrei num cinema, sem olhar sequer o programa. Dormi durante a projeção do filme, de tão exausta que estava, e sonhei que estava recostada no ombro do meu amor e que ele me enlaçava com seus braços, sem me pressionar, mas me prendendo como se tivesse necessidade de mim tanto quanto eu dele. Havia vários casais na sala e pude observar quase todos. A maioria não se encaixava como eu imaginava que deveria. Quase cheguei a sentir tristeza por alguns deles, tal a falta de entrosamento. Poucas pessoas estão preparadas, como eu, para escolher um amor verdadeiro! Em outra ocasião, estive muito perto de encontrar meu amor. Estava viajando de trem entre Roma e Milão, e a poltrona ao meu lado estava vazia. Alguém pediu licença para sentar e eu quase engoli o fôlego, porque senti pelo tom de sua voz que seria dessa vez. Ele pediu licença para ocupar o assento vazio, organizou sua bagagem de mão no bagageiro, sentou-se, abriu e folheou uma revista ao acaso, virou-se para mim e se apresentou. Era educado, simples e direto. Tinha as unhas limpas, vestia-se discretamente, e eu passei a imaginar como seríamos felizes e parecidos. Fechei os olhos e desejei ardentemente que a viagem durasse uma eternidade, que o trem quebrasse em algum ponto remoto, e que tivéssemos que passar a noite juntos, aconchegados, enquanto a companhia de trens providenciava o conserto. Estava tão embevecida com essa ideia que adormeci e, por alguns instantes, tive a impressão de ter tombado a cabeça sobre seu ombro. Na estação seguinte ele desceu, e estou quase certa de que da plataforma fez um aceno em minha direção. Até hoje lamento não ter descido atrás dele e explicado que havíamos nascido um para o outro. Creio que perdi mais de um verdadeiro amor por timidez. Penso também que perdi muitas oportunidades porque estava no
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lugar errado – no vagão errado, na mesa errada ou ocupando o assento errado. Essa certeza eu tenho porque de vez em quando localizava alguém sozinho no local que eu deveria ter escolhido para sentar; e várias vezes desci de um vagão para buscar minha felicidade em outro, porque sentia que havia uma possibilidade maior, por algum motivo, longe da minha primeira escolha. Já me torturei pensando que desencontrei o meu amor porque ele chegou atrasado e optou por outra seção de cinema, ou pegou outro trem que não o meu. Nunca se sabe do que o destino é capaz. Deve ser mesmo timidez, porque tive vários encontros que resultaram em nada, por falta de iniciativa minha ou por medo de decepção. No trabalho, por exemplo, não suportava a ideia de namorar um colega, porque, com o tempo, os defeitos de todos me incomodavam de tal maneira que eu mal conseguia sair com eles para compartilhar algo promovido pela empresa. Foi um grande alívio quando pedi demissão, após receber, de herança, vários imóveis que me garantem viver confortavelmente. A partir de então passei a viajar mais e a frequentar o maior número possível de restaurantes e locais que deveriam ser chamariz para o meu verdadeiro amor. Alguém pode supor que minha estratégia seja errada, porque embarcar em um cruzeiro certamente facilitaria as coisas, como qualquer um pode ver nos filmes ou nas notícias de jornais e revistas. A questão é que não suporto viagens de grupos e não sou do tipo que sai à cata de aventuras amorosas. Hoje é meu aniversário. Que me importam os anos? Que me importa o tempo? A única coisa que planejo é onde vou jantar. Já reservei uma mesa no melhor restaurante que conheço e sei que nele sempre há poucas mesas disponíveis. Não planejo nada para além de um dia, a não ser quando vou viajar. Nada me restará dessa expectativa, a não ser a minha inconsequência entre
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esperar e agir: se perco a esperança ou se paraliso em vez de agir, tudo acaba, como sempre, sem que eu chegue a lugar algum. Por via das dúvidas, hoje pedirei duas fatias de tortas diferentes, de sobremesa.
Fera ferida Estavam casados há mais de 40 anos e não tinham filhos. Ele estava aposentado há menos de três anos quando sofreu um acidente vascular cerebral. Com problemas de locomoção, precisou usar cadeira de rodas. Moravam numa casa, e ele ficava a maior parte do tempo sentado na varanda interna que dava para um quintal. Dava ordens para que a mulher trouxesse suas gaiolas com canarinhos e ela obedecia. Depois se cansou de cuidar dos passarinhos e ela passou a cuidar deles, sob sua vigilância. Aos poucos ela foi se inteirando de como ele era diferente de quando passava a maior parte do tempo fora de casa, e se convenceu de que jamais o tinha conhecido de verdade. Enquanto ele trabalhara, ela só cuidou dele e da casa. Lavava, passava, cozinhava. Dizia não querer pessoas estranhas em casa, mesmo que fosse para ajudar. Sequer considerava contratar uma diarista para a faxina. Dava conta de tudo e economizava cada centavo, repetindo sempre que era importante uma reserva econômica para desfrutarem de tranquilidade na velhice. Em toda a sua vida, ele nunca faltou ao trabalho e, nos primeiros anos de casamento, voltava para casa com pontualidade irritante. Um dia, avisou que precisava trabalhar até mais tarde às terças-feiras. Depois estendeu os serões para as quintas-feiras.
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Depois de algum tempo, passou a se reunir com um grupo de colegas de trabalho aos sábados à tarde. Ela nunca quis acompanhá-lo, porque ele dizia que era uma reunião de homens suados, fedorentos e mal-educados, que apenas jogavam futebol e não faziam outra coisa, nem sequer bebiam. Ela certificou-se de que ele falava a verdade porque nunca sentiu cheiro de bebida, nem nele nem nas roupas e, portanto, não tinha por que se preocupar, afinal ele trabalhava muito e precisava se divertir um pouco. Além disso, não tendo bebida envolvida, era um bom sinal. Isso seria uma coisa que ela nunca aprovaria. É verdade que ele também fazia algumas viagens a serviço, mas era só de vez em quando, e ela nunca perguntava a respeito de coisas do trabalho. Bastava que ele mantivesse a casa e o padrão de vida que, por sinal, tinha pouco luxo. Um dia, depois que ele adoeceu, enquanto separava roupas para lavar, ela encontrou um bilhete e a foto de uma mulher e uma criança num bolso interno da calça dele. Desconfiada e silenciosamente ela buscou outras fotos e bilhetes, e achou. Vários deles. Deu até para acompanhar o desenvolvimento da criança – agora, pelos seus cálculos, já homem feito, como pôde ver numa foto mais recente. Ela comparou com uma foto do marido, da época do casamento, e não teve dúvidas. Eles pareciam irmãos, de tão semelhantes. Os bilhetes e as fotos ficavam guardados junto com os documentos de trabalho, comprovantes de renda e outros documentos que ele sempre se encarregava de organizar, e que ela jamais tocara. Ela reparou que as fotos eram mais antigas – quase nenhuma dos últimos anos. Os bilhetes também rarearam. Certamente, preferiam trocar e-mails, pensou, e ele devia guardar arquivadas as novas fotos no computador, que somente ele usava. Embora
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não usasse computador ou internet, ela lia jornais e tinha ideia de como funcionavam os novos meios de comunicação. Apesar do problema de saúde, ele continuava decidindo sobre tudo na casa. Decidiu plantar um abacateiro bem no centro do quintal, onde pudesse acompanhar seu desenvolvimento. Ela retrucou que a árvore ia encher o chão de folhas, que já tinham muitas frutíferas plantadas, que iria sombrear sua horta, mas nada adiantou. Ele insistiu e insistiu, e um dia, sem nenhum aviso, a muda de abacateiro foi entregue na porta de casa. Ele deu ordens para que fosse colocada perto da varanda, para que ele a examinasse. E negociou com o entregador para que retornasse no fim da tarde para plantar a muda. Ela ficou furiosa, e ficou mais ainda depois que se lembrou de que numa das primeiras fotos ele e a amante (ela não tinha dúvidas de que eram amantes) estavam abraçados debaixo de um abacateiro. Teve vontade, primeiro, de chorar, depois, de se matar, depois, de matá-lo, de envenená-lo devagarinho, de matá-lo de fome aos poucos, ou de estrangulá-lo enquanto dormia, mas não fez nada disso. Enfiou-se no quarto, procurou se acalmar, pensou melhor, foi para a cozinha, fez um doce de que ele gostava e sentou-se ao seu lado, enquanto observava o quintal. Estava pensativa, calada, e mal respondia ao que ele perguntava. Tentava, mas não conseguia olhá-lo de frente. Ele comentou que ela estava sempre de mau humor nos últimos dias. São as costas que me doem, ela respondeu, e disse-lhe que achava que era o colchão. Precisa consultar um médico, ele respondeu. Vou ver, disse ela. Ela passou a cuidar da muda do abacateiro com um zelo que ele notou e que o deixou satisfeito. Ele também notou que ela fazia chá muitas vezes ao dia. É recomendação do médico, disse ela. Falou que preciso me hidratar e não gosto de beber água. E
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continuava fervendo água e fazendo chá, várias vezes por dia. Sempre que fazia chá, ela comentava que as plantas também tinham sede e precisavam de água, e se retirava para a cozinha e ele a seguia com os olhos, indo para o quintal com um balde para jogar água no abacateiro. Mas essa árvore não parece que está crescendo, até as folhas que vieram com ela murcharam, dizia ele, desanimado. Deve ser a baixa qualidade da muda, ou as mudanças do tempo, respondia ela, e continuava: a vizinha da outra rua também se queixou comigo que essas mudas de hoje não são como as de antigamente. Havia sempre uma vizinha, próxima ou distante, que explicava a razão de todo o insucesso. A muda de abacateiro morreu, assim como as três seguintes que ele insistiu em plantar, até que um dia desistiu, embora inconformado. Aos poucos, os canarinhos fugiram das gaiolas. Ele morreu de tédio, antes de completar cinco anos da aposentadoria.
O anjo da imburana Eram agricultores e viviam em um pequeno sítio, às margens da rodovia. Plantavam milho, feijão, criavam galinhas e mantinham uma horta variada, de modo que a vida era bastante tranquila. Moravam sozinhos, porque os filhos estavam casados e residiam na cidade, onde trabalhavam. Tinham muitos netos, de idades variadas. A mulher trabalhava com afinco, no mesmo ritmo do marido: acordavam cedo, dormiam cedo e mantinham tudo em ordem em casa. Na época do plantio e da colheita trabalhavam juntos na roça. Vez por outra, mas não todos os dias, quando
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estavam cansados, ou alegres, ou tristes, ou sentiam necessidade de comemorar qualquer coisa, bebiam uma dose de uma cachaça especial produzida por um parente distante. O único problema do casal era a mania da mulher de mentir. Mentia sobre tudo e por qualquer motivo. Inventava histórias sobre os filhos, quase sempre aumentando seus salários e o sucesso que alcançavam onde quer que fossem. Mentia sobre os netos, dizendo que eles só recebiam nota máxima nas provas, ou que aprendiam as lições com extrema facilidade, e até sobre seus imensos talentos para trabalhos manuais. Quase sempre suas mentiras eram inofensivas. Era como se desejasse o melhor para todos, e essas mentiras faziam-na feliz, como se acreditasse nelas e elas fizessem parte de sua realidade. O excesso de imaginação da mulher fez com que o marido tomasse a decisão de investigar tudo que ela dizia, antes de aceitar qualquer notícia como um fato. Fazia isso porque tinha bom coração e era paciente. Assim, quando ela lhe disse que havia visto um anjo na imburana do quintal, ele duvidou, mas resolveu investigar, porque ela costumava exagerar, mas era incapaz de inventar uma mentira do nada. Ademais, ela lhe falou sobre o anjo com tamanha convicção que ele se convenceu de que deveria acreditar, até prova em contrário. O homem ficou preocupado − caso esse anjo fosse de verdade e resolvesse descer da árvore e viver com eles, poderia trazer consequências desastrosas, como mais uma boca para alimentar, mexericos dos vizinhos e atração de curiosos de toda parte. Ele suspeitou que a mulher não mentira quando, ao amanhecer, notou uma luz como nunca havia visto antes, vindo da imburana. Viu novamente a luz ao anoitecer. Passaram-se alguns dias e ele não conseguia ver o anjo, apesar de ver a luz. Nesses dias ele
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mudou seus hábitos e passou a acordar ainda mais cedo, ou no meio da noite, para vigiar a árvore. Evitava falar sobre isso com a mulher, para não estimulá-la a ampliar os fatos. Enquanto isso a mulher insistia que precisavam tentar conversar com o anjo. Ela o descrevia como alguém muito parecido com um ser humano, mas diferente. Ela achava difícil explicar o que nele era diferente. Por mais que tentasse, só conseguia explicar que era diferente de tudo que conhecia. Finalmente ele não se conteve e contou para ela sobre a luz que estivera observando. Nesse mesmo dia, decidiram enfrentar o anjo e se dirigiram para a árvore logo após terem tomado o café da manhã, mais cedo do que de costume. Os dois estavam nervosos, mas sabiam que precisavam encarar a situação. Preocupavam-se com os filhos e netos chegando e encontrando coisas incomuns e enxergando luzes. Eles não imaginavam o que poderia acontecer. Ela segurou sua mão e apontou para um galho mais alto. De lá vinha a luz, mas, ao chegarem mais perto, ela sumiu. Ele então foi capaz de ver o anjo também, agora que a luz não ofuscava sua visão. Falaram várias frases de boas-vindas, sempre demonstrando respeito, e até apelaram para que o anjo respondesse, mas ele não parecia vê-los nem ouvi-los. Parecia que decidira ignorá-los. O marido segurou um galho da árvore e começou a agitá-lo. Primeiramente devagar, depois com força, de modo que toda a árvore balançava. Então o anjo olhou para eles com interesse. Eles o convidaram para descer e conversar. Imediatamente o anjo surgiu ao lado deles. Convidaram-no para ir até a casa e sentaram-se na varanda. O anjo demorou a sentar-se, como se não entendesse a situação. Eles lhe perguntaram o que estava fazendo ali. O anjo respondeu
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que não entendia a pergunta. Explicou que estava naquela árvore porque era o lugar para ficar, e não pretendia se envolver com as atividades deles. O homem explicou que aquela era uma propriedade privada, e que se ele quisesse ficar, teria que se adequar às suas regras. A mulher, querendo evitar um mal-estar maior, mudou o assunto da conversa. Perguntou ao anjo se ele tinha fome, se queria comer ou beber algo, ou mesmo dormir num lugar mais confortável. O anjo respondeu que não tinha fome, e que se sentia confortável na árvore. Seguiu-se um longo silêncio e ela então lhe perguntou quando ele iria embora. O anjo respondeu que não cabia a ele decidir e não entrou em mais detalhes, de modo que se despediram. O anjo sumiu e reapareceu no alto da árvore (eles souberam disso porque imediatamente a luz reapareceu). O casal, especialmente a mulher, não conseguia esconder seu desapontamento. O marido não se conteve e lhe explicou o quanto aquela situação era embaraçosa. Contou que estava especialmente preocupado com a curiosidade das pessoas quando soubessem que estavam hospedando um anjo no sítio. Tinha dúvidas se deveria ir à igreja, ou à delegacia de polícia, mas receava ser considerado louco ou algo parecido. Decidiu voltar a conversar com o anjo no dia seguinte. Não conseguiu dormir. Acordou várias vezes durante a noite e observou que a luz continuava a brilhar com a mesma intensidade. Logo cedo, dirigiu-se à árvore e balançou o mesmo galho de antes. O anjo desceu e informou que não iria demorar. Tinha uma missão a cumprir e partiria em breve. Não deu detalhes, nem respondeu a perguntas. Como apareceu, desapareceu. A mulher não conseguia esconder sua decepção e de vez em quando suspirava, se perguntando se eles não tinham perdido uma oportunidade
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única na vida. O marido respondia que não, e que seria melhor ela considerar que tudo não passara de um sonho. Uma noite, quando se preparavam para jantar, bateram à porta. Era o bispo da diocese pedindo ajuda, porque seu carro sofrera uma pane mecânica e ele não tinha como seguir até a cidade na escuridão. Além disso, não tinha como usar o celular porque estava fora de área. Como eles não tinham carro, nem telefone para chamar alguém, propuseram ao bispo pernoitar e aguardar o dia seguinte. Não faziam ideia de como alojar uma pessoa dessa importância, mas lhe ofereceram o melhor quarto da casa. A mulher preparou uma salada fresca da horta, acrescentou água à canja e, em poucos minutos, estavam sentados à mesa, jantando. Ela mal levantava os olhos de tão nervosa. Só pensava numa maneira de contar ao bispo sobre o anjo. Tinha vontade de falar e não conseguia achar uma brecha para iniciar o assunto. Ao terminar a refeição, o bispo perguntou se tinham uma cachacinha. Ela considerou que, afinal de contas, estava ali um homem de carne e osso, e serviu três doses. O bispo fez uma oração de agradecimento antes de se levantar da mesa, e ela não se conteve mais. Pediu licença para contar o que lhes tinha acontecido recentemente. Mas, tendo perdido a timidez, voltou ao seu normal e tratou de inventar pormenores. Em vez de um anjo, contou que havia querubins e serafins reunidos na árvore. Contou como eles emitiam luzes de diferentes cores, que iluminavam tudo ao redor. Pela sua descrição, dava para imaginar uma árvore de Natal gigante, com luzes de todas as cores. O bispo sorriu, agradeceu mais uma vez pelo jantar, mas nada comentou. Disse-lhes que gostaria de se retirar para o quarto, porque viajara o dia inteiro e estava cansado. No dia seguinte, antes
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de voltar para a estrada, chamou a mulher e com muita paciência explicou que sua narrativa não podia passar de um sonho. Para não ofendê-la, disse-lhe que talvez fosse tudo resultado de um desejo forte de se aproximar de Deus. Por outro lado, acrescentou, ele se sentiria inclinado a acreditar nela caso eles tivessem recebido a visita de um único anjo.
O caso do vestido Ela se chamava Edenilza, mas todos a chamavam Nilza. Trabalhava como manicure no salão de beleza do bairro. Sua colega de trabalho e melhor amiga chamava-se Waldenice e era tratada como Val. Fora do salão, Nilza fazia sobrancelhas em casa. Ganhava mais fazendo sobrancelhas, mas as pessoas preferiam ser atendidas fora do horário comercial, nos finais de semana e feriados, e ela preferia combinar os dois trabalhos para complementar sua renda. Tinha tantos clientes que só atendia por agendamento, em especial quando havia algum casamento, formatura ou batizado. Felizmente os homens ainda não fazem sobrancelhas, pensava, senão teria dificuldade para atender todos. Quase nunca saía, mais por falta de opção do que por falta de vontade, ou simplesmente por se sentir cansada. Atualizava-se sobre o que acontecia na cidade e no país ouvindo as conversas das clientes no salão, e pelo televisor, que permanecia ligado o dia inteiro. Uma conhecida do salão convidou-a para seu casamento. Val também foi convidada, e as duas passaram horas planejando o que fazer. Como nunca saía para ocasiões como essa, precisava
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comprar tudo, desde o vestido social até sapatos, meias, calcinha, sutiã e bolsa. E mais: precisava de orientação sobre como se comportar, a hora de chegar, o que comer na recepção sem parecer estar faminta e ao mesmo tempo sem parecer esnobar o serviço de bufê. Precisava até de orientação sobre que perfume usar. Todas essas ponderações ela se fazia baseada nas novelas que assistia. Felizmente Val cuidou de tudo: fizeram uma lista completa e saíram juntas para fazer compras. Na loja de vestidos Nilza não sabia o que escolher, mas com ajuda da vendedora e da amiga terminou escolhendo um vestido que, segundo elas, era perfeito para o seu corpo. Era longo, azul marinho, discreto, exceto por um detalhe nas costas: havia um longo zíper, que ia do pescoço até os quadris. Esse detalhe deixou-a preocupada, mas Val e a vendedora a convenceram, após abrir e fechar o zíper repetidas vezes, que não haveria problema. Esse detalhe, acrescentavam, favorecia seu corpo, magro, mas cheio de curvas. Um amigo ofereceu carona para as duas, porque moravam todos no mesmo bairro, e a igreja era em outro. Ele combinou de apanhar primeiro Nilza, e Val em seguida. No dia, ele chegou pontualmente como combinado, e seguiram por alguns minutos, quando o carro parou de repente. Não deve ser nada, disse ele, e desceu para avaliar o que havia acontecido. Ela ficou nervosa e, temendo chegar atrasada, desceu do carro, perguntou se o problema era grave. Ele estava ocupado mexendo no motor e não lhe deu garantias de que resolveria logo, de modo que ela agradeceu e pediu desculpas por largá-lo assim, mas pegaria um táxi. O amigo se desculpou e também estava preocupado, mas prometeu que tentaria resolver o mais rápido possível. Garantiu que tudo correria bem e se ofereceu para dar outra carona ao final da festa.
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Ela deu alguns passos, procurando com atenção um táxi, mas nenhum apareceu. Percebeu então que algo estava errado com o vestido. Passou a mão nas costas e sentiu que o zíper estava solto. Desceu a mão e notou que o problema se estendia por toda a extensão do zíper. Sentiu-se nua e desesperada. Havia um bar nas proximidades. Pediu para ir ao banheiro, mas nada pôde fazer. Havia um espelho minúsculo e o banheiro era sujo, e ela não teve coragem de tirar o vestido para tentar algum conserto. Seu celular tocou, era a Val, e ela explicou o que estava acontecendo. A amiga lhe disse para andar até o posto policial que era próximo dali. Lá os policiais poderiam ajudar, pelo menos havia um banheiro mais arrumado, pois ela conhecia algumas policiais mulheres que ali trabalhavam. A amiga tentou acalmá-la, dizendo que em poucos minutos a encontraria no posto policial. Só havia um sargento de plantão. O bairro era tranquilo e nos fins de semana isso era o normal. Ela explicou seu drama, e ele apontou o banheiro. Ela notou que havia uma árvore de Natal logo na entrada, embora ainda estivessem no princípio da última semana de novembro. Ela lhe disse que precisava arrumar o zíper o mais rápido possível e por isso não iria incomodar. Tirou o vestido e, abrindo parcialmente a porta do banheiro, mostrou-lhe o que precisava ser feito. Ele lhe garantiu que como policial tinha alguns talentos e treinamentos para consertar coisas e resolver emergências. Pela porta entreaberta ela notou que ele não tinha ferramentas adequadas, apenas uma tesoura e um alicate. Ele tentou sem sucesso, mas com paciência, ajustar os lados opostos do zíper, e ela sentiu que ele era uma pessoa confiável. Val chegou alguns minutos depois. Examinou cuidadosamente o estrago, tomou o vestido em suas mãos e olhou em volta.
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Encaminhou-se para a árvore de Natal e pediu licença ao sargento para usar um cordão prateado que circundava os galhos. Com a ponta afiada da tesoura fez alguns buracos ao longo do corte do zíper, e aos poucos entrelaçou o cordão, como se fosse um cadarço de sapato. O efeito final foi inesperado, mas funcionou. O zíper foi retirado cuidadosamente, com ajuda da tesoura do posto policial, e, em seguida, dobrado e colocado na bolsa. As costas estavam agora à mostra, mas Val foi suficientemente cuidadosa para proteger a parte de baixo, de modo que não aparecia nada além do que o necessário. As duas agradeceram ao sargento pela ajuda. Ele agora não conseguia tirar os olhos de Nilza. Propôs lhes dar uma carona, pois em poucos minutos terminaria seu plantão, e não seria incômodo porque residia próximo à igreja, para onde elas estavam se dirigindo. Chegaram à igreja quase junto com a noiva. Conseguiram um lugar adequado para acompanhar a cerimônia, bem no fundo da igreja. As duas amigas constataram que conheciam praticamente metade das mulheres presentes, ou pelo menos suas mãos e sobrancelhas. Ao final da recepção, que aconteceu no salão anexo, mais de uma pessoa elogiou seu vestido, e Nilza se sentiu recompensada pelos atropelos do dia, mas se sentia cansada. Depois de se servir de alguns salgadinhos e uma taça de espumante, despediu-se dos noivos e dos conhecidos. Val estava entretida, dando atenção ao amigo que lhes prometera carona, e Nilza apenas gesticulou de longe, indicando que estava se retirando. Saiu na esperança de encontrar um táxi com mais facilidade, antes que a maioria dos convidados decidisse sair ao mesmo tempo. Um rapaz com um rosto que lhe pareceu familiar acenou da rua. Ela lembrou que era o sargento, agora à paisana. Seis meses
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depois se casaram, na mesma igreja. Ela guardou o vestido e o zíper e nem sequer reclamou na loja.
O cientista que entendia a linguagem das vacas Trabalho para um jornal, onde sou encarregado da seção de ciências. Fui designado para entrevistar o cientista do momento, que descreveu um método que permite entender o quê e como os animais conversam. Ele me recebeu em sua casa e se dispôs a demonstrar suas descobertas. Quase não precisei fazer perguntas: ele era loquaz, falava com entusiasmo e só precisei gravar, para depois transformar o texto em linguagem jornalística. Ele começou explicando que a importância de sua descoberta se devia ao fato de ele considerar, na linguagem dos animais, tanto os sons emitidos quanto a linguagem corporal. Ele me explicou que seu maior interesse eram as vacas. Em seguida, passou a mostrar vídeos em que esses animais usavam para conversar, além dos sons, movimentos das orelhas, cauda, narinas, até a maneira de mastigar e de revirar os olhos. Perguntei-lhe se havia estudado outros animais e ele respondeu que os cães expressam basicamente alegria, tristeza, fome, sede, necessidade de companhia, raiva e decepção. Para isso, usam, especialmente, a voz, a cauda e determinadas regiões do corpo, com destaque para o focinho. Já as vacas dispõem de um leque amplo de vocábulos que incluem, além daqueles citados para os cães, expressões que demonstram preocupação, desconforto, empatia, saudade, rancor e desejos. Ou seja, quase todos os sentimentos que os seres humanos expressam. Por esses motivos,
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a linguagem dos animais só poderia ser entendida aliando métodos visuais e linguísticos. Ele desenvolveu um programa de computador onde esses fatores podiam ser agrupados, decodificados e, por fim, traduzidos para a linguagem humana. Nesse programa ele incluiu fórmulas que permitem interpretar o que os animais conversam quase que simultaneamente. Para isso, basta usar um microfone e uma câmara acoplados ao computador. Fomos até uma fazenda para testar a descoberta. Ele escolheu um grupo de vacas e passamos a segui-las, usando seus equipamentos. Uma vaca, que ele me informou ser a mais velha e líder de um grupo, estava monopolizando a conversa. Ela reclamava das mais novas, que eram imaturas e estabanadas. Não sabiam guardar seus sentimentos ou então se ocupavam em atrair a atenção dos bípedes, como se dissessem: olhem para mim, sou mais evoluída e produtiva que minha mãe e minha avó! Vejam, dizia, elas fazem drama pelo fato de o bípede separá-las de suas crias depois do nascimento, se machucam uma pata ou se não têm água limpa suficiente para beber. O cientista me explicou que os seres humanos eram chamados de bípedes com certo desdém. Explicou também que as vacas não falavam nomes de cores, como nós. Branco, por exemplo, era leite. Verde era capim. Azul era céu, vermelho era sangue, amarelo era milho, marrom era barro, e assim por diante. As vacas tinham consciência de que os bípedes eram dependentes delas, sendo essa a principal razão de serem tratadas com tantos cuidados. Comida, água fresca, sombra, tudo, enfim, lhes era fornecido à vontade. Elas só não gostavam do bípede-com-roupa-cor-de-leite que vinha de vez em quando importuná-las – às vezes furando-as sem dó e injetando líquidos doloridos. O pior era quando, sem a menor cerimônia, eles enfiavam a mão
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nas suas vaginas. Ai que saudade do nosso touro Mino, suspirou a mais velha, enquanto piscava para as demais. Uma delas, mais nova, perguntou por ele, também suspirando. A mais velha lhe disse que ele fora despedido quando o bípede-dono decidiu engravidá-las de forma artificial. Dali em diante o bípede-com-roupa-cor-de-leite aparecia com aqueles instrumentos perfurantes sempre que elas estavam prontas para procriar. Oh! horror, exclamaram todas! Ficamos aguardando as vacas serem ordenhadas e pude verificar que falavam quase todas ao mesmo tempo, reclamavam da água fria, do local apertado e como, de propósito, defecavam e urinavam, como se por vingança, e em turnos. Ainda competiam entre si para ver quem era mais produtiva nesses aspectos. Algumas avisavam que iam tentar acertar alguns alvos como a cara de um bípede ordenhador ou a parede que havia sido limpa há poucos minutos, ou até um balde ou outro utensílio. Elas também declaravam sua preferência por um ou outro bípede, e o tratavam com mais consideração. Elas não distinguiam bípedes machos e fêmeas, mas era evidente que as mulheres eram suas preferidas. Terminada a ordenha, esse grupo, sempre junto, se dirigiu para o pasto. Mais uma vez, nós o seguimos. De vez em quando uma delas parava e se voltava para nos encarar. O cientista me explicou que ela provavelmente iria fuxicar com as demais. Não demorou muito e essa última apressou o passo e se dirigiu à vaca mais velha, que, sem dúvida, era reconhecida também por elas como a líder do grupo. Vamos parar e deixar que eles passem, disse a líder, voltando-se para uma touceira de capim e fingindo comer. Nós decidimos retornar e procurar um posto de observação em que elas não desconfiassem de nossa presença. De longe, mas a
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uma distância suficiente que permitia interpretar os sinais, continuamos com nossas observações. O grupo chegou a um ponto do pasto que estava verde e intocado. A mais velha escolheu a maior touceira de capim e as demais a seguiram escolhendo outras touceiras. Logo que o capim escasseava, elas avisavam que precisavam mudar de posição. Uma vaca de outro grupo se desgarrou e se dirigiu para a região do grupo que estávamos observando. Imediatamente uma delas comentou o fato, e a mais velha foi ao encontro da intrusa. Explicou que ela não era bem-vinda naquela hora, e que voltasse para se juntar ao seu grupo. A intrusa obedeceu, não sem antes dar uma bocada numa touceira. A mais velha virou as costas, deu alguns passos e, então, voltou-se para a intrusa e disse-lhe que não repetisse o feito ou iria sofrer as consequências. As demais a felicitaram pela pronta ação e continuaram a pastar. Não havia dúvidas de que se sentiam protegidas, mas ao mesmo tempo havia uma tensão no ar. O cientista explicou que em breve a mais velha seria eliminada do rebanho e que entre as demais seria escolhida uma líder. Naquele grupo havia mais de uma candidata a líder, e elas teriam que mostrar sua capacidade de conduzir o grupo, do contrário, ele se dividiria e elas teriam que se juntar a outros grupos, com evidente desvantagem, pois teriam que se submeter às exigências e humores de uma nova líder e aguentar toda sorte de brincadeiras das demais. Nesse ponto, o cientista propôs que continuássemos a demonstração no dia seguinte, pois ele tinha compromisso de visitar uma granja de galinhas. Perguntei-lhe como era sua experiência com elas. Ele me disse que as galinhas usavam praticamente quatro sentenças: estou com fome, estou com sede, botei um ovo, roubaram meu ovo. Não eram muito interessantes, pelo menos em
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comparação com as vacas. Preferi voltar ao hotel para começar a escrever minha reportagem. No dia seguinte, chegamos cedo à fazenda. De longe podíamos observar algumas pessoas perto do curral onde estivéramos no dia anterior. Ficamos sabendo que alguns dos animais mais velhos haviam sido vendidos e que seriam embarcados logo após a ordenha, que estava para terminar. Aproximamo-nos do grupo, já com os equipamentos preparados, e reconheci nossa líder junto com outras duas, aguardando o embarque. Aproximamo-nos e ouvimos o que a líder dizia para as outras: que finalmente iriam descobrir o que existia além da cerca da fazenda. Elas nada sabiam do mundo exterior porque nenhum que tivesse saído voltara para contar. Animada, disse que poderiam até encontrar o touro Mino! Contou ainda que estava deixando várias filhas que agora eram adultas. Gabava-se que tivera uma vida produtiva e que se sentia orgulhosa por ter ensinado tudo que sabia para as mais novas, especialmente onde encontrar capim sempre fresco, mesmo nos dias quentes. Ela deu um suspiro quando começou a movimentação para o embarque. Lançou um derradeiro olhar para as companheiras, que davam sinais visíveis de preocupação. Aos poucos elas foram se afastando e se despedindo com abanos de cauda, que significavam “volte para nos visitar” e “se cuide”. Voltei minha atenção para a placa lateral do veículo usado para transportar os animais. Havia uma logomarca gigante, com um desenho estilizado de cortes de carnes. Ao lado da logomarca estava escrito: Frigorífico e Casa de Carnes Dois Irmãos Ltda.
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O diabo da Suçuarana A mulher estava debulhando milho na cozinha e, de repente, sentiu um cheiro ruim e profundamente desagradável. Não era de bode velho, de curral sujo, de esterco acumulado, de leite azedo, de ovo podre, ou qualquer outro cheiro conhecido. Era pior, porque parecia que combinava o que de pior havia em todos eles juntos. Sentiu um arrepio como se tivesse se tornado febril e fizesse muito frio, o que seria incomum para a época do ano. Despejou ruidosamente os grãos na bacia de alumínio, procurando fazer bastante barulho para assustar o que estivesse causando o cheiro. Imaginou do que ele provinha, e sentiu medo. Pensou, porém, que se demonstrasse seu amedrontamento, talvez fosse pior. E decidiu enfrentar, à sua maneira, o visitante inesperado. A criatura abriu a boca e a mulher sentiu o sopro quente de seu hálito estragado chegando ao seu nariz de imediato. Percebeu então que ela estava próxima. Tentou falar, mas a voz ficou entalada na garganta. Estava paralisada e não conseguia se levantar, nem falar, nem esboçar qualquer gesto de defesa, se bem que não saberia escolher nenhuma forma de defesa. Não percebeu quanto tempo ficou assim, mas lhe pareceu uma eternidade. Por fim reuniu suas forças e virou-se de repente, para onde esperava que estivesse a fonte do seu desprazer. Sentiu que estava frente a frente com a criatura. Procurou se controlar e, aos poucos, sentiu que conseguia recuperar a voz. A criatura estava tão surpresa quanto ela, que desconfiou que o fator surpresa poderia ser revertido em seu favor. Perguntou, calmamente, quem era o intruso (já supondo ser uma criatura do sexo masculino) e o que queria com ela. Ele falou e sua voz era rouca, nervosa, como se recolhesse as palavras do
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fundo do estômago estragado. Mas, em vez de responder diretamente à pergunta, disse à mulher que esperava que ela ficasse aterrorizada, porque era assim que todos ficavam. — Eu sou cega, respondeu a mulher. E depois de alguns instantes de hesitação resolveu desencorajá-lo e mostrar seu domínio da situação: -Mas tenho os outros sentidos bem desenvolvidos e em perfeito estado... e você fede, completou, bastante enfática. — Eu sou um diabo, ele respondeu e emendou: Não está com medo agora? — Não, respondeu a mulher, que continuou: Agora, vá lá no quintal, onde tem uma bica, e tome banho com água e sabão e se esfregue bastante, porque seu cheiro está empesteando este lugar. — Eu não preciso cheirar bem, eu sou um diabo... Ela não se deu por vencida. — Bom, então vá embora. Se quiser ficar por aqui, não pode cheirar tão mal. Vai estragar minha comida e daqui a pouco meu marido chega e não vai gostar disso. O diabo viu que estava perdendo a batalha pelo fato de a mulher ser cega, e não teve outra opção senão retirar-se e fazer o que ela ordenava. A mulher ficou apreensiva. E se esse diabo estivesse acompanhado por outros, ou lhe fizesse algum mal, ou destruísse a casa, ou queimasse tudo...pensava, sem conseguir chegar a um acordo. Precisava tomar alguma providência de imediato, ou se livrar dele, mas não tinha certeza do que fazer. O diabo retornou fedendo menos, mas reclamando de a água ser muito fria. A mulher lhe disse, da forma mais dura que conseguiu, que para permanecer ali teria que se lavar sempre, ou então que saísse à procura de outro lugar. O diabo lhe perguntou por que afirmava que ele estava à procura de um lugar. A mulher lhe disse que
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desde o tempo dos seus bisavós, e talvez até antes, a cada geração um diabo aparecia por ali, pedindo para ficar algum período. Tentando ganhar tempo, e cada vez mais calma e dona da situação, a mulher perguntou se ele tinha fome, ou se queria comer algo, porque ela iria preparar o jantar em seguida. Desde que seja muito quente, respondeu o diabo, completando que não suportava comida fria. Será muito quente, pensou a mulher, que estava com uma sopa quase pronta no fogão. O diabo lhe perguntou se toda a família era de cegos. Ela lhe respondeu que era a única, sendo cega de nascença, pois sentiu que não adiantava mentir. Por isso, disse ela, você terá que ser cuidadoso e, sobretudo, não pode aparecer de repente. Era preciso explicar tudo ao marido logo que ele chegasse, para evitar problemas. O diabo se retirou e se abrigou no paiol, que estava cheio de milho. A mulher se dirigiu ao fogão de lenha, orientando-se pelo tato, como de costume, e aumentou a sopa acrescentando mais água e batatas. Após aproximadamente uma hora, quando já escurecia, o marido chegou. Dentro de casa estava escuro, e ele ligou as luzes, mas reclamou do cheiro estranho tão logo entrou na cozinha. A mulher lhe contou sobre a visita que recebera e disse que suspeitava que o diabo desejasse permanecer com eles por algum tempo. Contou que ele provavelmente estava no paiol, pois sentia seu cheiro vindo de lá. Como ele é, perguntou o marido, menos por costume do que por, momentaneamente, esquecer a cegueira da mulher. Como vou saber, respondeu ela, só sei que senti um cheiro mais horrível do que está agora, e que sua voz é esganiçada, como se saísse das entranhas. Ao mencionar que iria ao paiol certificar-se que ele ainda estava lá, a mulher lhe pediu para esperar, porque estava na hora de preparar a mesa e servir o jantar. Melhor seria
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chamá-lo quando tudo estivesse pronto, para evitar muito contato. Enquanto colocavam pratos e talheres na mesa, decidiram quais seriam as exigências a serem feitas para que o visitante pudesse permanecer no sítio. Iriam exigir também que ele ficasse o menor tempo possível, para evitar que a notícia se espalhasse e curiosos aparecessem por lá, atrapalhando o sossego deles. O diabo tomou a sopa em silêncio como se estivesse com muita fome. O marido olhava-o de soslaio, e jamais nos olhos. Cada vez que seus olhos iam em direção aos olhos do diabo, sentia calafrios e um medo incompreensível, que subia dos pés e tomava conta do corpo. Terminado o jantar, a mulher tomou a palavra, porque não precisava enfrentar o olhar do diabo. Ela expôs as exigências que incluíam tomar dois banhos, no mínimo, todos os dias, ajudar com a alimentação dos animais, buscar água no poço, cortar lenha, vigiar a casa, não aparecer para visitas ou estranhos. O diabo concordou com tudo, sem reclamar. Finalmente, discutiram quanto tempo ele poderia permanecer. O diabo disse que não dependia só dele, e prometeu se comportar, ser o mais discreto possível e cumprir à risca tudo o que fora combinado. Além disso, ele ficaria escondido e o casal só o veria quando estritamente necessário. Passaram-se alguns meses. A mulher e o homem se acostumaram com o hóspede, que lhes parecia completamente domesticado. Quando saíam de casa para ir à feira ou ao posto de saúde, ele tomava conta da casa e do sítio. Por fim, quando ele comunicou que iria embora, eles não demonstraram alívio e até se propuseram a preparar-lhe algo para levar na viagem. A mulher perguntou ao diabo qual seria seu próximo destino e ele respondeu que não sabia, mas precisava caminhar bastante para suar e reaver seu cheiro característico. E também para se
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livrar das maneiras quase humanas que adquirira. O diabo perguntou, pela primeira vez, onde estava. Ela lhe disse: Aqui é o sítio Suçuarana. E qual a cidade mais próxima, ele perguntou. É Tabira, respondeu a mulher. E acrescentou que seria melhor ele evitar essa cidade, porque todos os anos apareciam por lá pessoas muito estranhas. Era comum na região se descarregar doentes mentais, loucos ou qualquer pessoa com comportamento diferente nas entradas das cidades. Em Tabira essas pessoas se demoravam por mais tempo e terminavam acolhidos pela população. Concluiu dizendo que se ele, um diabo, fosse confundido com uma pessoa qualquer, mesmo que muito estranha, iria acabar desmoralizado. O diabo pensou por um momento e tomou a direção contrária à da cidade. Depois de caminhar alguns metros, se voltou e perguntou à mulher como era seu nome. — Meu nome é Generosa, ela respondeu. E voltou para a cozinha para continuar a debulhar o milho.
O homem que se estranhou Prefiro não revelar meu nome. Estou escrevendo porque meu terapeuta disse que sofro de uma doença chamada estranhamento do mundo, e que escrever sobre o que eu sinto poderia me ajudar. Ele me convenceu com as palavras de Isak Dinesen: “Todas as desgraças podem ser suportadas se você as colocar em uma história, ou narrar uma história a respeito delas”. Não acredito nele, nem nessa forma de terapia, mas achei que não perderia nada escrevendo. Por isso escrevo, como um exercício terapêutico.
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Desde criança, tenho a impressão de que as pessoas me olham como a uma pessoa estranha. É verdade que às vezes tudo em minha volta parece sem sentido, como se eu estivesse vivendo em um sonho, que é diferente de sonhar. E me passam pela cabeça pensamentos que não sei descrever, ou, no mínimo, tenho dificuldades para escrever sobre eles. Talvez ainda não esteja preparado para falar objetivamente a esse respeito. É frequente eu perder o contato com a realidade. Nesses momentos, sinto como se meu corpo não me pertencesse. Além disso, quando estou viajando, de repente sinto a sensação de não pertencer àquele lugar. É como se estivesse perdido, num lugar totalmente desconhecido. Tenho que me beliscar para tentar acordar, então vejo que já estou acordado, mas continuo sentindo o mesmo estranhamento. Acho que estranhamento é uma palavra adequada, mas não sei se as pessoas normais irão entender isso. Tampouco sei explicar o que me aconteceu, após ter sofrido um acidente, há alguns anos. Foi a partir daí que esses sintomas se intensificaram e passaram a fazer parte do meu cotidiano. Caí de uma escada quando procurava um livro sobre as origens do Universo no alto da estante. Bati com a cabeça e quando acordei estava no hospital. Os médicos me explicaram que era normal se eu me sentisse meio perdido, após ter ficado meses em coma. Explicaram que meu cérebro sofrera alguns danos, especialmente na região do cerebelo. Disseram ainda desconhecer se teria sequelas, só o futuro poderia dizer. Perguntei aos médicos onde eu havia estado – e eles informaram que eu estivera todo o tempo no hospital, logo após ser socorrido. Não falei nada, porque naquele momento achei que iriam dizer que estava delirando, ou que teria sonhado. Na verdade, o que me aconteceu foi o seguinte: ao cair da escada e bater a cabeça no chão, senti que algo no meu cérebro
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fora religado. É como se de repente eu pudesse perceber coisas que não percebia antes, ou pudesse sentir tudo de maneira diferente, ou que as leis da física não se aplicavam mais a mim e ao meu mundo. Senti que flutuava, mas, ao mesmo tempo, que era capaz de percorrer longas distâncias, como se voasse. Depois de algum tempo, quando já parecia ter mais domínio do que poderia fazer, fui atraído para uma abertura e para lá me dirigi imediatamente. Não tive dificuldade para reconhecer que era uma espécie de túnel que poderia me levar para mais longe. Depois de deixar o hospital encontrei o livro sobre o Universo e encontrei uma descrição que me fez lembrar esse lugar – tratava-se da chamada ponte de Einstein-Rosen. Durante todo o tempo em que estive experimentando a sensação de flutuar, eu não sentia meu corpo, mas sabia que era eu mesmo que estava ali. A sensação de flutuar e de me movimentar muito rapidamente durante todo o tempo era extremamente agradável. Tive também a sensação de conhecer tudo, sem precisar indagar – se bem que não tinha a quem, porque não via ninguém por perto. Eu apenas sentia que devia seguir em direção ao túnel. Ele parecia servir de ligação para outro mundo ou universo paralelo, ou pelo menos assim eu entendia. Sem sentir medo, o que me parece agora muito estranho, cheguei à abertura do túnel e verifiquei que era imensamente grande. Foi a mesma sensação que tive quando era muito pequeno e vi o mar pela primeira vez. Eu simplesmente deslizei até atingir o outro lado. Não sei explicar o que vi, porque só enxergava vultos e uma claridade que acalmava meus sentidos, que, por sinal, eram agora todos desnecessários, porque eu enxergava sem olhar, de modo que podia ver de lado, de costas, para cima e para baixo, como se houvesse outras dimensões nesse universo paralelo.
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Aos poucos percebi que minha dificuldade de enxergar os vultos além daquela luz difusa era porque meu cérebro ainda não distinguia as outras cores do espectro não visível a que estivera acostumado. Eu não sentia nada – nem fome, nem sede, nem frio, nem calor, nem medo. Não ouvia nada, mas sabia que todas as informações de que necessitava estavam sendo registradas em algum lugar da minha mente. Por algum motivo, eu sabia que não deveria ou não poderia fazer contato com os vultos ou seres que habitavam aquele local. Não sei novamente explicar, mas não se tratava de um local específico: nem sei dizer se era um espaço, porque não parecia com nada dos espaços que eu conhecia do meu mundo real ou do meu mundo estranhado. Não sei quanto tempo permaneci ali. Sei apenas que, num dado momento, senti necessidade de retornar – e quase que imediatamente atravessei o túnel e me achei, dessa vez, no quarto do hospital. Até hoje, sinto que se me esforçar e concentrar meus pensamentos naquela região do cérebro, poderei fazer outra viagem, mas já tenho problemas de sobra com que lidar. Sempre achei difícil me apegar às pessoas porque, de repente, elas me parecem distantes, como se fossem desconhecidas, ou vindas de um país de língua completamente diferente de tudo que conheço. Às vezes elas falam, mas não ouço nada além de um barulho de frases sem sentido, pelo menos para mim. Esses sentimentos talvez expliquem minha dificuldade de fazer contatos quando tive o acidente. Mas o pior de todos os estranhamentos é o que me aconteceu há mais ou menos um ano, e que me preocupa mais (e esse foi o principal motivo para procurar a terapia). Tudo começou quando vi uma pessoa sendo atropelada em um cruzamento de uma cidade onde realizei um trabalho. Uma ambulância apareceu
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como que de repente, e nunca fiquei sabendo o destino da pessoa atropelada, mas não me saiu da cabeça que ela poderia ter morrido – e assim, tudo que ela planejou para dali a algumas horas, ou alguns dias, ou algumas semanas, meses ou anos, virou fumaça, desapareceu. Passei então a pensar mais sobre o tempo e concluí que a maior parte dele e a que seguramente existe é o passado. O presente e o futuro acabam sendo engolidos pelo passado. Quando o futuro chega, vira presente, e no mesmo instante, já é passado. Vou explicar, da forma que expliquei ao meu analista, porque o deixei confuso com esses pensamentos; se decido fazer café, estou planejando algo no futuro. Em seguida, coloco água para ferver, filtro o pó de café, coloco a bebida numa xícara e bebo. Nesse momento, a decisão de fazer café, colocar a água para ferver, etc. já são coisas do passado. Eu iria tomar um café, no futuro, mas quando acabo de tomá-lo, o futuro já se tornou presente e quando ponho a xícara vazia no pires, vira tudo coisa do passado. O presente e o futuro então se tornam tão fugazes que mal existem. O pior de tudo é quando sonho. Vejo sempre as imagens do passado como uma onda gigante, como um tsunami, que se aproxima e engole tudo que vê pela frente. O presente vem como a onda de uma piscina, lenta e fugaz, e o futuro é irreconhecível. Eu não vejo o futuro. Do passado surgem personagens e imagens de locais que eu mal reconheço, mas sei que são meu passado. Reconheço aquele menino, aquele rapaz, como eu. Sei com certeza que eles sou eu, mas não sou eu, hoje, exatamente. Acordo quase sempre cansado com esses sonhos – e fico me perguntando se aquelas pessoas que eu fui, no passado, têm algo a ver comigo, no presente, ou terão algo comigo no futuro. Muitas vezes, quando me revejo criança, adolescente ou adulto jovem, é
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como se fosse um filme – e que aqueles são personagens, completamente diferentes de mim. Então concluo que cada pessoa só é ela no presente – as demais são personagens que vão se acumulando no passado. E qualquer ponto do presente é só uma imagem, como uma foto que arquivamos num álbum. Sendo assim, sinto vontade de concluir que quando me sinto estranho, não tenho problema nenhum: eu só sou eu mesmo por alguns segundos. Então me pergunto: quando sou eu? E não sei responder. O terapeuta também não tem respostas, ele somente estranha porque não me pergunto quem sou. Mas isso não me surpreende mais, porque sinto que estou no caminho da cura.
O mausoléu Ela cresceu no subúrbio e aos 14 anos começou a trabalhar como doméstica numa casa de família onde sua mãe, viúva, também trabalhara enquanto tinha saúde. Sua mãe lhe explicou antes como proceder para conviver da melhor forma com os patrões, de modo que não teve dificuldades para se adaptar ao regime da casa. Ainda assim, ouviu com atenção os vários ensinamentos sobre os horários e os gostos da família ditados pela patroa, que lhe mostrou, aos poucos, como organizar o cardápio, que era baseado nas verduras e legumes da época, por serem mais baratos, e como preparar diferentes pratos com carne moída de segunda. Na Semana Santa comiam sardinha todos os dias, exceto na sexta-feira santa, quando comiam bacalhoada com muita batata e pouco bacalhau. No restante do ano, salvo os dias de aniversário e Natal, o cardápio era praticamente o mesmo.
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Quanto aos horários, a patroa lhe explicou que o café da manhã seria servido sempre às sete horas. O almoço às 12h15 e o jantar às 18h25. Tudo era arranjado para que o patrão estivesse pronto e saciado para ver os noticiários da TV. Depois das refeições, ele se sentava em sua poltrona, que ninguém mais tinha o direito de ocupar. Sua única ação era mudar os canais da TV com o controle remoto. Por mania, lia os jornais do dia e jogava os cadernos no chão, mas ela só poderia juntar esses jornais depois que ele se retirasse. Para concluir seu aprendizado, a patroa lhe ensinou que ela jamais faria alguma coisa por conta própria, ou sem ser solicitada. Essa seria uma regra de ouro a ser seguida, para o bom entendimento entre todos. Os patrões lhe pagavam em dia, e ela dormia no trabalho, de modo que podia economizar praticamente quase todo o seu salário. Os patrões tinham algum dinheiro, mas faziam economia para tudo, especialmente para a compra de alimentos e manutenção da casa, de modo que ela aprendeu a aproveitar todas as sobras e a gastar o mínimo de material de limpeza e higiene. Todo o dinheiro que economizavam o patrão depositava na poupança para construir um mausoléu, onde ele, a mulher e os filhos e suas famílias seriam sepultados. Além da casa, esta seria a herança que deixariam para os filhos que, por sinal, raramente os visitavam. Quando os aniversários coincidiam com dias de semana, os filhos telefonavam e se desculpavam por terem compromissos de trabalho de última hora. Ou apareciam com um bolo e refrigerantes na hora do jantar. No Natal, outra data de visita, chegavam pouco antes do meio-dia, trazendo o almoço pronto, encomendado na padaria. No dia 31 de dezembro telefonavam para desejar saúde e felicidades no Ano-Novo.
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O patrão a tratava com desdém e superioridade. Jamais lhe dirigia a palavra a não ser que fosse estritamente necessário. A mulher a tratava sem demonstrar nenhum afeto ou confiança, mas com um tipo de respeito que garantia a distância adequada entre ambas. Raramente conversavam além do necessário para manter a rotina da casa. Ela folgava nas tardes de sábado e domingos, mas depois que sua mãe se mudou para uma cidade do interior, não tinha opções e terminava trabalhando também nos dias de folga. A mãe vendeu o barracão onde morava e, como na cidade grande os imóveis eram mais valorizados, com o dinheiro pôde comprar uma pequena casa no interior. Quando menos esperava, se deu conta de que estava completando 34 anos. Nunca havia comemorado um aniversário, ou tivera amigos ou namorado, ou saíra para se divertir. Quando estava de folga, ia até uma sorveteria próxima e comprava sorvete de chocolate, ou fazia um lanche diferente na padaria. Pouco depois do seu 34º aniversário, a patroa adoeceu, foi hospitalizada e pouco antes de morrer lhe pediu para permanecer com o patrão até a morte dele. A patroa foi enterrada com alguma pompa no mausoléu da família. Depois disso, ela ficou sozinha na casa com o patrão, que continuou a tratá-la da mesma forma de antes da viuvez. Com os filhos ele reclamava dos gastos com o funeral da mulher, e repetia que estava deixando a casa e o mausoléu da família como herança. Passaram-se mais seis anos, e ela continuou trabalhando na casa. Jamais relaxou uma única vez com as recomendações que recebera 26 anos antes. Um dia, depois de servir o café da manhã, lavar a louça, arrumar as camas e dobrar e guardar lençóis, limpar a casa, depositar o lixo na lixeira e perguntar pela terceira vez se o patrão precisava de algo, saiu, avisando que iria ao mercado. Foi à
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Rodoviária e comprou passagens de ida e volta para a cidade onde sua mãe agora residia, para lhe fazer uma visita. Voltou para casa a tempo de preparar o almoço e de servir a mesa pontualmente às 12h15. O homem almoçou, sentou-se em sua poltrona, disse-lhe para trazer os jornais do dia e deixá-los ao seu alcance e ligou o televisor. Ela terminou de arrumar a cozinha, descartou o lixo, passou ferro em toda a roupa lavada, depois foi até seu quarto, fechou a mala, fechou a porta do quarto e deixou a chave em cima da mesa da cozinha. Guardou a louça, pôs a toalha e o pano de prato para secar no varal, jogou água nas plantas e voltou para pegar a mala. Ia sair pela porta da cozinha, mas desistiu e decidiu sair pela porta da frente. Ao passar pela sala, decidiu que não daria atenção caso ele reclamasse de sua ousadia. Ao contrário do que esperava, ele estava em silêncio. Sua cabeça estava tombada e parecia não respirar. Ela se aproximou e viu que de sua boca descia um líquido escuro. Tocou em seu ombro, com receio de ser repreendida, e viu, então, que ele estava morto. Telefonou para os filhos dele, mas nenhum tinha tempo para atendê-la. Deixou recado avisando que o pai deles parecia muito doente, para não assustá-los. E explicou que estava indo embora. Esperou e nenhuma ligação recebeu. Mas avaliou que cumprira sua promessa de ficar com o patrão até ele morrer e se sentiu tranquila. Minha missão terminou aqui, pensou. Tenho que pegar meu ônibus, senão perco a passagem. Não tinha muito tempo para pensar, e não queria pensar muito, então fechou as janelas, baixou as cortinas, fechou a porta da frente e jogou a chave por baixo da porta. Como estava atrasada e a mala pesava, decidiu pegar um táxi. Antes, tirou da bolsa a passagem de volta, amassou-a e jogou
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o amassado na lixeira. Acanhada e sem prática, disse ao motorista: me leve até a Estação Rodoviária, por favor.
O rapaz que não se gostava Eles se apaixonaram logo que se conheceram: o típico amor à primeira vista. Ela o achava um pouco estranho, mas ele tinha tantas qualidades que essa estranheza facilmente se perdoava, e ela pensava que, afinal, todo mundo é meio estranho. No começo ele era muito formal, pedia desculpas por qualquer coisa, agradecia por tudo, era equilibrado com as finanças, embora, de vez em quando, lhe comprasse um presente sem motivo, e era sempre gentil. Com o passar do tempo, ficaram mais à vontade na presença um do outro: trocavam segredos e conversavam sobre tudo sem reservas. Viviam juntos em um pequeno apartamento, e eram felizes e bons companheiros. Quando atingiram o grau de intimidade em que já não fechavam a porta do banheiro, ele entrou em um ciclo de esquisitices que ela ainda considerava aceitáveis. Ela se justificava para si mesma porque também tinha suas manias. Uma delas era não comer fruta com semente na frente dos outros, mesmo diante dele. Para isso, tinha que se trancar no quarto ou no banheiro, ou comia quando estava sozinha em casa. E ele não parecia se incomodar com isso. Um dia, sem motivo aparente, ele disse que não gostava do bairro onde moravam. Ela perguntou o porquê, e ele retrucou que apenas não gostava, que deveriam se mudar, e assim o fizeram. Após algumas semanas, quando tudo parecia ter se acomodado, ele disse que não gostava da padaria que ficava a poucos metros
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do novo apartamento. Passaram a comprar pão noutra padaria, a três quarteirões. Daí se seguiram vários “não gosto”: da farmácia, da lavanderia, do estacionamento. Para cada caso, havia sempre uma solução, embora desconfortável. Ela ainda considerava essas atitudes aceitáveis, porque atribuía tudo à fase de adaptação ao novo bairro. Em um momento, que ela não identificou de imediato, ele passou a não gostar do próprio corpo. Um dia, disse que não gostava do nariz. Ela retrucou que seu nariz era normal. Parecia nariz de intelectual, ligeiramente adunco, mas charmoso, acrescentou. Ele retrucou que merecia um nariz de Brad Pitt. Ela disse que o nariz de Brad Pitt não era essas coisas, e depois poderia ser tudo efeito de maquiagem ou de retoque de foto das revistas e jornais e até mesmo dos filmes. Mas ele foi inflexível e fez uma cirurgia no nariz. Passado algum tempo da cirurgia de nariz, ele disse que não gostava de suas (dele) coxas. Disse que merecia coxas de goleiro de futebol. Ela perguntou se essa era uma exigência para goleiros. Exigência não é, ele respondeu, mas você nunca verá um goleiro com coxas feias: faz parte da natureza deles. Ele entrou para uma academia e até contratou um personal trainer para ajudá-lo a transformar suas coxas em coxas de goleiro. Ela observou que, enquanto duravam esses períodos de exercícios, ele não implicava com mais nada. Alguns meses depois de obter os resultados que julgou aceitáveis para suas coxas, ele passou a reclamar dos dentes. Não adiantou ela dizer que seus dentes eram perfeitos. Ele consultou vários dentistas, até que um deles encontrou uma pequena falha nos molares, que poderia ser corrigida com aparelho ortodôntico.
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Passadas algumas semanas da alta do ortodontista, ele disse que não gostava das suas orelhas, que ele considerava serem muito alongadas. Não demorou e a cirurgia para correção das orelhas foi marcada. Nesse ponto, ela começou a se irritar e a se perguntar o que havia de errado com ele. Mas era difícil tomar uma decisão porque as fases do “não gosto” se intercalavam com períodos de tranquilidade e afeto, e ela quase chegava a esquecer, até surgir uma nova fase. Depois de consertar as orelhas, passaram-se alguns meses de tranquilidade, até que ele informou que não gostava da barriga e que merecia uma barriga de tanquinho, igual à do Rodrigo Santoro. Mostrou-lhe até uma foto para confirmar o fato. Dito isso, voltou para a academia e para o personal trainer. Depois da barriga foi a vez dos braços (ele merecia braços de boxeador). O que a fez tomar a decisão de se separar foi quando ele disse que não gostava do seu pênis: era um pouco encurvado, com um ligeiro desvio para a direita. Ele disse que merecia um pênis igual ao do personal trainer.
Reencontro Estavam sentados num bar há minutos que passavam lentamente, como se fossem horas. Haviam combinado por telefone de se encontrar para falar dos velhos tempos, recordar o que não lembravam e, sobretudo, se atualizar sobre suas vidas. Foram amigos de infância e só guardavam lembranças daquela época. Já na adolescência, estudaram alguns anos no mesmo colégio, mas um deles mudou de cidade e não se viram mais. Suas mães
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continuaram amigas, e se correspondiam. No início, com frequência, depois só na época do Natal, quando trocavam cartões de boas-festas. Já não tinham certeza nem das respectivas datas de aniversário, e por isso não tinham como manter-se informadas uma da outra. Eles foram ao encontro por pressão das esposas, que por acaso se conheceram numa festa e depois de conversar bastante descobriram que tinham esse algo em comum. Segundo elas, precisavam reativar a amizade, porque era difícil para cada um encontrar novos amigos no ambiente quase hostil do trabalho. Um deles era engenheiro, o outro biólogo. Seguiram caminhos parecidos, ambos trabalhando para o governo, em repartições diferentes. Pois é, dizia um deles. Pois é, respondia o outro. Quantos filhos você tem. Tenho dois, e você. Tenho três. Já são crescidos. Parecem comigo, mas o gênio é da mãe. Os meus também são assim. Pausa. Outra pausa. Uma cerveja. Não, prefiro vinho. Tentaram de tudo: futebol foi a primeira tentativa, mas um deles não distinguia o Flamengo do Fluminense, ou o São Paulo do Santos, nem sequer sabia as cores desses times. A conversa morreu. Tentaram religião, mas nenhum assunto continuou, visto que os dois seguiam as esposas nos batizados e nos casamentos, e só. Tentaram política, mas não tinham argumentos para iniciar qualquer comentário. Um não gostava de massas, o outro preferia macarrão a qualquer prato de arroz e feijão. Um adorava feijoada, o outro detestava carne de porco. Se fossem a um pastoril, um certamente seria do vermelho, o outro do azul. Prometeram encontrar-se qualquer dia. Não trocaram número de telefone, nem de celular, nem e-mail. Cada um pensava que o encontro havia sido pura perda de tempo. Demoraram alguns segundos para se desejarem felicidades, abraços nas esposas,
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votos de sucesso e um abraço de longe. Um seguiu para a direita, o outro para a esquerda. Caminharam a passos largos; por pouco não saíram correndo. Já fora do alcance da visão um do outro, pareceu que um cisco caiu no olho de cada um deles, porque seus olhos estavam marejando. Disfarçadamente, cada um enxugou o canto do olho. Nunca mais se encontraram.
Sem assunto Já não tinham assuntos para conversar. Quando o silêncio incomodava, falavam, em monossílabos, sem esperar resposta do outro, sobre assuntos neutros como a previsão do tempo, a sujeira da rua, ou a fraca programação da televisão aberta. Muitas vezes os dois ficavam sentados em frente ao televisor, como que paralisados, a fitar o aparelho, enquanto aguardavam o início de um novo programa. Nem se davam ao trabalho de mudar de canal. Já não lembravam em que ano haviam casado. Para ele, o amor começou a acabar logo depois da lua de mel, e isso ocorrera fazia tanto tempo que não tinha certeza se realmente ele era aquela pessoa. Para ela, acabara bem antes, talvez logo depois de saírem da igreja, quando ele comentou algo sobre a cerimônia que ela tinha se esmerado em organizar com a ajuda de uma prima. Naqueles momentos, ambos tinham a esperança de que seria uma fase, um fato corriqueiro que deveria acontecer com outros casais enquanto ainda estavam se conhecendo e se ajustando à nova vida. Mas o tempo passou e não trouxe mudanças. Eles mais pareciam dois estranhos que se tratavam com polidez. Os parentes aos poucos se afastaram, mas para eles isso passou a ter pouca importância.
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Nos primeiros anos de casados fizeram algumas viagens. No verão dos primeiros anos iam à praia, mas ele reclamava da areia que entranhava nos dedos, e não suportava nem o calor, nem o sol, nem as crianças correndo e salpicando água salgada ou areia nas suas costas. Decidiram mudar as férias para o inverno e ir para um lugar de montanha, mas ela achava tudo muito caro, a comida gordurosa e excessiva, os doces sem gosto, como se tivessem sido feitos a granel, o frio insuportável e os lugares interessantes sempre superlotados. Um ano tentaram uma excursão em um cruzeiro, com um grupo do trabalho, mas ora ele enjoava, ora ela achava coisas estranhas na comida e se recusava a comer, ora os colegas eram muito festeiros. Concluíram que estavam gastando dinheiro à toa, e que seria melhor passar as férias em casa. Assim, desistiram de viajar. A dedicação ao trabalho foi um paliativo para os dois. Passavam o dia inteiro em locais diferentes e só se encontravam à noite. Por causa do trabalho, decidiram não ter filhos. Ambos decidiram, sem comunicar um ao outro, como se combinassem que não valeria a pena estender o sofrimento para quem nada tinha a ver com seus erros. Ela pensava resignada: ele é a cruz que devo carregar. Ele pensava: ela é o inferno. E cada um dava seu jeito de evitar filhos. Economizaram e compraram um apartamento em um condomínio de classe média. Não tinham amigos, de modo que ninguém os conhecia na intimidade. Na imaginação dos vizinhos eles eram um casal maduro e feliz, embora um tanto esquisitos. Nos finais de semana iam ao cinema, porque era uma forma de ficar juntos, em silêncio, sem nenhuma obrigação de entabular conversa. Em casa, ela estava sempre atarefada e raramente encontrava tempo para coisas como preparar um café no meio
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da tarde. A rotina da cozinha era café da manhã, almoço e jantar. Nada mais. Ele saía para comprar o jornal e revistas semanais e ia até uma padaria próxima tomar expressos. Pedia um, depois outro e às vezes um terceiro. Sempre dizia para a balconista que sua mulher era excelente cozinheira, mas tinha um pecado que era o de não saber fazer café. De comum acordo acharam melhor dormir em quartos separados. Ela adoeceu. Não era nada, pensava, antes de falar com o marido. E escondeu a doença por vários meses. Melhorava um pouco, esquecia; piorava, lembrava que estava doente. Até que começou a sentir dores no corpo e tonturas e não teve como esconder mais. Foram ao médico. Alguns exames foram realizados, mas nada conclusivo. O médico recomendou que ela fizesse anotações dos sintomas, horários e outros detalhes para uma próxima consulta. Depois da visita ao médico, ela sentiu melhoras, de modo que ele achou que no fundo era tudo psicológico. Então não trataram mais do assunto e, talvez por ter se acostumado à doença, ela não valorizava os sintomas que eram cada vez mais frequentes. Um dia ela não se levantou da cama para preparar o café. Ele foi até a porta do quarto e, sem abri-la, perguntou se ela precisava de alguma coisa. Ela falou algo que soou como um resmungo. Ele não entendeu, mas não ficou surpreso nem preocupado. Achou que a mulher não queria se levantar por pura teimosia. Pensou que, na certa, ela se levantaria para cozinhar e comer algo, caso não estivesse fazendo isso durante a noite. No dia seguinte ele bateu novamente à porta do quarto e perguntou se ela estava bem. Ela novamente resmungou, agora com menos força. Ele tentou abrir a porta, mas estava fechada por dentro. Então pensou que
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nada tinha a fazer: ela que decidisse quando deveria se levantar, abrir a porta e voltar a cuidar da casa. No terceiro dia ela não se levantou, e ele não se deu ao trabalho de bater à porta. No quarto dia não ouviu mais nada. Ele não sabia cozinhar, e depois de aquecer as sobras que havia na geladeira, passou a fazer lanches na padaria ou num restaurante perto de casa. A moça da padaria lhe perguntou pela mulher, curiosa por vê-lo fazendo as refeições fora de casa. Ele respondeu que a mulher estava bem: passava a maior parte do tempo no quarto. Os vizinhos avisaram ao síndico do prédio que havia um cheiro muito forte vindo do apartamento deles. O síndico, homem experiente, desconfiou e chamou a polícia. Como ninguém atendia à porta, os policiais a derrubaram e entraram no apartamento. Encontraram o homem desmaiado, sentado na poltrona em frente ao televisor ligado. Do quarto vinha um cheiro fortíssimo de corpo em decomposição avançada. Em depoimento à polícia, já se recuperando no hospital, ele explicou que havia se acostumado ao silêncio da mulher, e não entendia por que ela não abria a porta do quarto e voltava a cuidar da casa. Um policial lhe perguntou se tinha parentes para avisar. Ele respondeu que seu único parente era a mulher, que havia se trancado no quarto e parecia estar fazendo greve de fome, ou simplesmente não queria mais falar com ele. Mesmo assim, ele queria voltar para casa, pois tinha certeza de que ela o esperava.
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Velhice (Cenário: portaria de um edifício). — Será que eu fechei a porta direito? — É melhor voltar e checar. — Também não lembro se desliguei o forno. Acho que vou checar isso também. — Vá, mas não se esqueça de desligar a luz da cozinha. — Você tá com minha chave? — Não, estou com a minha, veja se a sua está no bolso da calça. — Mas essa minha calça não tem bolso... — Então aproveita e troca de calça, porque é mais seguro carregar carteira e documentos no bolso. Ou então você vai esquecer de novo em algum balcão de loja. — Me empresta sua chave, porque acho que esqueci a minha. — Com uma condição – me devolve imediatamente. — Tá bom – não precisa ficar nervosa. — Eu não tô nervosa. Só não quero é ficar sem ter como entrar em casa como noutro dia. — Não foi minha culpa, é que eu não guardei o lugar que tínhamos combinado de deixar a chave... — Mas nós sempre deixamos a chave no mesmo lugar para não ter esse tipo de problema. — É, mas eu desconfiei que alguém já reparou que deixamos a chave debaixo do vaso. — Mas se você escolher outro lugar, deve me avisar imediatamente, porque senão ficamos na rua. — O sol está forte lá fora. Acho melhor voltar ao apartamento. — É impressão sua. Vá agora e volte logo, não podemos atrasar mais...
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Depois de 15 minutos, ele volta, com a mesma calça, e uma correspondência. — Veja só, era para lhe mostrar essa carta ontem e esqueci. — Podia ter deixado, eu leio quando voltarmos. É muito importante? — Não sei, não lembro onde deixei os óculos e não pude ler. Então vou levar de volta. — E a porta, ficou fechada? — Estava fechada, mas minha chave estava na fechadura pelo lado de fora. — E o fogão, verificou se estava desligado? — Ah...eu sabia que faltava alguma coisa. Tenho que voltar lá de novo. — Eu posso esperar, é melhor você cuidar disso com atenção, para não incendiar o apartamento e o prédio. — Eu já volto, a demora é porque o elevador está mais lento hoje. Passaram-se mais 10 minutos. Ele volta. — O forno estava desligado, mas a luz estava acesa. — A luz do forno? — Sim, e a luz da cozinha. — E agora você tem certeza que apagou todas as luzes? — Certeza, certeza, ninguém pode garantir, mas acho que apaguei a luz do forno e da cozinha. Só não me lembro de ter apagado a luz da sala. — Mas o que você foi fazer na sala? — Fui deixar a correspondência e depois fui ao quarto para trocar de calça. — Mas você continua com a mesma calça.
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— É que não achei a calça que eu queria com os bolsos mais seguros. — E onde você deixou sua carteira? — Ah, não é possível, acho que deixei junto com a correspondência. — Então vamos indo, que minha carteira está comigo. — Mas você não tem dinheiro suficiente, nem cartão, nem talão de cheque... — Então você volta, mas presta atenção para pegar sua carteira e voltar, sem tocar em mais nada. — Só vou precisar acender as luzes porque está meio escuro lá com as cortinas fechadas. — Então vá apagando as luzes enquanto for saindo. — É claro que faço isso sempre. — Está bem, eu fico aqui esperando sentada pra não cansar. Mas deixa minha bengala aqui perto, para o caso de precisar me levantar para ir ao banheiro. — Era isso que eu precisava dizer – também preciso ir ao banheiro. — É melhor ir lá em cima, esse daqui da portaria é só para emergências. Vá, vá andando. Mais quinze minutos. Ele volta. — Acho que está tudo em ordem. Desliguei as luzes, trouxe a chave, a carteira, e vesti a calça. Vamos mesmo para onde? (Baixa o pano correndo).
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Pombos: Na varanda, RENALDI FEITOSA BRITO prestes138 a se atirarem
Capítulo 3
Um olhar sobre o cotidiano
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A quem possa interessar Pense numa pessoa que só comeu carne de porco duas ou três vezes na vida, e quando o médico a proíbe de comer dessa carne, ela passa a reclamar e a desejar lombo ou pernil em todas as refeições. Pense numa pessoa que reclama que nunca tem nada para fazer. E quando lhe oferecem uma tarefa, reclama que trabalha demais. Pense numa pessoa que nunca vai à praia e quando o dermatologista prescreve não tomar sol, passa a desejar passar o dia inteiro tomando sol à beira-mar. Pense numa pessoa que reclama da seca, e quando é apanhada na chuva, sem guarda-chuva, reclama que está chovendo demais. Pense numa pessoa que só fala em emagrecer, mas quando vai num restaurante com preço fixo (tudo incluído), se serve da sobremesa em prato de sopa. Pense numa pessoa que ganha o mesmo que você, mas nunca tem dinheiro porque investe seu salário em cabeleireiro, manicure, pedicure, barzinhos, shows sertanejos e outras atrações, e quando você comenta que vai viajar nas férias, ela revira os olhos e praticamente acusa você de ser uma pessoa metida à besta. Pense numa pessoa que quando vai com um grupo a um restaurante consome várias doses de uísque importado enquanto espera os demais, pede para si o vinho mais caro, o prato mais caro, sobremesa, licor e café, mesmo quando não aguenta mais, e divide a conta igualmente com todos, mesmo sabendo que há pessoas no grupo que só comem salada e não consomem álcool.
Pense numa pessoa que pega dinheiro emprestado e nunca se lembra de pagar. E faz a mesma coisa com um livro ou disco seu e nunca se lembra de devolver. Pois eu declaro que não sou nenhuma delas.
Sobre ciência e tecnologia Sou curioso e apaixonado por ciência e tecnologia. Acredito que a maioria das pessoas também é assim. Normalmente, a gente se impressiona com as grandes descobertas nos mais diversos campos, das leis da física e da geometria e da medicina (vacinas, antibióticos, tratamentos avançados para as mais diversas doenças) até as áreas tecnológicas (forno micro-ondas, raio laser, computador, avião, televisão, rádio e internet). Li um livro que me ajudou a pensar de maneira diferente: nele são descritas as descobertas que facilitam e permitem que desfrutemos os confortos modernos. Afinal de contas, tudo que nos permite viver com segurança e conforto (fora a atmosfera, a água e coisas da natureza) foi criado ou inventado por milhares de gênios desconhecidos... e outros nem tanto. Essa “criação” inclui desde o cultivo de frutas, cereais e hortaliças e a domesticação de animais, até o barbante, os tecidos e os corantes, a cama e o colchão, a escova e o creme dental, o vaso sanitário (com a descarga e o sistema de esgoto), o garfo, a faca e a colher, as chaves e as fechaduras, o guarda-roupas, o fogão a gás (e o elétrico, e o fogão mais simples a carvão), o sapato, a sandália e o tênis, o aparelho de barbear, o liquidificador, o espremedor de frutas, a lata de conserva e o abridor de lata, o pão e o vinho,
a cerveja, o saca-rolhas. Enfim, qualquer coisa que a gente usa ou já ouviu falar é resultado do esforço e da perspicácia dos seres humanos. Gosto de pensar que qualquer pessoa hoje, com poucos recursos, vive melhor e com mais conforto (em muitos aspectos) que muitos reis e rainhas do passado. No tempo de Luiz XV, no Palácio de Versalhes, não havia vaso sanitário (com descarga e rede de esgoto), e as pessoas, até mesmo a Rainha da França, Maria Antonieta, faziam suas necessidades em penicos (que podiam até ser de ouro ou porcelana, como um que minha avó tinha em casa), mas eram penicos! Consta que os empregados recolhiam os penicos cheios (imagino o fedor), deixados nas portas dos quartos, apenas uma vez ou duas por semana. Incomodado (ainda bem!), o rei deu ordem para que os penicos fossem recolhidos mais vezes (esqueci quantas) por semana. Se bem que naquele tempo as pessoas deviam ser menos sensíveis a esses cheiros, porque onde todos fedem ninguém fede.
Sobre as várias maneiras de morrer Quando era criança, em Tabira, eu ouvia falar de morte morrida e morte matada, dependendo se o vivente morria de doença ou de faca-peixeira. Mais recentemente, ouço falar de morte anunciada – que é quando você acorda e sabe que ao ligar o rádio ou abrir o jornal, vai ficar sabendo de mais um desastre na BR 381, a Rodovia da Morte. Pois bem, entra governo e sai governo e essa rodovia continua matando mais do que muitas guerras por esse mundo afora. Pretensiosamente, copiando Zola, “eu acuso”
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Dilma Rousseff, Lula, Fernando Henrique Cardoso, Itamar Franco, Fernando Collor, Sarney e os presidentes anteriores, como cúmplices desses assassinatos. Igualmente acuso os inúmeros pretensiosos e incompetentes ministros dos transportes desses governos. O que não entendo é como tantos políticos fecham os olhos para essa importante ligação entre o Leste e o Oeste (Espírito Santo – Minas Gerais), e o Norte e o Sul (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e o Nordeste). (Sobre a irresponsabilidade e impunidade de motoristas fica para outra ocasião). Harry Truman é autor de uma frase famosa para explicar a diferença entre recessão e depressão econômica: recessão é quando seu vizinho perde o emprego, depressão é quando você perde o seu. Já que estou usando ideias dos outros, vou explicar, à minha maneira, a diferença entre calamidade e tragédia. Calamidade é quando você lê num jornal sobre mortes de pessoas desconhecidas num acidente ou num desmoronamento; depois de alguns segundos, a notícia vira uma estatística e você dorme tranquilo. Tragédia é quando a calamidade acontece com pessoas com quem você convive. Infelizmente, o que acontece na BR 381, para todos nós, há muito deixou de ser um dado estatístico e virou uma tragédia diária. Deveriam ser acusados também todos os que criaram e mantêm as leis de trânsito que protegem motoristas irresponsáveis e criminosos. Desconfio que quando foram elaboradas, essas leis tinham como meta proteger os poucos (somente os ricos) proprietários de veículos, para o caso de se envolverem em acidentes. Está mais do que na hora de essas leis serem revistas. Motoristas irresponsáveis matam e destroem patrimônios de inocentes e não acontece nada. A propósito, na Pensilvânia, e não sei se nos demais estados dos EUA, dirigir veículos não é um direito das
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pessoas. É um privilégio concedido pelo Estado, que pode cessar o privilégio com muito mais facilidade. Aqui no Brasil temos o costume de exigir nossos “direitos”, até o direito de matar, sabendo que sairemos ilesos, e nunca discutimos suficientemente nossos deveres. Quem já participou de reuniões, desde as assembleias organizadas pelos sindicatos até as reuniões de condomínios ou qualquer outra, sabe do que estou falando.
As dores de ser pai Fala-se muito, e com razão, das dores, alegrias, desapegos, apegos, comprometimentos, amor incondicional e outros tantos sentimentos maternos. Pouco se fala da dor de ser pai. Há dor em ser pai também. Lembro sem saudade quando levava Pedro e Francisco para serem vacinados no posto de saúde, em Concórdia (SC). Eu me sentia um carrasco, apesar de estar chorando por dentro, enquanto os segurava para que a enfermeira injetasse as vacinas. Espero que hoje em dia as vacinações em humanos bebês tenham evoluído como acontece na avicultura. Não há sofrimento: os pintinhos são vacinados, ainda no ovo, contra mais de 30 doenças, a maioria causada por vírus. O sofrimento não acaba com as vacinações. Continua pela vida afora: quando eles começam a sair de casa, “sozinhos”, adolescentes e imaturos (na cabeça da gente). Depois, quando escolhem estudar noutra cidade, ou quando saem para estudar noutro país. Não adianta pensar que eles são adultos e que esse caminho foi o mesmo que a gente seguiu. Eu me sinto como o pai de
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minha amiga, Maria Clara, que argumentava para os filhos: vocês podem ter 30 anos, mas ainda são 30 anos mais novos do que eu! O pior de ser pai é não poder chantagear os filhos como as mães fazem com a frase que justifica tudo: mãe é mãe! (dita sempre com a maior candura). Dá para avaliar o ridículo da frase “pai é pai”? Para os que querem se divertir e se aprofundar nesse assunto há um livro engraçadíssimo: Como enlouquecer sua mãe de Sonia Rodrigues Mota (filha de Nelson Rodrigues; aqui dá pra dizer: pai é pai!). Como enlouquecer sua mãe é definido como “um manual indispensável para quem quer se aprimorar na arte de esgotar a paciência materna”.
Sobre o significado do tempo Uma das coisas que mais me intrigam é o significado do tempo. Não me refiro ao tempo dos calendários e dos relógios, porque esse “tempo” foi criado arbitrariamente pelo homem – e estou certo de que, caso houvesse habitantes em outro planeta (por exemplo, Júpiter), o tempo lá não seria exatamente como na terra – certamente um ano duraria mais, os dias seriam mais longos e não haveria como comparar nossas idades como habitantes da Terra com as dos habitantes de Júpiter, assim como de nenhum outro planeta. A gente pode verificar diferenças nos dias até aqui no nosso belo mundo. Para quem vive perto dos trópicos, os dias e as noites duram em torno de 12 horas cada um. À medida que nos aproximamos dos polos (e nos distanciamos dos trópicos), os dias e
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as noites têm duração variável (dias mais longos no verão, noites mais longas no inverno). O que tenho imensa dificuldade de entender é pensar que antes do Big Bang não havia tempo (então, não se pode falar de antes do Big Bang, só de depois): o tempo teria “nascido” com o Big Bang. Agora, se o tempo nasceu, ele pode um dia acabar. Quando acontecerá isso, é minha curiosidade maior, mas sei que não estarei aqui para ver. Meu consolo é que poderei estar noutro lugar onde o tempo e o espaço não são os mesmos deste nosso universo. E que esses mistérios científicos serão desvendados para qualquer um e não apenas para gente como Einstein e Stephen Hawking. Desconfio que um dia será possível enxergar, através de um potente telescópio, o momento exato da grande explosão que deu origem ao nosso universo. Certamente acontecerá um paradoxo (aquela história de que se alguém pudesse viajar no tempo, não poderia se encontrar com ele mesmo no passado, porque isso geraria um paradoxo). Minha curiosidade é saber o que aconteceria caso o telescópio continuasse funcionando (e transmitindo) até 1 segundo antes da grande explosão, isto é, caso não aconteça um evento diferente. Li em algum lugar que já se conseguiu visualizar como era o universo até um pouco menos de 400 milhões de anos depois do Big Bang, que supostamente aconteceu há cerca de 14 bilhões de anos. Estamos muito perto.
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Da dor de ser brasileiro Detesto generalizações para descrever um povo, uma cidade, uma região ou um país. Quando alguém me diz que “todo pernambucano é simpático”, fico me remoendo por dentro tentando entender o que fiz de errado, e meu desconfiômetro entra em ação. Quando alguém escreve que todo brasileiro é babaca, ladrão, aproveitador, desonesto ou safado, penso que essa pessoa só conhece, e mal, o bairro onde mora. Somos parte da humanidade e temos em comum a natureza humana, com defeitos e qualidades. Tanto na África como na Suíça há pessoas inteligentes e pessoas burras, e também há pessoas preguiçosas, arteiras, criativas ou desonestas. Ninguém é bonzinho por ser moçambicano, ou talentoso por ser alemão. Tanto em Havana quanto em Londres, Chicago, La Paz ou Paris, há pessoas boas e pessoas mal-intencionadas. Pode haver mais pobreza ou mais gente rica ou mal-educada em um ou outro lugar. Quando moramos na Filadélfia, fomos avisados para não fazer compras em determinados locais e evitar pegar o trem em determinados horários à noite, porque era perigoso. Nem por isso me passou pela cabeça achar que a Filadélfia era uma cidade de bandidos, nem de achar o oposto – que isso era bobeira porque estava morando no país mais rico do mundo. Há muita gente folgada ou sem caráter que joga lixo na calçada, que não respeita as leis de trânsito, nem as filas, que se aproveita para comer frutas no supermercado sem pagar (e sem lavar), mas isso não significa que toda a populaçao é assim. Devo contar, entre parentes, amigos e conhecidos, mais de mil pessoas. Certamente, há umas dez (ou um pouco mais) pessoas desse grupo de quem já
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ouvi falar alguma coisa ruim. Mas a grande maioria (talvez entre 95% e 99%) dessas pessoas trabalha, se esforça, é honesta. Elas talvez sejam, como eu, com maior ou menor frequência, acometidas de chatice, preguiça, gula e outros pecados capitais, mas essas são características que vêm no pacote que nos acompanha ao nascer. Senão seríamos todos iguais à Madre Tereza, e o mundo não teria a menor graça. Pode perguntar à minha mulher: tem dia que nem eu me aguento.
O homem e os vulcões Apesar de tudo, continuo achando, como Anne Frank, que os seres humanos são bons, e são tão bons quanto os demais animais. Mas rebaixar ou comparar homens e mulheres aos demais animais (em termos de malefícios que causam) é, no mínimo, intrigante. Prefiro acreditar que os seres humanos, em sua enorme maioria (não aceito menos que 99%), sejam do bem. Comparando com a natureza, ou seja, com o nosso planeta, somos todos bonzinhos. Só para citar um exemplo: atividade vulcânica. É só verificar os dados da destruição que os vulcões já causaram e continuarão causando, e sem aviso prévio. Existem milhares de vulcões na terra e, felizmente, as últimas grandes erupções ocorreram há bastante tempo, mas não muito para nos deixar tranquilos. A última grande erupção foi a do vulcão Krakatoa, na Indonésia, ocorrida em 1883. Essa erupção produziu um estrondo que reverberou ao redor do mundo por nove dias, agitando as águas até o canal da Mancha. E foi bem menor que outras anteriormente observadas em várias regiões do
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mundo. A erupção do Yellowstone, nos EUA, de 2 milhões de anos atrás, expeliu cinzas suficientes para soterrar o Estado de Nova Iorque a uma profundidade de 20 metros, ou a Califórnia, a uma profundidade de seis metros. Como é de se imaginar, tudo isso representa morte da flora, da fauna e alterações importantes no meio ambiente. Prefiro pensar que a maior parte da humanidade está ocupada produzindo alimentos, computadores, medicamentos, vacinas, ou seja, descobrindo meios de prolongar a vida do homem e dos animais; fazendo música, teatro e cinema, pintando e escrevendo, se emocionando e emocionando. Sou veterinário e, mesmo gostando dos animais, jamais darei uma de general Figueiredo, que preferia o cheiro dos seus cavalos ao cheiro do povo.
Pontualidade britânica Sempre tive birra com o descaso de certas pessoas em cumprir horários. Fico irritado, de mau humor e nervoso quando alguém combina algo para um horário e só chega, com a cara mais lavada, duas horas depois. Tudo desculpado com o jeitinho brasileiro. Não entendo por que a TV continua mostrando candidatos chegando atrasados nos locais de prova do Enem, vestibulares ou concursos, como se fosse culpa dos organizadores do evento não esperar mais uns minutinhos (desconfio que esse diminutivo não deva ser comum em outras línguas). Por isso me fascina a versão britânica para a nossa falta de pontualidade. Um dia um inglês me explicou como funcionava. Quando convidadas para um jantar, por exemplo, as pessoas
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chegam na hora marcada, ou antes, de preferência, mas não se anunciam, ou batem à porta. Dão dez minutos de acréscimo para a dona ou o dono da casa terminar os últimos preparativos, e só então tocam a campainha. Fiquei imaginando que se isso acontece com todo mundo, seria melhor marcar o jantar sempre para dez minutos depois do horário pretendido. Outra mania dos ingleses é agendar tudo. Meu orientador mantinha uma agenda de dois anos, pelo menos. Se alguém o convidasse para uma reunião para dali a 16 ou 20 meses, ele já colocava isso na agenda – e não se falava mais nisso. Naquele dia, naquele horário, ele certamente estaria no local combinado. Ninguém se atreveria a marcar uma reunião para “logo mais, depois do almoço” ou para o dia seguinte. Certamente poucos iriam, porque suas agendas estariam cheias de compromissos, nem que fosse para tomar um café com um colega na cafeteria. Se esse café estivesse agendado, nada alteraria o programa. A pontualidade era levada a sério até para as festas de aniversário das crianças: no convite constava o horário de início e de término da festa – nunca mais que duas horas de duração. Não sei se ainda é assim, afinal esses fatos aconteceram há quase 40 anos, e o mundo deu muitas voltas. Pode até ser que o jeitinho brasileiro esteja sendo exportado.
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Manias À medida que o tempo passa, vamos acumulando manias. Uma das minhas é carregar sempre um livro quando viajo, ou vou ao médico, ao dentista, ao correio, ao banco. É como um amuleto. Não fico com remorso de estar desperdiçando meu tempo, e às vezes descubro coisas interessantes na leitura fora de hora. Penso nisso quando vejo as notícias que estradas ou vias públicas estão sendo bloqueadas por várias horas por manifestantes que ignoram o direito de ir e vir das pessoas que precisam trabalhar, estudar ou simplesmente vadiar. Deve ser desesperador ficar preso no trânsito, sem ter nada para fazer. Há pessoas que têm facilidade para puxar conversa e passar horas se divertindo na companhia de desconhecidos, não é o meu caso. Uma solução simples para quem não tem um livro (ou cansou de ouvir rádio) seria se concentrar no Poeminha do Contra, de Mário Quintana: Todos estes que aí estão Atravancando o meu caminho Eles passarão. Eu passarinho!
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Geni-fé Quando ouço jornalistas e economistas usarem o termo “apreciar” querendo dizer “valorizar” sinto arrepios. Sinto minhas tripas bulindo toda vez que esses serviços de intrusão na vida privada ligam aqui para casa para vender assinaturas ou cartões de crédito ou assinaturas de TV a cabo, e os vendedores me dizem que “vão estar me telefonando” noutro momento. Acho patético quem constrói e quem compra apartamentos em edifícios com nomes franceses (ou ingleses) e que não sabem sequer pronunciar o nome, mas acreditam que estão se tornando sofisticados. Estamos assistindo e ouvindo uma empresa em Juiz de Fora lançando um conjunto de edifícios chamado Le Quartier. Deve ser o símbolo máximo de sofisticação para alguns, só que o garoto-propaganda (se ainda são chamados assim, não sei) pronuncia Quar-tier como quem pronuncia quar-to. É como dar o nome de Jennifer à filha e chamá-la de Geni-fé.
Arrogância e hipocrisia Minha definição de arrogância: defender algo que me interessa pessoalmente e colocar no cartaz que estou falando em nome do povo brasileiro. Minha definição de hipocrisia: ganhar mais de 30 mil reais por mês, ter direito a carro com motorista, apartamento funcional de 300 m2, passagens de avião de graça, três meses de férias por ano, etc. (tudo por conta da Viúva) e afirmar candidamente que “o Brasil é o país dos privilégios, que são internalizados
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como se fosse a coisa mais natural do mundo”. Ganha um doce quem acertar o autor da frase.
O que não se aprende na escola A gente aprende muitas coisas na escola, do primário à universidade, mas nosso grande aprendizado se dá nas ruas, em casa, nas viagens, nos hospitais, nos velórios, na igreja, nas lojas, nas repartições públicas, nas filas para qualquer coisa, nos restaurantes, nos cinemas. Nós aprendemos com os outros, mesmo que eles tenham menos anos de escola, sejam mais jovens ou mais humildes. Admiro pessoas que possuem habilidades manuais, mas eu, por mais que tente, não consigo fazer nada direito. Atividades como trocar uma lâmpada ou pregar um quadro na parede me deixam, literalmente, apavorado, e me exigem um planejamento como se fosse construir um edifício. Sempre que vejo pedreiros, eletricistas ou carpinteiros trabalhando, penso comigo que eles são bem abençoados. Se tivesse um curso para ensinar essas habilidades sem muito sofrimento, eu o faria, sob o risco de ser reprovado ou de nem passar pela seleção. Pensando melhor, às vezes acho que os eletricistas não são assim tão bem-aventurados. Estou com um serviço em casa interrompido há duas semanas. O eletricista veio, consertou uma luminária e prometeu voltar para arrumar uma tomada e um facheiro. Ele não voltou. Conviver com isso, infelizmente, a gente não aprende nem na escola, nem em lugar nenhum.
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A revolução dos estetoscópios Não falta muito para vivenciarmos a revolução dos estetoscópios ou dos medidores de pressão, a exemplo da Guerra dos Mascates e de outras revoltas que irromperam nos nossos tempos de colônia e após a Independência. Só que, desta vez, os que levarão o nome da revolta deverão assistir à guerra pela televisão, enquanto o povão se mata nas ruas. Quem anda pelo campus de qualquer universidade identifica facilmente os estudantes de Medicina: parece que antes de comprar o primeiro livro, eles investem num avental branco e num estetoscópio. Devidamente paramentados, desfilam pelas cantinas, pelos corredores e salas de aula. Agora, contratados para atender a população mais pobre, todos reclamam (está estampado nos jornais) que não têm a menor condição de atender pacientes porque faltam esses acessórios básicos (lembrei-me do pretinho básico, o vestido que toda mulher deveria ter. Já li ou ouvi isso em algum lugar). Seria pedir demais que médicos contratados por R$ 10 mil por mês usassem seus próprios estetoscópios e medidores de pressão, que julgo serem de uso individual, e que certamente têm em casa, enquanto os postos de saúde se equipam ou reequipam? Leio no Estado de Minas de hoje que faltam médicos em Itaúna, no Centro-Oeste de Minas. Itaúna tem 85 mil habitantes e, há seis anos, uma faculdade de Medicina particular, mas não tem médicos. Possui 16 unidades básicas de saúde, mas duas não contam com clínico geral. Algo muito estranho acontece com a proliferação de faculdades e universidades no Brasil. Parece-me que são criadas sem levar em conta as necessidades e particularidades das regiões. Há
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quase 200 faculdades de Veterinária – um número absurdo, se comparado a qualquer país do mundo. E isso deve ser válido para qualquer outra profissão. Mas, aparentemente, os conselhos de classe estão mais interessados em ampliar seu cadastro de profissionais. E não há uma discussão técnica para identificar onde e que tipo de ensino superior é necessário para atender às necessidades das regionais.
Posando pra foto Hoje de manhã presenciei uma cena singela e tocante. Perto de onde moro tem uma casa que acolhe e trata doentes mentais, muitos deles de municípios vizinhos, que vêm receber tratamento, em vans do SUS e das prefeituras. Quando me aproximei, vi que algumas pessoas estavam ao lado do veículo, sorridentes e posando para foto, como se estivessem em uma viagem de férias. O dia estava chuvoso, mas o sol tinha saído por uns instantes, e por isso valia a pena o registro. Admiro a inteligência de pessoas que conseguem enxergar motivos para serem felizes, mesmo tendo que conviver com uma realidade difícil. Tenho dó de pessoas birrentas, que só reclamam da vida. Mas o dó logo passa. Estou convicto de que somos os únicos responsáveis por nossos momentos de felicidade. Cada um de nós põe a felicidade onde quer. Se a colocamos num lugar inacessível, com premissas impossíveis, então passaremos a vida inteira como espectadores da felicidade alheia. Misericórdia e compaixão
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Desconfio que, às vezes, a gente não recebe uma graça, dada por Deus, por um santo de nossa devoção, ou por uma entidade em que a gente acredita porque a pedimos de maneira errada. Nos últimos dias de vida da minha mãe, quando praticamente estava desenganada pelos médicos, só nos restou pedir que ela fosse poupada do sofrimento desnecessário. Lembro que sempre pedíamos que Deus tivesse misericórdia dela. Pedimos errado. Misericórdia é a virtude do perdão. Pede-se que Deus tenha misericórdia para perdoar nossos pecados. Ou podemos experimentar a misericórdia (nunca o esquecimento, ou o apagar da memória) para perdoar uma falta que alguém cometeu contra nós. No caso de minha mãe, deveríamos ter pedido que Deus tivesse compaixão, porque compaixão é a simpatia que temos por alguém que sofre. E muitos que sofrem são inocentes – não precisam de misericórdia. Quando a gente pede perdão (“perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”), estamos pedindo ao Pai que ele tenha misericórdia para perdoar nossos pecados, assim como nós devemos ser misericordiosos para perdoar quem nos sacaneia. Não estamos pedindo compaixão. Podemos pedir (ou sentir) compaixão pelos que sofrem por não ter o que comer – o pão de cada dia que falta para muitos. E pensar que me acho tão esperto e ainda não aprendi a pedir. Será que Deus tem paciência suficiente para aguentar tanto pedido fora de lugar porque a gente nem sequer sabe o que quer ou o que pedir?
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Viajando de ônibus Nos últimos meses viajei bastante de ônibus. Minha atenção foi chamada para alguns personagens que se repetem, quase sempre em grupos. Esses mesmos personagens são constantes nas viagens de avião. Antes de continuar, devo esclarecer que eles são minoria, embora estejam presentes em todas as viagens. O primeiro grupo é de pessoas que reclinam a poltrona imediatamente após o embarque. Algumas delas parecem desejar transformar uma poltrona comum em poltrona do tipo leito. Só desistem quando o esforço é visivelmente inútil. Eles não têm a menor consideração com o passageiro do lado, e muito menos com o passageiro de trás. Nas paradas e ao final da viagem, simplesmente se levantam e deixam a poltrona reclinada. Chamei-os de “reclinadores”. São geralmente jovens ou recém-diplomados. A maioria é do sexo masculino e deve ter recebido dos pais a lição de que são as pessoas mais importantes do planeta, e que tudo o mais é secundário. O segundo grupo é o das “conversadeiras”. Elas falam sem parar e nunca dão um cochilo, mesmo que a viagem seja de madrugada ou dure a noite toda. Em geral são mulheres e, ainda preciso investigar, desconfio que a idade seja para além dos 50 anos. Normalmente uma fala, a outra escuta. A que fala, fala muito alto, de modo que todos ouvem e ficam por dentro de detalhes de sua vida, da vida de seus filhos, de seus amigos, seus desafetos. Um terceiro grupo é o das “escravas do celular”. A maioria é constituída de jovens executivas, embora donas de casa também sejam um contingente importante. Elas dão ordens, demitem, contratam, checam orçamentos, informam detalhes de suas contas bancárias, marcam viagens, namoram, desistem de casar,
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encomendam cardápios e reservam quartos de hotel. Os homens executivos também são escravos do celular, mas são mais comedidos em detalhar sua vida íntima. Já as mulheres acreditam que todos a sua volta estão usando fones de ouvido e não ouvem mais nada. O quarto grupo é o dos “mastigadores crônicos”. Já embarcam com um saquinho de coisas crocantes na mão. Nas paradas para lanche e xixi, eles se reabastecem com mais biscoitos crocantes. Mastigam de boca aberta e não param de comer, até que acaba o estoque, então dormem e roncam. Esse grupo é formado por jovens de todos os sexos. Não tenho dados, mas calculo que 90% dos mastigadores são estudantes de nível médio, ou recém-ingressados nas faculdades. O quinto grupo é formado pelos “entupidores de vasos sanitários”. A maioria é do sexo masculino e poder-se-ia dizer que são homens maduros, com comportamento imaturo. Apesar dos avisos para não jogar coisas no vaso, eles sempre descartam ali as toalhas de papel (muitas toalhas) ou outros papéis, e deixam o vaso entupido. O resto dos passageiros que se dane. Próximo dos “entupidores” tem o grupo dos “gastadores de toalha de papel”. Esses geralmente gastam entre cinco e dez toalhas para secar as mãos, mesmo quando há um aviso dizendo que duas são suficientes. Muitos deles deixam as toalhas pelo chão, ou na bancada da pia, quando não jogam alguns pedaços nas pias e vasos, contribuindo para seu entupimento. O sétimo grupo é o dos “levo tudo na bagagem de mão”. Esta inclui mochilas enormes que são carregadas nas costas e arrebentam a cabeça de quem ousar ficar no seu caminho, sacolas de lojas cheias pelas bordas, pequenas malas, grandes malas, mais mochilas, ursinhos e outros bichos de pelúcia e bolsas a tiracolo. Sempre
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duas. Nesse grupo são encontradas pessoas de todos os sexos, e as crianças são iniciadas geralmente quando têm idade de participar de excursões para Miami e adjacências, ou New York. O oitavo grupo é o dos “atrasadinhos”. Eles descem em todas as paradas e sempre arranjam um jeito de atrasar alguns minutos, porque se esquecem de comprar água ou refrigerante, ou de urinar. Eles têm seu melhor desempenho quando viajam em grupos de excursão. São os últimos a entrar no ônibus depois do café da manhã, porque precisaram ir ao banheiro exatamente na hora em que todos já estão acomodados para partir. São os últimos a entrar no ônibus depois das compras, porque ficam barganhando e se perguntando se vale a pena comprar mais uma bugiganga que não terá uso de qualquer maneira. São também os últimos a fechar a mala, porque geralmente esquecem coisas nos armários ou nas gavetas das cômodas, e precisam checar sempre, pela última vez, se não esqueceram algo no quarto. Por último, tem os “emporcalhadores(*) de ambiente”. Esses são ainda mais comuns nos aviões. E o pior grupo é o que se refestela nas classes executivas. Acredito que eles acreditam que assim garantem o emprego dos pobres e que as companhias aéreas contratariam mais pessoas para fazer a operação limpeza, tirando os pobres das ruas. São geralmente executivos, e saem impecáveis depois de uma longa viagem, deixando para trás um rastro de revistas e jornais destruídos, copos, talheres, guardanapos e cobertores jogados ao piso, e restos de comida espalhados por toda parte. Se a viagem (geralmente internacional) demorasse alguns dias, não tenho dúvidas de que haveria ratos e baratas circulando. (*) Peço perdão aos suínos pela comparação desrespeitosa.
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Reivindicações Pelo visto, além das coisas que importam, há pessoas se manifestando por coisas impossíveis ou inalcançáveis nesta e nas próximas gerações. Como está aberta a temporada de caça, vou revelar minhas reivindicações que estou guardando para o momento propício de me manifestar, sem vândalos por perto. Primeiro, quero ter um corpo sarado, com bíceps, tríceps e outros ceps no lugar certo e sem necessitar de muitos exercícios para mantê-los. Segundo: quero o direito de comer sobremesa em todas as refeições (nada de produtos diet ou light), sem alterar a taxa de glicose. Terceiro: quero comer carnes magras, gordas, vermelhas e brancas, e queijos maturados, cheios de gordura, sem alterar as taxas de colesterol total e as demais. Quarto: quero de volta a memória que tinha aos 16 anos, e só quero esquecer o que deve ser esquecido. Quinto: quero ter condições (físicas e financeiras) para realizar todas as viagens dos meus sonhos antes dos 103 anos. Sexto: quero meus cinco sentidos funcionando com perfeição (novamente até os 103 anos). Sétimo: quero ser paparicado por quem gostar de me paparicar, com direito a cafuné. Oitavo: quero o amor incondicional de minha mulher e dos meus filhos e netos (muitos que virão!). Não consigo completar a pauta de 10 reivindicações. Aceito ajuda de bom grado.
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Belo, bonito, perfeito Nem tudo que é belo é bom. Nem tudo que é bom é belo. Nem tudo que é belo é perfeito. Nem tudo perfeito é belo. Nem tudo que é belo é sublime. Nem tudo que é sublime é belo. Isso poderia continuar para sempre. É minha homenagem a um dos melhores professores de português que tive: Prof. José Messias, Colégio Estadual de Patos, Paraíba. Ele nos ensinava a pensar assim. Discutia o belo como uma forma de entender as artes e a literatura em geral. Ele só era muito conservador, para quem a literatura brasileira só tinha algum valor até Machado de Assis. Ele dizia que na língua portuguesa só havia um gênio – Camões e, entre os brasileiros, o único que teve um lampejo de genialidade foi Castro Alves. Ele tinha solene menosprezo por todos os escritores brasileiros do século em andamento. Jamais concordei com ele, mesmo em relação a Camões. Voltando ao belo, temos pouca segurança para afirmar com certeza que um objeto (algo) em questão é belo. Flores, aves e a maioria dos animais selvagens e domésticos se encaixam nessa categoria, porque o belo tem que ser universal e atemporal (na presença do belo sente-se um prazer incontestável, ensina Kant). Flores e pássaros têm mais chance de terem sua beleza apreciada em qualquer cultura e em qualquer época. Classificar seres humanos, edifícios ou trabalhos manuais como belos é perda de tempo. Nosso olhar anoréxico vê as mulheres pintadas por Rubens e outros artistas do Renascimento como gordas e flácidas. Mas nos séculos XVI e XVII esse deveria ser o padrão de beleza predominante. Imagino o que o olhar guloso de Rubens acharia de Giselle Bündchen e outras top models. No mínimo, ele exigiria que elas engordassem uns 20 quilos antes que lhe servissem
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de modelo. Mas nem precisamos ir muito longe. Anita Ekberg, Brigitte Bardot, Claudia Cardinale e Marilyn Monroe seriam consideradas gordinhas para os padrões atuais. Acho que nem Martha Rocha ganharia o concurso de Miss Brasil hoje em dia. Não consigo imaginar como será o padrão de beleza feminino daqui a 50 ou 100 anos. Mas tenho certeza de que algum museu fará uma exposição denominada Circo das Bizarrices, sobre o padrão de beleza desse primeiro quarto de século. Nela serão exibidas as múmias ou os corpos mumificados, ou as fotos, das mulheres consideradas bonitas hoje. Uma peça mostrará como era o padrão de beleza: modelos anoréxicos com 50 kg de pele e osso distribuídos em 1,80 m de altura. Algumas delas com duas ou três costelas a menos. Outra peça mostrará uma mulher de 54 kg, distribuídos em 1,80 m de altura. Os 4 kg a mais correspondem aos peitos de silicone, que serão exibidos separadamente, como curiosidade. Idem para outra peça de 60 kg, mostrando a bunda siliconada (uns 10 kg). Nessa categoria teria uma última peça com 50,3 kg. Os 300 g adicionais correspondem ao enchimento dos lábios. Mas haverá outras peças no catálogo igualmente interessantes. Serão mulheres de 80 a 100 anos, com rostos de meninas de 10, e nenhuma ruga, nenhum sinal do passar do tempo. Flores ou alguns pássaros podem ser belos, ou perfeitos, ou as duas coisas, mas não podem ser bons, porque não têm intenção consciente de fazer o bem. Uma flor pode inclusive causar alergia ou ser venenosa e um pássaro pode ser transmissor de doenças, mas isso não lhes tira o fato de serem belos ou perfeitos. Nós humanos poderíamos ser considerados seres perfeitos se não fôssemos tão arrogantes. Se os cavalos pudessem pensar a respeito, dariam risadas da nossa pretensão. Há algo mais perfeito do que um cavalo?
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Palavras, palavras, palavras Olavo Bilac escreveu que nossa língua é inculta e bela. Tenho uma lista de palavras bonitas – só de escrevê-las, ouvi-las ou lê-las me alegro; alguns exemplos: saudade (não poderia faltar), solidão, sábado, outono, inverno, verão, primavera, lajedo, bem-te-vi, beija-flor, criança, ciranda, pedra, alvorada, mãe, luar, agreste, sertão, e muitas outras. Infelizmente, há o outro lado: palavras tristemente feias. Para mim, duas das mais feias são mancebo e seu derivado amancebado. Mas há outras: tarado, regurgitar, macaca, Itaquaquecetuba (nome de cidade, desculpem-me os itaquaquecetubanos. Credo!), anta, jacu, bissexto, defunto, expectorante, sarna e muitas outras. Não coloquei nessa última lista palavras técnicas como antipestoso, antipleurítico e sifilítico porque ninguém merece ser lembrado disso num sábado de manhã.
Sobre anjos Encontramos quase todo dia um anjo nos nossos caminhos. Alguns são brancos, outros pretos, uns são idosos, outros são jovens, alguns são masculinos, outros femininos, alguns são gays, ou muçulmanos, ou católicos, ou espíritas, ou judeus, ou analfabetos, ou doutores. Eles ou elas não são anjos profissionais, nem atuam 24 horas por dia, sete dias da semana. São anjos acidentais. Encontrei um anjo desses trabalhando na agência central dos Correios. Precisava enviar uma encomenda e não encontrei uma
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caixa adequada, nem em casa, nem tampouco na agência, como haviam me informado que haveria. O funcionário explicou que não havia uma caixa adequada e me aconselhou a procurar em lojas. Agradeci pelo atendimento, e ia saindo com meu projeto de encomenda debaixo do braço quando ele me chamou de volta. Explicou que pensara numa solução e buscou uma caixa que, com alguns ajustes, ficou do tamanho exato. Com satisfação estampada no rosto pelo dever cumprido ele sorriu e despachou minha encomenda. Uma das características dos anjos é estar atento às necessidades dos outros. Durante a longa doença da minha mãe vários anjos se desdobraram dando-lhe atenção e procurando entendê-la. Entre esses anjos estava Lourinha Pires Vidal (peço desculpas, mas não lembro o último sobrenome e não quero arriscar um nome errado). Minha mãe adorava Lourinha, mas não tinha medidas nem hora para telefonar, para conversar ou pedir alguma coisa, que logo depois esquecia o que era. Lourinha sempre teve paciência com ela, sem jamais perder sua meiguice. Ter compaixão de quem sofre é outra característica dos anjos. Sou claustrofóbico, e não preciso dizer o tamanho do pavor que tenho a ambientes fechados. Não suporto multidões ou lugares onde não tenha controle da porta de saída. Uma vez estava no metrô de Londres quando o trem parou de repente. Pelo alto-falante informaram haver um problema na via, e que o trem ficaria parado durante alguns minutos até o conserto ser providenciado. Tentei me concentrar no livro que estava lendo, mas as letras dançavam na minha frente; tentei pensar que não estava preso debaixo da terra e sim que estava noutro lugar na superfície, mas comecei a suar frio e a pensar que ia ter um ataque de pânico. Nisso olhei para o assento em frente e vi que uma senhora me
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olhava com ar preocupado, porque eu devia estar externando toda a minha aflição. Ela balançou a cabeça, de uma forma tranquilizadora, como que dizendo para ter calma. Transmitir confiança é outra característica dos anjos. Em nossa última viagem para os Estados Unidos, Cida, eu e duas cunhadas pegamos o metrô do aeroporto para o hotel, no centro de Chicago. Não contávamos que o metrô de lá tem algumas estações muito antigas, sem escadas rolantes. Numa delas, tivemos que subir uma escada e cada um de nós carregava uma mala pesada, como se tornam as malas nos fins de viagem. Cruzamos com um grupo de jovens. Um dos rapazes voltou-se e prontamente ajudou minhas cunhadas a carregar suas malas, uma e depois outra, para o nível da rua. Outra característica dos anjos é estar pronto a ajudar pessoas desconhecidas. Meu filho mais novo retornou sozinho de uma viagem e trouxe um notebook, encomenda de um dos colegas do seu irmão mais velho. Ele pegou um táxi no aeroporto de Confins e, ao desembarcar, esqueceu a mochila com o computador no banco traseiro do táxi. Ele nem se deu conta do esquecimento, até que a campainha tocou: era o taxista devolvendo a mochila com tudo que havia dentro. O taxista contou que ao deixar meu filho, pegou outro passageiro, que lhe mostrou a mochila esquecida. Ele, então, após deixar esse passageiro no seu destino, voltou para devolver a mochila ao meu filho. Honestidade é outra característica dos anjos. Na verdade, acredito que todos nós temos capacidade de agir como anjos acidentais por um momento, por algumas horas, por um dia. Basta exercitar uma virtude qualquer, com um amigo, um conhecido, um parente ou um desconhecido. Difícil é quebrar a casca sem ter medo de quebrar o bico. Mais difícil ainda é
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se tornar um anjo em tempo integral. Mas aí não estamos mais falando de pessoas comuns, mas daquelas que Bertolt Brecht chamou de imprescindíveis.
Inês Feitosa Brito: Na cadeira de balanço
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Você tem fome de quê? Não há nada mais triste do que pobreza. E nada mais deplorável. O que é mais desconcertante do que um arquiteto pobre de imaginação? Ou um cientista para quem faltam ideias? Ou um médico carente de recursos diagnósticos? Ou uma pessoa pobre de sentimentos? Esses são sinais de pobreza tão ou mais tristes do que uma casa humilde ou pouco dinheiro no banco. Há pessoas pobres, a quem não sobram, mas também não faltam arroz, feijão ou carne; e há pessoas ricas infelizes a quem faltam mais luxo, ou convites para todas as festas (sempre há uma a que não foram convidados), ou um helicóptero, quando já têm um Jaguar e dois Audi na garagem. Simpatizo com os pobres que não têm o que comer, ou o que vestir, ou calçar. Odeio pobreza. De qualquer tipo. A felicidade pode ser comer quando se tem fome e poder comer o que se tem vontade. Não necessariamente faisão, caviar e queijos e vinhos finos franceses todos os dias. A felicidade pode ser contentar-se com pouco, mas não é o pouco que importa, é o poder comer, e é o contentamento que se segue. Há uma prece muito bonita que fazemos antes das refeições na casa da família de Cida. Por meio dela pedimos pelos que não têm o que comer, e também pelos que têm os meios, mas não podem comer, por motivo de saúde, por exemplo. Concluímos agradecendo porque temos os meios e podemos (quase sempre, e quase todos) comer o que está servido. Pode não ser uma mesa requintada. E não é requintada por ser despretensiosa e farta. Ela traduz o que existe na alma da cozinha mineira: o angu com jiló, o frango com quiabo, a couve cortada fininha e o pernil assado, o feijão com arroz de alho, a canjiquinha com costela, a taioba e a
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mostarda refogadas, a linguiça caseira, o frango ao molho pardo. E os doces de leite, de figo, de banana, de goiaba, de laranja, de pêssego, sempre acompanhados de queijo. Ah! a goiabada cascão com muito queijo! Tudo fresquinho, saído da horta ou do pomar, ou da feirinha da praça, ou vindo diretamente das fazendas. E a talagada (para quem pode) da legítima cachacinha mineira e de um bom vinho. Não seria uma lástima não poder provar tudo isso? Por isso, a gente tem que pedir e agradecer. E despachar a pobreza, porque de miserável basta ter que regular os doces por causa da estúpida glicemia e os queijos e a linguiça por causa do maldito colesterol.
Mulheres quilombolas Em 12 de novembro de 2013 eu estava hospedado num hotel em Brasília. Desde que cheguei ao hotel, observei algo raro: muitos hóspedes de cor negra e não, como é a regra, trabalhando. Achei, a princípio, que seria uma delegação de africanos, mas vi logo que não, porque falavam português. Estava no restaurante para o café da manhã e deixei a mesa para me servir de café. Quando voltei, tinha companhia. Duas mulheres estavam compartilhando a “minha” mesa. Não demorou, estávamos conversando. Uma delas, a mais velha, era mais extrovertida. Perguntei se estavam participando de algum evento e ela me explicou que todas eram de comunidades de quilombolas e que vieram discutir questões ligadas a cada comunidade. Eram cinco representantes por estado, e elas eram do norte de
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Minas. Isso bastou para criar certa cumplicidade e abertura para conversarmos, quando souberam que eu morava em Juiz de Fora. Elas contaram que faziam parte de vários programas do governo federal e tinham apoio do Banco do Nordeste, da Emater, da Embrapa e outros órgãos. Contaram que recebiam orientações técnicas e coisas como sementes para plantar. Cada comunidade tinha carência de alguma coisa, ainda. Numa faltava escola, noutra água tratada, e assim por diante. Em vários momentos fiquei emocionado, porque me comovo facilmente com esses relatos, ainda mais quando se trata de pessoas do campo. A mais nova contou que tinham viajado de avião pela primeira vez na vida, e passaram a contar como tinha sido a experiência de ver o avião passar pelas nuvens e de se sentir lá no alto. Acima de tudo, me chamou a atenção a maneira como elas se referiam a si mesmas, com orgulho. Eram quilombolas, com muito gosto! Pensei comigo como o dinheiro para trazer os quilombolas estava sendo bem empregado. A julgar pelas fisionomias e pelas conversas, essas pessoas estavam seriamente envolvidas na discussão e na tentativa de resolver os problemas reais de suas comunidades. Espero que ao final cheguem a um conjunto de propostas viáveis e que elas sejam implantadas efetivamente. É mais uma dívida que o Brasil está pagando com os descendentes de pessoas que foram escravizadas e que deram suas vidas trabalhando para construir esta nação. Fiquei me perguntando por que a maioria das pessoas que eu vi era do sexo feminino. Pensei em perguntar, mas não me encontrei mais com elas. Será que as mulheres são mais articuladas do que os homens, ou eles são mais habilidosos para ficar cuidando dos filhos, da casa e da roça? Ou são mais medrosos para viajar de
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avião? Ou é tudo isso junto? Agora fiquei seriamente preocupado com essas mulheres quilombolas.
Idiotas Deus me livre de ser considerado um idiota. Ainda mais quando li no Aurélio (dicionário) que idiota vem do grego “idiótes”, que significa “homem privado”, em oposição a “homem de Estado”. Por extensão, há outros significados derivados do latim “idiota”, como pessoa ignorante, sem educação, estúpida ou imbecil. Aposto que a maioria de nós, caso fosse chamado de idiota, preferiria sê-lo no sentido dos gregos. Não sei o que é pior. Para completar, na antiga Grécia, um homem desinteressado pela política, e que preferia se “dedicar a interesses particulares”, era censurado e chamado de “idiota”, com o exato significado da origem grega do Aurélio. Quantos idiotas há no Brasil?
Linguagem e a pedra lascada Bertrand Russel em sua História do Pensamento Universal ensina que a linguagem foi desenvolvida como meio de comunicação em que grupos de pessoas, com interesses comuns, participam. O objetivo fundamental da linguagem é, portanto, por em prática um propósito comum. Assim, o fundamental, neste caso, é o acordo. Quando os homens se comunicam (de verdade),
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eventualmente podem chegar a concordar, mesmo que só concordem em que não estão de acordo. Os homens pré-históricos e os que viveram antes de entenderam o uso da linguagem com esse objetivo, quando se achavam em um impasse, resolviam o assunto fazendo uso da força, pela simples razão de que quando nos desvencilhamos de nosso interlocutor, ele deixa de nos contradizer. A alternativa de conversar e concordar ou discordar de maneira civilizada é que deu origem à filosofia e à ciência, pelo menos como elas surgiram e se desenvolveram no mundo ocidental. Assim, a linguagem nos permite discutir qualquer assunto, sem necessidade de eliminar os que discordam de nós, ou de sermos eliminados, caso o outro lado seja mais forte. Desconfio que muita gente que se acha “civilizada” ou possuidora de “cultura” ainda não aprendeu a utilidade da linguagem. Por debaixo das roupas de seda e de linho há uma casca grossa e, escondidos nos bolsos, instrumentos da idade da pedra lascada.
Pobreza Tem gente que é tão pobre, que só tem dinheiro. Ouvi essa frase hoje de passagem, quando ia a uma agência do Correio, mas o final ficou por minha conta, porque a frase foi impedida de chegar aos meus ouvidos pela buzina de um carro. Só imaginei que o desfecho seria assim. Conheço algumas pessoas que têm dinheiro, mas têm uma vida miserável: sem amigos, sem saúde, sem alegria. Mas, como tudo na vida, esse não é o lado único da
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história. Não conheço ninguém que seja feliz passando fome, frio e sede. Deve haver um equilíbrio.
Bairrismo Em 1973, recém-graduado, passei seis meses em Belo Horizonte, fazendo um curso de especialização na UFMG-Escola de Veterinária. Uma das coisas de que me recordo e que me marcaram é o cheiro de alho que impregnava as ruas do centro, cheias de restaurantes. Se alguém me pedisse uma característica marcante da cidade, eu diria que era o cheiro de alho, o que evidentemente seria uma grande injustiça. Em 1975 fui para o Rio de Janeiro tentar o mestrado na UFRJ. Um amigo mais velho me disse que eu teria uma vida fácil, feliz e que iria transar (como se dizia na época) adoidado, pois as cariocas eram muito liberais. Minha vida não foi fácil, o curso era difícil e eu me sentia infeliz e estressado a maior parte do tempo e não transei com as cariocas. Depois que acabei os créditos e me dediquei à tese, fiquei mais relaxado, e consegui prestar atenção nas pessoas e fazer amizades fora do círculo da universidade. Encontrei uma mineira que me mostrou com quantos dentes de alho se faz arroz e tutu à mineira! Fiz bons amigos e amigas e por meio deles conheci alguns músicos e jornalistas – alguns do JB (Jornal do Brasil, que se situava mais à esquerda e contra a ditadura), outros do jornal O Globo (que apoiava a ditadura e era de direita). Fora da redação, todo mundo era esquerdista, mesmo os do Globo. A maioria, da esquerda festiva, como se dizia.
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Um amigo, sempre que me encontrava, achava um jeito de dizer que eu vinha de Recífilis, capital de Pernambucocos. Recife tinha fama de ter muita prostituição. Outra amiga dizia que Recife era uma cidade pequena, porém decente (carregando no “e” bem aberto). Eu achava tudo isso divertido. No fundo, sabia que era uma espécie de admiração. Ou de preconceito, mas isso não me fazia perder o sono. Mais recentemente li ou ouvi algo sobre a mania dos pernambucanos de acharem que em Pernambuco tem muitas coisas especiais “melhores e maiores do mundo”. Listo algumas: o maior teatro ao ar livre do mundo, o melhor carnaval do Brasil, o slogan da Rádio Jornal do Comércio (Pernambuco falando para o mundo!). E, acima de tudo, a frase que diz que os rios Beberibe e Capibaribe desaguam no Recife para formar o Oceano Atlântico, o que é a mais pura verdade. Eu acredito que essas bravatas existem em todos os estados e cidades brasileiras (e talvez do mundo). Uma vez, em Natal, um guia turístico nos levou para visitar a “menor cachoeira do mundo” e o “maior cajueiro do mundo”. Achei a visita à cachoeira perda de tempo, mas o cajueiro é uma beleza. O que me causa espanto é a mania que temos (ou pelo menos que muita gente tem) de falar bem da sua cidade ou do seu estado e de falar mal do Brasil, como se fôssemos um país perdido, sem rumo, sem futuro, sem passado. Temos problemas, alguns deles muito grandes e de difícil solução, mas certamente somos maiores do que todos os problemas. A quem interessa essa miopia ou esse pessimismo eu não sei, mas desconfio que alguém está lucrando com isso.
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Quase caos Sexta-feira, 17h30 em Juiz de Fora: chuva de verão típica, com raios e trovões e falta de energia elétrica (que volta mais de duas horas depois). Tudo escuro e, sem poder ler nem mexer no computador, me divirto observando o fluxo de carros da janela do apartamento no 7º andar. Enquanto os sinais de trânsito estão apagados, vejo que há de tudo: motoristas nervosos, buzinando sem parar, alguns bravos, forçando a passagem, porque quem poderia, não dá chance, alguns loucos, que não dão vez nem correndo o risco de atropelar pedestres e motociclistas ou de bater noutros carros. Para minha surpresa, contudo, a maioria dos motoristas se comporta civilizadamente. Alguns assumem o risco e param antes da faixa para os pedestres atravessarem, mesmo correndo o risco do buzinaço. Outros dão vez a motoristas que precisam cruzar a rua, e por aí vai. Depois de alguns minutos no meu posto privilegiado de observação, concluí que a humanidade vai sobreviver: a grande maioria das pessoas é educada mesmo no caos em que se transformou o trânsito de uma tarde de sexta-feira chuvosa. Hoje dormirei mais tranquilo. Modismos De uns anos para cá tenho notado que algumas pessoas adotam “doenças da moda” e as exibem como se fosse uma joia, ou uma camiseta cara. Nesse grupo não estou colocando as pessoas que realmente têm problema. A estas, a minha solidariedade. Duas dessas “doenças” são hoje comuns. A primeira é a intolerância à lactose. As pessoas parecem ter orgulho em informar que têm intolerância à lactose e aí evitam até derivados lácteos conhecidos por não ter lactose. Estive numa reunião onde quase todo mundo evitava tomar leite ou comer produtos lácteos porque tinha
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intolerância, com diagnóstico e tudo. Duvido muito dessa prevalência, mas sou adepto apaixonado de queijos e iogurtes e não sou médico, portanto sou suspeito. Só tenho pena dessas pessoas que se privam de alguns dos mais deliciosos alimentos que existem. Por modismo, diagnóstico malfeito ou falta de diagnóstico. Mais recentemente encontrei várias pessoas que não podem ingerir glúten. E tenho observado que há nutricionistas recomendando evitar o consumo de glúten, mesmo por quem não tem problema. Manter uma dieta sem glúten é a coisa mais complicada que acho, mais difícil do que evitar alimentos ricos em açúcar ou colesterol. E é retirar da dieta tudo que há de gostoso. Devo dizer que algumas pessoas com intolerância à lactose se curaram... acho que a moda passou. Duvido que a onda do glúten demore mais que uma estação. Talvez lá pelo carnaval surja uma nova onda – espero que não seja das hemorroidas.
Brasil Há muitos anos ouço que o Brasil para de funcionar no início do verão e só volta a funcionar depois do carnaval. Só se for na mente de quem não presta atenção ao mundo em volta. Os produtores de leite, de ovos, de carne, tomate, alface, pimentão, laranja e outras frutas, e outros legumes e hortaliças, continuam trabalhando de sol a sol, de domingo a domingo. Da mesma forma que grande número de profissionais como médicos e enfermeiros (tenho consultas marcadas para os dias 2 e 6 de janeiro), porteiros, balconistas, taxistas, bombeiros, eletricistas, garis, pilotos
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e motoristas de ônibus e caminhões, e muitos outros que não entram nessa lista por preguiça minha de digitar. De onde vem a ideia de desprezar esses trabalhadores como se eles fossem invisíveis ou seu trabalho não contasse? Talvez alguém, que provavelmente nunca trabalhou nem no verão nem nas outras estações do ano, deve ter achado bonito ou chique inventar essa fantasia que pode ser verdade para uma pequena elite (financeira, ou intelectual ou política). Esse Brasil do outro lado precisa ser respeitado. E melhor conhecido. Especialmente o pessoal do outro lado da cerca, a que separa a cidade da roça. Passei o Natal na roça. No dia 25 almoçamos na casa de um dos fazendeiros da família. Como sempre acontece, o almoço tem hora para começar, mas não tem hora para acabar. Lá pelas 3 horas da tarde os anfitriões nos pediram licença, pois precisavam alimentar os porcos, ordenhar as vacas e higienizar os equipamentos e o local de ordenha depois de tudo concluído. É assim que funciona – e funciona de 1º de janeiro a 31 de dezembro, sem falhar um dia. E essa é a vida de milhões de brasileiros – que não devem achar graça nenhuma na piada da folga trimestral.
Seres invisíveis Que eles existem, todos sabemos. Estão à toa, nas praças, ou tomando conta de carros, onde quer que haja necessidade de se estacionar: nas proximidades de supermercados, farmácias, laboratórios, igrejas, consultórios e padarias. Outros formam casais e
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passam o dia e a noite vagando: dormem nas calçadas, se banham em banheiros improvisados de garrafas pet, comem sobras que ganham ou acham no lixo. Fumam. Fedem. Incomodam. A gente fica pensando o que é feito dos nossos impostos para permitir que isso aconteça. Mas essas pessoas aparentemente não têm nomes, não devem fazer parte das estatísticas oficiais de desemprego. Provavelmente não têm CPF, carteira profissional, título de eleitor ou comprovante de residência. Não têm dentes, ou perderam muitos deles e não usam escovar os dentes, não penteiam o cabelo, não se incomodam de vestir a mesma roupa por semanas. Lavam seus pratos em qualquer lugar onde haja uma torneira e ninguém por perto. Cruzamos seus caminhos e nos esquecemos deles, porque são invisíveis. Assumem uma forma humana quando estamos próximos e, depois de darmos alguns passos, nos esquecemos deles e eles voltam a ser invisíveis. É quase como se não existissem. Quando morrem, imagino que serão enterrados sem identificação. Quando adoecem a ponto de incomodar porque estão atrapalhando o passeio, e são socorridos, são atendidos como indigentes. Eu queria escrever um final para isso, mas não consigo. Não há final para o que não importa. Quem se importa?
Lixo Em Juiz de Fora são poucos os estabelecimentos que disponibilizam recipientes ou locais para coleta de material para reciclagem. Perto de onde moro tem um supermercado que disponibiliza esses recipientes para descarte de vidros, plásticos,
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papéis e metais. No interior da loja ainda se pode entregar pilhas e outros materiais desse tipo. Hoje levei minhas garrafas vazias para descartar. Minha surpresa: uma ou mais de uma pessoa descartou suas garrafas (de vidro) no local destinado a plásticos. Os recipientes de coleta de vidros e de plásticos estavam lado a lado, então o esforço para fazer o certo e o errado era o mesmo. Toda vez que vejo algo desse tipo, ou vejo pessoas que jogam pontas de cigarro, garrafas ou latas de cerveja ou refrigerante nas ruas, ou descartam seu lixo doméstico em locais não apropriados, fico imaginando o que passa na cabeça delas. Por exemplo, o que pensam essas pessoas sobre o seu bairro, sua cidade, o estado, o país, o planeta. Chego a acreditar que elas devem ter algum problema: são muito burras, ou tiveram uma infância infeliz, ou são desajustadas por algum motivo. São como aquelas pessoas que sobem numa passarela de pedestres e atiram pedras nos carros que passam embaixo. Ou são como políticos, juízes, jornalistas ou empresários corruptos. Não vejo muita diferença. Se essas pessoas abraçassem a carreira política, tratariam seus eleitores e suas promessas de campanha exatamente como fazem com seu lixo. Esses exemplos que citei são um retrato do que acontece em minha vizinhança, um bairro de classe média dos mais valorizados de Juiz de Fora. A coleta de lixo é diária (2ª a 6ª feira), mas as ruas vivem sujas. Há pessoas que saem com seus cãezinhos de raça para urinar e defecar nos jardins dos prédios vizinhos. Há pessoas que colocam o lixo na rua na sexta-feira à noite, mesmo sabendo que a coleta só ocorrerá na segunda-feira à noite. Enquanto isso, nas fazendas e sítios deste país, grande número de produtores rurais que adotam as boas práticas de produção cuidam do ambiente e separam o lixo para reciclagem. Ainda há esperança.
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Fofocas Parece ser comum artistas de uma escola detestarem ou não aceitarem os artistas de uma escola “nova” – mais avançada ou mais contemporânea. Pode ser que entre artistas de uma mesma escola também haja ciúmes e brigas. Isso aconteceu com os impressionistas Degas e Monet. Degas tinha dinheiro e Monet passava fome, junto com sua família. Os dois não se bicavam! Em outros campos das artes, fofoca é o que não falta. Noel Rosa não se dava bem com Wilson Batista e Salieri não gostava de Mozart (talvez fosse inveja, ou talvez só fofoca mesmo dos historiadores). Afinal, diante de Mozart todo mundo está um passo ou vários passos atrás. No campo das ciências é bem conhecido o fato de Robert Koch não gostar de Louis Pasteur, porque Pasteur não era médico. Entre os filósofos a briga sempre foi feia, parece que um sempre tem que mostrar os equívocos do outro. Newton usou de todas as suas armas para garantir que tinha primazia na descoberta do cálculo diferencial e integral em relação a Leibniz. Newton era um gênio, mas usava sua posição – já com status de gênio, para tirar vantagens nas descobertas. Mas parece que o nível de fofoca atinge o máximo quando se olha o quadro dos ganhadores do Prêmio Nobel – em todas as modalidades. Afinal de contas, é difícil justificar o Nobel da Paz para Henry Kissinger, Barack Obama (com apenas cinco meses de governo como presidente), Al Gore e muitos outros. Diante disso e de muitos outros exemplos, fico com a maior preguiça de acompanhar as questõezinhas da namorada do Neymar, da briga das vilãs das novelas ou da presença de alguma celebridade em algum evento.
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Uma pitada de cultura inútil “Quando eu sou boa, sou muito boa, mas quando eu sou má, sou melhor ainda” (no filme I’m no angel, de 1932). Essa é uma das minhas frases favoritas de Mae West, bela, loura, famosa atriz (década de 1930, especialmente). Pois não tem dias que a gente deseja dar uma de Mae West? Exemplos: você acorda cedo, sai de casa e dá de cara com uma conhecida com cara de laranja amassada. Você não tem vontade de mandar ela de volta pra cama até se recompor? Ou encontra numa festa aquele chato que lhe conta sua última piada completamente sem graça. Não dá vontade de dizer que ele não tem talento nenhum para contar piadas? E aquela pessoa que só fala de desgraças ou dos problemas dela e estraga qualquer reunião? Não dá vontade de desconvidá-la no ato? Não me diga que você nunca teve vontade de fazer de conta que não viu determinada pessoa, ou explica que está muito atrasado para sua inexistente consulta médica para não aguentar aquele papo chato e interminável? De dizer a uma perua que as formas de sua bunda estão mais do que realçadas na calcinha fio dental que se enxerga por baixo da calça justa? E de dizer a um velho impertinente que ele pode ser velho, mas tem que tratar os outros com respeito? Ou dar um beliscão naquele garoto que faz barulho e incomoda meio mundo num lugar público e os pais não estão nem aí? De dizer “bem feito” quando ele machuca o dedo na porta que acabou de abrir e fechar pela centésima vez... E que tal ser obrigado a comer salgadinhos cheios de gordura e ainda ter que elogiar a cozinheira e a dona da casa? O remédio é rir, pois, como também diz Mae West – “Você só vive uma vez, mas se fizer direito, uma vez é suficiente!”.
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Viajar é se mover em estado de encantamento Uma das mais bonitas definições de viagem que conheço é esta: viajar é se mover em estado de encantamento. Foi mais ou menos assim que Goethe se sentiu quando viajou pela Itália de 1786 a 1788. É assim que tento me sentir quando estou viajando (a gente tem que ser um pouco pretensioso nesta vida!). Minhas viagens costumam durar anos – passo anos planejando, viajo, e continuo no estado de encantamento pelas coisas que vi e vivi por mais um longo tempo. Em 2005 Cida decidiu que iríamos (fui arrastado, a princípio) fazer a peregrinação a Santiago de Compostela. Em 2011 concretizamos a aventura. Foram anos de leituras, preparação, exercícios e dúvidas. Tínhamos dúvidas se seríamos capazes e decidimos fazer uma caminhada mais curta do que a prevista inicialmente de quase 800 km, o chamado “caminho francês”. Fizemos, então, parte do caminho português, partindo de Barcelos, ao norte da cidade do Porto, e que tem pouco mais de 200 km. Encaramos isso como treinamento para enfrentar o outro desafio. Agora em abril vamos repetir o caminho português, porque gostamos tanto e porque queremos melhorar nosso desempenho, corrigindo erros que cometemos na primeira vez. Em 2007 ou 2008 li o livro Viagem à Itália, escrito por Goethe e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 1999. Parece-me que está esgotado, infelizmente. Desde então estamos planejando refazer essa viagem, que começa na Alemanha, cruza a Áustria e a Itália, de norte a sul, incluindo a Sicília. O retorno à Alemanha é por outro percurso, sul-norte. Claro que não pensamos em caminhar. Vamos fazer o roteiro de trem e de ônibus. Goethe viajou de maneira bem mais difícil
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(em uma charrete puxada a cavalos, por dois anos). Penso que em dois ou três meses podemos fazer o roteiro completo. Isso porque não precisaremos de muito tempo para permanecer em algumas cidades onde já estivemos, e porque onde Goethe precisava desenhar as paisagens ou edifícios, ou pagar para alguém pintar, nós nos valeremos do instantâneo da máquina fotográfica, ou do iPad. Uma das vantagens de estar aposentado é não ter limitações de tempo para viajar. Mesmo assim, penso que precisaremos dividir essa viagem em duas ou três. Vamos nos valer do livro de Goethe como guia. Uma coisa desagradável de viajar é o abrir e fechar malas. Só de pensar me dá dores nas costas. Compenso isso pensando nos pratos que iremos saborear na viagem. Mas já aprendi algumas lições. Para não esquecer nada, e para não carregar coisas desnecessárias, tenho uma lista pronta de tudo que preciso levar. Uso essa lista sempre. Só acrescento ou diminuo algo dependendo da duração da viagem. Coloco tudo em cima da cama antes de colocar na mala. Geralmente, depois que separo tudo que é “imprescindível”, reavalio e sempre elimino algumas coisas. E geralmente ainda volto com a sensação de ter carregado coisas desnecessárias. Já li de um “turista profissional” que esse corte de bagagem deve ser feito pela metade (em vez de levar quatro camisas, levar duas, e assim por diante). E parei de comprar lembrancinhas – é mais proveitoso gastar o dinheiro num bom vinho, de preferência acompanhado de um queijo especial. Com essas pequenas coisas, penso que estou deixando de ser apenas um turista para me transformar num viajante. Só lamento não ter o talento de Goethe para escrever algo como ele escreveu sobre Roma: “Eu apenas abro bem os olhos, olho, vou-me embora e volto para olhar de novo, pois não há maneira
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de alguém preparar-se para Roma senão em Roma”. Afinal de contas, não é esse o sentimento de todo viajante?
Dúvidas existenciais Sempre fico em dúvida se ofendo as pessoas quando emprego o termo negro em vez de afro-brasileiro, ou outro eufemismo. Prefiro o primeiro porque acho discriminação sequer considerar que os negros brasileiros não sejam integralmente brasileiros, como os descendentes de italianos, alemães, espanhóis ou portugueses. A estes não se aplica nenhum adjetivo. São brasileiros e ponto final. Por que então só os brasileiros negros precisam ser adjetivados, como se fossem duas metades, uma brasileira e outra africana, e fossem destituídos de uma nacionalidade plena? Por acaso eles não são 100% brasileiros? Nasceram aqui, e provavelmente seus pais, avós, bisavós, tataravós também. Essa é mais uma estultícia copiada dos americanos do norte que, na onda do politicamente correto, passaram a chamar os negros de afrodescendentes, como se eles não fossem igualmente norte-americanos, tendo nascido lá, tendo seus pais, avós, bisavós e tataravós nascido também em solo americano. Para mim é mais uma armadilha para manter os negros no seu “devido lugar”, ou seja: nos lugares mais pobres, nos empregos de pior remuneração, no preconceito que viceja em muitas cabeças. Um dia, estávamos conversando durante o intervalo do café e uma colega negra comentou que seu cabelo era ruim. Respondi que seu cabelo era igual ao de qualquer um, nem pior, nem melhor. Ela podia achar que ele não era bonito e tinha o direito de
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alisá-lo ou fazer um desses penteados cheios de nós ou de trancinhas. Ela certamente ouviu desde criança que seu cabelo era ruim. E quantos de nós não dizemos a mesma coisa? E quantos negros não carregam esse peso, que pode se estender, ainda, a outras partes do corpo? E quantos de nós crescemos ouvindo gracejos sobre nossas orelhas de abano, nariz de tucano ou achatado, perna de pau, olho zarolho, pés chatos e outros comentários igualmente humilhantes? Alguns conseguem encarar isso sem se ferir. Já outros engolem em seco e se culpam a vida inteira por não serem perfeitos ou não serem “iguais” a todo mundo. Porque quando a pessoa é tratada dessa forma, desde criança, talvez não consiga enxergar que quase ninguém é perfeito, e que é possível ser realizado ou feliz mesmo tendo nariz feio, ou pé chato. Porque a feiura pode estar apenas na imagem que a pessoa vê no outro lado do espelho, e que as pessoas do lado de cá, que importam realmente, nem se dão conta. O triste é que quando a gente consegue racionalizar isso, o estrago já foi feito e ninguém recupera as horas perdidas de aflição ou desânimo. Talvez a melhor coisa a fazer seja aprender a dizer desde cedo, à moda inglesa: “Who cares!” Que pode ser livremente traduzido por “Quem se importa?” ou, melhor ainda, “Que se danem!” Me vem à mente um gesto libertador que as meninas e moças faziam em Tabira quando queriam demonstrar que não estavam nem aí: davam uma rabiçaca! Talvez esse gesto só seja encontrado hoje nos dicionários.
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Vida besta Laida, a terceira das minhas sete irmãs, estava na recepção do Hospital Português, em Recife, e presenciou duas velhinhas reconhecerem, com a tristeza estampada no rosto, que eram órfãs! Esse é o nosso inevitável destino: um dia nos descobrimos órfãos, menos os que morrem cedo. É como ter câncer de próstata, ou catarata, ou arteriosclerose, ou osteoporose. Se você não tem ou não teve, ainda vai ter. Basta ter saúde e um pouco de sorte para viver muito. Eita vida besta!
Aparecida Ela se chama Aparecida, como minha mulher. Todos os dias a encontramos às 5h30 da manhã, na nossa caminhada matinal, no campus da UFJF. Ela deve ter menos de um metro e meio de altura e seguramente não pesa mais que 40 kg. É negra, deve ter a minha idade ou talvez um pouco menos, ou um pouco mais; não sou bom para avaliar a idade dos outros. Ela mora num bairro pobre, chamado Dom Bosco, próximo à universidade. Tem sempre um sorriso estampado no rosto e está sempre animada, mesmo a essa hora da manhã. Dá para se notar pelo jeito que caminha e cumprimenta as pessoas. Às vezes ela tem companhia, mas na maioria das vezes está sozinha. Temos que passar pelo bairro onde ela mora para ir à universidade e à Embrapa, onde Cida trabalha. Vejo-a, com frequência, varrendo o pavimento em frente à casa que imagino ser sua. Mas
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ela não se dá por vencida e estende a limpeza ao resto das casas. Hoje ela estava fazendo faxina num terreno baldio, próximo a sua casa. Graças a ela, a rua está quase sempre limpa, pelo menos mais limpa que as ruas dos bairros de classe média daqui de Juiz de Fora, que as pessoas costumam usar como depósito de seu lixo. Aparecida, humilde, miúda, que talvez viva de uma aposentadoria de salário mínimo, é uma cidadã: sem alarde, ela cuida do ambiente em volta de sua casa porque não nasceu num chiqueiro. Ela é uma pessoa de fino trato. Como poucas.
Perdão Alice Munro escreveu ao fim das notas autobiográficas de seu livro Vida Querida que “nós dizemos de certas coisas que elas não podem ser perdoadas, ou que nunca vamos nos perdoar. Mas perdoamos – perdoamos o tempo todo”. Certamente não podemos perdoar tudo: é difícil perdoar Hitler ou um assassino de crianças indefesas. Também não é possível esquecer a maldade que alguém fez e continua fazendo, para tirar proveito, como seguidamente temos notícias de pessoas que desviam verbas destinadas a qualquer obra de interesse público. Mesmo as coisas “perdoáveis” não deveriam ser objeto de esquecimento, até por questão de sobrevivência. A gente pode perdoar uma dívida não paga, mas nunca esquecer que o fulano e a fulana não são de confiança. Talvez Alice Munro esteja se referindo ao perdão que a gente concede às pessoas que nos ofendem ou nos desacatam. Talvez seja o tipo de perdão que esperamos que os outros tenham por nós.
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Abraço Acredito que uma das maiores contribuições para a paz entre as pessoas é o abraço. Ainda mais se for do jeitinho brasileiro. Não o jeitinho safado. Falo do jeitinho da pessoa se transmitir: dengoso, gostoso, apertado, amigo, carinhoso, escandalizado às vezes. Que é diferente do abraço dos anglo-saxões: de tão comedido, parece que as pessoas ficam constrangidas de aproximar seus corpos, mesmo que vestidos, uns dos outros. Quem não gosta de um abraço é como quem não gosta de samba – ou é ruim da cabeça ou é doente do resto. Penso que há basicamente dois tipos de abraço: o protocolar – que a gente dá e recebe nos aniversários, nos velórios, nas despedidas, nas chegadas, e mil outros. E há o abraço espontâneo que, resumindo, é o que a gente dá quando não tem motivo, pelo simples prazer de oferecer um ombro amigo, de dizer que está ali pro que der e vier, ou de sinalizar simplesmente: eu gosto de você como você é; não importam seus delírios, seus defeitos, seus motivos. Receber ou dar um abraço desses não acontece todo dia, e por isso mesmo ele se torna especial. Pode ser o abraço do filho, da mulher, do marido, do pai, do avô, da avó, do neto, do amigo, da amiga. Quem não já teve vontade de sair abraçando as pessoas, mesmo sem conhecê-las, só por se sentir completo? E quem não suspirou por um abraço saído do nada, sem nenhum motivo, pela simples razão de estar se sentindo só, carente, ou perdido numa situação qualquer? Estou certo de que o mundo seria bem melhor se a gente adivinhasse quando alguém precisa de um abraço. E se as pessoas soubessem quando a gente está precisando de um abraço. O abraço é primo-irmão do “chêro” e do cafuné. Os três deveriam ser tombados como bens imateriais do atalho para a felicidade.
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Só louco Vindo de Viçosa para Juiz de Fora li a frase “Só os loucos sabem” escrita com os dedos na poeira da traseira de um caminhão. Fiquei matutando sobre esse conhecimento restrito aos loucos, mas em primeiro lugar precisaria definir a loucura. Será que existem graus de loucura? E se existem, haveria lugar para a subjetividade? A pessoa pode se autoafirmar como mais ou menos louco? Ou totalmente louco em alguns momentos? E esse conhecimento seria transmissível entre os loucos? Nasceria na mente de alguns ou de muitos? Seria um conhecimento transcendental ou que pudesse se tornar “altamente relevante para a segurança nacional”? Os loucos teriam a capacidade de se comunicar telepaticamente, e só eles sabem disso? Haveria um sinal como esse “só os loucos sabem” para dar início a uma onda de transferência de informações entre eles? Quão perigosa seria essa informação e esse conhecimento para o resto da população? Ou nada disso é relevante e a sentença queira dizer simplesmente que os loucos veem o mundo de um modo especial, inacessível aos demais, e só eles são capazes de desenvolver certas ideias que nos parecem (aos “normais”) “loucas”? Ou será que eles descobriram o segredo de voar, de caminhar sobre as águas, de ouvir vozes de extraterrestres ou de enxergar cores fora do espectro de luz visível? A loucura já foi confundida ou catalogada de acordo com muitos comportamentos ou estados de espírito que vão desde a melancolia e a insensatez, até a demência e a euforia. No século XIX passou a ser assunto da medicina, quando foi incluída no rol das doenças mentais. Cá pra nós, aqui vai minha contribuição a essa aventura. Para mim, há loucura individual (ele é louco por ela), loucura gastronômica (sou louco por goiabada), loucura
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nacional (os brasileiros são loucos por futebol), loucura profunda (ela é louca de jogar pedra), loucura com sobrenome (ele é louquinho da silva). Ainda existem outras formas, incluindo a loucura de torcedores fanáticos por seus times (galoucura e bando de loucos, por exemplo). Ou talvez a frase “só os loucos sabem” se referia simplesmente aos torcedores que julgam saber qual time será o próximo campeão brasileiro de futebol.
Canalhice Poucas vezes uma palavra – canalha – foi tão bem usada para caracterizar pessoas como esse ex-médico Roger Abdelmassih. Lembro-me de outra pessoa, que foi odiada por (quase) todos os brasileiros – Paulo César Farias (o PC Farias), também merecedor dessa “honraria”. Quando PC Farias estava nas manchetes, conheci num congresso sobre produção de leite um senhor de Alagoas que conhecia e, pareceu-me, tinha relacionamento com o PC Farias. Segundo ele, PC Farias era, para quem privava de sua amizade, um verdadeiro gentleman: simpático, educado, polido e, ainda por cima, entendedor de vinhos. Sempre fiquei intrigado com isso. Então a pessoa pode ser um canalha na sociedade e ser ao mesmo tempo um pai amoroso, amigo simpático, anfitrião perfeito? Pois aprendi com André Comte-Sponville que pode, sim. O canalha pode ser simpático (à primeira vista e mesmo à segunda), e ainda pode ser polido, fiel, prudente, temperado, corajoso (ou seja, pode ter muitas virtudes, nem que elas sejam salpicadas aqui e ali). O canalha pode ser ainda justo ou generoso, de longe
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em longe, porque se fosse sempre justo e generoso não seria um canalha. Talvez seja essa uma das dificuldades de ação da polícia ou da justiça (outras são a morosidade da justiça e a velocidade com que certos juízes mandam soltar criminosos ricos). É difícil para as pessoas, inclusive os vizinhos, identificarem naquele velhinho simpático um monstro. Mais difícil ainda se essa pessoa é bem apessoada, veste-se com roupas caras, ama os filhos e anda de Mercedes-Benz. Gostaria de saber quem nos protegerá dos canalhas.
A felicidade Eu tinha amigos e amigas, na década de 70, quando ainda era solteiro, que enlouqueciam se por acaso não tivessem um programa interessante para as noites de sexta-feira. Eles e elas eram mais ou menos como a mulher “totalmente demais” de Caetano Veloso, que fica doida nas noites de lua cheia. Nunca cheguei a esses extremos, mas me pergunto o que faria se fosse obrigado a viver feliz eternamente. Se algo acontecesse como Tom Zé escreveu – que a felicidade irá desabar sobre os homens, um dia de manhã. E se a felicidade se transformasse num bem, como o dinheiro é hoje. Será que seria distribuída igualmente ou alguns teriam mais do que os outros? E a pessoa poderia deixar como herança? E como constaria nos inventários e nos testamentos? Seria do tipo: Deixo dez litros de felicidade para ser dividida entre meus irmãos e sobrinhos? E os pobres teriam mais do que a ilusão de um carnaval? E será que
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iríamos rir da ideia de felicidade como uma pluma, levada pelo vento? Será que a felicidade geraria inveja e exibicionismo? E as pessoas debochariam das outras com frases como: sou mais feliz do que você! Que felicidade mixuruca essa sua! Daí seria um passo para surgirem ladrões de felicidade, e para horror nosso que não estamos acostumados com esse tipo de crime, latrocínios, que todos sabem é o roubo seguido de morte. Em sua defesa, o ladrão ou assassino poderia alegar legítima defesa? Em que condições? E haveria como sonegar felicidade do imposto de renda? Ou seria descontada do salário, na fonte? E onde guardaríamos as tristezas? Com certeza, esse seria o primeiro sentimento a ser banido! Talvez fosse recolhido para uma usina de reciclagem, ou guardado como volume morto, em local de difícil acesso, controlado pelo governo, e só para ser usado como último recurso, em caso de guerra.
Cinquenta por cento Calculei que se quase tudo na vida depende de pelo menos 50% do governo, e 50% da vontade divina, não temos muitas opções para dirigir nossas vidas. Recalculei tudo da seguinte maneira: supus que, no caso do governo, pelo menos a metade (25% do total) depende de cada um de nós. Afinal de contas, pagamos impostos para ter coisas como hospitais, estradas, rede de esgoto, água encanada, transporte urbano, campanhas de vacinação e bancos de sangue, mas temos nossas próprias escolhas como
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estudar ou não, trabalhar com mais ou menos afinco, comer bem ou mal, namorar, falar bem ou mal dos outros, beber e dançar. No segundo caso, imaginei que há pelo menos 50% de chance de Deus existir e de zelar por nós. Haveria também 50% de chance de Ele não existir, ou de não dar a mínima para nós, terráqueos presunçosos. Pois, afinal de contas, existe um universo (ou até mais de um) imensamente grande para Ele cuidar. Assim cheguei à conclusão de que cada um de nós tem pelo menos 50% de responsabilidade para conduzir a vida e lutar por tudo que considere ser útil, bom ou bonito. Deixar tudo por conta dos governantes ou de um ou mais deuses é, no mínimo, temerário.
Diva Desconfio de palavras da moda. Numa época, biotecnologia era a palavra mágica dos projetos de pesquisa. Quem queria financiamento tinha que dizer que o projeto tratava de biotecnologia. Poderia ser um cultivo de alface ou inseminação artificial de suínos, além de outros assuntos que não se encaixariam diretamente no tema, mas se a pessoa usasse a palavrinha mágica, teria mais chances de aprovar o projeto. Depois disso outras modas surgiram: proteção do meio ambiente, governança e sustentabilidade são exemplos recentes. Na vida real também aparecem palavras mágicas. O mal dessas modas é que a palavra perde o significado. Se a todos se aplica a mesma palavra, ela não diferencia mais o que deveria ser diferenciado e tudo vira o mesmo saco de batatas. Uma dessas palavras é
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Diva. Há 50 anos, Greta Garbo (desculpem os adolescentes de 12 a 50 anos) era Diva. Maria Callas era Diva. Marlene Dietrich era Diva. Talvez Sophia Loren fosse considerada uma também. Hoje em dia, qualquer atrizinha de Malhação que nem fez uma peça de teatro ainda já é chamada de Diva. Qualquer cantorazinha sem voz é chamada de Diva. Pasmem: Amy Winehouse já foi chamada de Diva. Eu adoro Amy Winehouse, mas entre cantora revelação de um único disco e Diva há uma grande distância. Para mim, para ser Diva não basta ser uma boa cantora. Ou uma boa atriz. Ou ter cara bonita, pernas perfeitas, seios grandes sem silicone. É preciso ter uma personalidade marcante. Ter uma história. É preciso habitar a memória dos desejos de homens e mulheres. Pode ser necessário ser amada por muitos e odiada por outros tantos. Pode ser necessário causar um ou outro escândalo. Acima de tudo é preciso ter classe e ser capaz de elaborar pelo menos uma frase marcante: “I want to be alone!”, por exemplo. Por favor, não vale: “Estou adorando o Castelo de Caras” – quem lá esteve jamais será uma Diva.
Sobre palavrões Estava aguardando o sinal abrir para cruzar a rua e ao meu lado tinha um grupo de adolescentes. Quem dirigia a conversa era uma menina. Ela usava caralho como vírgula, porra como dois-pontos e pqp como ponto-e-vírgula, mas falava de um jeito tão cândido que fiquei pasmado. Foi para isso que as mulheres se deram o direito de usar palavrão, ainda na década de 60? Antes disso, caralho era usado (basicamente pelos homens, é claro)
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como se fosse um soco na cara, um desabafo, um grito. Porra era um chute no saco, e assim por diante. E agora, quando você quer desabafar ou dar um tapa na cara de maneira figurativa, o que você diz? Donzelizaram o caralho, virginalizaram a porra, domesticaram o puta que o pariu. Estamos órfãos de palavrões que gritam. Help! Daqui a pouco teremos que importar palavrões. Observação: Nunca falo palavrão. Os últimos que usei foram na época da minha adolescência: “bixiga lixa”, “bobônica” e peste. Mesmo assim, acho que bobônica era muito forte e eu nunca usava, porque minha mãe proibia.
O reverso do espelho Contrariando Caetano, acredito que, de perto, todo mundo é normal, ou seja: arrota, vai ao dentista, leva os filhos à escola, tem enxaqueca, dor de cabeça, prisão de ventre e calo no pé. Li que a Rainha Elizabeth I da Inglaterra só tomava banho uma vez por ano, e às vezes nem lavava os pés. Só não tinha fama de fedorenta porque era rainha. Tomás Alva Edison e Isaac Newton não tinham propriamente um excelente caráter, e até o gênio Albert Einstein passou a segunda metade da vida correndo atrás de uma teoria vencida por outros físicos menores.
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Visão da janela Da minha janela da cozinha, no sétimo andar, gosto de ver as pessoas na rua e o movimento dos carros. É um pequeno trecho de rua, onde ainda não é cobrado estacionamento, e por isso muita gente aproveita para deixar ali seus carros. Um casal de idosos estacionou o carro, e aí começou um diálogo que eu apenas imagino, pois não dá para ouvir. A senhora rodeava o carro para ter certeza de que as portas estavam bem fechadas, os pinos dos vidros abaixados, e que ninguém iria roubar algum pertence deixado no banco de trás. O marido fechou o porta-malas e ela conferiu. Ele fechou as portas com a chave (dessas que a gente aperta um botão e controla tudo) e ela conferiu. Finalmente, depois de muitas idas e vindas, eles se foram. Depois de alguns passos, ela volta e torna a conferir todas as portas, confere o banco de trás e aceita ir embora. O marido segura uma bolsa, pacientemente coloca o braço para ela se apoiar e os dois finalmente seguem seu destino. Santo e paciente marido! E que mulherzinha desconfiada! Fico feliz porque eles encontraram uma vaga boa, na sombra. Torço para que as portas tenham ficado fechadas, e que ninguém mexa no carro deles. Mas me sinto tentado a descer do meu posto de observação para conferir se as portas do carro estão mesmo fechadas. O que me impede é a possibilidade de os dois voltarem e eu ter que explicar o que estou fazendo ao lado do seu carro.
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O suicídio dos pombos Da esteira onde faço minhas caminhadas quando chove ou tenho preguiça de me deslocar até o campus da UFJF avisto os pombos. Muitos deles, famílias enormes. Pois hoje tive a impressão de que eles estavam cometendo suicídio: se atiravam do oitavo andar do prédio vizinho como kamikazes. Não pude checar se havia corpos no chão, mas achei provável. O que faria um pombo cometer suicídio? Desilusão amorosa? Falta de identidade? É fácil ter nojo, ou raiva, ou desdém, de e por pombos. Eles infestam as praças, as ruas, os prédios. Sujam tudo com suas fezes voadoras. Transmitem doenças. Causam alergias. Fico desolado quando vejo as pessoas, parece que há predominância de velhinhas alimentando pombos nas praças. Eles (os pombos, não as velhinhas) não têm predadores naturais e se multiplicam feito praga. Ninguém quer saber da pomba da paz, se é que algum dia isso aconteceu. E o simbolismo cristão, acho que do Espírito Santo, não causa nenhum estremecimento em associação com essas aves citadinas. Com tamanha crise de identidade, não duvido que estejamos às portas de uma crise pombalina. Algumas pessoas são como os pombos. Perderam a identidade ou são infelizes. O que dizer então à pessoa que empacou, e não consegue ver que a vida continua, que todo caminho tem atalhos, pedras, subidas e descidas, que a vida não se resume a uma preocupação eterna consigo mesma? O que dizer para uma pessoa que é infeliz durante vinte e quatro horas por dia, sete dias da semana? Mais complicado é dialogar com quem acredita que a felicidade tem que ser uma busca de satisfação egoísta, que só vale para o eu e o aqui e agora.
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Pobre terça-feira Tenho dó da terça-feira. Parece ser o dia da semana mais esquecido, menos prezado. Alguém comemora aniversário numa terça-feira? A não ser que queira comemorar sozinho, ou sozinha, pois todos estarão trabalhando ou ocupados com alguma coisa. Existe feriado na terça-feira? Nesse caso, a vantagem vai para a segunda, porque se aproveitam os dias mais importantes (sábado, domingo, segunda) e fica a terça-feira para se reorganizar a semana de trabalho. Alguém começa férias numa terça-feira? Melhor começar na segunda, porque se ganha o sábado e o domingo! Sexta-feira é um dia especial, que todos esperamos chegar; sábado e domingo são dias de descanso ou festa, ou pescaria, ou praia. Segunda-feira é importante porque ou se odeia (a tal história de falem mal, mas falem de mim) ou se espera ansioso quando se inicia um trabalho. Quarta-feira é o meio da semana, quinta-feira é quase fim de semana. Sobra a terça-feira, sem personalidade nenhuma. Pobre terça-feira! Um amigo leu e comentou este texto: como ele odeia segunda-feira, ele acha que a terça é mais do que especial, porque é o dia mais distante da próxima segunda-feira.
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Pernas As pessoas passam cheias de pernas e coxas: finas, gordas, esculturais, tortas, com e sem celulite, ossudas, carnudas, brancas, negras ou bronzeadas. Olhares gordos de volúpia se fixam numa ou noutra. São olhares de pernas e coxas, mais do que de pessoas. Os bondes já circularam cheios de pernas, mas era um tempo diferente. Hoje não há mais bondes, nem ônibus elétricos. Os trens do metrô, onde os há, já não exibem pernas. Nos horários de pico homens forçam intimidades cafajestes. As mulheres, vítimas, reclamam, mas todos se calam. Nos trens não cabem pernas, só encostos indesejáveis, evitáveis ou inevitáveis. Não há poesia possível nos horários de pico.
Ora, árvores! Fico imaginando como se sentem as árvores plantadas nas calçadas ou no asfalto. Falo daquelas que ficam presas pelo cimento e pelas pedras, sem condições de expandirem seus troncos. Será que elas se sentem asfixiadas, ou presas por correntes como prisioneiros em masmorras? Também imagino como se sentem as árvores que não podem crescer (bonsais). Uma das minhas cunhadas diz que não gosta de bonsais e explicou ser essa a razão. A partir daí criei certa antipatia por essa arte de jardinagem. Fico pensando nas chinesas de antigamente que tinham os pés atrofiados pelo uso de sapatos apertados. E em tantos costumes considerados culturais, mas que se tornam uma agressão à natureza.
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Deve ser por isso que tantas árvores caem nos períodos de chuva. Elas tentam fugir da prisão e, por falta de treino, morrem.
Leveza Pois tem dias que acordamos mais leves, com vontades várias: de assobiar músicas ensolaradas, de abraçar pessoas desconhecidas, de escrever cartas para os amigos. E até de retribuir o sorriso de um desafeto. Mesmo que seja um sorriso irônico, mas ainda um sorriso. Deve haver motivos para isso. Um deles é ter adormecido com a sensação de que há pessoas que se importam conosco. É tão salutar para o corpo e para a alma essa sensação, que acho que todos nós deveríamos demonstrar, sempre que possível, como nos importamos com as pessoas. Sem ironia, sem ostentação, sem intrometimento. Apenas com sinceridade. Passei em frente a um edifício em construção. Do outro lado da rua um garoto de aproximadamente 12 anos, acompanhado de uma mulher que presumi ser sua mãe, olhava boquiaberto e com os olhos arregalados para o topo da construção. Sua mãe lhe explicava e apontava o pai a trabalhar na obra. Dava para se notar o orgulho do garoto. Certamente ele vai acordar mais leve sempre que se lembrar do pai. E o pai vai acordar mais leve ao se lembrar do filho que se orgulhava dele. Eu não conheço outra palavra para esse tipo de orgulho, que nos faz bem e não ofende os outros, porque não tem a ver com ostentação.
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A cidade dentro da cidade Em todas as cidades, mesmo as dos países ricos, há sempre um ou mais bairros onde as pessoas mais humildes residem. Em todas as cidades há, também, zonas de comércio mais barato. Juiz de Fora não é exceção. Há ruas onde mal se pode andar. Elas concentram pequenas lojas que invadem as calçadas com suas mercadorias “made in” China, grande número de lanchonetes, restaurantes de comida a quilo, ou de bufê a preço fixo, lojas de tecidos, de bolsas e malas e de material de construção, sapateiros, relojoeiros, açougues, médicos e dentistas, academias de ginástica e farmácias. É praticamente uma cidade dentro da cidade. Os tipos físicos que circulam nesse ambiente são os mesmos em qualquer lugar. Homens com cara sofrida, mulheres barrigudas e ainda carregando seus bebês nos braços, adolescentes com calças ou saias curtíssimas, imitando a moda das novelas. E jovens e adultos a exibir tatuagens e celulares. Mulheres obesas e homens obesos se dividem entre uma e outra lanchonete que proclamam ter o melhor pastel da cidade. Homens e mulheres, invisíveis sob placas de compra de ouro, surgem do nada e enchem os calçadões. Crianças reclamam do cansaço e pedem, às avós ou às mães, chocolate ou picolé. Barracas de frutas espalham-se ao longo das ruas menos centrais, irradiando o cheiro de abacaxis e frutas descascadas, para serem comidas ali mesmo. E há os diálogos mais improváveis para quem passa apressado e consegue ouvir somente palavras soltas. São essas mesmas pessoas que enchem as filas do SUS e do INSS. Elas vêm de bairros afastados, chegam cansadas e carregadas de sacolas. As mães têm sempre um pacote de biscoito
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recheado para enganar a fome dos pequenos. E são elas, quase sempre, que ficam nas filas. É impossível ver tudo isso e não se lembrar de Gente Humilde, de Chico Buarque: E aí me dá uma tristeza no meu peito, Feito um despeito de eu não ter como lutar, E eu que não creio, peço a Deus por minha gente, É gente humilde, que vontade de chorar.
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Despedida: Renaldi, Francisco e Pedro
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Capítulo 4
Confissões
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Aprender a esquecer Nas suas memórias, Minhas Universidades, Gorki escreveu que num dado momento da sua juventude “ainda não sabia esquecer as coisas desnecessárias”. Isso me preocupa, pois, já sendo considerado um idoso (pelo menos para enfrentar as filas dos correios, dos aeroportos, dos bancos e usar gratuitamente o transporte público), ainda não aprendi a esquecer o que é desnecessário. Felizmente, ainda não esqueci muitas coisas necessárias. Tem sido para mim um longo e sofrido aprendizado: dosar o que devo guardar do que é bom e útil e o quanto devo apagar da memória o que é ruim, danoso, desnecessário. Conheço algumas pessoas que fazem essa operação com maestria, mas parece que não existe receita pronta. Gente como eu, que não aprendeu quando jovem, tem que aprender de pouco em pouco, quase que diariamente, e aprender errando e acertando.
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Átomos e células Acordo e sei que estou vivo, e que todos ou a maioria dos meus átomos estão reunidos para formar meu corpo (e mente?). Penso na maravilha que é possuir átomos que já existiam antes mesmo de haver vida na terra; a maioria com bilhões de anos. É uma maravilha ter átomos que já formaram estrelas e que continuam e continuarão construindo ou formando ou alimentando o mundo e a humanidade. Enfim – tudo que somos e tudo que nos cerca – desde o ar, as flores e a água, até as frutas, o suor e as perebas. Posso ter no meu corpo átomos que fizeram parte dos dedos de Mozart, das sandálias de São Pedro, do leite da Virgem Maria, dos cabelos de Madalena, ou – por outro lado – da cicuta que matou Sócrates, da urina de Nero, do sangue de Jack, o estripador, ou da gordura da bunda de Hitler. Tenho que me conformar – de médicos e de monstros somos todos formados. O que me faz pensar como é vão e ridículo qualquer preconceito. Somos todos, ricos e pobres, negros e brancos, homens e mulheres, formados dos mesmos tijolinhos, e não temos como escapar disso. Sei que “meus” átomos vão estar lá na frente, durante muitos séculos, nas lágrimas e na saliva, nas unhas e no esmalte, nas fezes dos gatos, na água das cataratas do Iguaçu – enfim, em todo e qualquer lugar. Se o mundo acabar – um dia o sol vai se consumir e a vida na terra, como a conhecemos, chegará a um fim -, os átomos sobreviverão e continuarão formando outras estruturas. Dá até orgulho pensar que esta breve passagem pelo mundo me faz uma ponte entre milhões ou bilhões de anos do passado e entre milhões e bilhões (espero!) de anos no futuro. Pensando bem, somos todos muito especiais, iguais e merecemos ser felizes.
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Portas e janelas Até determinada idade, a gente vive para abrir portas e janelas. Depois, as portas e janelas começam a se fechar. Felizmente é assim. Com as janelas e portas fechadas, a gente sai da zona de conforto e vai para o jardim, para a horta, ou para a praça, e aí não existem mais janelas nem portas para nos segurar. Eu estou nesta fase, e estou feliz.
A ponte e o rio Quando Antoine de Saint-Exupéry era mais lido, e não apenas por causa de O Pequeno Príncipe, uma frase sua era muito citada: “Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção”. Lembrei-me dessa frase quando estava pensando sobre amigos e amizades, porque li em algum lugar que muitas pessoas se decepcionam com os amigos, mais até do que com os inimigos. Penso que a decepção se dá porque temos expectativas dos amigos diferentes das que eles têm de nós, e dos inimigos já sabemos o que esperar. Penso na amizade como uma ponte muito alta, construída sobre um rio. Posso estar embaixo da ponte, olhando o leito do rio, interessado nos peixes e nas pedras. Meu amigo sobre a ponte, prestando atenção num pássaro, num avião ou numa moto que passa fazendo barulho. Ele me vê de um ângulo; eu o vejo de outro. A perspectiva que ele tem de mim é uma, a que tenho dele é outra. A ponte e o rio são os mesmos para nós dois, mas vejo
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a ponte de baixo, e ele olha o rio de cima. Estou absorvido com a correnteza do rio, ele com as nuvens. O momento dele pode ser de pressa, enquanto eu tenho todo o tempo do mundo. Posso olhar para cima e ele ter sumido. Não significa que me abandonou, apenas que seu momento é outro. Posso colocar uma pessoa no topo da minha lista, mas essa pessoa pode me colocar apenas em quinto ou sexto lugar na sua lista. Isso não significa que um esteja errado e o outro certo, apenas que vemos a amizade de ângulos diferentes. Como uma ponte. Ou como um rio.
Saudade Sabe aqueles dias em que você se sente como quem partiu ou morreu, que tem vontade de se abandonar no tapete atrás da porta, e tem a impressão de que terminará chorando debaixo do cobertor? Que por mais que você pense que tem mil motivos para dar gracias à la vida, não resolverá seus problemas pensando na possibilidade de volver a los 17, e não adianta sequer pensar em todos os amigos que tem guardados no lado esquerdo do peito? Que mesmo que você leve suas mágoas para as profundezas do mar de Mucuripe, ou sacuda a poeira e dê a volta por cima, ainda assim a tristeza não passa, nem que você peça delicadamente para ela ir embora? Sabe quando você olha para o céu e só vê um mata-borrão de nuvens e manchas torturadas, e sente uma saudade de não-sei-quê, que amarga que nem jiló? Sabe aquela saudade tão grande de Recife, que não passa, nem se fosse arrastada por um rio que passasse em sua vida? Pois é como me sinto às vezes. Então, fico
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bem quietinho e calado, curtindo, como se tivesse um bicho de pé, que incomoda, mas que dá uma coceira gostosa e que a gente chega a pensar em não tirar, para deixar incomodando mais um pouco.
Jesus Podemos acreditar em Jesus e seus ensinamentos movidos pela fé. Isso ninguém explica, nasce no coração. Mas podemos também acreditar ou conhecer Jesus estudando sua história, tendo fé ou não. Podemos juntar as duas coisas: usar o coração para ter fé e a razão para confirmar essa fé por meio do conhecimento histórico. Podemos nem ser cristãos, e não ter fé, mas ainda assim conhecer Jesus como homem, revolucionário, filósofo, e muitos outros aspectos, como conhecemos Sócrates, Leonardo da Vinci ou Machado de Assis. Acabo de ler um dos livros mais interessantes da minha vida: Jesus, aproximação histórica, escrito por José Antonio Pagola (Editora Vozes). Esse autor estudou a trajetória de Jesus e o ambiente onde ele viveu, especialmente a Galileia e vizinhanças, na época sob o domínio de Roma, desde seu nascimento até sua morte e ressurreição, em Jerusalém. É um livro sério, fundamentado em descobertas históricas e fontes insuspeitas e, por isso, não é fácil, nem romanceado, não induz a desvarios, nem se presta a virar filme. Jesus é para mim o maior revolucionário da história: nesse sentido ele foi mais profundo e mais radical do que todos os demais, de Gandhi a Karl Marx, de Guevara a Tiradentes – sem tirar o mérito de nenhum deles. Muito pelo contrário. Esses foram
revolucionários, mas Jesus já mostrara o caminho na sua época – por sinal, em condições muito mais difíceis. As opções de Jesus pelos pobres, pelos doentes, pelas mulheres, pelos perseguidos, dizem tudo sobre ele. Jesus rompeu com a tradição dos profetas, inclusive João Batista, para dizer que o reino de Deus começa aqui, agora. Para ele, Deus quer que os homens e mulheres sejam felizes na terra. O Deus de Jesus não castiga, compreende; não condena, perdoa; não impera, pede paz. Por isso, ele acolhe leprosos, prostitutas, doentes mentais, possessos, crianças e não judeus, e lhes dá um lugar à mesa. Ensina que o sol nasce para todos, não somente para uma classe de privilegiados ou de “santos”, mesmo que seja a classe dos sacerdotes. Porque todos somos filhos de um Deus Pai. Hoje, quando os heróis da nossa sociedade são jogadores de futebol e outros atletas, cantores e cantoras e estrelas da televisão, seria bom se nas nossas casas fosse aberto um espaço para estudar a vida dos homens e mulheres que fizeram e fazem diferença no mundo. Entre esses homens e mulheres Jesus ocupa um destaque que está acima das igrejas, da fé, da religião. Sempre acreditei em Jesus, e penso que tenho fé, mas agora fico mais tranquilo porque essa fé tem alicerces mais sólidos. Fico feliz por ter oportunidade de conhecer um pouco mais da história de Jesus e por entender melhor o que é esse reino de Deus que ele anunciou com tanta sabedoria. Não sei o que mais posso querer.
Etiqueta Jamais me referi à Cida como minha esposa e vice-versa. Sempre nos tratamos como marido e mulher. Há muito tempo não sabia a melhor forma de tratar os outros casais. Até que li, não lembro onde, a sugestão que resolveu esse problema de convivência social: a mulher dos outros é esposa. O marido das outras é esposo. E ponto final. Tem gente que parece nascer com as regras de etiqueta na cabeça. Deve ser genético. Eu nasci com a casca dura, completamente ignorante, e tive que aprender tudo. Ainda cometo gafes que envergonhariam qualquer criança. Parece que tenho um talento nato para dizer as coisas erradas nas horas mais erradas (e também nas horas certas). Não consigo sair ileso de qualquer encontro. Tem sempre uma frase que uso e depois me arrependo, ou que sinto que não deveria ter dito, ou que deveria ter dito de outra forma. Pior é quando não encontro nenhuma palavra que seja apropriada para o momento. Fico calado, por não encontrar as palavras adequadas para a situação ou por medo de me expressar de maneira errada. Infelizmente é nessas horas que a outra pessoa espera ouvir um comentário, uma palavra. Ou um simples gesto. Parece-me que outras pessoas não sofrem desse problema e têm sempre a palavra certa para dizer em qualquer situação. É uma benção ter esse talento. É muito bom conviver com pessoas assim. E deve ser irritante conviver com pessoas como eu. Por isso, eu compreendo se alguém não me suporta ou me evita. Essas pessoas só têm a ganhar me evitando. Eu também.
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Nossas escolhas Há pouco estava pensando numa das épocas mais difíceis e também mais felizes da minha vida (depois de minha infância em Tabira). Isso quer dizer que nem sempre as dificuldades são requisito para a infelicidade. Quando nos distanciamos dos acontecimentos, no espaço ou no tempo, temos mais facilidade para avaliar qualquer situação. Às vezes, o que nos parece ser o melhor nem sempre traz a satisfação que esperávamos – e vice-versa. A vida às vezes é como uma eleição: a gente nunca tem a garantia de que o candidato vencedor fará tudo que prometeu e como prometeu, mas é sempre melhor escolher e assumir a escolha do que ser engolido, ou picado, pela cobra que os outros criaram.
O dia que amanheci blue Hoje amanheci com 300 anos. O mundo parece pesado demais. Sinto o peso de toneladas de ar nos meus ombros. A poesia parece ter sumido da face da terra. Não ouvi o canto matinal dos bem-te-vis. Não enxerguei as flores que ontem me encantaram. E essa sensação de náusea existencial não termina. Como dizem os poetas de língua inglesa, hoje eu estou blue. Se soubesse tocar bandoneon ou outro instrumento apropriado, seguiria o conselho do médico de Manuel Bandeira e tocaria um tango argentino.
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Preguiça utópica Hoje eu só queria ficar em casa, e vestir uma roupa velha, desbotada e confortável, dessas que a gente esconde para ninguém ver, e só veste quando está absolutamente sozinho. Eu queria ter o tempo somente como companhia. Sentir o tempo passando, como se fosse uma nuvem de algodão doce, sem pressa, sem nenhuma pressão. Queria não pensar em nada, não ouvir nada, somente os estalidos da madeira que acusa as mudanças do tempo. Ter a madeira entranhada no tempo como companhia. Queria ao fim da tarde receber uma carta, como antigamente, quando as noticias amadureciam antes de a gente ter conhecimento delas. E se não fosse pedir muito, queria me sentir suficiente de mim mesmo. Sem sobras, sem faltas.
Trajetória Ao nascer, recebemos dois sacos (ou mochilas, para os mais novos) invisíveis, que carregamos pela vida inteira. Um saco é leve e carrega os perfumes e essências da arrogância, da avareza, da falsidade, da ingratidão, do falso testemunho, da intriga, da injustiça, da inveja, da infidelidade, da cobiça, da vaidade, entre outros. Esse é o saco das maldades. O outro saco é mais pesado e difícil de carregar. Nele se encontram vários saquinhos menores rotulados como bondade, compaixão, gratidão, solidariedade, perseverança, humildade, fidelidade, generosidade, boa-fé, simplicidade e outras virtudes.
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Cada vez que praticamos uma dessas virtudes, transferimos o perfume do seu oposto para o saco de bondades, como este é chamado. E cada vez que usamos a fragrância de uma das maldades, colocamos no respectivo saco uma pedra mefítica. A vida que levamos poderá ser mais leve e perfumada à medida que enchemos nosso saco de bondades. Ou pode ficar mais pesada e malcheirosa à medida que enchemos nosso saco de maldades. Embora esses pesos e cheiros estejam no nosso interior, eles podem se refletir no nosso olhar: bondoso ou perverso; nas nossas atitudes: calmas ou angustiadas; ou nas nossas relações: tranquilas ou traiçoeiras. Esses traços, na maioria das vezes, são visíveis para nossas vítimas ou nosso próximo, mas raramente nos damos conta. É como se fôssemos o retrato de Dorian Gray pelo avesso. Se tivermos sorte e vontade, ao longo da vida nos sentiremos como se o saco de bondades de tão cheio se transformasse num balão de onde podemos desfrutar da melhor visão que se pode ter da humanidade. Do contrário, ficaremos agarrados a um saco de pedras que reflete a pequenez dos nossos rancores, a gosma repelente do nosso egoísmo ou as vestes ensebadas da nossa cobiça.
Mais dúvidas Por que nos preocupamos com o que os outros podem pensar sobre nós, ou sobre nossos atos, ou como nos vestimos, o que comemos, o que bebemos, com quem saímos, com quem não saímos..., se não temos sequer a certeza de que os outros nos notam ou nos dão a menor das atenções?
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O lugar de todos os lugares Em alguns círculos não se usa mais sertão para definir os sertões que vão do Nordeste até Minas Gerais. Emprega-se, em vez, “região do semiárido”. Não sei exatamente os motivos para essa mudança, que seria talvez justificada pela conotação pejorativa que, na cabeça de alguns burocratas, tem a palavra “sertão”. Talvez esteja demasiado associada à pobreza, aos paus de arara, à penúria, à seca. Os burocratas talvez não conheçam Luiz Gonzaga e seus parceiros, nem João Guimarães Rosa, nem Euclides da Cunha. Semiárido não cabe num verso. Duvido que algum poeta escreva uma música com o nome “O luar do semiárido”. Ou cante: “Prepare o seu coração / Pras coisas que eu vou contar / Eu venho lá do semiárido...” Mia Couto, analisando a obra de Guimarães Rosa, escreveu: A palavra “sertão” é curiosa. A sonoridade sugere o verbo “ser” numa dimensão empolada. Ser tão, existir tanto. Os portugueses levaram a palavra para a África e tentaram nomear assim a paisagem da savana. Não resultou. A palavra não ganhou raiz. Apenas nos escritos coloniais antigos se pode encontrar o termo “sertão”. Quase ninguém hoje, em Moçambique e Angola, reconhece o seu significado. João Guimarães Rosa criou esse lugar fantástico e fez dele uma espécie de lugar de todos os lugares. O sertão e as veredas de que ele fala não são da ordem da geografia. O sertão é um mundo construído na linguagem. “O sertão”, diz ele, “está dentro de nós”. Rosa não escreve sobre o sertão. Ele escreve como se ele fosse o sertão. É este sentimento que eu tenho: trago o sertão também dentro de mim. Deixo que o semiárido se ocupe dos burocratas.
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Amigo imaginário Se eu tivesse um amigo imaginário, conversaria com ele sobre muitos assuntos. Falaria sobre desespero, solidão, tristeza, falta de fé. Assuntos que são muito pesados para falar com pessoas reais, próximas ou distantes. Se eu tivesse um amigo imaginário falaria também de coisas leves: o pôr do sol, a lua cheia, o sorriso dos velhos, a florada dos ipês, a chegada da primavera antecipada. Assuntos fora do foco das situações que vivenciamos todos os dias, em que se é quase que obrigado a falar de assaltos, incêndios florestais, bombardeios e quedas de aeronaves. Se eu tivesse um amigo imaginário não precisaria manter um diário de anotações das coisas que me passam pela cabeça: eu depositaria essas anotações na mente desse amigo. Lá, elas ficariam bem guardadas e, talvez, ignoradas. Para sempre.
Milagres e magia Um dos textos mais bonitos do Novo Testamento, para mim, é o relato do milagre da multiplicação dos pães e dos peixes. Todos se lembram do episódio descrito por Mateus e pelos demais evangelistas. Jesus havia se retirado para rezar, após receber a notícia do assassinato de João Batista, a mando de Herodes Antipas. Uma grande multidão o seguia para ouvir seus ensinamentos. Já se aproximava o fim do dia quando os discípulos preocupados pediram a Jesus para despedir a multidão, porque não havia como alimentar tanta gente.
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O evangelista conta que havia cerca de cinco mil homens, sem contar mulheres e crianças. Jesus disse aos discípulos para providenciarem, eles mesmos, o alimento, e eles alegaram que ali perto não havia um mercado para comprar comida. Jesus simplesmente lhes disse para descobrirem um meio entre as pessoas presentes. Os discípulos encontraram uma criança que tinha dois peixes e cinco pães e os levaram até Jesus. Ele os abençoou, pediu que todos se sentassem e passou a repartir os pães e os peixes, no que foi seguido por todos. O resultado é que todos foram alimentados e ainda sobrou pão e peixe para encher doze cestos. O verdadeiro milagre de Jesus foi ensinar às pessoas que se compartilhassem o que tinham, haveria comida para todos, e em abundância, pois ele sabia que naquela multidão haveria mais pessoas carregando mantimentos, que provavelmente seriam mais pães e mais peixes. Jesus não fez uma mágica para transformar cinco pães e dois peixes em centenas de pães e de peixes. Ele ensinou algo mais importante: a necessidade de compartilhar o que se tem, mesmo sendo pouco. Por isso não tenho dúvida de que os ensinamentos de Jesus continuam atuais e se fossem seguidos haveria menos fome e mais justiça no mundo.
Existência Gosto de imaginar a nossa existência como uma estrada a ser percorrida, desde o berço até a morte. Alguns nascem em palácios, ou mansões, ou casas, ou apartamentos, ou em casebres, ou debaixo dos viadutos. Começamos desiguais, mas, felizmente, ao nascer, não temos consciência disso, o que coloca todos mais ou
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menos em igualdade. À nossa frente, surge um jardim que para alguns é apenas um gramado, para outros um lugar cheio de flores, e para outros apenas um quintal sem graça. Cada um segue como pode, e como ainda não temos consciência das belezas dos jardins dos outros, achamos o nosso mais do que adequado. Seguimos andando e passamos por estradas poeirentas ou asfaltadas, e por lagoas, rios e praias. Alguns trechos da estrada são prazerosos e sombreados, outros são muito íngremes e cansativos, outros são repletos de perigos, outros são cheios de despenhadeiros e outros, ainda, são desertos. Encontramos todos os dias pessoas que nos são simpáticas e outras que preferimos evitar, porque temos pressa para chegar a algum lugar que nem sequer sabemos qual seja. Algumas pessoas farão parte da nossa vida e compartilharemos vários trechos, curtos ou longos, da estrada. Outras pessoas passarão por nós de mansinho e nunca mais teremos notícias delas. Algumas pessoas nos convidam para construir uma ponte sobre um despenhadeiro para facilitar a passagem de outras pessoas. Ou nos juntamos a elas, ou preferimos continuar em nossa estrada, sozinhos, sem nos importar com a caminhada dos desconhecidos. Utilizamos pontes, ou escadas, que foram construídas por esses desconhecidos, sem nos darmos conta do esforço de anônimos para construí-las como, aliás, quase tudo que utilizamos na nossa caminhada. Muitas vezes, quando temos sede, pedimos e recebemos água para beber. Noutras nos negam um copo d’água. Algumas vezes nós damos ou negamos água, ou comida, aos outros. Frequentemente chegamos a encruzilhadas e temos que decidir qual rumo seguir. Às vezes, confiamos em pessoas que parecem mais experientes, que nos orientam. Mesmo assim, esses
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conselhos podem nos parecer capciosos e preferimos retornar à encruzilhada para escolher outra rota. Mais à frente encontramos pessoas que escolheram outra rota e encontraram tesouros. Lastimamos não ter tido a mesma sorte e desejamos que essas pessoas percam seus tesouros, porque achamos que elas não os mereceram – só porque tiveram a sorte de escolher uma rota diferente. Outras vezes ficamos sabendo que alguém escolheu uma rota diferente e se perdeu, ou morreu, mas não paramos para pensar muito sobre isso. Ou então sentimos tristeza quando guardamos boas recordações dessas pessoas. À medida que envelhecemos, paramos mais vezes à beira da estrada para descansar e, de vez em quando, meditar. Muitas vezes nos sentimos injustiçados por não termos tido uma caminhada mais segura e confortável. Culpamos os outros por isso, ou sentimos inveja quando vemos passar pessoas mais descansadas e preparadas para a caminhada. No nosso íntimo reclamamos do destino (ou de alguém) por não termos as mesmas facilidades que todos os outros parecem ter. Não consideramos que essas pessoas podem ter se preparado melhor para a caminhada. Com maior frequência do que gostaríamos, imaginamos que as estradas que os outros escolheram são sempre cheias de rosas e frutos maduros, prontos para serem apanhados. Deixamos de considerar que tanto as roseiras quanto as árvores foram plantadas por quem teve a sabedoria de esperar pacientemente pelos frutos e pelas rosas. Quando ainda somos jovens, temos muita pressa e estranhamos o ritmo mais lento que os outros estabelecem para sua caminhada. Com frequência nos impacientamos quando alguém que nos faz companhia caminha mais lentamente do que nós, e nos esquecemos de perguntar se esse alguém tem algum problema, ou prefere seguir um ritmo mais lento.
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Muitas vezes esquecemos que nosso objetivo é simplesmente caminhar e conhecer o que nos cerca e, especialmente, quem nos cerca. Colocamos nossa meta longe demais, e de tanto olhar para o longínquo, não olhamos em volta e não percebemos que há muitos pontos de descanso ao longo da estrada. Deixamos de apreciar o que está ao nosso alcance em troca de uma miragem. Mas há momentos em que ficamos em paz, e nos recolhemos sem nenhuma pressa. Passamos a apreciar o quanto e como caminhamos, não importando se é curta ou longa a distância que ainda temos que percorrer. Temos oportunidade de dar o devido valor a certos fatos de nossa vida que pareciam ser demasiado importantes, ou, por outro lado, reavaliamos coisas a que não demos a devida importância no devido tempo. Podemos relembrar as pessoas com quem convivemos, os frutos que comemos e os que deixamos de comer. Podemos concluir que tudo valeu a pena. Ou podemos nos amargurar, se entendermos que nossa caminhada foi um exercício inútil. Aprendemos que é inútil repensar os rumos que nossa vida poderia ter tido se tivéssemos tomado uma decisão diferente em alguma encruzilhada. E entenderemos que os bens materiais que armazenamos ou os que deixamos de armazenar não têm a importância que pareciam ter. Se tivermos sorte, veremos que os acontecimentos mais significativos da caminhada nossa e dos outros estão guardados na nossa memória, e este é o nosso maior tesouro.
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Saudades do mar Tem dias que sinto falta do mar. De ouvir o barulho das ondas que morrem ou chegam até a praia, e de ouvir esse barulho incessante e incansável das ondas que se repetem religiosamente e exatamente, como uma equação matemática. Tem dias que sinto falta de caminhar à beira-mar enquanto olho o horizonte que aproxima céu e água, como se o céu mergulhasse na água ou como se a água se emendasse com o céu. Tem momentos que sinto saudade da maresia, desse ar morno e salgado que impregna a roupa, os pés, os braços, o cabelo. Tem momentos que sinto falta de molhar os pés na água, somente os pés, sentindo a areia molhada entre os dedos. E depois, de beber água de coco numa barraca da orla. Tem dias que sinto falta da barreira de recifes (que em Pernambuco chamamos de arrecifes para diferenciar de Recife) que forma piscinas naturais e nos livra dos tubarões. Tem dias que sinto falta das embarcações ao longe, que chegam ou partem lentamente do porto. Sinto falta dos vendedores de amendoim cozido, camarões fritos ou sorvetes, que oferecem cadeiras e guarda-sol, em troca da compra de seus comes e bebes. Não tem como negar: tá na hora de voltar pra minha terra, para recarregar o olhar, adocicar o olfato, sentir o suor descendo sem conseguir vencer o calor mesmo às 7 horas da manhã.
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Arrependimento e remorso Podemos nos arrepender de muitas coisas: não ter comprado (ou ter comprado) um par de sapatos, não ter assistido a determinado filme, não ter tomado a vacina contra a gripe ou ter recusado uma sobremesa. Ou, ainda, de ter falado uma verdade que doeu, ter esquecido de sorrir para um amigo quando ele precisava de um afago, ou ter esquecido de dar os parabéns para um filho que se esforçou para ganhar uma boa nota na escola. Podemos nos arrepender, mas nem sempre isso significa remorso. Tudo indica que o remorso está ligado à falta de bondade ou mesmo à maldade – quando, por exemplo, a pessoa poderia ter evitado um atropelamento e não fez nada para evitar. Ou quando agimos por maldade, caluniando ou disseminando mentiras para prejudicar alguém. A pessoa que tenha um pouco de consciência, pode se arrepender, mas num segundo estágio, bate o remorso. O arrependimento geralmente diz respeito ao nosso bem-estar espiritual ou moral. Podemos corrigir com uma desculpa ou uma conversa franca e geralmente as pessoas se esquecem de nossas pequenas ingratidões, na mesma medida que esquecemos as dos outros. Já a cura do remorso é mais difícil, porque depende da capacidade de perdoar dos outros e, mesmo que os outros perdoem, dificilmente esquecem. Porque perdoar não implica esquecimento. Perdoar é como dar uma segunda chance, enquanto esquecer é como dar um cheque em branco assinado para quem não merece nossa confiança.
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esespero O desespero quando chega não pede licença, não mostra convite. Ele chega devagarinho, sonsamente, se acomoda no melhor sofá da casa e de lá fica nos mirando como se fôssemos um livro aberto, de letras garrafais, onde todas as nossas fraquezas são descritas com pormenores. O desespero não perdoa, não tem compaixão, não fala com doçura, não marca hora para ir embora, nem avisa quanto tempo fica. Ele às vezes vem acompanhado de seus comparsas: o medo, a mudez, a paralisia, a loucura, a dor, a solidão. Dá-nos a impressão de que o mero ato de existir dói. Ele não parece se encaixar em nada que nos pertença e, no entanto, encontra sempre um lugar vazio e confortável para se instalar, de modo que não tem nenhuma pressa de dizer adeus ou até logo. Vai ficando, e ficando, e se não o expulsamos, passa a fazer parte da nossa mobília. Ou da família.
Dor emocional profunda E aí me disseram que a causa da minha doença era uma dor emocional profunda. Não uma dor qualquer, mas uma dessas dores que a gente não sente, e que não tem aspirina que dê jeito. Uma dor que nos acompanha quando nos deitamos, quando levantamos, mesmo quando dormimos, e quando sorrimos, choramos ou nos calamos. Deve ser uma dor que adormeceu de tanto sentir. Ou uma dor que dói só de notar que estamos vivos. Uma dor que é quase nossa alma gêmea – que passamos a não
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ter razão de existir se ela não está próxima. Mas para que serve essa dor se não for somente para causar uma doença que não se cura ou não tem cura? Será que ela é como o pecado original, que nasce conosco, não importando se somos inocentes? Ou será que ela se acumula aos poucos num canto da alma, a cada desengano, tristeza ou saudade? Aí descobri que pensar não dói... às vezes.
Atletas de Deus Deus não é responsável pela vitória do time de futebol (senão seria sempre empate), nem pelos recordes dos cem metros no atletismo ou nas piscinas. Se fosse por Ele, certamente sairia tudo empatado, porque nenhum ser humano é melhor do que outro. Acho que foi Santo Agostinho quem chegou perto de resolver essa questão definindo o livre-arbítrio. Nós somos responsáveis pelos nossos atos e nossos esforços. Senão quando meu time perde, ou quando tiro (tirava) uma nota baixa na prova, seria culpa de Deus. Se um atleta não se esforçar, treinar, alimentar corretamente, não vencerá. E não será Deus que dará um sopro para esse atleta chegar primeiro. É por isso que não me comovo quando os atletas colocam na mão de Deus sua vitória (ou de seu time). Deus deve usar algodão nos ouvidos para não ouvir tanta asneira.
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Sorte Todos nós passamos por momentos difíceis. Alguns têm a sorte de contar com familiares e amigos e amigas que facilitam tudo. Sem eles, não sobraria lugar para a esperança. Com eles, nos sentimos fortalecidos e preparados para enfrentar os maiores desafios. Agradeço todos os dias por ter essas pessoas ao meu redor, que estão sempre comigo nos melhores e piores momentos. São meus anjos da guarda, minhas fortalezas, meus xodós.
Prazo de validade Decidi que o prazo de validade de minha vida até aqui vencerá no meu próximo aniversário, em março. Terei, então, oportunidade de recomeçar, apesar de saber que o prazo de validade agora será mais curto: 30 anos no cenário mais otimista. Já calculei as vantagens e desvantagens e acredito que terei mais vantagens nessa nova existência. Já recomeçarei casado e feliz, com dois filhos, um neto, duas noras, sete irmãs, uma porção de cunhados, cunhadas, concunhados e concunhadas, um sem número de primos, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas e muitos amigos e amigas. Não precisarei passar por autoescola nem pelo exame de motorista. Não precisarei me estressar para aprender álgebra, logaritmos e todas as matérias do vestibular ou Enem, nem prestar concurso, nem tomar a maioria das vacinas. Não passarei pela dor de perder muitos amigos e parentes, incluindo meus pais. Não sentirei saudades da casa paterna quando for estudar noutra
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cidade. Não precisarei escrever e defender teses, nem trabalhar; já recomeçarei aposentado e experiente em muitos aspectos. E inexperiente em outros, senão a nova vida não teria graça. Precisarei, é certo, me acostumar com as inconveniências do avanço da idade. Será enfadonho repetir tudo o mais que minha nova condição exigirá, mas estou certo de que aproveitarei mais cada segundo dessa nova existência. Dessa forma, 30 anos poderão ser equivalentes aos 65 que estão se esgotando. Estou tão empolgado que sinto que deveria ter feito isso aos 50 anos.
Trinta motivos para se sentir feliz Adormecer. Dormir profundamente. Acordar. Levantar da cama sem cair. Ser capaz e ter condições de tomar café, almoçar e jantar todos os dias. Vestir-se sem ajuda. Escovar os dentes sem se cansar. Tomar banho sozinho. Caminhar sem ajuda. Cortar bifes sem ajuda. Conseguir abrir uma garrafa de vinho. Poder comer chocolate. Ter amigos e amigas. Acreditar em alguma coisa. Ter uma conta no banco com dinheiro suficiente para pagar as despesas da casa. Ser capaz de abraçar os outros. Ter vontade de abraçar os outros. Fazer sexo. Ouvir músicas de que gosta. Ter boas lembranças. Ter saudades da infância. Ter uma bermuda e uma camiseta disponíveis para relaxar em casa. Poder tomar café. Poder comer pão com manteiga. Ser capaz de sonhar com uma viagem e realizá-la. Rir. Ser capaz de enxergar o lado bom das pessoas. Praticar a solidariedade e respeitar os direitos dos outros. Gostar de ler. Conseguir rir do próprio infortúnio.
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Perfil: Renaldi Feitosa Brito
"É como se a urgência de expressar-se o assaltasse a cada instante e nos franqueasse as janelas de um mundo solar e misterioso, a um só tempo. O universo pessoal e social em que ele transita instiga a leitura e acende a imaginação.”
Beth Cataldo
ISBN 978-85-919949-0-8
9 788591 994908