Catálogo da Mostra de Cinema A América por John Ford (2013)

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Sesc | Serviço Social do ComÊrcio Departamento Nacional Rio de Janeiro Junho de 2013


Sesc | Serviço Social do Comércio Presidência do Conselho Nacional Antonio Oliveira Santos Departamento Nacional Direção-Geral Maron Emile Abi-Abib Divisão Administrativa e Financeira João Carlos Gomes Roldão Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Álvaro de Melo Salmito Divisão de Programas Sociais Nivaldo da Costa Pereira

PRODUÇÃO EDITORIAL

Assessoria de Divulgação e Promoção Gerente Christiane Caetano Supervisão editorial e edição Fernanda Silveira Projeto gráfico Ana Cristina Pereira (Hannah23) Ilustrações Kako Diagramação Mello & Meyer Design

Consultoria da Direção-Geral Juvenal Ferreira Fortes Filho

Revisão de texto Clarisse Cintra

CONTEÚDO

Produção gráfica Celso Mendonça

Gerência de Cultura Gerente Marcia Costa Rodrigues

Estagiário de produção editorial Thiago Fernandes

Coordenação

Assessor de Cinema Marco Aurélio Lopes Fialho

FICHA CATALOGRÁFICA

©Sesc Departamento Nacional Av. Ayrton Senna, 5.555 — Jacarepaguá

A América de John Ford / Sesc, Departamento Nacional.

–Rio de Janeiro : Sesc, Departamento Nacional, 2013.

71 p. : il. ; 27 cm.

Rio de Janeiro — RJ CEP 22775-004 Tel.: (21) 2136-5555 www.sesc.com.br Impresso em junho de 2013. Distribuição gratuita.

Bibliografia: p. 71.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei

ISBN 978-85-89336-94-9

9.610 de 19/2/1998. Nenhuma parte desta publica-

1. Ford, John, 1894-1973 – Exposições - Sesc. 2.

Diretores e produtores de cinema – Estados Unidos Exposições. I. Sesc. Departamento Nacional.

CDD 791.430973

ção poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.


Criado e administrado há mais de 60 anos por representantes do empresariado do comércio de bens e serviços e destinado à clientela comerciária e a seus dependentes, o Sesc vem cumprindo com êxito seu papel como articulador do desenvolvimento e bem-estar social ao oferecer uma gama de atividades a um público amplo, em um esforço que conjuga empresários e trabalhadores em prol do progresso nacional. Dentre suas diversificadas áreas de atuação, a cultura se caracteriza como um democrático disseminador de conhecimento, uma importante ferramenta para a educação e transformação da sociedade, levada ao público de grandes e pequenas cidades por meio da itinerância de espetáculos, exposições e mostras de cinema. Ao possibilitar o livre acesso aos movimentos culturais, seja no cinema, como também nas artes plásticas, no teatro, na literatura ou na música, o Sesc incentiva a produção artística, investindo em espaço e estrutura para apresentações e exposições, mas acima de tudo, promovendo a formação e qualificação de um público que habita os quatro cantos do Brasil. A credibilidade alcançada pelo Sesc nesse âmbito faz da entidade uma referência nacional, o que revela a reciprocidade entre suas ações e políticas e as atuais necessidades de sua clientela.

Antonio Oliveira Santos

Presidente do Conselho Nacional do Sesc

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O Sesc é uma entidade de prestação de serviços de caráter socioeducativo que promove o bem-estar dentro das áreas de Saúde, Cultura, Educação e Lazer, com o objetivo de contribuir para a melhoria das condições de vida da sua clientela e facilitar seu aprimoramento cultural e profissional. No campo da cultura, a atuação do Sesc acontece no estímulo à produção cultural, na amplitude do conhecimento e no fortalecimento de sua identidade nacional, condições essenciais ao desenvolvimento de um país. Nesse cenário, a mostra A América por John Ford, oferece a oportunidade de se conhecer parte importante da filmografia do diretor de cinema norte-americano que deu origem ao que hoje se conhece como estilo “faroeste”. Muito mais que isso, John Ford ajudou a escrever parte da história do cinema por meio de uma maneira peculiar de dirigir, a qual inspirou até mesmo o Cinema Novo brasileiro. O caráter histórico e documental deste projeto viabiliza a proposta do Sesc dentro da ação programática de cultura ao se constituir como uma ferramenta de enriquecimento intelectual dos indivíduos, propiciando-lhes uma consciência mais abrangente e aberta a meios mais estimulantes e educativos de aquisição da cultura universal

Maron Emile Abi-Abib

Diretor-Geral do Departamento Nacional do Sesc

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Ao crítico Antonio Moniz Vianna, pelo amor e dedicação ao cinema de John Ford.


Médico e amante

Filmes da mostra

Juiz Priest

O prisioneiro da Ilha dos Tubarões A mocidade de Lincoln No tempo das diligências

As vinhas da ira

Rastros de ódio

O homem que matou o facínora 8


Sumário Clássico imbatível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Análise dos filmes da mostra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Médico e amante . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Juiz Priest . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 O prisioneiro da Ilha dos Tubarões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 A mocidade de Lincoln . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 No tempo das diligências

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

00

As vinhas da ira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Rastros de ódio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 O homem que matou o facínora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Filmografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00 Referências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 00

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o cine


ma de john ford




CLÁSSICO IMBATÍVEL

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Quem não guarda na memória a imagem do tio, do avô ou do pai extasiado assistindo a um filme de faroeste, daqueles em que os índios eram os vilões que impediam os “civilizados” brancos de construir o mundo à sua imagem e semelhança. Essa lembrança nos remete ao encanto que o cinema pode exercer sobre seus espectadores, ao mesmo tempo que pode afirmar o poder da sétima arte na formação e educação dos indivíduos, considerando, sobretudo, a carga de informações subliminares por trás da magia do universo cinematográfico. Mais especificamente, o cinema hollywoodiano se baseou no chamado star system, em que os atores serviam de imã para atrair o público às salas de cinema. Na trajetória desse métier, os diretores não eram fundamentais no processo de comercialização dos filmes, mas sim os atores, tal qual as condições de produção imposta pelos grandes estúdios e a criação dos gêneros cinematográficos (comédia, faroeste, policial, musical, drama, suspense, aventura, entre outros). Por esse motivo, fãs dos filmes de faroeste talvez não se deem conta da importância do diretor de cinema John Ford — um dos responsáveis pelo status que o gênero adquiriu no decorrer da história do cinema — e nem desconfiem da importância de um No tempo das diligências (1939). O faroeste tornou-se desde muito cedo o gênero mais popular dos Estados Unidos e logo o seria também em boa parte do mundo. A paixão e o extasiamento de tios, avôs e pais começaram no tempo das matinês aos domingos, com seriados que eram atentamente acompanhados semanalmente nas décadas de 1940 e 1950. Para concluir, nada melhor que as palavras do cineasta Glauber Rocha, que era fã do gênero faroeste, para definir essa compulsão popular pelo faroeste, sua relevância cultural e o papel de John Ford para o gênero:

O western, a primeira e única cristalização estético-social do cinema americano, tem a figura de John Ford o grande responsável pela sua evolução e posterior amadurecimento [...] O western é o sangue básico do americano, sua cultura popular, sua formação étnica, religiosa no que ele possui de indevassável (ROCHA, 1985, p. 73-74). Mostra A América por John Ford

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David Llewelyn Wark Griffith, geralmente conhecido por

D. W. Griffith (1875-1948) foi um diretor de cinema norte-americano conhecido pelo seu controverso filme O nascimento de uma nação, e também por Intolerância. Introduziu inovações profundas no modo de fazer cinema, sendo considerado o criador da linguagem cinematográfica. Fonte: D. W. Griffith (2012).

O que se convencionou chamar de clássico pelos estudiosos de cinema muito se deve a John Ford. E clássico aqui deve ser entendido pelo aspecto narrativo, pois é justamente nesse ponto que essa forma estética se sedimentou. Se Griffith1 foi o pai do cinema clássico, John Ford foi o papa.

A base da estética do cinema clássico está na lógica da inteligibilidade, um cinema concebido aristotelicamente pelo diretor, por meio dos conceitos rígidos de espaço, tempo e ação. A articulação desses três elementos é construída de maneira a criar um universo conciso, ininterrupto, um bloco indivisível, em que os meios artísticos utilizados tornam-se invisíveis ao espectador durante o seu processo de fruição, como se estivesse realizando uma viagem mágica ou onírica. O transporte mágico para esse outro mundo especialmente criado pelo cinema é realizado sempre

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O cineasta norte-americano

Edwin Stanton Porter (1870-1941) foi um dos pioneiros do cinema. Ficou famoso por dirigir vários filmes para o Edison Studios, de Thomas Edison. Fonte: Edwin... (2012).

com o consentimento do espectador, que participa desse espetáculo no qual ilusão e realidade estão permanentemente em choque. Contudo, após a Segunda Guerra Mundial, diversos teóricos e cineastas lançaram uma pesada artilharia a todo o aparato clássico da invisibilidade dos meios. O estabelecimento e a consolidação da narrativa clássica não se desvinculam da necessidade comercial e do desenvolvimento industrial do cinema. Desde o início, o meio cinematográfico sobrepujou sua faceta ligada ao espetáculo e ao entretenimento. George Méliés já o utilizara assim, com seus filmes repletos de trucagens e ilusionismo. Mas foram Griffith e Porter,2 importantes diretores dos anos 1910 do século 20, considerados a geração primitiva do cinema, que realmente impulsionaram a cinematografia, investindo em planos inovadores (inclusive os closes) e técnicas de montagem que viabilizaram o cinema como uma narrativa possível.

Os anos 1930 marcaram a vitória da forma estética hoje conhecida como narrativa clássica de se fazer cinema, que conseguiu estabelecer um diálogo poderoso com o público ao adaptar elementos do teatro popular como seu fundamento artístico. Essa época foi marcada pelo sistema orientado por grandes estúdios e grandes estrelas que levaram milhares de pessoas às salas de cinema. 16

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Um dos pontos importantes da narrativa cinematográfica clássica foi o da identificação, utilizada fartamente para colocar o público a serviço da narrativa, já que associava o espectador ao mocinho do filme, fazendo o primeiro torcer pelo segundo até a última cena. O filósofo alemão Walter Benjamim refletiu de maneira perspicaz sobre o caráter de massificação do cinema, assim como sobre

[...] não é concebível, mesmo em seus traços mais positivos, e precisa-

a sua relação com os

mente neles, sem seu lado destrutivo e catártico: a liquidação do valor

clássicos da literatura e a

tradicional do patrimônio da cultura. Esse fenômeno é especialmente

sua propensão de elevar

tangível nos grandes filmes históricos, de Cleópatra e Ben Hur até Fre-

personagens históricos a mitos. Segundo ele, a função social do cinema

derico, o Grande e Napoleão. E quando Abel Gance, em 1927, proclamou com entusiasmo: “Shakespeare, Rembrandt, Beethoven, farão cinema [...] Todas as lendas, todas as mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de novas religiões, sim, todas as religiões [...] aguardam sua ressurreição luminosa, e os heróis se acotovelam às nossas portas”, ele nos convida, sem o saber talvez, para essa grande liquidação (BENJAMIM, 1985).

Benjamim sabia verdadeiramente o que estava falando.

Ao analisar a história de Hollywood é possível

constatar, sem grandes dificuldades, o quanto a história e seus personagens, famosos ou anônimos, foram constantemente redesenhados pelos filmes, assim como as obras literárias, tanto as do presente quanto as do passado. Esse fenômeno se perpetuou e continua, nos dias de hoje, permeando as produções não só as de Hollywood como as de todos os países no mundo. Para que o cinema pudesse ser um instrumento do Estado, os Estados Unidos criaram na década de 1930, época considerada como um marco para o mercado de cinema, o Código Hays, mecanismo que restringia o conteúdo moral dos filmes, inclusive a proibição de beijos acalorados e cenas de sexo. Somente na década de 1960 esse código foi derrubado e implantado outro modo de restrição, voltado para a classificação etária. Mostra A América por John Ford

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Produção em série A profusão de histórias, depoimentos e frases célebres a respeito de John Ford se tornou justificável se considerarmos seu currículo com nada menos de 133 filmes ao longo da carreira. Para boa parte de seus fãs, Ford será sempre lembrado como o maior diretor de faroeste de todos os tempos, embora essa seja uma visão injusta quando se analisa com atenção o conjunto de sua obra. Como diretor, manteve sua importância na sedimentação da narrativa clássica no cinema de Hollywood, assim como perpassou diversos gêneros cinematográficos reescrevendo a história norte-americana sob o seu ponto de vista.

A sua facilidade de trabalhar com os atores, fazendo-os improvisar e realizando poucas (às vezes apenas uma) tomadas das cenas, era, na verdade, uma afirmação da sua capacidade produtiva. Os críticos apontam sempre a invisibilidade de sua montagem como um dos elementos mais marcantes de seu cinema, que não pode ser desvinculada de sua maneira de filmar, como se as sequências estivessem já montadas em sua cabeça. Tecnicamente, o cinema de Ford traz perturbações à cabeça de analistas e críticos em relação à decupagem de seus filmes, fundamentados em diálogos improvisados com os atores. Os críticos sabiam da recusa de Ford em ensaiar obsessivamente suas cenas, e, ainda assim, foram obrigados a reconhecer como ele conseguiu engendrar para o espectador uma narrativa de fácil compreensão. Isso justifica também a grande quantidade de filmes dirigidos por ele. Entre 1939 e 1940 foram cinco; entre eles, três obras-primas inquestionáveis: No tempo das diligências, A mocidade de Lincoln e As vinhas da ira (os três participantes da mostra organizada pelo Sesc).

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O cineasta brasileiro Glauber Rocha, ícone

[...] inegavelmente militarista, idealizou o Oeste como um pa-

de nosso cinema e transgressor por natureza, raíso perdido, espécie de Olimpo do novo mundo. Sua preocupação sempre foi a de punir os maus e fazer triunfar os bons. nunca escondeu sua admiração por esse ilustre irlandês, tornando-se um dos seus grandes estudiosos. Nas palavras de Glauber, Ford era

John Ford pode ser definido como um homem direto. Seus caminhos cinematográficos

Gosta de índios, mas são ingênuos os selvagens que devem

ser catequizados e protegidos. Haverá sempre um bom soldado branco capaz desta façanha, ainda que para tanto deva se rebelar contra seu superior. O exército é a alma da nação, a cavalaria sempre surgirá para salvar os pobres colonos das garras dos índios (ROCHA, 1985, p. 79)

sempre foram marcados pela clareza de suas opiniões sobre o homem, a história e a sociedade norte-americana. Seus filmes não davam margem às dúvidas, não havia espaço para possíveis indefinições. Sua idolatria por Lincoln, ele nunca escondeu, assim como pela cavalaria e pelos colonos. Seu cinema jamais intencionou ter uma postura socialmente crítica, mas sempre foi profundamente dedicado aos homens, independentemente de sua posição social (um presidente, um pistoleiro ou uma prostituta), desde que a posição desses personagens ratificasse a ética valorativa dos pioneiros, daqueles que enfrentaram as adversidades para construir uma nova ordem social. Daí a relevância da paisagem na construção imagética de seu cinema. Nos faroestes, o homem era imerso em uma ambiência que o diminuía, os planos gerais indicavam o desafio humano frente à paisagem imponente e selvagem. Os índios completavam essa paisagem primitiva a ser dominada por uma “força superior”, às vezes isso não era ostensivo, mas estava implícito nas cenas. A amplitude do espaço fomentava uma insegurança permanente ao homem que conquistara o oeste; um ataque vindo das montanhas e desfiladeiros era quase inevitável e inerente ao desafio do homem imbuído da tarefa colonizadora.

Mostra A América por John Ford

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A força do cinema de John Ford está na firmeza de suas construções históricas, e isso atraiu tanto a crítica quanto o público. James Stewart, um dos mais expressivos atores que trabalhou com o diretor, falou certa vez sobre a impossibilidade de se contar uma história tal como Ford contava, dado ao controle absoluto que empreendia em sua narrativa. É também bastante conhecida a história em que Orson Welles, quando perguntado sobre quais seriam os três maiores diretores da história do cinema, teria afirmado categoricamente: John Ford, John Ford e John Ford! Pode-se identificar alguns traços comuns e que fazem um grande diferencial a esse diretor extraordinário, entre eles a sua capacidade de inserir elementos diversos em sua deliciosa narrativa. Há em seu estilo uma dose singela e arrebatadora de humor; um ritmo ágil tão necessário às grandes aventuras; um poderoso espírito épico; fora um sentimentalismo e um humanismo bem equilibrados que impediam seus filmes de caírem no ridículo.

A construção dos planos e a escolha dos enquadramentos é um dos pontos marcantes de sua estética. Ford não utilizava closes, identificava-se com os planos mais abertos (plano geral, plano médio e americano). Sem falar na interpretação dos atores que tinham uma aparente espontaneidade conseguida mormente em improvisações cuja maior preocupação era a compreensão acerca da natureza dos personagens e sua posição na cena, evitando o processo de diálogos friamente decorados.

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Durante a sua carreira Ford trabalhou com diversos atores, alguns bem marcantes. Entre eles pode-se citar James Stewart, Henry Fonda, Will Rogers, John Carradine, Maureen O’Hara, George O’Brien, Ward Bond, Harry Carey Jr., Victor McLaglen, e o seu ator-ícone e xará John Wayne.

Para Ford, John Wayne representava o homem comum norte-americano: aventureiro, forte, destemido. De olhar firme, mas carinhoso, Wayne foi um ator com um carisma poucas vezes visto no cinema, e com a característica mais importante para Ford: a naturalidade na maneira de atuar. Wayne ficou marcado pela parceria com Ford, tendo trabalhado em 22 de seus filmes, e em toda a sua carreira em mais de 60 filmes, a grande maioria de faroeste. John Ford prosseguiu com seus filmes até 1970. A maioria de suas produções ainda serve de referência a novos cineastas e estudiosos. A sua extensa obra sobreviveu às inúmeras transformações estéticas sofridas pelo cinema em sua já centenária história, especialmente após a Segunda Guerra Mundial com a chegada do chamado cinema novo em diversos países, tanto do ocidente quanto do oriente

Mostra A América por John Ford

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American way of life Ford era um homem que não escondia suas preferências políticas, em especial seu nacionalismo e sua admiração pelo primeiro presidente eleito pelo Partido Republicano, Abraham Lincoln. Essa admiração se justificava pela congruência de pensamento entre eles de que os Estados Unidos representavam um exemplo de experiência da capacidade de um povo para se governar a si mesmo, e de fundar uma nova tradição de se fazer política. E o cinema de Ford professava e ratificava sem arremedos essa crença. Talvez seja difícil mensurar qual foi a participação de John Ford na construção imagética da expansão para o oeste realizada pelos diversos desbravadores a partir de meados do século 19. Há uma ideia acerca desse período histórico profundamente marcado pelo cinema, e Ford tem um peso enorme sobre essa construção mítica da participação do homem norte-americano nesse processo. Como muitos críticos afirmam, ele foi, antes de tudo, um grande criador de mitos. Mais uma vez misturam-se construção cinematográfica e histórica de maneira explosiva. Vistos a partir dessa ótica, os filmes de Ford nos ajudam enormemente na reflexão sobre o papel ideológico do cinema, e nos possibilita hoje uma discussão sobre a natureza política de uma arte muitas vezes considerada mero entretenimento. Pensando mais uma vez em nossos pais, tios e avós, lançamos a nossa indagação: se o cinema se assemelha a um sonho resta-nos saber o quanto desse universo onírico incute hábitos e ideologias. Será que mesmo involuntariamente os filmes têm a capacidade de alterar a nossa maneira de ver o mundo?

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PALAVRA DOS CRÍTICOS

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John Ford foi um dos cineastas mais festejados pela crítica. Seu cinema, apesar de clássico, por vezes até duvidoso ideologicamente, mobilizou diversos pensadores do cinema. Antonio Moniz Vianna, um dos mais respeitáveis críticos brasileiros, chegou a afirmar que deixaria de escrever sobre cinema depois que Ford morresse, e para a surpresa de todos assim o fez. Sua última crítica, publicada em 1973 no Correio da manhã, em exatos dez dias após da morte de Ford, é uma homenagem emocionada para o artista que mais admirou na arte cinematográfica.

Mostra A América por John Ford

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[...] faz tempo que sua reputação como mestre número um do cinema clássico americano deixou de ser contestada. Nem aqueles que, por razões respeitáveis, preferem o também clássico cinema de Howard Hawks (1896-1977) ou o de Raoul Walsh (1887-1980) ou o de King Vidor (1894-1982) negam a Ford a primazia que os três citados, aliás, faziam questão de reconhecer (AUGUSTO, 1995, p. 88).

[...] enquanto as fordianas imagens forem projetadas, não importa em que tela ou em que sala, ou se o cinema acabar, enquanto houver memória, Ford será. Assim como Shaskespeare está cada vez mais vivo, a despeito da agonia tão lenta do teatro, Ford está cada dia mais presente, ainda que o cinema já não tenha mais a mesma alma (VIANA, 2004, p. 396).

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O lado épico de Ford foi realçado na crítica de Luiz

Carlos Merten.

[...] há um mito John Ford, que Um dos críticos brasileiros mais atuantes nos anos 1950 e 1960,

Francisco Luiz de Almeida Salles, faz uma análise deliciosa ao misturar

foi comparado, como criador de epopeias, a Homero. Ford seria o Homero das pradarias, identificado como tal por sua preferência pelo western como território de

a biografia e o estilo cinematográfico

criação de lendas. O próprio Ford

fordiano, além de uma acurada

admitia-o (MERTEN, 2007, p. 94).

descrição técnica. O filme em questão era o atípico Depois do vendaval (The quiet man, produção de 1952). Salles desenha o pensamento de que [...] o intuito primeiro de John Ford, irlandês de 60 anos, nascido exatamente no ano em que Lumière, em Paris, abria o primeiro cinematógrafo do mundo, e cuja biografia se confunde com a própria biografia do cinema, deve ter sido, de fato, este — o de resumir e fazer reviver a seiva, o espírito, a graça, a ingenuidade, a força da narração cinematográfica primitiva desse livro de imagens, aturdido e perplexo, que foi ofertado às gerações deste século (SALLES, 1988, p. 88-89). 27


Análise dos filmes da mostra

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Ford foi um cineasta dedicado ao filme histórico. Seu interesse em construir uma ideia de nação para os Estados Unidos é muito latente em sua extensa obra. O faroeste foi seu gênero favorito e consagrador, mas devemos tomar cuidado para não restringi-lo apenas a esse segmento. A mostra A América por John Ford, composta por oito obras, esforça-se em apresentá-lo como um diretor capaz de filmes com temáticas diversas, mas alicerçadas na história norte-americana. Médico e amante (1931) é um bom exemplo de um típico drama; As vinhas da ira (1940), de um drama social; O prisioneiro da Ilha dos Tubarões (1936), de uma aventura dramática; Juiz Priest (1934), de uma comédia de costumes; e A mocidade de Lincoln (1940), de um drama político. O faroeste completa a mostra com três clássicos indubitáveis: No tempo das diligências (1939), Rastros de ódio (1956) e O homem que matou o facínora (1962).

Mostra A América por John Ford

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fil


lmes da m


mostra






Médico e amante Um médico é enviado para investigar um surto de peste em Dakota do Sul, tendo que decidir prioridades para o uso de uma vacina rara. Filme sensível e emocionante indicado a Melhor Direção no Oscar de 1931. Adaptação da novela de Sinclair Lewis, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura.

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Médico e amante A primeira cena de Médico e amante expressa

Com isso, o cineasta monta sua tríade filosófica:

muito o que é esse filme ao mostrar um pai

a salvação do corpo (medicina), da alma (a Bíblia)

contando ao filho a história de uma ancestral que

e acresce Shakespeare, como grande conhecedor

foi para o velho oeste afirmando querer conhecer

da natureza humana.

coisas novas. Sabedores de que John Ford

papel que ele reservara à arte, muito mais que

jamais filmou uma cena gratuita, muito menos a

uma mera narrativa, deve estar engajada

primeira, somos levados a refletir drasticamente

positivamente na grande epopeia do homem.

sobre o intuito dessa instigante história, muito

Reafirma assim uma visão artística herdeira

bem roteirizada por Sidney Howard, a partir do

da tradição homérica, de elevar os mais

romance de Sinclair Lewis. Nessa primeira cena, Ford quer evidenciar que o protagonista do filme foi educado para aceitar situações novas e não usuais. Ainda nesse início há outra revelação tipicamente fordiana, o mesmo pai afirma categoricamente ao filho, ainda menino, com pretensões de ser um médico: “a biblioteca de um médico é composta por três livros: A anatomia de Gray, a Bíblia e Shakespeare.” Após esse diálogo, Ford pula direto para a Faculdade de Medicina, mas a síntese do filme já havia sido realizada em apenas poucos segundos.

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Ford nos revela então o

significativos feitos humanos. Apesar de Médico e amante ter sido rodado em 1931, o filme já nos revela um Ford provido de uma maturidade narrativa instintiva. A história do médico apaixonado por sua profissão, dividido entre o ato heroico de salvar vidas e a dedicação às pesquisas científicas é contada com a verve de quem muito conhece seu ofício. O título dado à versão brasileira, Médico e amante, não ajuda muito, e pode até enganar os mais desavisados, já que não há uma amante propriamente no filme. Há apenas


ficha técnica uma insinuação quase no final, mas que não se

ajuda um fazendeiro e consegue eliminar uma

justifica como título. O título original é o nome

doença que havia afetado suas vacas.

do próprio médico, Arrowsmith, pois toda a história se resume nele, no seu trabalho e nas relações sociais estabelecidas por ele. E não é à toa que Ford utiliza o nome próprio, tal como Shakespeare gostava de fazer, pois almeja estudar o complexo comportamento humano, em especial as ambições e o fascínio emanado pelo poder nos indivíduos. Arrowsmith é um personagem composto pelas contradições inerentes ao ser humano, dividido entre o amor pela esposa e pelo seu ofício; no caso, a ciência. O que o filme põe em jogo é a manipulação de seu talento como cientista e a dificuldade de não se deixar perder o foco no trabalho científico pela sedução do poder. O talentoso Arrowsmith, vivido com muita dedicação pelo ator Ronald Colman, abre mão de uma promissora carreira de cientista para ser médico em Dakota do Sul, cidade de sua esposa. Mas seu trabalho de cientista é resgatado quando

A competência de Arrowsmith como cientista o leva ao mais elevado instituto de pesquisa

Arrowsmith, 1931 P&B, 98 min Com Ronald Colman, Helen Hayes e Richard Bennet

de Nova York. Lá é destacado às Antilhas para resolver um caso de epidemia de peste bubônica, onde o trabalho de médico e cientista se misturava. Arrowsmith fica então dividido entre uma função e outra. Por fim, Arrowsmith controla a peste bubônica, mas perde a mulher e os amigos, que se contaminam com a doença. O caos da situação é muito bem explorado na exuberante fotografia contrastada de Ray June, em que o preto e o branco são bem demarcados, tal como está a alma do protagonista. Mais uma vez Ford centra um filme em um homem comum exemplar. Sem perder o encanto narrativo, característica básica do universo fordiano, Médico e amante nos brinda com reflexões interessantes sobre o papel da ciência, da religiosidade e do homem em nossa sociedade.

Mostra A América por John Ford

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JUIZ PRIEST O juiz William Priest, um orgulho dos confederados veteranos, usa do bom senso e humanidade considerรกveis para fazer justiรงa em uma pequena comunidade norte-americana. Ford consegue criar, com uma histรณria simples, um painel surpreendente da cultura sulista dos EUA.

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JUIZ PRIEST Juiz Priest começa com uma cena de um franco

um período de depressão econômica, advinda do

humor fordiano. Contrariando os preceitos

crack da bolsa de valores de 1929.

clássicos, o protagonista Priest aparece sentado na bancada de um tribunal olhando para a câmera e exigindo silêncio na sala. Uma dúvida fica no ar, se Priest pede o silêncio ao público da sala de cinema ou do tribunal, já que a imagem é rapidamente cortada entrando-se os créditos iniciais do filme. Sobretudo Juiz Priest representa um Ford leve, bem-humorado e otimista com o futuro da sociedade norte-americana. Os diálogos são deliciosos, fluentes, e os atores estão em cena com a típica naturalidade tão comum na narrativa

em trilha musical melancolicamente bela, que sublinha a vida solitária do protagonista. A placidez permeia a construção fílmica de Ford, e faz desse filme uma obra-prima profundamente delicada e reflexiva. Somos convidados a pensar em certos momentos sobre o sentido da vida e sobre a solidão. O personagem de Will Rogers vai suavemente contando sobre os outros personagens, muitas vezes falando sozinho, como se mais nada tivesse a fazer senão nos apresentar o universo social de

fordiana.

Kentucky. Assim,

O tema central proposto por Ford é o da

seus personagens, suas histórias e seus amores.

tolerância, a fim de que o país consiga superar as

Ford nos mostra uma sociedade em extinção,

diferenças políticas provocadas pela Guerra de

ainda marcada por uma ingenuidade, cercada de

Secessão, e Priest, interpretado carismaticamente

galinhas, cabras, pássaros, cachorros e cavalos,

por Will Rogers, representa esse espírito

uma cidade a caminho da urbanidade, francamente

conciliador. Em 1934, os Estados Unidos viviam

42

Há em Juiz Priest uma narrativa poética, calcada

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em transição.

o filme vai lentamente desfilando


ficha técnica Em Juiz Priest, Ford mescla com equilíbrio

mas mantém o caráter submisso e subalterno dos

momentos de humor e drama com uma perspicaz

negros como mão de obra barata. Sabe-se que a

utilização dos planos, com primazia dos médios

questão racial nos Estados Unidos só explodiu nos

e dos gerais, os favoritos de Ford; além de um

anos 1950 e 1960, como uma luta organizada por

Anita Louise, Francis Ford,

posicionamento impecável dos atores em cena e

Martin Luther King, Malcoln X, Panteras Negras,

Charley Grapewin e Berton

uma montagem que mantém um ritmo preciso,

entre outros. Mas há em Ford uma admiração à

inclusive na duração exata dos planos. Todos

cultura negra, em especial às músicas executadas

esses elementos reunidos confluem para uma

nos filmes.

harmonia narrativa dificilmente conseguida pela maioria dos diretores clássicos.

P&B, 80 min Com Will Rogers, Tom Brown,

Churchill

Mas Ford, antes de tudo, é um simpatizante dos Confederados do sul, que lutaram contra os

Observa-se que Ford abusa de planos gerais

ianques do norte, e incorpora sempre em seus

para situar o ambiente e de médios para narrar a

filmes festas e comemorações que reafirmam o

história. Essa suposta simplicidade na escolha dos

sentido de grupo. Em Juiz Priest não é diferente,

planos médios tem um sentido: por meio deles Ford

pois recria dois momentos de festejo na narrativa

permite aos atores trabalharem à vontade com o

do filme, inclusive na cena final com um

cenário, ponto-chave da sua dramaturgia que soa

empolgado desfile realizado pelos veteranos

sempre para o espectador com uma naturalidade

Judge Priest, 1934

Confederados.

espantosa. A questão racial é tratada com muita sutileza, mas Ford, desde o começo do filme, estabelece a importância da integração interracial, de incorporar os negros em um novo estatuto social, Mostra A América por John Ford

43



O PRISIONEIRO DA ILHA DOS TUBARÕES Em 1865, poucas horas depois do assassinato do Presidente Lincoln, o doutor Samuel Mudd ajuda John Wilkes, um pobre homem que se apresenta com a perna quebrada. Porém John Wilkes é o assassino que quebrou a perna enquanto fugia após ter assassinado o presidente dos Estados Unidos, Abraham Lincoln. Acusado de cumplicidade, doutor Mudd é condenado à prisão perpétua na terrível Ilha dos Tubarões, onde sofreria maus tratos e o ódio dos guardas, especialmente do sádico sargento Rankin.

45


O PRISIONEIRO DA ILHA DOS TUBARÕES O prisioneiro da Ilha dos Tubarões é um filme

clássica, a identificação do público com o

sobre a injustiça. Dr. Mudd é condenado por ter

protagonista, já está desde cedo estabelecido.

socorrido um homem com a perna quebrada,

Mas Ford não para por aí, ele avança, mostrando

fato corriqueiro para um médico, não fosse esse

o esforço do protagonista para se livrar desse

homem o assassino do presidente dos Estados

torturante momento e transferindo a angústia do

Unidos, Abraham Lincoln. O médico, é claro,

personagem para o espectador. Nada sensibiliza

desconhecia essa importante informação.

tanto quanto ver um pai afastado injustamente do

O real assassino é morto e toda a ira popular recai sob oito suspeitos de serem cúmplices e que

Até a condenação do Dr. Mudd a narrativa de

são rapidamente tomados como culpados que

Ford permite a colocação de falas e trechos

devem pagar pelo terrível crime de assassinato

cômicos, mas a partir da chegada do Dr. Mudd na

ao presidente. Dr. Mudd é o único que não é

prisão de segurança máxima o tom se modifica e

executado, mas é condenado à prisão perpétua e

o drama e a aventura se misturam.

é levado para a Ilha dos Tubarões, localizada no meio do oceano.

Assim como Ford, Mudd e sua família são simpatizantes dos confederados e a todo o

O nome do Dr. Mudd torna-se conhecido entre

momento essa postura sobressai, o discurso

todos os que trabalham no presídio. Para todos

ianque se sobrepõe como predominante, opressor

trata-se do assassino do presidente Lincoln.

e intolerante. Ford introduz frases como, “o juiz é

Ford é fantástico em sua narrativa ao mostrar

ianque, mas é honrado”.

ao espectador os percalços de um inocente. Um dos pontos mais cruciais para a narrativa

46

convívio dos seus familiares.

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Uma esperança para a fuga de Dr. Mudd acontece quando um dos seus empregados fiéis


ficha técnica vai trabalhar no presídio para poder ajudá-lo.

The Prisoner of Shark Island,

Mas a fuga simplesmente não seria um caminho

1936

legítimo para um inocente, o que encaminhará

P&B, 96 min

a liberdade do Dr. Mudd é uma implacável

Com Warner Baxter, Gloria

epidemia de febre amarela, tão devastadora

Stuart, Claude Gillingwater, Harry Carey, John Carradine

que mata o médico do presídio. A alternativa de

e Francis Ford

salvação é apelar para o médico preso. Dr. Mudd enfrenta tudo, mosquitos, um levante de soldados, uma pilha de doentes, tempestades, o próprio navio do governo, que se nega a prestar socorro, enfim, todas as adversidades inimagináveis para controlar a febre amarela.

No cinema clássico o herói precisa superar obstáculos aparentemente intransponíveis para provar ao público o caráter predestinado dos homens de bom caráter. E Ford não poupa recursos cinematográficos para viabilizar sua proposta estética: abusa da música como elemento de emoção, da montagem linear do tempo, da fotografia e da direção de arte naturalistas.

Mostra A América por John Ford

47



A MOCIDADE DE LINCOLN Com apenas um livro de Direito adquirido em uma troca de mercadorias, começa a trajetória do jovem Lincoln como homem da justiça. A história é baseada no primeiro caso defendido por ele, no qual impede que os irmãos Clay sejam linchados por terem assassinado em legítima defesa o bêbado e arruaceiro Scrub White. Ambos os irmãos se declaram culpados, e a mãe, Abigail Clay, a única pessoa que poderia testemunhar se recusa a dizer algo, pois o testemunho dela salvaria um dos filhos, mas automaticamente condenaria o outro à forca.

49


A MOCIDADE DE LINCOLN A mocidade de Lincoln é um dos filmes

pelo menos a América que aqui chamamos de

mais emblemáticos de Ford e talvez o mais

fordiana. O filme é um drama épico, construído

significativo para melhor compreendê-lo como

com o auxílio de uma música inspiradora e como

cineasta. Ford aborda simplesmente a juventude

um belo instrumento narrativo. A reconstituição

de seu ídolo, em especial a formação do seu

de época também é significativa e muito

caráter, mas sem deixar de mais uma vez enfocar

cuidadosa.

as tradicionais festas populares, dessa feita a da Independência.

Curioso notar que Ford escolhe valorizar o maior ícone dos Estados Unidos (Abraham Lincoln) em

Ao narrar a festa, Ford expõe a sua visão da

um momento histórico de relevante afirmação

sociedade, o respeito dos idosos com os veteranos

norte-americana no mundo, quando a eclosão

da guerra em contraste com a atitude rebelde

de uma guerra mundial marcará a perda da

dos mais jovens, sobretudo a desconfiança

supremacia europeia no mundo, e Ford investe

aristocrática à origem pobre de Lincoln. Mas

não casualmente na própria construção do

também fornece detalhes de como essas festas

imaginário desse povo ao lembrar a todos de

tradicionais aconteciam, mostra diversas

onde vem e como foi esculpido o maior líder

competições, como o concurso de tortas, o de

norte-americano. Assim, filme presta uma dupla

cortar toras ao meio e o tradicional cabo de

homenagem, de um lado ao grande líder que

guerra, além dos habituais desfiles militares.

foi Lincoln, por outro lado ao próprio povo, do

Com A mocidade de Lincoln Ford continua seu firme compromisso de inventariar a América,

qual Lincoln era oriundo. O que Ford resgata no caráter de Lincoln, antes de tudo, é a sua abnegação e o seu senso de justiça. Mostra que

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ficha técnica nem sempre um assassinato é vil e o discernimento

de Abraham Lincoln, um homem simples, mas

deve ser levado em consideração na análise de

determinado em seus princípios e valores.

determinado fato. E muito ainda se deve à atuação

Nesse filme, o cineasta reafirma os valores

inesquecível de Henry Fonda, completamente entregue ao personagem e à direção de Ford.

fundamentais da nova nação em construção, como a justiça, a força do homem simples para a sociedade

A história do filme é simples, narra o apreço

como capaz de dominar a natureza, o da profunda

de Lincoln pelo Direito e seu desdobramento

religiosidade e o da cultura popular. Esses elementos

na carreira política. Apesar de gozar de certo

contribuíam para forjar a primazia que essa nova

reconhecimento, sua fama só viria após um incidente em que dois irmãos, em legítima defesa, matam um homem que já vinha molestando a sua

Young Mr. Lincoln, 1939 P&B, 100 min Com Henry Fonda, Alice Brady, Marjorie Weaver, Arleen Whelan, Eddie Collins, Pauline Moore e Richard Cromwell

nação estava prestes a consolidar, muito mais breve que o próprio Ford poderia sonhar.

família. Eles são do campo, o morto da cidade e Ford mais uma vez se posiciona claramente a favor dos primeiros. Após o assassinato, a turba quer fazer justiça com as próprias mãos. Entra em cena a figura de Lincoln, o homem do direito e da política, impedindo o linchamento e se tornando advogado de defesa dos irmãos. O discurso primoroso que realiza é de pura iniciação ao estado de direito, momento em que Ford ratifica sua visão heroica de Lincoln. Ford com o cinema impõe de vez a potência mítica

Mostra A América por John Ford

51



NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS Nove pessoas são obrigadas a embarcar em uma perigosa diligência através do Arizona, cada um com seu motivo pessoal para realizar tal viagem. Lotado de clássicas cenas do western, desde combates com índios até duelos na cidade, Ford explora com eficiência as paisagens naturais do Monument Valley para instaurar uma nova forma de contar uma história de faroeste.

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NO TEMPO DAS DILIGÊNCIAS No tempo das diligências é uma das obras mais

desértica cercada por índios selvagens que

aclamadas de John Ford; considerada uma obra-

ameaçam atacar a qualquer hora, a carruagem se

prima do faroeste, revolucionária e decididamente

transforma em uma formiga prestes a ser pisoteada

mais um road movie de sua carreira.

sem dó, pois como a um barco no oceano ela está

O filme também traça um painel da sociedade

imersa na mesma dúvida: conseguirá chegar à

norte-americana, na carruagem que leva a

cidade de Lordsburg? Então, ela está à deriva nas

Lordsburg viajam um banqueiro corrupto, um

ostentosas pradarias do Monument Valley.

médico alcoólatra, uma prostituta, a esposa de um oficial, um jogador inveterado, um xerife rabujento, um condutor abobalhado, um vendedor de bebidas e um fora da lei que fugiu da cadeia, papel interpretado pelo jovem ator John Wayne, primeiro trabalho em parceria com Ford. No percurso, diversos conflitos são deflagrados

nessa epopeia. No longo percurso da carruagem até o seu destino, todos estão desamparados, e essa simples observação eleva No tempo das diligências a um patamar filosófico fantástico, pois Ford constrói essa carruagem como um microcosmo

enquanto um clima de tensão permeia toda

não só norte-americano, mas também humano.

a narrativa, pois um ataque indígena pode

Os famosos planos gerais fordianos mostram ao

acontecer a qualquer momento.

espectador a coragem e a grande ambição humana

Até 1939, nenhum faroeste foi tratado tal como Ford o faz em No tempo das diligências, considerando-se todas as nuances psicológicas nele envolvidas. A carruagem sintetiza e aflora os conflitos existentes nesse universo. Na paisagem 54

Existe uma representação simbólica fundamental

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em enfrentá-los, e situam a posição diminuída dos animais, objetos e pessoas frente ao majestoso complexo cênico daquelas estruturas rochosas. Sabiamente, Ford toma para sua obra o próprio Monument Valley como um poderoso protagonista,


ficha técnica

inebriante tanto para os personagens como também

em seu caldo cinematográfico clássicos do

para o espectador. Ao olhar sensível de Ford não

cancioneiro folk norte-americano, que lentamente

escapam como cada elemento está inserido nessa

vai nos tornando cúmplices de sua narrativa.

magnânima paisagem. Ele nos ensina ainda como

Após um ataque dos índios, os viajantes da

uma história simples pode restaurar a complexidade

carruagem são salvos pela cavalaria do exército

das relações interpessoais em determinado contexto

norte-americano, a caravana contabiliza apenas

social e histórico.

uma baixa e dois feridos e consegue chegar a

A caravana desfila nos ermos caminhos oferecidos pelo Monument Valley, mas nunca há segurança. Ford vai construindo o ataque dos índios a cada nova sequência, como se os empurrasse e os preparasse, assim como a nós, espectadores, para o inevitável abismo do conflito derradeiro em Lordsburg. O roteiro de Dudley Nichols, a partir da história original de Ernest Haycox, apresenta uma construção dramática perfeita ao mesclar vários personagens complexos e diálogos que homeopaticamente vão revelando suas nuances e as verdadeiras motivações, assim como os segredos, de cada um nessa empreitada rumo ao

Stagecoach, 1939 P&B, 97 min Com John Wayne, Claire Trevor, Thomas Mitchell, Andy Devine, George Bancroft e John Carradine

Lordsburg, o que significa o fim da linha para todos, com exceção de Ringo Kid, personagem de John Wayne, que realizara a viagem com o intuito de vingar a morte do pai e do irmão. A vingança de Ringo Kid é concretizada, e o nosso herói, conforme prometido no decorrer da trama, tem seu momento de redenção partindo com a ex-prostituta para um rancho e começarem assim uma nova vida. Esse senso de justiça, no qual as pessoas podem superar a si mesmas e ao seu passado, sintetiza muito a filosofia de John Ford, de que o presente necessitava olhar para o passado e aprender que uma grande América se constrói a partir dos homens ordinários.

desconhecido. Ford, como poucos, ainda adiciona Mostra A América por John Ford

55



VINHAS DA IRA Inspirado na obra de John Steinbeck, o filme narra a história de uma pobre família de trabalhadores rurais durante a Grande Depressão de 1929. Buscando oportunidades de uma vida melhor, Tom Joad, após cumprir pena, leva sua família em uma pequena caminhonete de Oklahoma para a Califórnia, onde dizem ser um lugar mais próspero e de maiores oportunidades. Durante a viagem, eles deparam com a nova realidade, ao mesmo tempo que descobrem que o lugar para onde estão indo pode ser pior do que o deixado para trás.

57


VINHAS DA IRA Após ter trabalhado com Henry Fonda no magnífico

Quando as economias da família estão minguando,

A mocidade de Lincoln, John Ford retoma a parceria

eis que surge uma oferta de trabalho em uma

com o ator em As vinhas da ira, com base no clássico

colheita de pêssegos, só que eles terão de substituir

livro de John Steinbeck.

os trabalhadores que estão em greve. Entre os

A história do filme se passa no auge da Depressão, nos final dos anos 1920. Uma grande família de arrendatários é expulsa de suas terras no norte dos Estados Unidos e parte em um calhambeque para

marcante por John Carradine, o antigo pregador de Oklahoma, que acaba envolvendo Tom Joad em uma briga com capangas.

procurar emprego no sul, mais especificamente na

A família então cai novamente na estrada e se dirige

Califórnia. Ford construiu o filme como um road

a um acampamento do governo que os acolhe muito

movie, no qual a família, sem teto, tem de enfrentar

bem. Mas chega o dia em que o passado persegue

obstáculos de toda a ordem no decorrer da estrada.

a família com a procura do filho que participou

No meio do caminho os mais idosos tombam e os

da briga no antigo acampamento. O filho se vê

mais novos vão se virando como podem.

obrigado então a fugir enquanto o restante da

O filme, assim como o livro de Steinbeck, gira em

família vai colher algodão em uma fazenda ao norte.

torno de três personagens-chave: Tom Joad, Casy

O realismo invade então a obra de John Ford, não

e Mãe Joad. Tom está retornando para a família

muito afeito em sua extensa obra a denúncias sociais.

após um período de quatro anos na cadeia, Casy é

Sua aproximação com o popular sempre se deu pelo

um ex-pregador religioso e Mãe Joad é a matriarca

viés da cultura, dos festejos e cantos dos menos

lutadora que não mede esforços para manter

afortunados, além de seu incansável espírito de luta,

sua família. Todos são lançados à famosa Rota 66

o que pode ter atraído Ford para esse projeto.

rumo a uma Califórnia idílica. Mas uma vez, Ford aproxima-se de Homero em uma odisseia. 58

grevistas está Casy, interpretado de modo

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ficha técnica O retrato traçado por Ford da sociedade

The Grapes of Wrath, 1940

norte-americana é de profunda desagregação.

P&B, 129 min

De uma hora para outra, pessoas do campo são

Com Henry Fonda, Jane Darwell,

arremessadas à mercê da estrada. A morte dos avós

John Carradine, Charley Grapewin, Dorris Bowdon, Russell

simboliza muito o processo de degradação familiar,

Simpson e John Qualen

quando há perda de sua referência física, nesse caso, o lar. No discurso final John Ford homenageia o povo, demonstrando mais uma vez sua admiração pelo homem comum e seu papel na construção da sociedade norte-americana. Assim diz a matriarca da família, Mãe Joad: “Os ricos nascem, morrem e seus filhos também não prestam e desaparecem. Mas nós continuamos. Somos nós que vivemos. Eles não podem acabar conosco, não podem nos vencer. Nós viveremos para sempre, porque nós somos o povo.” Com

esse clássico, Ford se desvincula

um pouco da imagem de extraordinário diretor de faroeste, demonstrando uma característica múltipla e completa.

Mostra A América por John Ford

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RASTROS DE ÓDIO Ethan Edwards (John Wayne) é um homem que parte em busca de vingança contra os índios que exterminaram sua família, ao mesmo tempo, tenta resgatar com vida sua sobrinha. Considerado por muitos críticos um dos maiores filmes da história do cinema, com direção, fotografia, música, roteiro e edição majestosos, dignos de um filme de John Ford.

61


RASTROS DE ÓDIO Quando muitos já acreditavam no ocaso do faroeste,

confederados, regressa ao rancho de seu pacato

John Ford realiza uma das maiores obras da história

irmão. Enquanto isso, a região, localizada em um lugar

do cinema, Rastros de ódio. A película marca a

inóspito, está mergulhada em conflitos com os índios,

volta do diretor ao Monument Valley, seu cenário

que de tanto sofrerem com os ataques dos norte-

predileto, para narrar uma surpreendente história

americanos, resolvem pagar na mesma moeda.

de vingança. Ford conta basicamente com uma equipe que o acompanha a pelo menos dez anos, com destaque para o maestro Max Steiner, que apresenta uma das mais belas trilhas musicais já compostas para o cinema; e para o fotógrafo Winton C. Hoch, que nos oferece imagens inacreditáveis do Monument Valley. O roteiro de Frank S. Nugent explora diversas ambiguidades ao dosar revelações e omissões de informações no decorrer da narrativa.

uma armadilha que afastou Ethan do rancho de seu irmão para realizar um violento ataque, assassinando toda a sua família e raptando as duas sobrinhas. Ethan, que já nutria ódio pelos índios, inicia uma perseguição implacável. Uma de suas sobrinhas é morta e a outra, que sobrevive, é criada para ser uma das mulheres de Scar, líder Comanche. Dentro dessa história, Ford enxerta detalhes que a torna bem mais complexa, investindo no conflito cultural

Mas, nesse filme, as atenções estão voltadas para

entre brancos e índios ao enfocar o aculturamento

John Wayne, que realiza um dos trabalhos mais

da sobrinha. Mas há uma passagem que merece

consistentes de sua carreira. Wayne representa o

destaque: quando Scar morre, no embate final

clássico personagem do filme de faroeste, aquele com

do filme, Ethan pratica o escalpo no líder dos

um passado nebuloso que chega mitologicamente

Comanches. De maneira sutil, Ford equipara Ethan

por detrás da montanha e só parte ao final de sua

a Scar, pelo simples fato de o primeiro reproduzir

empreitada heroica. Ethan, após anos lutando pelos 62

Tudo corria bem até que os Comanches armaram

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um ato típico da cultura que ele tanto rejeitava.


ficha técnica Desvendar a personalidade conturbada de Ethan

nostálgico para ele. Primeiro, em uma tela preta,

é uma das chaves para melhor compreender o

imprime apenas um nome e uma data, Texas 1868.

filme. Pode-se começar pela sua compleição física

Depois, posiciona a câmera no interior escuro

avantajada, acrescida com doses de amargura

da casa e nos propicia um momento memorável

Vera Miles, John Qualen, Harry

e dureza. Seu personagem não tem um passado

do cinema ao enquadrar a partir da abertura

Carey Jr. e Natalie Wood

evidente, tampouco terá um futuro certo, ele é só

da porta uma visão parcial, mas magnífica do

presente, só ação.

Monument Valley. Enfim, mostra o oeste como uma

Em Rastros de ódio, Ford insere muitas características que agregam densidade à narrativa e aos personagens. Um exemplo é a paixão de Ethan pela cunhada, que é reprimida por ambos. A formação de uma família é o elemento fundamental

Com John Wayne, Jeffrey Hunter,

a adentrar nesse universo mítico e mágico. Ford inteligentemente se utiliza também da escuridão da sala de cinema para nos arremessar para o interior do filme. Na última cena, ele volta ao mesmo ângulo da

ao do irmão, um típico vaqueiro do velho oeste. Mas

porta, com a câmera posta dentro da casa. Na

Ethan não nasceu para isso, sua vocação é outra,

imagem escura, a porta aberta se transforma

reside na esfera do herói mitológico, um solitário

em uma janela pela qual vemos Ethan partindo

preparado para a solução de conflitos, sobretudo os

enquanto assistimos a um vento abrupto fechando-a

armados.

violentamente, nos informando o encerramento

incólumes, principalmente aos olhos dos cinéfilos.

Cor, 119 min

janela, como se nos convidasse respeitosamente

que diferencia seu personagem quando comparado

Mas a primeira e a última cenas não devem passar

The Searchers, 1956

da mágica e nos trazendo celeremente para o presente.

Ford surpreende fugindo de seu estilo clássico: começa o filme nos revelando o quanto o oeste é

Mostra A América por John Ford

63



O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA A cidade de Shinbone, no Velho Oeste, recebe a visita de Ransom Stoddard (James Stewart), senador que foi para o funeral de Tom Doniphon (John Wayne), um desconhecido vaqueiro do qual era muito amigo. Ao ser entrevistado por um repórter sobre o que fazia na cidade, Ransom começa a contar que sua fama começou quando ainda era um advogado recém-formado e matou Liberty Valance (Lee Marvin), um perigoso bandoleiro. Em flashback, o filme narra todo esse período de sua vida, em especial sua relação de amizade com Tom Doniphon.

65


O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA “Quando a lenda se torna fato, nós a publicamos.”

chamado Liberty Valance (Lee Marvin). Para

Essa frase, declarada na parte final do filme

combatê-lo, Ford nos apresenta Tom Doniphon

O homem que matou o facínora, conforme já

(John Wayne), caubói determinado em combater

foi descrito por diversos críticos, sintetiza essa

com revólver em punho o vilão Liberty Valance. O

obra-prima. Ela contém em si todo o esforço de

conflito então se estabelece, a justiça virá por meio

Ford em criar, por meio da linguagem do cinema,

da lei ou da violência armada?

um lastro histórico grandioso para os Estados Unidos.

Enquanto aguardamos a resposta, Ford nos lança

O homem que matou o facínora foi uma das últimas obras de Ford e mostra o quanto ele dominava as possibilidades narrativas do cinema, que resultou em um trabalho pleno, com John Wayne esbanjando categoria, leveza e um humor refinado. O também experiente James Stewart demonstrou conhecer e dominar a arte da interpretação como poucos. Wayne e Stewart absorveram o espírito de brincar com o universo cinematográfico do qual o próprio Ford ajudou a criar, o do oeste selvagem, brutal,

trem se aproximando de uma típica cidade do velho oeste trazendo nele o Senador Ransom Stoddard. A ferrovia vislumbra-se simbolicamente como sinal de um novo tempo, bem diferente daquele vivido por Stoddard quando ele chegou como um mero advogado anos antes naquela cidade. E Ford faz questão de sublinhar a cada nova cena o quanto aquele espaço se transformou desde a partida do nosso protagonista.

repleto de homens destemidos, de foras da lei

Mais uma vez, Ford extrai o máximo da trilha

carrancudos.

musical, dessa vez composta por Cyril Mockridge.

O filme narra a chegada do advogado Ransom Stoddard (James Stewart) em uma pequena cidade do velho oeste dominada por um pistoleiro violento 66

sinais favoráveis à modernidade, como a de um

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Por meio dela nos incita um sentimento melancólico, nos transporta, ainda sem mostrá-lo, a um passado existente agora somente na memória


ficha técnica dos personagens. Passado que vai sendo desvelado

As memórias do ex-advogado vão e vem tendo como

por Stoddard, porta-voz de uma memória já apagada

elemento simbólico na cena a velha carruagem que

Valance, 1962

pela cidade, ali representada pela imprensa escrita,

o trouxe até aquele local. Esse recurso elucida o

P&B, 119 min

que sequer conhecia acerca da morte de um de seus

quanto Ford pensava com muita antecedência nas

heróis, Tom Doniphon. O papel de Stoddard é o de

possibilidades cinematográficas de melhor contar

resgatar essa memória obliterada pelo tempo e pela

suas histórias, o que refletia diretamente na incrível

sua lenda e restaurar a imagem vitoriosa de um homem que mesmo antes de morto já havia caído no esquecimento, e que no dia de seu funeral só contava com a presença de uma pessoa, seu velho amigo Pompey. Mas o fato de um senador viajar de longe para o velório de um desconhecido homem aguça

The Man Who Shot Liberty

Com James Stewart, John Wayne, Lee Marvin, Vera Miles, John Qualen e Jeanette Nolan

fluência narrativa inerente aos seus filmes. A ousadia fordiana acontecia nessas soluções que encontrava para facilitar a imersão dos espectadores nas viagena propostas pelo seu estilo de fazer cinema. Com O homem que matou o facínora Ford destaca o salto qualitativo dado pela sociedade norte-americana

mais ainda a atenção do jornal local, que insiste

em suplantar o poder das armas pela afirmação das

na revelação da importância daquele que jaz no

leis. Surpreendentemente o caminho da violência

simplório caixão na sala funerária. Mais uma vez,

ora questionado pelo diretor nessa apurada obra

Ford se esforça para destacar o papel de um norte-

é contraditoriamente negado alguns anos depois

americano comum que colaborou com seu sangue

quando Ford viria apoiar a intervenção armada

e suor para edificar aquele país. Enquanto o ex-

norte-americana no Vietnã.

advogado relembra a história, Ford nos transporta para o passado onde conheceremos a trajetória de Tom Doniphon e restaurará a verdade sobre a morte do vilão Liberty Valance. Mostra A América por John Ford

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filmografia

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1971 Vietnã! Vietnã!

1947 O domínio de bárbaros

1966 Sete mulheres

1946 A paixão dos fortes

1964 Crepúsculo de uma raça

1941 Como era verde meu vale

1962 O homem que matou o facínora 1961 Terra bruta 1960 Audazes e malditos 1959 Marcha de heróis 1958 O último Hurrah Um crime por dia

1957 Asas de águia 1956 Rastros de ódio 1955 Mister Roberts A paixão de uma vida

1953 Mogambo 1952 Sangue por glória Depois do vendaval

1950 Rio grande Caravana de bravos O azar de um valente

1948 O céu mandou alguém Sangue de heróis

Caminho áspero

1940 A longa viagem de volta As vinhas da ira 1939 Ao rufar dos tambores A mocidade de Lincoln No tempo das diligências 1937 O furacão 1936 Mary Stuart, rainha da Escócia

O prisioneiro da Ilha dos Tubarões

1935 Nas águas do rio O informante

1934 Juiz Priest A marcha dos séculos A patrulha perdida

1933 Doutor Bull Peregrinação

1932 Carne Asas heroicas

1931 Médico e amante A garota

1930 Rio acima Homens sem mulheres

1929 O moço forte 1928 Justiça do amor Quatro filhos

1927 A torrente da fama 1926 Três homens maus A folha de trevo

1925 Coração intrépido Puro-sangue O coração não envelhece

1924 O cavalo de ferro 1923 Cegueira humana Jornada da morte Descendo abismos O romance de um pintor célebre

1922 O ferreiro da aldeia Veneração extrema Senhorita Sorriso

1921 A dançarina Fogo certeiro Ação enérgica Pista inapagável Corações independentes Chicote do amor

Mostra A América por John Ford

1920 Camaradas No campo da honra A dama do n° 29 A doce atrocidade

1919 Homens marcados Dignidade Expiação Ação fecunda O índio correio A promessa Uma contenda de amor Luta entre irmãos Loteria matrimonial

1918 A onda de indignação Os três cavaleiros Nas malhas de cupido A recompensa Pingo de sangue Quando se ama Reino venturoso Rosa do paraíso

1917 Preito de um foragido O fugitivo O último cartucho O arrebanhador de almas O furacão

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Referências

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Mostra A América por John Ford

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Esta publicação foi composta em DejaVu Serif, Didot, Justus, Minon Pro, Zurich, sob o papel duodesign 300 g/m2 (capa) e couche matte 150 g/m2 (miolo).


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