Negritude (1979)

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Dia 4 e 5 de novembro.

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Sexta e sábado, às 21h

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Projeto Álbum Se o avanço tecnológico trouxe novas e importantes possibilidades para a música, afora nostalgias e romantismos – o vinil praticamente definiu um formato de fruição musical, consolidando grande parte do arquivo sonoro feito no país com o manuseio da agulha entre uma faixa e outra para mudar de música, a capa em formato grande, o conceito de um trabalho expresso na sequência das faixas e o lado A e o lado B. O projeto Álbum remonta períodos da música brasileira por meio de registros fonográficos que ajudaram a construir sua história. São discos considerados clássicos por apresentarem em seu conteúdo inovações estéticas que influenciaram gerações, trazendo à tona o contexto político e a estética de uma época. Resgatar títulos expressivos da discografia da música brasileira e apresentá-los para o público em formato de show, abre uma possibilidade sem precedentes para a revitalização da memória cultural do país, bem como para a difusão de uma cultura que deve, necessariamente, ser dinâmica e transformadora. Lançar um olhar para o passado compreendendo-o como um ponto norteador para o entendimento do presente, propiciando assim um campo fértil para construção do que está por vir, é uma das ações constantes do Sesc. A tradição e a inovação mantêm diálogo no dia a dia da instituição, ambas entendidas de maneira que o estreitamento e a permeabilidade do relacionamento entre gerações contribuam e incentivem o surgimento de novos paradigmas para a arte e para a cultura.

Sesc Belenzinho


foto: Divulgação


Ela é o Tempo, a mulher dos nossos sonhos Zezé, imagino que você não se lembre. Em 2014, escrevi uma reportagem em homenagem ao Abdias Nascimento e consegui o seu telefone para tentar uma entrevista. Liguei, caiu na secretaria eletrônica, deixei um recado breve me apresentando e dizendo o motivo do contato. Uns dois dias depois o meu telefone tocou e ouvi “Alô, Maitê? Aqui é a Zezé”. Fui pega de surpresa, estava no meio de alguma tarefa doméstica e fui arrebatada por sua voz grave e simpatia ímpar. Eu ouvi a voz da deusa. Conversamos brevemente, você falou da importância de Abdias para sua trajetória como mulher-artista-negra. Conto essa história para iniciar este texto, porque sempre que penso em Zezé Motta, penso uma mulher livre e uma mulher possível. Uma mulher-caminho, uma mulher-encruza e uma mulher que se encontra no Tempo e com as diferentes gerações. A senhora não faz ideia de como está no imaginário de nós: mulheres-artistas negras e da importância que o seu legado que celebra mais de quarenta participações na teledramaturgia (incluindo séries), mais de cinquenta filmes e quatorze discos, entre trabalhos solos e participações.


Trarei para essa apresentação um trecho do perfil escrito por Lélia Gonzalez sobre você, é importante que as pessoas saibam que o seu caminho como mulher negra não se fez sozinho e que a sua fortaleza foi construída na luz do movimento de mulheres negras: Vida dura de jovem negra pobre, numa sociedade onde os espaços reservados para mulheres, negros e pobres são aqueles da exclusão. Poucos, muito poucos, sabem que sua arte também está a serviço das crianças pobres e órfãs, numa atuação marcada pela discrição e pela solidariedade. Por outro lado, a consciência política de Maria José Motta levou-a a participar ativamente das lutas por uma sociedade justa e igualitária. Militante do Movimento Negro Unificado, sua conduta se caracteriza pela coragem com que tem denunciado o racismo e suas práticas; e, ultrapassando o nível da denúncia, aí está Zezé organizando um arquivo de atores negros para que no futuro, não se repitam as escamoteações e os silêncios com relação a esses mesmos atores. Filiada ao Partido dos Trabalhadores, empenhou-se na campanha Lélia Gonzalez, companheira de MNU, para que as maiorias silenciadas (mulheres e negros) se fizessem representar na Câmara Federal.


Cada trabalho seu, Zezé, é um sopro de inspiração para nós artistas negras que enfrentamos diariamente uma estrutura que nos achata e nos exclui dos protagonismos e tenta determinar os espaços que podemos ocupar. Tentarei elaborar um texto que não seja uma ode ao racismo e ao machismo, pois como você mesmo afirmou no programa Roda Viva (15/11/2021), “sonho com o dia em que não mais precisaremos falar do racismo”. Eu também sonho com a chegada deste dia. Nós, mulheres negras, temos muitos sonhos. Sonhos comuns, sonhos coletivos. Por isso, escrever este texto é reafirmar, Zezé, que você materializa o sonho de muitas gerações. Nas páginas que me foram reservadas para este ensaio, quero te celebrar e te apresentar para quem te assiste. A Zezé que enxergo e que me provoca a pensar sobre o nosso lugar e o nosso tamanho nesta sociedade. Permitame te apresentar, tal como você sou herdeira do sobrenome Oliveira. Não vou me ater à herança escravocrata de nosso sobrenome, mas me fixarei na imagem da árvore centenária que segue o seu ciclo a cada estação, dando frutos e nutrindo o nosso corpo. Zezé nasceu Maria José Motta de Oliveira, na região de Campos dos Goytacazes, uma das regiões mais populosas do estado do Rio de Janeiro. Filha da


costureira Maria Elazir Mota e do motorista Luiz Oliveira, nas horas vagas do progenitor, cantava e experimentava a música que pulsava nos momentos familiares. É possível contar a história da teledramaturgia e do cinema brasileiro, através da sua imagem e participação, Zezé. Embora, seja assunto para outro texto, vou elencar três grandes momentos: a estreia no teatro em 1968 no espetáculo Roda Viva. Zezé estava no elenco que foi censurado pela ditadura militar. Sete anos depois, 1975, lançou seu primeiro disco solo Zezé Motta (Prazer, Zezé) e no ano seguinte interpretou Xica da Silva, dirigido por Cacá Diegues, uma das protagonistas mais emblemáticas da história. Como Xica, Zezé construiu caminhos para liberdade de seus pares. Negritude é o segundo álbum de sua trajetória como cantora. Nas pesquisas que fiz encontrei uma curiosidade sobre este disco. Zezé não queria gravá-lo. O motivo: “desde o começo, a Warner queria que eu gravasse samba. Mas eu não queria ser rotulada de sambista. Nada contra, mas eu queria ser livre para cantar vários gêneros. E era também uma atitude política por perceber que queriam me pregar esse rótulo pelo fato de eu ser negra”1. 1 Extraido do http://www.blogdazeze.com.br/negritude-segundo-lp-de-zeze-motta-chega-ao-streaming/ Acessado em 31/10/2021


Zezé, há alguns anos venho estudando samba e convivendo com cantoras de minha geração. A maioria tal como você, até hoje, afirma que não gostaria de ser vista como uma cantora de samba. Essa afirmação e temor dos estigmas dizem muito sobre como o Brasil opera sobre nossas criações e subjetividades. E principalmente, como ao samba, esta tecnologia é incompreendida pela indústria cultural. Na lógica do racismo impregnado no mainstream, cantar samba ao invés de ser um ato de liberdade, pode se transformar em um aprisionamento para os nossos corpos e criações. Ainda sobre gravar ou não este álbum emblemático, composto por doze faixas que são um passeio às diferentes sonoridades da diáspora negra e nas possíveis sonoridades que tem o samba e o chorinho como base melódica, o disco reúne composições de grandes compositores, entre eles, Aldir Blanc, João Bosco, Wilson Moreira e Ney Lopes. Contudo, quero destacar uma das faixas que mais me comovem “Cana Caiana” composta especialmente para Zezé, cuja letra é de Rosinha de Valença e Maria Bethânia:


Meu rumo foi traçado na palma de uma palmeira Ai, ai, ai, ai, na beira do Paraíba do Sul, do sul

Brinquei nos canaviais, brinquei nos canaviais, brinquei Sou cana caiana, sou cana caiana Sou nega cigana, dona dos canaviais

Sou cana caiana, sou cana caiana

Sou nega cigana, dona dos canaviais

A faixa em questão é um desses pontos riscados que os guias fazem nos terreiros de umbanda. Aliás, Zezé, o que é aquela capa com uma foto sua onde as cores vermelho e preto predominam? Enquanto ouvia o disco, várias vezes pensava “se a Pombagira cantar, ela canta assim, tal como você”. Zezé preciso te dizer que cada palavra dita firma um espaço e constrói um estado de presença para que sua voz nos atravesse.


“Manhã Brasileira” (Manacéa), com a participação do sambista Manacéa é um samba exaltação à esperança. Um tipo de esperança que só quem acorda antes das seis da manhã e pega o trem lotado rumo a Central do Brasil (Rio de Janeiro) ou atravessa a Radial Leste no metrô lotado, baldeia no Brás, sabe ter. Um samba exaltação ao simples fato do sambista estar vivo, em um país que não nos quer criativos e genuínos.

De manhã, quando desperto

Aprecio a alvorada

Como é linda a madrugada

Deus fez de mim um poeta

Escrevi em linhas retas Essas rimas todas certas Em “Boca do Sapo” (Aldir Blanc/João Bosco), a sua gargalhada quebra o feitiço do cansaço do dia e desse período histórico, encerrando o disco:


Costurou na boca do sapo

um resto de angu - a sobra do prato que o pato deixou. Depois deu de rir feito Exu Caveira: marido infiel vai levar rasteira

De Exu Caveira para a malandragem, em “Atividade” (Padeirinho), a interpretação de Zezé nos leva para as noites de boemia e a expertise das ruas, dos botequins e esquinas cariocas. Saravá, o povo da rua! É impossível ouvir este disco em um estado e seguir nele, Zezé. O que você faz neste disco só é possível de alcançar porque essa grande força sonora, este sistema de cadenciamento do silêncio e das notas está preservada em todas as faixas. O Silêncio é um orixá e através dele podemos conhecer a morte-vida, sem estabelecer fronteiras. Há uma beleza ímpar no disco como um todo, os arranjos evocam diferentes sonoridades e é possível


viajar por muitos Brasis e Américas negras. O disco ilustra e materializa a África negra que criamos no Brasil. “Autonomia” (Cartola), canção que conheci na voz do mestre Cartola, escutá-la na sua voz me transportou para Cuba. Pensei e agradeci a música negra que contaminada pelas águas atlânticas “envolveu tanto mistura, quanto movimento” como afirma Gilroy, em O Atlântico Negro. De Cuba, vamos para Bahia em “Tabuleiro” (João de Aquino / José Márcio), onde o samba-de-roda acelera a batida do coração e os pés se movem no miudinho de quem amassa o chão do terreiro e nos lembra que a cabeça, o nosso Ori, é lugar sagrado, por onde a criação se manifesta “Oi, sobre a cabeça tem um mundaréu”. Salve a Bahia, território que até hoje nos mostra os caminhos para liberdade e para alegria. Zezé, a música negra, este samba que tentam tornar estigma para as cantoras negras, este Samba é tecnologia


ancestral, nossa maior herança que nos tem preservados vivos. É com e através deste Samba que é possível materializar em nossa existência “ser a filha do atabaque do som dos retirantes” como afirma a faixa que dá título ao disco, “Negritude” (Irineia Maria / Paulo Cezar Feital). Nosso legado bantu que faz nascer o carnaval e que se cruza com outra base de nossa identidade negra brasileira: a cosmogonia Iorubá. Em “Pensamento Iorubá” (Antonio Rizério / Moraes Moreira), a letra com uma mensagem reforça o compromisso dos povos negros com a vida: Para o vir a ser tem que ter axé Que ter axé

Há um aspecto importante no cantar de Zezé: sua voz está intimamente ligada ao seu corpo e imagem. Em “Yaya” (Luiz Peixoto / M. Porto), a intérprete materializa algo precioso e poderoso: uma voz erótica. O erótico em Zezé está na voz, no corpo e na presença, de quem sabe que


o erótico é recurso intrínseco a cada uma de nós, localizado em um plano profundamente feminino e espiritual (Lorde, 1984). O erótico, assim como o Samba, é uma força que atravessa o disco como um todo. Gosto de encontrar o erótico nos trabalhos de mulheres negras e perceber que ele é fundamento de poder e libertação, se opondo aos estereótipos e objetificações que nosso corpo-preto está submetido. Zezé extrapola, subverte com sua voz, corpo e imagem toda e qualquer tentativa de reduzirem ela ao corpo-objeto. Zezé, você nos liberta. Retorno à Lélia em Homenagem a Zezé Motta – história de vida e louvor que afirmou que Zezé “para além da leveza, da doçura, do bom humor de Zezé, encontra-se uma mulher extraordinária, temperada por muita luta e sofrimento, generosa enquanto companheira, filha, irmã, esposa, amiga. Para além da imagem, da estrela Zezé Motta, o que vamos encontrar, na verdade, é uma mulher MULHER”. Para encerrar, trago um dos sambas mais lindos que temos: “Senhora Liberdade” (Nei Lopes/Wilson Moreira). Senhora Liberdade é você Zezé. É a Samba, essa nossa deusa-gira que nos lembra que o que realmente importa é ocuparmos e alargarmos os espaços para existirmos. Se não existe este espaço


criamos com aquilo que temos. Zezé este disco nos lembra e nos encoraja para sermos o que quisermos ser, inclusive: sermos samba. Obrigada por tanto, Zezé!

Maitê Freitas Jornalista, ensaísta, pesquisadora, editora literária, gestora cultural e ativista.


foto: Bendito Benedito


NEGRITUDE (1979)* 01. Manhã brasileira (Manacéa) 02. Atividade (Padeirinho) 03. Ai de mim (John Neschling/Geraldo Carneiro)

05. Autonomia (Cartola) 06. Tabuleiro (João de Aquino/José Marcio) 07. Senhora Liberdade (Wilson Moreira/Ney Lopes)

foto: Reprodução

04. Pensamento Iorubá (Moraes Moreira)

08. Cana Caiana (Rosinha de Valença/Maria Bethânia) 09 Trovoada (Tunai/Sérgio Natureza) 10. Negritude (Irinéia Maria/ Paulo Cezar Feital) 11. Yayá (Henrique Vogeler/ Luiz Peixoto/Marques Porto) 12. Boca de sapo (João Bosco/ Aldir Blanc)

* A apresentação das músicas não será necessariamente nessa ordem

Violão: Joan Barros Guitarra: Jovilson Pacoal Percussão: Jackie Cunha Voz: Zezé Motta


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fotos: Antonio Guerreiro/ Bendito Benedito Mario Luiz Thompson/Divulgação


foto capa: Antonio Guerreiro

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