Quinteto Violado - Álbum Berra Boi (1973)

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Projeto Álbum Se o avanço tecnológico trouxe novas e importantes possibilidades para a música, afora nostalgias e romantismos – o vinil praticamente definiu um formato de fruição musical, consolidando grande parte do arquivo sonoro feito no país com o manuseio da agulha entre uma faixa e outra para mudar de música, a capa em formato grande, o conceito de um trabalho expresso na sequência das faixas e o lado A e o lado B. O projeto Álbum remonta períodos da música brasileira por meio de registros fonográficos que ajudaram a construir sua história. São discos considerados clássicos por apresentarem em seu conteúdo inovações estéticas que influenciaram gerações, trazendo à tona o contexto político e a estética de uma época. Resgatar títulos expressivos da discografia da música brasileira e apresentá-los para o público em formato de show, abre uma possibilidade sem precedentes para a revitalização da memória cultural do país, bem como para a difusão de uma cultura que deve, necessariamente, ser dinâmica e transformadora. Lançar um olhar para o passado compreendendo-o como um ponto norteador para o entendimento do presente, propiciando assim um campo fértil para construção do que está por vir, é uma das ações constantes do Sesc. A tradição e a inovação mantêm diálogo no dia a dia da instituição, ambas entendidas de maneira que o estreitamento e a permeabilidade do relacionamento entre gerações contribuam e incentivem o surgimento de novos paradigmas para a arte e para a cultura.

Sesc Belenzinho


foto: divulgação


Berra Boi Berra boi, na Bahia, rói-rói em Pernambuco, é um brinquedo artesanal, que se vende nas feiras nordestinas, ou por ambulantes. É composto por um pedaço de pau curto, untado de breu numa extremidade, ligado por um cordão de caroá a uma caixa sonora feita de barro e papel. A caixinha, ao ser girada, emite um som que lembra o mugido de um boi. Músicos usam o berra boi para efeitos sonoros. “É semelhante ao berro do boi, ao vento no capim, a porteira rangendo, um som riquíssimo, característico da região, e que serve também para caracterizar a nossa música, que procura preservar os sons do folclore”, comentou o violonista Marcelo Melo na época do lançamento do álbum Berra Boi (1973), o segundo do Quinteto Violado. O LP tem a capa ilustrada com vários desses brinquedos carregados por um vendedor ambulante, numa feira do interior da Bahia (foto de Jamison Pedra). O motivo regional da capa foi escolha do próprio grupo, mais do produtor Roberto Santana, baiano e primo de Tom Zé. Não queriam arriscar a cair novamente no constrangimento por que passaram pela capa do álbum de estreia. O badalado primeiro disco do Quinteto Violado, lançado pela Phillips (1972), estampava na capa um vaqueiro futurista a cavalo, um belo desenho, que tinha a ver com a proposta da banda de modernizar a forma de tocar os ritmos nordestinos. Convidados para a Midem, feira de música que acontece em Cannes, no Sul da França, os integrantes do quinteto estarreceram-se ao ver um cartaz de Charge! disco da Paladin,


banda de rock progressivo inglesa pouco conhecida (acabaria no início de 1973). Essa capa do disco no cartaz tinha a mesma ilustração da capa do LP do grupo pernambucano, com uma sutil diferença: o capacete foi modificado. Tornou-se na “versão” brasileira um chapéu de couro. No mais era idêntica. Quem assina o desenho é Roger Dean, celebrado ilustrador de capas de álbuns de rock progressivo. Àquelas alturas já se vendera boa parte da tiragem inicial do álbum do QV. Os violados exigiram que a gravadora mudasse a capa. Assim foi feito. E aqui vale o antigo ditado popular, a emenda foi pior do que o soneto. Numa alusão à “Asa Branca” (Humberto Teixeira/Luiz Gonzaga), maior sucesso do disco, a nova capa trazia a foto de duas asas brancas voando, mas na verdade se tratavam de pombos. O disco, cuja edição original tinha o nome da banda como título. Com a nova capa passou a se chamar Asa Branca. Dali em diante as capas dos álbuns do Quinteto Violado seriam de responsabilidade da produção do grupo. Depois de uma ascensão meteórica com apenas um ano de formado, o Quinteto Violado encontrava-se na expectativa do segundo álbum. Ainda estava viajando pelo Brasil com o show do LP de estreia (lançado em setembro de 1972) quando montou um espetáculo inédito, levado ao palco do Teatro de Santa Isabel, na capital pernambucana: O Romance do Santo Guerreiro Contra As Baronesas do Recife, misto de músicas e poesia, com texto e direção de Benjamim Santos, cenários de Kátia Mesel e Lula Côrtes. Do repertório desse musical apenas a canção “Um Abraço ao Hermeto” estaria no próximo disco.


Um projeto conceitual, com composições que, em sua maioria, o grupo não tocara em público até então mas, assim como aconteceu com o álbum inaugural, o quinteto maturou o novo repertório no palco antes de adentrar o estúdio. O grupo fora a novidade da MPB em 1972, o que resultou em convite para apresentações sucessivas país afora. Isto numa época em que não se faziam apenas apresentações isoladas, mas temporadas, geralmente com mais de uma sessão no final de semana. O Quinteto Violado apresentou o show de Berra Boi durante um mês no teatro A sucessão de shows garantiu ao grupo um maior entrosamento entre os integrantes: Toinho Alves (contrabaixo), Marcelo Melo (violão), Fernando Filizola (viola), Luciano Pimentel (bateria) e Sando Johnson (flautas). O flautista foi o ultimo a entrar para o grupo. Um virtuoso precoce, então com 13 anos, que estudava música erudita, e que teve uma breve passagem pelo Armorial, movimento arquitetado pelo escritor Ariano Suassuna um pouco antes do surgimento do Quinteto Violado. Com exceção, pois de Sando, os demais integrantes tinham uma história na música pernambucana desde os primeiros anos da década de 60. Foram atuantes na MPB recifense entre 1965 e 1968, uma cena influenciada pela bossa nova, pela MPB dos festivais, mas também pelo Movimento de Cultura Popular, o MCP, criado na gestão de Miguel Arraes na prefeitura da capital de Pernambuco (o MCP foi a origem dos Centro Popular de Cultura, os CPCs, o mais notórios desses, o carioca CPC da Une). Então as manifestações da cultura popular faziam parte da bagagem musical


de Marcelo, Toinho, Luciano, e de Fernando (embora este, tenha sido guitarrista numa banda de rock, o Silver Jets, cujo vocalista era Reginaldo Rossi, futuro Rei do Brega). PESQUISA Umas das críticas que se faziam ao Quinteto Violado vinha da estranheza de ouvir o folclore nordestino tratado com requinte. O nacionalista José Ramos Tinhorão não perdoava os improvisos jazzísticos do baterista Luciano Pimentel. Tanto Pimentel quanto Toinho Alves tocaram em combos de bossa jazz no Recife. O grupo não se formou para preservar a pureza das manifestações musicais nordestinas, mesmo que fossem pesquisadores dedicados, responsáveis por um dos discos mais importantes já produzidos sobre a música da região, o álbum quadrúplo Música Popular do Nordeste, feito para a agência de Publicidade Marcus Pereira, mesclando músicos e intérpretes da música popular urbana , com repentistas, emboladores, a Banda de Pífanos de Caruaru, o lendário mestre cirandeiro Baracho, o trio Elétrico Tapajós. A intenção seria presentear o álbum como brinde, mas o espaço que recebeu da imprensa, levou Marcus Pereira, e seu sócio Aloizio Falcão, a fundarem uma gravadora homônima que, de tão bem sucedida, engoliria a agência (Música Popular do Nordeste foi lançado pelo selo Jogral, nome do bar do compositor Luis Carlos Paraná, um dos pontos de encontro de músicos, jornalista e publicitários em São Paulo).


Houve dois Berra Boi. O espetáculo musical, e o disco. O espetáculo foi mais teatro do que música, com roteiro de Roberto Santana. A primeira parte do espetáculo trazia uma miscelânea das mais diversas manifestações populares nordestinas, parte delas desconhecidas em outras regiões do país. O que dificultou o entendimento tanto para o público quanto para os críticos. Na revista elogiava-se o Quinteto Violado pelo tratamento dado ao folclore nordestino “que se supunha exaurido”. As manifestações musicais populares do Nordeste chegaram ao Sudeste em doses homeopáticas. Nos primeiros anos do século 20, Turunas Pernambucanos (1919), Turunas da Mauricéia (em 1926), O Voz do Sertão (1928) fizeram muito sucesso no Rio, com nomes feito Minona Carneiro, Augusto Calheiros, Jararaca, Ratinho, Luperce Miranda, para citar os mais conhecidos, mas o “folclore” que traziam em boa parte era emboladas cantadas no Carnaval do Recife, “Espingarda Pá”, “O Sapo dentro do Saco”. Cantavam até um “Mamãe eu Quero”, provavelmente a mesma com que Jararaca emplacaria o maior o sucesso de sua carreira (dando parceria a Vicente Paiva). Antes viera do Recife, o violonista João Pernambuco trazendo um matolão de temas que aprendeu no sertão do estado (nasceu no distrito de Jatobá), “Luar do Sertão”, “Cabocla de Caxangá”, e muita coisa aprendida com repentistas. Contemporânea de João Pernambuco, Stefana de Macedo, da alta sociedade recifense, foi uma das pioneiras a gravar o folclore do “Norte”, levando para o Theatro Municipal do Rio, ao Palácio do Catete e ao Colon em Buenos Aires (acompanhada por Villa-Lobos), cocos, maracatus, batuques, embolada,


baiões (é num disco de Stefana que aparece pela primeira vez a palavra “baião” expressando um gênero musical, a música “Estrela D’Alva”, de João Pernambuco). Porém, embora tenham apresentado aos “sulistas” uma enormidade de gênero nordestinos, vários deles iriam esperar algumas décadas para serem conhecidos fora da região. Como é o caso da ciranda, originariamente da Zona da Mata pernambucana, que chegou ao litoral com o êxodo rural, no início dos anos 50. A ciranda receberia a primeira gravação, em 1967, num lado B de um compacto, com selo Mocambo, de Teca Calazans, que cantava no lado A “Aquela Rosa”, estreia de Geraldo Azevedo e Carlos Fernando (estreia dos dois na composição). Somente em 1972, com o pot-pourri de cirandas gravado pelo Qunteto Violado foi que o gênero passou a ser bem tocado país afora. Ainda hoje há manifestações musicais que raramente saem de sua circunscrição, como acontece com a centenária e interessante “Mazurca de Agrestina”, ou “Samba de Véio da Ilha do Massangano”, próxima a Petrolina (PE). REPERTÓRIO Apesar de se inspirar da capa à música final na cultura nordestina, Berra Boi as canções do álbum estavam muito próxima da MPB convencional. Diferenciava-se desta pela interpretação e instrumentação do Quinteto Violado. E trazia menos composições autorais do que o disco anterior, no qual seis das onze faixas são


assinadas por integrantes da banda, com uma sétima, “Marcha Nativa dos Indios Quiriris”, uma adaptação de Marcelo Melo e Toinho Alves. O então desconhecido Vicente Barreto (co-autor de “Tropicana” com Alceu Valença) é autor de Baião do Quinji, um dos destaque de Berra Boi (Quinji, ou Quinjique é cidade do sertão da Bahia). “Minha Ciranda”, embora cite na abertura “Ciranda de Lia”, do mestre Baracho, o mais famoso dos autores do gênero, foi composta por Antônio Perna Fróes com Ruy Espinheira. Perna, médico e músico, foi da banda de Gilberto Gil em Expresso 2222 (integrou o grupo baiano desde o início dos anos 60 em Salvador). Embora Gilberto Gil tenha propalado as qualidades do Quinteto Violado, foi Perna Fróes quem insistiu para Roberto Santana (que trabalhava para a Phllips) contratar o grupo pernambucano. “Outra ciranda”, “Três,Três”, é de Fernando Lona vencedor de um festival de música popular da TV Excelsior, com Porta-Estandarte (parceria com Geraldo Vandré). A faixa “Vaquejada” não é folclore. Assinada por Toinho, Luciano e Marcelo, a música foi feita para celebrar a vaquejada que acontece, até os dias atuais, em Surubim (no Agreste pernambucano). A vaquejada retrata a caça ao gado na caatinga. O cavaleiro corre atrás de um boi e tenta derrubálo puxando pela cauda. Virou centro de polêmica em anos recentes. Tentou-se proibi-la, alegando que é um esporte em que se maltratam os animais. Polêmica à parte, é uma tradição no Nordeste, uma grande festa popular. Direto da cultura popular vieram “Pipoquinha”, de Sebastião Biano, da Banda de Pífanos de Caruaru, “Cavalo-Marinho”,


cujas loas, de domínio público, foram adaptadas de Luciano Pimentel e Fernando Filizola. O cavalo marinho é uma variação do bumba-meu-boi, que ocorre na Zona da Mata pernambucana, em Alagoas e Paraíba. “Engenho Novo” não a mesma canção da tradição oral brasileira colhida por Mário de Andrade. A música é de Fernando Filizola, no arranjo, que permite os improvisos no palco, tem mais várias levadas da região, de embolada à banda de pífano. De inspiração nas mesmas fontes, desta vez da Nau Catarineta, é “De Uma Noite de Festa”, de Marcelo Melo e Fernando Filizola. Nau catarineta, cavalo-marinho, cirandas, eram folguedos praticamente desconhecidos no Sudeste, o que causava estranheza a quem assistia, ou pretendia escrever sobre. “Ladainha”, por exemplo, tem levada de caboclinho, um dos ritmos do carnaval pernambucano, mas citando mestre Vitalino, Lampião, Maria Bonita e Padre Cícero. A imprevisibilidade rítmica era, pra época desnorteante. Onde queria folclore surgia o viés jazzístico de “Abraço ao Hermeto”, de Sando e Toinho Alves. Um dos achados do álbum é “Duda no Frevo”, em homenagem ao músico e arranjador José Urcisino da Silva, mais conhecido como maestro Duda, um dos mais importantes da história do frevo. O autor é o pernambucano (de Timbaúba), Senival Bezerra do Nascimento (1932/2000), o maestro Senô. Este frevo de rua é parte do 4º movimento da Suíte Nordestina. A partir da gravação em Berra Boi, “Duda no Frevo” entraria para o repertório obrigatório do carnaval de Pernambuco.


A título de curiosidade, Senô tocava e regia sinfônicas (estabeleceu-se em Campinas, SP), mas regia o naipe de metais da banda Paralamas do Sucesso. Outra faixa que também alcançaria o status de clássico é “Forró do Dominguinhos” de, claro, Dominguinhos. O sanfoneiro participou de tantas turnês com o Quinteto Violado que por pouco não se torna o sexto violado. No entanto, em 1974, ele entraria para o grupo de Gilberto Gil, que colocou letra no “Forró do Dominguinhos”, que acabou rebatizado de “Lamento Sertanejo”.

José Teles Jornalista, formado, em 1991, pela Universidade Católica de Pernambuco - Unicap. Foi crítico de música do Jornal do Commercio de 1987 a 2021, e já escreveu sobre o assunto em diversas publicações pernambucanas e de outros estados, inclusive no jornal A Bola, de Lisboa. Teve textos publicados pelo O Pasquim (Rio), Bizz (São Paulo), Revista General (São Paulo), Meus Caros Amigos (São Paulo), Continente Multicultural e Suplemento Cultural Pernambuco. Para esta revista assinou três edições da Continente - Documento, com Luiz Gonzaga, Capiba e com o Movimento Manguebeat. Colaborou com sites como o Clique Music (RJ, editado por Tárik de Souza), Jornal da Música (RJ, também editado por Tárik de Souza), e em O Carapuceiro (SP, editado por Xico Sá).


foto: Elimar Caranguejo


foto: Elimar Caranguejo


BERRA BOI (1973)* 01. Vaquejada (Toinho Alves / Luciano Pimentel / Marcelo Melo) 02. Duda no Frevo (Senô) 03. Três Três (Fernando Lona) 04. Ladainha (Toinho Alves / Marcelo Melo) 06. Minha Ciranda (Antônio Perna / Ruy Espinheira) 07. Pipoquinha (Sebastião Biano) 08. Beira de Estrada (Toinho Alves / Luciano Pimentel) 09. Baião do Quinjí (Vicente Barreto / Fábio Cardoso) 10. Abraço ao Hermeto (Sando / Toinho Alves) 11. Forró do Dominguinhos (Dominguinhos) 12. De Uma Noite de Festa (Marcelo Melo / Fernando Filizola) 13. Cavalo Marinho (Tradicional / Adpt. Luciano Pimentel / Adpt. Fernando Filizola)

* A apresentação das músicas não será necessariamente nessa ordem.

foto: Reprodução

05. Engenho Novo (Fernando Filizola)

Sando flauta Marcelo voz e violão Fernando viola Luciano percussão Toinho voz e contrabaixo


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