Revista Palavra | Ano 11 | Número 10 | 2020/21

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ano 11 . número 10 . 2020 Sesc Literatura em Revista

Marta Barcellos Ailton Krenak Bruno Ribeiro Eli Macuxi Aline Bei Helder Herik Miriam Alves Taylane Cruz Ticiane Simões Mailson Furtado Wilson Coelho Mateus Baldi Eduardo Pereira Itamar Vieira Jr. Luiza de Sousa Patrícia Galelli Rhafael Porto Ribeiro Sandro Sussuarana Débora Arruda Wesley Peres Isabel Costa Claudia Lage Gelson Bini

Brasilidades contemporâneas



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EDITORIAL

Estamos num período de grandes desafios para a humanidade. A pandemia provocada pelo novo coronavírus, além de centenas de milhares de perdas, causou também uma grande mudança em todo o mundo, obrigando-nos a buscar novas formas de viver, pensar e olhar para a realidade. Nesse contexto, o Sesc se mantém firme em sua missão de promover o bem-estar da população, desenvolvendo diversas ações nas áreas em que atua. Entendendo que a cultura é uma necessidade e direito de todos, a Instituição dribla as dificuldades e faz a arte chegar ao maior número possível de lugares e pessoas. No que se refere à Literatura, mantivemos o Prêmio Sesc de Literatura dentro do seu cronograma, revelando dois novos prosadores brasileiros nesta 17ª edição do projeto. Confira nesta edição resenha do romance O legado de nossa miséria, de Felipe Holloway, vencedor do prêmio em 2019. Em 2020, também foi possível realizar parte do projeto Arte da Palavra - Rede Sesc de Leituras, único circuito literário existente no Brasil, com 40 artistas de diferentes partes do País realizando debates, apresentações e oficinas. E o projeto segue firme e forte em 2021. Os colaboradores desta edição são, em sua maioria, autores que também estão inseridos no circuito Arte da Palavra. Ambos os projetos, apesar de autônomos, complementam-se fortalecendo organicamente o conjunto de projetos literários do Sesc.


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Um dos participantes do circuito é o escritor e líder indígena Ailton Krenak, vencedor do Prêmio Juca Pato de intelectual do ano em 2020. O autor foi entrevistado pela escritora e jornalista Marta Barcellos. É Marta quem também assina a matéria de capa desta edição. A autora de Antes que seque, livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2015, investiga os diferentes sentidos de brasilidade retratados na nossa literatura contemporânea. Como um tipo de amostra dessa diversidade cultural, nas próximas páginas também estão representados vários tipos de literatura produzidos no País. São poemas, contos, depoimentos e tirinhas de Bruno Ribeiro, Elimacuxi, Ticiane Simões, Wilson Coelho, Carlos Eduardo Pereira, Helder Hérik, Itamar Vieira Jr., Miriam Alves, Taylane Cruz, Claudia Lage, Gelson Bini, Aline Bei, Débora Arruda, Mailson Furtado, Sandro Sussuarana, Wesley Peres, Luiza de Sousa, Patrícia Galelli e Rhafael Porto Ribeiro. O que todos têm em comum? O sentido particular de brasilidade que inserem nas suas obras. Nesse período em que vivemos e sobrevivemos, promover o diálogo entre os muitos brasis pode ser um grande caminho para as nossas vidas, e melhor ainda quando isso é feito pelo viés da literatura e das ideias. Como afirma Krenak: “Falar da nossa aldeia talvez tenha mesmo o poder de ser universal.” Boas leituras! A redação


SUMÁRIO

7 10

Primeiras palavras Brasilidades contemporâneas Marta Barcellos

20 Marta Barcellos entrevista Ailton Krenak

Artigo

26 28 30 32

Bruno Ribeiro Elimacuxi Ticiane Simões Wilson Coelho

Conto

36 40 44 48 52

Carlos Eduardo Pereira Helder Hérik Itamar Vieira Jr. Miriam Alves Taylane Cruz


Tirinha e Charge Poesia

56 Luiza de Sousa 58 Patrícia Galelli 60 Rhafael Porto Ribeiro 64 74 78 80 84

Aline Bei Débora Arruda Mailson Furtado Sandro Sussuarana Wesley Peres

Resenha

90 Mateus Baldi 92 Isabel Costa

Depoimento

94 Claudia Lage 96 Gelson Bini


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PRIMEIRAS PALAVRAS Sesc


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O Sesc tem reafirmado, ao longo do tempo, o seu papel de disseminador da cultura brasileira em todas as suas vertentes, consciente de sua responsabilidade de democratizar o acesso às manifestações artísticas. A área de Literatura tem lugar de destaque nesse universo, desde que iniciou sua trajetória há mais de vinte anos, com projetos de formação de leitores, desenvolvidos tanto em âmbito nacional como regional. Esse olhar direcionado à literatura brasileira, expressão genuína de nossa realidade, abriu espaço a inúmeras iniciativas como feiras e jornadas, circuitos de contadores de histórias, saraus de poesia, cafés literários, rodas de leitura e laboratórios de criação, promovidas nas unidades do Sesc em todos os estados e abertas ao público. Entre os projetos de relevância desenvolvidos pelo Sesc, cumpre destacar o Prêmio Sesc de Literatura, consolidado como um dos mais importantes do gênero no Brasil, realizado em parceria com a editora Record. Com 18 anos de existência e mais de 15 mil livros inéditos inscritos, já revelou inúmeros escritores de qualidade inequívoca. Outro projeto extremamente importante por sua abrangência e diversidade é o Arte da Palavra – Rede Sesc de Leituras, circuito de debates de autores, oficinas literárias e apresentações de literatura oral. Nesta nova edição, a Palavra mergulha no aspecto multifacetado do Brasil, reforçando o compromisso do Sesc com a difusão da nossa literatura, a ampliação do universo de leitores e a democratização do acesso a bens culturais, na esperança de construir um país mais justo, ultrapassando os obstáculos ao nosso desenvolvimento. Departamento Nacional do Sesc


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CAPA Marta Barcellos

Brasilidades contemporâneas


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De um lado, uma literatura que não se pretende elevada nem panfletária: quer

apenas se experimentar a partir dos novos lugares – ou perspectivas – de onde está

nascendo. De outro, um leitor curioso e interessado em conhecer o que antes lhe era

invisível – independentemente dos manuais

sobre diversidade ou correção política. As brasilidades contemporâneas que estão invadindo e reinventando a cena literária

são difíceis de enquadrar em rótulos antigos, como literatura regionalista ou marginal.


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Como identificar por regionalismo os premiados Outros cantos, de Maria Valéria Rezende, Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, ou À cidade, de Mailson Furtado Viana? Ou afirmar que O sol na cabeça, best-selller de Geovani Martins seja literatura da periferia? Para compreender a nova literatura que pulsa nos quatro cantos dos muitos “Brasis”, é preciso considerar as novas redes de distribuição e divulgação, diz a professora Regina Dalcastagné, coordenadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB). “É um Brasil mais amplo, que brota com força a partir das redes sociais, pequenas editoras, feiras literárias”, aponta a pesquisadora. “Os caminhos não são os mesmos de antes, e são mais capilarizados.”

É UM BRASIL MAIS AMPLO, QUE BROTA COM FORÇA A PARTIR DAS REDES SOCIAIS, PEQUENAS EDITORAS, FEIRAS LITERÁRIAS

À primeira vista, os lugares podem parecer os mesmos, pelo menos geograficamente. A nova produção literária, porém, mostra que não é bem assim: “Tento narrar o sertão em que vivo, o de hoje”, diz Mailson Furtado Viana, que causou alvoroço em 2018 ao ser laureado com o mais prestigiado prêmio do País, o Jabuti de Livro do ano, por À cidade, livro-poema em homenagem a Varjota, no interior do Ceará – onde ainda mora, agora alçado à condição de celebridade entre seus 18 mil habitantes. “Os autores não precisam mais necessariamente se deslocar para ter visibilidade, acesso às grandes editoras, aos jornais”, diz Giovanna Dealtry, crítica literária e professora do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “É um grito de existência, para além da resistência”, define Mailson. “Cresci sabendo mais sobre a juventude carioca e paulista, ou o movimento roqueiro de Brasília, do que sobre a juventude sertaneja. São jovens que vivem de forma pulsante, por causa da arte e das transformações dos últimos 30 anos.” O autor se refere a uma

É UM GRITO DE EXISTÊNCIA, PARA ALÉM DA RESISTÊNCIA


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primeira geração do interior conectada pela internet, por novas linhas de transporte e também pelos novos campi universitários instalados no interior do país. O que antes parecia precariedade e improviso agora se revela parte da obra: o fato de Mailson ter feito, ele próprio, toda a edição de À cidade, da ilustração da capa à publicação dos 300 exemplares, foi tratado como pitoresco à época do prêmio. Com o passe cobiçado por grandes editoras, ele poderia sanar os “problemas” enfrentados por ser desconhecido no mercado, correto? Nada disso. Mailson dispensou os convites e resolveu repetir o formato “artesanal” no livro Ele – ou A epopeia rasa de um homem sem história, com lançamento previsto para junho. “Entendo o papel das editoras grandes ou independentes”, ressalta. “Mas agora que descobri ser um formato possível, me sinto mais potente com ele.” Em 2005, o escritor Allan da Rosa fundou a Edições Toró para publicar autores que surgiam em saraus na periferia de São Paulo e dificilmente teriam chances no mercado editorial. A realidade não mudou muito, apesar de autoras negras, como Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves, terem sido finalmente reconhecidas por obras ignoradas durante décadas. Em seu percurso como editor e educador (está concluindo um doutorado em educação na USP), Allan aprendeu a lidar com as armadilhas das discussões em torno de lugar de fala e representatividade. “Esses conceitos podem ser usados de forma hipócrita por uma elite que cede seu espaço para se eximir da autocrítica. Podemos ocupar as frestas que aparecem, mas sem cair na tentação da superficialidade. Não podemos perder de vista o cultivo das nossas ideias, das forças comunitárias, dos alicerces filosóficos que criamos nesses 400 anos catastróficos de escravidão.”

ESSES CONCEITOS PODEM SER USADOS DE FORMA HIPÓCRITA POR UMA ELITE QUE CEDE SEU ESPAÇO PARA SE EXIMIR DA AUTOCRÍTICA. PODEMOS OCUPAR AS FRESTAS QUE APARECEM, MAS SEM CAIR NA TENTAÇÃO DA SUPERFICIALIDADE. NÃO PODEMOS PERDER DE VISTA O CULTIVO DAS NOSSAS IDEIAS, DAS FORÇAS COMUNITÁRIAS, DOS ALICERCES FILOSÓFICOS QUE CRIAMOS NESSES 400 ANOS CATASTRÓFICOS DE ESCRAVIDÃO.


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O escritor não vê problemas na denominação de literatura negra ou das quebradas. “Mas questiono o quanto a arte consegue orientar as pessoas. É natural que nestes tempos de autoritarismo exista um sentimento de urgência, no entanto a arte pode ficar estreita se for didática. Não temos que ficar escrevendo para boy branco de classe média.” O fascinante da literatura, diz ele, é justamente a potência de atingir depois públicos inesperados. “As leituras fogem ao controle da caneta.” Allan estreia em agosto a sua peça Galpão de espera no Centro Cultural de São Paulo, depois de ter tido os contos do livro Reza de mãe como base para um espetáculo musical no Rio de Janeiro. A peça, resume ele, tenta responder de forma nova ao antigo dilema “da integração do povo preto ao mundo do trabalho”. A simples mudança de perspectiva na abordagem de um mesmo tema pode fazer toda a diferença, diz Regina Dalcastagné, ressaltando a necessidade de um “trabalho estético para atingir o leitor”. Encantada com o romance Torto arado e o livro de quadrinhos Castanha do Pará, que a fizeram conhecer realidades brasileiras distantes e ao mesmo tempo a ajudaram a compreender o país em que vive hoje, a pesquisadora se surpreendeu com o olhar lançado pela poesia de Marcelo Labes, escritor de Blumenau, filho de um tecelão e uma empregada doméstica, sobre a emigração alemã na região. “Morei ao lado de Blumenau e aquela era uma perspectiva completamente nova para mim. A visão que sai da elite para as classes populares traz novas questões para a literatura.” Ela acredita que somente alguém como Gidalti Júnior, o desenhista e professor que conquistou o Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos em 2017, poderia ter retratado o mercado público Ver-o-peso, em Belém, como ele aparece em Castanha do Pará.

AS LEITURAS FOGEM AO CONTROLE DA CANETA


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“Determinadas histórias só podem ser contadas por alguém que vive ou se aproxima delas”. A pesquisadora, no entanto, como todos nesta reportagem, é contra a radicalização do conceito de lugar de fala aplicado à literatura. “Seria lamentável um escritor só poder escrever sobre si próprio. Isso destruiria a ideia da arte como uma perspectiva sobre o outro.” “Não deve haver censura”, diz a professora Giovanna Deatry. “O que não significa que depois não possamos criticar a obra.” Regina concorda: “O papel da crítica é apontar problemas, inclusive preconceitos e estereótipos que podem estar relacionados à condição do autor.” As duas pesquisadoras da literatura não escondem certo cansaço em relação ao retorno constante deste debate – recentemente alimentado por um artigo do escritor Antônio Risério publicado na Folha de São Paulo (Lugar de fala é instrumento para fascismo identitário) e pela crítica ao romance American Dirt, da americana Jeanine Cummins, que estereotiparia o drama dos migrantes mexicanos na fronteira dos Estados Unidos. A mudança no eixo de interesse, da crítica e do público, pode estar por trás da reação de alguns escritores mais consagrados. “Há um esgotamento da narrativa a partir do homem branco, urbano, com seu olhar para ‘não-acontecimentos’ existenciais”, diz Giovanna. Ao mesmo tempo, haveria alguma boa vontade na avaliação de livros à margem dos grandes centros de poder? “Isso é delicado, porque existe um autor que está se experimentando, que tem dificuldades para publicar, então não vou arrasar esse livro. Há uma diferença entre um grande livro e a importância de ver um livro existindo”, compara Regina, ressaltando que autores homens brancos não são tão cobrados por seus livros fracos. HÁ UM ESGOTAMENTO DA NARRATIVA A PARTIR DO HOMEM BRANCO, URBANO, COM SEU OLHAR PARA ‘NÃO-ACONTECIMENTOS’ EXISTENCIAIS


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Giovanna lembra que novas vozes literárias muitas vezes são construídas em saraus, eventos e rodas de leitura em comunidades, para os quais professores são convidados e podem contribuir neste processo de formação com suas críticas. “Temos que fugir da armadilha da condescendência, daquela postura de ser bonzinho porque se trata de uma minoria”, diz ela. “Não gosto também da mania de eleger ‘a nova voz da favela’, até porque é um peso para o autor”, acrescenta, se referindo à forma como Geovani Martins teria sido divulgado pela imprensa. O escritor carioca, vencedor do Prêmio Rio de Literatura do ano passado, é um exemplo de autor revelado a partir das oficinas realizadas na Festa Literária das Periferias (Flup), no Rio. Para fugir da armadilha do didatismo, como aponta Allan da Rosa, que caminhos literários deve buscar uma voz que finalmente consegue se expressar? A experimentação na forma e na linguagem, típica da contemporaneidade, parece ser a trilha seguida pelos autores que estão se destacando, sejam eles da periferia, sejam do interior ou da floresta. “Houve uma primeira leva de autores, como Milton Hatoum e Luiz Ruffato, já canônicos, que seguiu esse caminho de narrar seus lugares de origem a partir de uma linguagem contemporânea”, diz Giovanna. Isso os diferenciava dos autores do começo do século que ganharam a pecha de regionalistas por escrever sobre suas marcas culturais e tradições. “Também houve muita confusão em se chamar de regional o que não era urbano.” Se urbano já foi sinônimo de literatura moderna, o pensamento contemporâneo hoje dialoga com narrativas vindas da tradição oral, como o cordel e a literatura produzida por autores indígenas. “Isso entra em conflito com nossa formação intelectual”, diz Giovanna. “Precisamos de novos pressupostos teóricos e críticos para valorar essa literatura.”

ACREDITO QUE OS LUGARES E AS HISTÓRIAS PODEM ATÉ SER OS MESMOS. O QUE MUDOU FOI A FORMA DE CONTAR E QUEM ESTÁ CONTANDO. ESSA NOVA PERSPECTIVA CERTAMENTE ESTÁ RELACIONADA AO MOMENTO HISTÓRICO E POLÍTICO QUE VIVEMOS.


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Ailton Krenak, líder indígena e autor de O lugar onde a terra descansa e Ideias para adiar o fim do mundo (ver entrevista a seguir), vai além: “Para os índios, não existe o conceito de arte, seus artefatos são sempre objetos inseridos no cotidiano ou em rituais. Arte é uma ideia construída no Ocidente. Alguns indígenas estão atravessando essa fronteira para fazer uso do campo da arte como ativismo de afirmação ou denúncia. Consideram-se arte-ativistas, em vez de artistas.” O “escritor-ativista”, que já teve um desenho exposto no Museu de Arte do Rio (MAR), acha que sua maior obra artística foi o gesto de pintar o rosto no Congresso Nacional, durante a Constituinte de 1988. “Se não tiver consequências, a arte é só uma experiência estética, pessoal. Não tenho qualquer interesse em fazer uma experiência literária.” Afinal, mesmo que a diversidade pareça estar na moda, o lugar do povo indígena continua sendo o da invisibilidade ou, pior, do que sofre a violência. A escritora e historiadora Micheliny Verunschk, criada no sertão pernambucano, debruçou-se sobre um aterrador caso real indígena para escrever O som do rugido da onça, romance a ser lançado no segundo semestre. “Acredito que os lugares e as histórias podem até ser os mesmos. O que mudou foi a forma de contar e quem está contando. Essa nova perspectiva certamente está relacionada ao momento histórico e político que vivemos”, afirma. Depois de tentar narrar pelo formato tradicional de romance histórico os detalhes pesquisados sobre uma expedição de naturalistas alemães pelo Brasil que, no século XIX, além de coletar espécies e dados culturais levou para Munique oito crianças indígenas como parte da “coleção”, Micheliny optou por adotar o ponto de vista dos meninos e meninas sequestrados. “A forma tradicional não dava conta daquela história.” A autora já havia se notabilizado por romancear outra brasilidade de forma bem contemporânea no livro Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.

PARA OS ÍNDIOS, NÃO EXISTE O CONCEITO DE ARTE, SEUS ARTEFATOS SÃO SEMPRE OBJETOS INSERIDOS NO COTIDIANO OU EM RITUAIS. ARTE É UMA IDEIA CONSTRUÍDA NO OCIDENTE.


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Como leitora de ficção, Micheliny é exemplo do tal esgotamento da narrativa em torno da crise existencial de um homem branco urbano de meia idade. “Ninguém aguenta mais esse personagem recorrente.” Em sua mesinha de cabeceira, nos últimos tempos, se revezam volumes escritos principalmente por mulheres. “No meu caso, é um posicionamento político, a partir da percepção de que minha formação foi construída a partir de autores homens, brancos e ocidentais.” A militância por igualdade, para as escritoras, dá-se em duas frentes. Na primeira, em coletivos e movimentos que aumentam a sua representatividade no sistema literário, como o Mulherio das Letras, que apoia mulheres a publicar e divulgar suas obras, e o Leia Mulheres, que estimula leitores a privilegiar livros escritos por autoras. Na segunda frente, diz Micheliny, vem a luta “pela construção do nosso modo de contar as histórias”. O ponto de vista feminino já não torna a narrativa ou o poema menos “universal”, como se pensava no século passado. Mas não existe, também, uma obrigação em torno de temas ou bandeiras. Na internet, um vídeo do canal Porta dos Fundos faz sucesso entre as novas vozes que surgem na literatura e se reconhecem no personagem interpretado pelo comediante Gregório Duvivier. Em Escritor branco, a produtora de vídeos satiriza a situação do escritor que é reduzido, em uma simpática entrevista, à sua “condição” e à sua “branquitude”, numa inversão do que ocorre com as chamadas minorias. O escritor gaúcho Tobias Carvalho, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2018 com o livro As coisas, uma seleção de contos sobre jovens homossexuais, com foco no aspecto efêmero dos encontros sexuais, acabou passando por situações semelhantes durante o tour literário de eventos e lançamento pelo país. “Um professor que estuda literatura LGBT me questionou sobre o meu

O PONTO DE VISTA FEMININO JÁ NÃO TORNA A NARRATIVA OU O POEMA MENOS “UNIVERSAL”, COMO SE PENSAVA NO SÉCULO PASSADO.


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compromisso de representatividade, quando revelei que meu próximo livro teria outra temática”, diz Tobias. “Meu compromisso é apenas comigo mesmo, com as histórias que imagino.” Já no livro de estreia, Tobias precisou ser firme para contar suas histórias com as especificidades por ele imaginadas: no processo de revisão, o “gauchês” coloquial e urbano dos personagens, em que a segunda pessoa do singular tinha a conjugação do verbo propositalmente errada, inicialmente havia sido “corrigido”, embora o autor considerasse isso fundamental na criação da ambientação de Porto Alegre. O próximo livro, cujo tema são os sonhos, se passará numa cidade não nomeada, evitando rótulos como literatura gay ou gaúcha. A ousadia na linguagem, por sinal, é um dos aspectos que sobressaem na nova literatura, tanto do interior do país quanto das periferias, e foi especialmente elogiado pela crítica no livro premiado de Geovani Martins, que, em alguns contos, recria a fala das favelas e dos subúrbios cariocas, mas, em outros, com ambientação semelhante, o artifício de linguagem não foi necessário. Um bom exemplo de trabalho literário que vai muito além de mostrar apenas o exotismo de realidades antes invisíveis. Ou seja, com consistência e potência literárias, as brasilidades contemporâneas vieram para ficar.

Marta Barcellos nasceu em 1965. Escritora e Jornalista, é autora de Antes que seque, livro de contos vencedor do Prêmio Sesc de Literatura em 2015 e do Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional, em 2016.


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Marta Barcellos ENTREVISTA

Ailton Krenak

Depois do trabalho na horta, Ailton Krenak separa algum tempo para mais uma entrevista – uma entre tantas demandas por depoimentos e conferências vindas de diferentes partes do globo. “Quando fui convidado pelo Parlamento Europeu, achei uma convocatória exagerada para o lugar em que me coloco, que não é o de intelectual ou pensador”, diz ele, ainda surpreso com a repercussão de Ideias para adiar o fim do mundo, best-seller no Brasil e com lançamentos previstos para França, Argentina e Canadá. “Mas acho bom o livro incomodar, gerar reflexões”. Do celular, Ailton avista o rio que corre em sua aldeia, o lugar de onde vem sua literatura e que foi devastado pela lama em 2015. O apito do trem, aos 14 minutos de entrevista, lembra que na margem oposta do Watu (Rio Doce, na língua krenak) mais uma composição leva ao porto os minérios arrancados das montanhas. “Quando nasci, há quase 67 anos, o trem já passava aqui, carregando a paisagem dilacerada pela mineração e presente na poesia de Drummond, quando ele dizia que Itabira era só um retrato na parede.”


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Marta Barcellos ENTREVISTA Ailton Krenak

Marta Barcellos A que atribui a repercussão de seu livro? Ailton Krenak Foi uma surpresa. Achei que tinha relação com

o luto político que vivemos no país, mas ele foi adotado até na pós-graduação de uma universidade alemã. Parece que dialoga com uma produção do pensamento contemporâneo ligada à crise ambiental do planeta, uma crise de ideias e valores. Abriu um debate muito além do que eu estava interessado em aprofundar e que está me requisitando em vários lugares.

Marta Barcellos Quando uma literatura local se torna universal? Ailton Krenak Para Fernando Pessoa, é quando falamos do

rio que corre na nossa aldeia. O que me moveu nesse livro foi a desgraça que aconteceu no nosso rio Doce, a lama que desceu com o rompimento da barragem em Mariana. Falar da nossa aldeia talvez tenha mesmo o poder de ser universal.

Marta Barcellos Existe interesse do leitor por uma “literatura indígena”? Como uma tradição oral encontra espaço no sistema literário ocidental? Ailton Krenak Meu livro é originalmente falado, fruto de

conferências que fiz entre 2017 e 2019. Temos hoje uns 20 ou 30 indivíduos indígenas escrevendo, 90% são narrativas referenciadas em mitos e tradições que nem sempre transbordam do ambiente em que vivemos. Mas existem obras percebidas como alta literatura, como A queda do céu, de Davi Kopenawa. Não sei se podemos pensar em uma literatura indígena.


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Marta Barcellos Só um indígena pode escrever sobre sua vivência, sua memória ancestral? Ailton Krenak Não dou confiança

para essa discussão sobre apropriação cultural, quem pode ou não usar adornos. Mas escrever a partir da experiência, de uma cultura, não é modinha, é legítimo. Somente Svetlana Aleksiévich (bielorrussa prêmio Nobel de literatura) poderia ter escrito seus livros. Se está interessado em um trabalho profundo de escrita, o leitor pode ler Guimarães Rosa; se quer apenas determinada leitura, pode ler um livro como o meu. Não me considero um escritor no sentido de pertencer ao mundo da literatura.

Marta Barcellos Como será o próximo livro? Tem o hábito de escrever? Ailton Krenak Tenho o desábito.

Escrever para mim é um flagelo. Prefiro cortar lenha no quintal, capinar ou plantar; desenhar ou sentar para contar histórias. A Companhia das Letras acredita que vou conseguir entregar mais um livro este ano. Se conseguir, será uma contação de histórias sobre esta região.


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arti go


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ARTIGO Bruno Ribeiro

Quando certa manhã o tradutor acordou de sonhos intranquilos

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O escritor se encontra só, mas o tradutor nunca está só. Ele está diante de um papel repleto de palavras de outro: um duplo estrangeiro. E este outro o assombra com sua língua, com sua verdade, um texto pronto encarando-o no ringue da sintaxe, e o tradutor deve nocauteá-lo, palavra por palavra, parágrafo por parágrafo: traduzir é guerrear com duas línguas simultaneamente.

2

Traduzir, assim como o ato da montagem no cinema, deve ser discreto e silencioso? Sim, mas essa é uma visão clássica do ofício. Com o tempo, por exemplo, vimos que existem diversas formas de montagens no cinema, algumas invisíveis, outras explícitas em que percebemos o dedo do editor naquele corte, cena, naquela inserção estranha no filme. Com a tradução ocorre algo similar a essa dicotomia: tradutores sutis como o corte de um papel, tradutores eloquentes como um vírus contaminando a ordem.

3

Bráulio Tavares contou para mim uma anedota sobre a sua tradução de Farewell My Lovely, do Raymond Chandler: “logo no começo do livro, onde Chandler diz que um cara vestido de forma extravagante chamava a atenção como 'a tarantula on a slice of angel food', que é traduzido como 'bolo de anjo', eu troquei por 'manjar branco', que é mais conhecido no Brasil, e porque o intuito do autor é criar um contraste visual, a comida em si é o menos importante.” Então “a tarantula on a slice of angel food” ficou nas mãos de Tavares como “uma tarântula numa fatia de manjar branco”. Uma solução clássica, em que o dedo do tradutor surge de forma discreta e precisa.


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Já em Caetano Galindo vemos uma maior liberdade em suas traduções, uma espécie de marca autoral. “See more glass” no conto “Um dia perfeito para peixe-bananas”, de J. D. Salinger, foi traduzido por Galindo como “Se mói glé!”. Literalmente traduziríamos como “veja mais vidro” essa expressão, mas ele optou por um caminho experimental. Óbvio que é necessário entender quem é a personagem que fala dessa forma, o contexto da escolha – uma ligação com o nome do personagem Seymour Glass –, entre outros aspectos, mas vemos aqui um “tradutor criativo”, que arrisca em suas escolhas, colocando sua digital no texto traduzido.

4

Gregor Samsa era uma barata? Kafka começa assim “A Metamorfose”: “Als Gregor Samsa eines Morgens aus unruhigen Träumen erwachte, fand er sich in seinem Bett zu einem ungeheueren Ungeziefer verwandelt”. Para muitos tradutores, Samsa não vira uma barata. Kafka não usou as palavras alemãs para inseto ou barata, usou “Ungeziefer”, que é um termo amplo para “bicho nojento”. O português não tem um equivalente para isso, mas a tal praga kafkiana acabou sendo identificada como uma barata por nós. Labirintos da tradução, amplos e plurais.

5

Dedico este texto para todo tradutor que iniciou seu ofício antes da internet. Se hoje a luta é árdua, estes peregrinos abriram muitas páginas e dicionários, lentamente e com olhos de lupa, para chegarmos até aqui.

Bruno Ribeiro é um mineiro radicado na Paraíba. Editor da Enclave editorial, escritor, tradutor e roteirista. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF). Autor do livro de contos Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider e dos romances Febre de Enxofre (Penalux, 2016), Bartolomeu (auto publicação/Amazon, 2019), Zumbis (Enclave, 2019) e Glitter (Moinhos, 2018), que foi finalista da 1° edição do Prêmio Kindle e recebeu a Menção Honrosa do 1° Prêmio Mix Literário.


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ARTIGO Eli Macuxi

A poesia na carne do cotidiano

Refletir sobre nosso cotidiano é observar paradoxos: nunca produzimos e compartilhamos tantas imagens, mas também nunca fomos tão míopes. A tecnologia que permite dar bom dia, assim que se acorda, para a pessoa amada que está num ponto distante do globo, também separa a família sentada à mesma mesa, durante o jantar... Incorporada ao cotidiano, a tecnologia gera hábitos relacionados a ela e, na rotina que nos empurra para as repetições de horários, meios de transporte, locais de trabalho/estudo etc., compartilhamos como nunca os mesmos meios de acesso aos bens culturais que levam aos mesmos filmes, séries, livros, músicas… A linguagem, escrita e falada, também muda, incorporando a velocidade das redes. Expressões antes desconhecidas ganham espaço em poucas horas, são repetidas à exaustão para, em seguida, desaparecerem de novo. Quem nos últimos tempos não ouviu (e repetiu) um “top” ou um “sextou”? Assim a existência vai se tecendo pelo automatismo de um loop infinito de repetições, com quebras ritmadas pela fluência das redes sociais e sufocamento da criatividade. Qual o espaço para a poesia nesse dia a dia? Citando o Aurélio, a poesia acontece quando o texto consegue “criar imagens e sugerir emoções”. Assim, para escrever num contexto como o nosso, busco a poesia que se esconde naquilo que, de tão ordinário, deixou de ser visto. O desafio de escrever um poema, para mim, está em perceber ou forçar as rachaduras do automatismo e compartilhar a experiência como um susto, uma surpresa. Como poeta que divulga seu trabalho sobretudo pelas redes, penso que, para a poesia acontecer, não basta maior visibilidade, maior compartilhamento de poemas, ou maior número de leitores. Embora sejam elementos fundamentais, essas facilidades apresentadas pelas redes não garantem, por si, que as palavras — desconhecidas, pouco usadas ou já conhecidas e repetidas — ganhem vida e cheguem a essa nova dimensão, que faz do poema, poesia.


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Sou pretensiosa. Quero, como Bandeira, “extrair o desespero” do leitor. Mas não penso em fazer isso com fogos de artifício. Parto de poemas que já me emocionaram. Penso em como me frustra e entristece, sempre, a experiência de Bandeira, ao ver seu porquinho da Índia repetidamente escondido debaixo do fogão. Penso em como me apaixono de novo, ao seguir Adélia Prado, de madrugada, limpando os peixes pescados pelo marido... observo que a poesia acontece dentro, na relação do eu com o texto, que ela não é, ela ora está, ora não está. É a partir desse reconhecimento que posso fazer a poesia habitar meu poema e, com ele, levar meu leitor a também viver, por um instante que seja, minha emoção. É nessas bases que vejo o cotidiano se tornar matéria da poesia, quando me surpreendo capaz de ver o detalhe brilhante incrustrado no cotidiano automatizado. Quando me deparo com o verso pronto sob a correria de tantas outras palavras. A carne da poesia é feita disso: uma parte nem sempre oculta dos meus dias.

Eli Macuxi é graduada em história, especialista em alfabetização e mestre em história. Leciona história da arte na UFRR desde 2013. Publica desde 2008 no blog “Poesia Pura”, participou de publicações coletivas como a antologia “Poesia do Brasil”, em 2012. Integra a Máfia do Verso, coletivo de escritores roraimenses desde 2013. Publicou o livro “Solo amor para quem odeia”.


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ARTIGO Ticiane Simões

Em roda, cingida Há mar de dores Em preamar vazante.

A palavra/poema escrita sobre si quando nasce rompe uma barreira que, iniciada na cabeça ou em um desejo interno, percorre braços e mãos e segue trêmula até a ponta dos dedos. No papel, ela – a letra, firme ou não, fixa-se história com o auxilio da caneta. Na poesia é quase sempre assim. Na batalha, no Slam, ela nasce na goela, na palavra não dita, segurada na ponta da língua com os dentes, por anos, e numa engolida de saliva na faringe se instala, e lá fica, o bolo preso. O grito não soado, o nó entalado. Pode ficar ali por uma vida. Na roda, há algo de potência tamanha, que no desejo de ter mais ar nos pulmões, precisamos de espaço e é com garra que brigamos com o bolo para poder dilatar e respirar. – Respira fundo e vai. Foi o que eu disse para a primeira aluna a declamar uma poesia durante uma oficina. E ela foi, puxou o ar tão forte que quase dava pra ouvir o tampão abrindo para a passagem do grito que ela daria. Entrou pelos meus ouvidos e pude sentir na pele, ainda dolorida com a força dos pelos que se levantavam ouriços por todo meu corpo. Tinham nove pessoas naquela sala, nove mulheres de diferentes idades, cores, orientações sexuais e raças... nove sentiram a mesma dor, nove sentiram o mesmo prazer da saída do tampão, do nascer do feto-poesia. Naquele momento eu sabia que não pararia de querer sentir isso, e assim o fiz. O Slam é de fato um espaço de denúncia, de resistência, mas para as mulheres, as minas, manas ou monas que carregam palavras presas na garanta desde meninas ele é mais, é rio de enchente, é único e devastador. É ato, gestação e parto tudo em três minutos. Gozamos o prazer do frio na barriga, geramos força na acolhida e saímos outra, deixando lá, na roda, a nossa velha carcaça e, como serpentes seguimos de couro renovado nos cobrindo como casca ou gibão.


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Escrever e doar a escrita – declamada em público, é partilhar vida com quem nos rodeia, é semear encontros possíveis e trilhar novas saídas. Por quantas vezes, ao assistir uma mana declamar, me deparei com palavras que pareciam terem sido tiradas de mim, como se fosse possível alguém me acessar a mente e tirar minhas angústias do peito expondo-as feito arte e, no fundo, é exatamente isso, nos acessamos, aproximamos os corpos e dilatamos os sentidos, há naquele espaço um tempo do mundano e carnal, uma brecha na realidade para sermos, enfim, mulheres. Uma pausa, que, assim como no teatro é dramática, e nos desnuda umas para as outras e enfim, podemos nos enxergar crua em viva carne. Temas, formas e sotaques diversos nos unem e nos atravessam em mesmas agonias. TODAS têm sobre o que escrever, TODAS têm sobre o que falar, tem uma... bem mais que uma dor e vitória pra contar. Aprendemos o caminho que liga o diafragma à língua e estamos desde então sedentas em percorrer cada centímetro dele, saboreando cada letra, desenhando-as em moldes na boca cheia de vontade, atendendo-a e servindo poesia fêmea ao mundo macho (até então).

Ticiana Simões.

Atriz pesquisadora, Arte Educadora, Poeta e Narradora de Histórias. Graduada no curso de Licenciatura em Teatro na Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Sócia fundadora do Ateliê Ambrosina, ONG para empoderamento de mulheres no estado de Alagoas. Poeta feminista pesquisadora e realizadora de formações na construção de poesia de rua com recorte de gênero (mulheres) e foco nas batalhas poéticas, Slam das Minas.


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ARTIGO Wilson Coelho

Entre o texto e o pretexto

A partir dos cânones aristotélicos, em sua Poética, a literatura é dividida entre os gêneros épico-narrativo, lírico e dramático. Assim, historicamente, não podemos negar o papel da dramaturgia na literatura. Vale dizer que, conforme Aristóteles, nos festivais de teatro da Grécia antiga, numa tragédia, o texto sempre era colocado como o item mais importante e que, a proposta de montagem do espetáculo, ficava em segundo plano. Ao longo dos séculos, os dramaturgos seguiram sendo grandes referências da literatura em seus países. É praticamente impossível pensar a literatura inglesa sem Shakespeare, a francesa sem Molière, Racine e Corneille e, a espanhola, sem Calderón de La Barca, Lope de Vega e Tirso de Molina. A prática teatral, assim como toda arte, compõe-se de um conjunto de fenômenos históricos, ou seja, ela não é evidente por si só, considerando que não é imutável e nem natural. Sendo assim, no final do século XIX, a chamada segunda fase da Revolução Industrial, com o desenvolvimento da energia elétrica, muda-se todo o processo de criação no teatro, quando a iluminação passa a ser adotada na maioria das salas de teatro europeias. Nesse momento, surge a figura do encenador. Assim, o teatro passa a ser considerado uma arte autônoma e o texto passa a ser considerado apenas uma parte do espetáculo, tendo em vista que ele somente se realiza a partir de outros elementos que compõem o fazer-teatral, como o ator, o iluminador, o cenógrafo, o figurinista, o maquiador e todos os outros técnicos que atuam sob a batuta do encenador, cujo expoente é André Antoine, criador do Théâtre Libre, em Paris, no ano de 1887, sistematizando e teorizando sobre a arte da encenação. Daí em diante, surgiram muitos outros dramaturgos e teatrólogos colocando em questão o texto como elemento superior. Adolphe Appia, Edward Gordon Craig, Jean Vilar e tantos outros desenvolveram projetos de iluminação-cenografia redefinindo o espaço cênico, enquanto alguns lutavam contra a chamada “ditadura do texto” ou textocentrismo. Antonin Artaud, por exemplo, condenava o teatro literário e propunha novas formas de utilização. Bertolt Brecht, por seu lado, cria o “teatro épico”, reformulando todo o processo de encenação. Convém


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observar que tanto Artaud quanto Brecht estão entre os que propõem um teatro não-aristotélico, ou seja, rompendo com as unidades de ação, tempo e espaço que preconizava Aristóteles. Há ainda os que defendem que o texto é um pretexto para se fazer teatro. Não significa a abolição do texto, mas a sua utilização para um processo de criação muito mais amplo que uma mera ilustração de cenas do discurso literário. No Brasil, por exemplo, apesar da história oficial considerar as manifestações ocorridas durante o século XVI, com a catequização dos indígenas, muitos defendem que o nascimento do teatro se dá em 1943, com a montagem de “Vestido de Noiva”, ao mostrar ações simultâneas em três planos – da realidade, da alucinação e da memória, sob a direção do polonês Zbigniew Marian Ziembinski, com cenografia-iluminação e figurino do paraibano integrante e fundador das companhias “Os Comediantes” e “Teatro Experimental do Negro (TEN)”, Santa Rosa. Não se trata aqui de estabelecer uma hierarquia entre a literatura e a dramaturgia, mas afirmar uma especificidade entre elas. Conforme Francisco de Assis, professor, diretor, dramaturgo e integrante do Teatro de Arena de São Paulo, “um escritor precisa de ideias e um dramaturgo, de técnicas de encenação”, ou seja, a dramaturgia se difere da escrita comum literária por ser mais como uma estruturação da história aos elementos específicos do teatro.

Wilson Coelho. Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense - UFF (2014), Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo (2006), bacharelado e licenciatura plena em Filosofia pela Universidade Federal do Espírito Santo (2000). Escritor e tradutor com 19 livros publicados, dramaturgo e encenador com 25 peças montadas, palestrante e oficineiro com participação em diversos encontros, seminários e festivais nacionais e internacionais de teatro. Tem experiência na área de Teatro, Filosofia e Letras, com ênfase em Estudos Literários. Auditor Real do Colégio de Patafísica de Paris.


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con to


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CONTO Carlos Eduardo Pereira

saltando o tapume

Carlos Eduardo Pereira. Nascido na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, em 1973, Carlos Eduardo Pereira cursou História na UFRJ e Letras na PUC-Rio, na habilitação Produção de Texto. É autor de Enquanto os dentes (Todavia, 2017). Em seu primeiro romance, estabelece um vínculo nítido com as narrativas de memória e introspecção psicológica, de larga tradição no Brasil. Publicou contos em sites e revistas.


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O tanto de gente feia que encontrei no caminho da praia hoje cedo era uma desgraça. E sabe de quem é a culpa? É do metrô. Inventaram de encravar o diabo de uma estação ali na frente, na esquina da Abelardo com a Arcebispo Brandão. Olha bem a merda que eles foram me arrumar. Uma penca de mulher barriguda, de criança atopetada de meleca, putaquepariu. Agora aqui no bairro deu para isso. Não se pode sequer sair de casa, caminhar meia quadra até o bar do Paraíba, que eles vêm. Impossível não topar com essas criaturas. Outro dia estava tomando meu café despreocupado e me veio um pivete. Descalço, sem camisa, o cabelo que era um ninho de rato. Me abordou sem cerimônia. Disse tio, com todo respeito, tu me arruma um dinheiro pra mim comer? Agora você vê, me arruma um dinheiro? Porra nenhuma. Falei moleque, eu vou quebrar teu galho. Ô, Severino, desce um pão na chapa aqui pro nosso amigo pretinho. Como é teu nome, rapaz? Weslley? Putaquepariu,

teu nome é Weslley? Tá certo. Ô, Severino, desce um pão na chapa aqui pro Weslley. Enrola num guardanapo, ou num pano qualquer, e pode dar pra ele. Enquanto o Severino preparava a encomenda, o puto danou de falar, e era um tal de tio, mas tu não tem nenhuma moedinha na carteira? Qualquer coisa serve, cinquenta centavos, vinte e cinco, hein, tio, tu não tem? Ele tanto me encheu os colhões que eu disse vai à merda. Esse povo pensa que eu não sei que, se a gente dá dinheiro na mão deles, vira tudo cachaça. O trombadinha foi saindo com cara de quem comeu comida podre, mas só me filmando. Severino chegou junto, deu-lhe com o embrulho nos cornos, e ficou por isso mesmo.


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Ontem, no Sentinela, o jornalzinho aqui do bairro, tinha uma matéria que eu só faltei bater palma. Dizia o seguinte, estampado na primeira página, com foto sugestiva e com chamada em letra grande: Ordem Pública multa mijões durante os desfiles de blocos do pré-Carnaval 2020 neste sábado. Só que multa é pouco, tinha era que botar tudo em cana. Em fevereiro, aqui fica que parece o inferno. Deviam colocar cordão de isolamento pelas redondezas, um tapume para lá do canal, para que ninguém de fora entrasse. Hoje está fazendo mais ou menos um ano. Um ano inteiro, veja só. Eu estava ali do outro lado da rua, sentado na mesa de sempre, tomando cerveja importada com um amigo, o Marco Antônio. A gente foi criado junto, cinquenta e tantos anos frequentando os botecos das imediações. Nunca saímos daqui para nada. Teve cara que casou, agora está até voltando, cheio de pensão alimentícia nas costas, mas a gente não, a gente ficou mesmo é por aqui.

Isso até o ano passado. Na sexta-feira de Carnaval, quando sai esse bloco que cismaram de fazer concentrar bem na frente lá do Paraíba, do outro lado da rua, meu grande amigo Marco Antônio desapareceu. Desde esse dia, ele sumiu. Pensando aqui comigo, o Marco Antônio estava alguma coisa diferente. A cara dele, assim que avistou a vadia, meio que abobalhou. Eu cheguei a perguntar Marco Antônio, tá tudo bem contigo? Que não me respondeu porra nenhuma. Fez que sim com a cabeça, só que não tirava o olho dela. Todo mundo sabe que homem não precisa ser bonito, mas mulher, mulher precisa ser gostosa, tem que ser linda senão não tem conversa. E aquela safada de linda só tinha mesmo o nome. Aposto que era apelido de Lindalva, ou Lindomara. De repente era nome de guerra de puteiro do subúrbio. Em geral é Kétlen, Tábata. O dela era Linda.


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A filhadaputa primeiro ficou dando mole de longe. Tudo bem que ela tinha um rabo enorme, tinha uns peitões, só que estava na cara que ela estava era buscando um otário para aplicar uma chave de coxa bem dada. Estava na cara. Depois ela chegou na nossa mesa e disse gato, tu me arruma um cigarro desses? E do cigarro acabou sentando, e bebendo da nossa bebida, e jogando um charme de Baixada Fluminense. Ainda tinha que ela falava esquisito, como se estivesse o tempo todo com um ovo entalado na boca. Se eu fosse ele eu dizia cospe, amor, cospe essa porra de uma vez. Se eu fosse ele eu comia, claro, comia a piranha, mas depois voltava para uma saideira com os amigos. Ela tanto fez que o idiota do Marco Antônio acabou caindo. Então eles saíram de mãozinhas dadas. No dia seguinte, nada dele. Nem no outro. O celular, sempre na caixa de mensagens. Nada também no apartamento. Pedi para um camarada da Polícia Federal fazer uma busca pente-fino, pesquisei na internet, meu Deus, cadê o cara? Evaporou.

Pelo menos até hoje. Sei que é dessas coisas inacreditáveis, mas ainda há pouco passou por aqui uma gangue de uns cinquenta favelados. Um grupo de empregadas com vestidos de princesa. E de jagunços que davam, na melhor das hipóteses, para ajudante de porteiro. Um arrastão, o cheiro de sovaco ia longe. E bem no meio deles estava sabe quem? O Marco Antônio. Metido numa fantasia de, sei lá, Carmem Miranda. Deu vontade de avançar para cima dele, chacoalhar meu amigo e perguntar que porra é essa, Marco Antônio? Ficou maluco? Mas ele estava rindo. Ele estava feliz para caralho.


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CONTO Helder Herik

D

I

N

O

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S

A

U

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PROFESSOR GRAVOU O STORIES. BARBA E CABELOS RALOS. BARRIGA. PANÇA. BOJO. A CÂMERA

TREMELICA. O FUNDO BRANCO ESTOURA. SATURA. AMADOR MESMO. ENDEMIA, DISSE O PROFESSOR,

É O VÍRUS NA FAMÍLIA OU BAIRRO. EPIDEMIA É O VÍRUS EM CIDADES. PANDEMIA É O VÍRUS EM PAÍSES, CONTINENTES. O GLOBO.

PESTE NEGRA DE VOLTA. COISA ASSIM. ASSADO. Influencer desbloqueia iphone. Abre câmera, grava stories. Imagem sem pixels, sem granulado. Límpida. Gente, é o seguinte, ele disse. Pandemia é o caralho a quatro. O the walking dead. Sendo que você não mata zumbis. Eles caem. Desintegram. Sai fumacinha e tudo.

Influencer leva bronca dos pais. Ambos engenheiros. Ele engravidou ela na faculdade, numa aula vaga. Ela com vestido florido. Ela abriu as pernas, sentou nele. Os avós dela vieram da Itália, Roma. Muitas

mortes. Coisa ficando feia por lá. Pessoas usando máscaras. Evitando abraços. Toques. Apague a porra do filminho, disse a mãe. É stories, disse o Influencer. É a minha mão na sua cara, disse a mãe.

Influencer apaga o filminho. Galera não gostou, deu deslikes. Ele pensa descolar uma grana, comprar seguidores. Todo famosinho compra seguidores fakes, ele diz pra si. Ele se conforta.

A Giulia caboetou ele. A Giulia é a irmã e nunca beijou ninguenzinho. Ele brechou um dia ela no

espelho, beijando. Babando. Giulia usou aparelho dentário. O aparelho começava no pescoço, fazia uma redoma e ela ficava dentro. Giulia tem sardas. Muitas. Muitas.

Influencer abre a câmera do stories. Uma pizza cairia bem. Um refri e uma porção de batatas também.

Minutos depois chegam os foods da noite. Influencer pede e algum fulaninho leva. Influencer come.

Influencer diz que é uma delícia e marca o fulaninho nos stories. Influencer pensa em cobrar da próxima vez. Descolar uma grana.


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MEIA NOITE. PROFESSOR FEZ UM STORIES. LUZ FRACA. SOMBRA NO ROSTO. GRANULAÇÃO. AMADOR

MESMO. SEIS PESSOAS MORRERAM NA CIDADE. ELE DISSE. JÁ ERA O VÍRUS. A PANDEMIA CHEGOU. MAIS DE CEM PESSOAS ESTÃO COM O VÍRUS. UM ASSOMBRO.

Influencer abre o stories. Galeres, estou triste! Faz pausa. Galeres, que tragédia máster! Hoje perdi seis seguidores pro vírus lá dos chinas.

Influencer perdeu muitos seguidores. Deslikes e deslikes. Outro influencer fez um stories. Chamou-o de carniceiro. Imbecilzinho de merda. O outro influencer ganhou um monte de seguidores.

Giulia bateu a mão no peito do Influencer. Até aquele dia Giulia era a irmã sardenta, encalhada. Porra, Pietro! Cabeça de cu a tua. O olho dela tremendo. O mundo acabando e São Pietro fazendo mídia. O peito dele, ardendo.

Feia. Exagerada. Cuzuda. Ele gritou. Influencer chega ao colégio. Abre o stories. Faz cara de enfado e posta. A galeres vira a cara, as costas. Chega o intervalo. Diretor pega o microfone. Três tapinhas. Testando, um, dois três. Clichês. São vinte e três mortes de ontem para hoje. Comunico que ninguém sai da cidade, ninguém entra. Vão para casa. Aula só Deus sabe. Fez sinal da cruz.

Influencer abre o stories na faixa de pedestres. Galeres, agora ao vivo, o apocalipse zumbi. Vinte e três

presuntinhos foram pra cidade-do-pé-junto. #tamojunto. Só que não! Cuidado, o próximo presunto pode ser você! Cambio, desligo.

Influencer e Giulia estão sozinhos em casa. Os pais trabalham em outra cidade. Fiscalizam obras.

Recebem maços de dinheiro. Fazem vista grossa. Cegos. Os pais ligam. Estamos no pórtico da cidade, os pais dizem. O pórtico era uma espécie de absorvente gigante. Influencer já havia tirado onda. Mas a quarentena... Ninguém entra, ninguém sai, eles dizem.


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NO DIA SEGUINTE GIULIA ASSISTE O STORIES DO PROFESSOR. MEU GATO, ELA DIZ. OLHA SE PIETRO

BESBILHOTA. HOMÃO DA PORRA! FORAM CENTO E QUINZE MORTOS, ELE DIZ, É POSSÍVEL QUE EXISTA MAIS.

O STORIES SEGUINTE. SÃO CENTO E VINTE E CINCO MORTES COM O VÍRUS. É POSSÍVEL QUE EXISTA MAIS.

Pietro acorda. Procura o celular. Nada. Pergunta a Giulia. Nada. Chama dúzias de palavrões. Arranha-

se. Morde-se. Pensa em matar. Pensa em morrer. Empresta aqui o seu, ele diz. O meu nada, ela diz. Vaca, ele diz. Vácuo, ela diz.

Polícia liga pra Giulia. Seus pais furaram o cerco, a quarentena. Foram baleados. Perderam sangue. Não houve como salvar. Giulia grita. Grita, grita. Que foi, maluca, pergunta Pietro. Ele pega o telefone. Pergunta o que houve? Foram baleados. Perderam sangue. Não houve como salvar, disse a polícia.

Invasão aqui no insta da mana sardenta. Galeres, em primeira mão. Duas pipoquinhas pularam fora da panela. O Papai Pig e a Mamãe Pig foram pro abate. Resta a Peppa deitada na lama. Resta George. Cambio, desligo.


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Helder Herik nasceu em Garanhuns-PE em 1979. É vencedor do Prêmio Pernambuco de Literatura com o livro, Rinoceronte dromedário. Venceu também o Prêmio Cepe Nacional de Literatura Infantil com o livro, O menino mais estranho do mundo. É professor de Literatura e mantém o blog helderherik.com.br, onde publica suas crônicas.


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CONTO Itamar Vieira

FAROL DAS ALMAS


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Em 1842, num espaço de três meses, dois navios com origem no porto de Uidá, Benin, carregados de homens e mulheres que seriam escravizados na Bahia, encalharam quase no mesmo ponto da costa, a três léguas ao norte de Salvador. A região, pouco povoada, não dispunha de iluminação para navegação noturna. Soube-se que havia poucos botes que pudessem resgatar o contingente embarcado: os do primeiro navio, logo foram ocupados em salvar a tripulação e alguns homens escravizados, talvez os mais fortes, sendo que a maior parte, incluindo-se todas as mulheres, morreu em alto-mar; o segundo navio não tinha sequer botes para toda a tripulação, e os ocupantes de diferentes etnias da Costa do Benin, morreram sem que a Armada Nacional fizesse qualquer esforço para salvá-los. Esses incidentes levaram o presidente da província da Bahia a considerar a urgência de se construir um farol que guiasse o transporte marítimo com segurança até o porto da capital. Dois anos depois, foi concluída a construção do Farol da Pedra do Peixe Duro.


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CONTO Itamar Vieira

Sob ordens da Armada, desembarcamos as

Tínhamos o corpo marcado pelo trabalho.

peças vindas do estrangeiro e que seriam usa-

Alguns de nós tinham cicatrizes na pele, nas

das para erguer a casa de luz na Pedra do Pei-

costas, nas pernas, nos rostos. Quase todos ti-

xe Duro, como o povo Tupinambá chamava o

nham também feridas na alma. Apenas um de

lugar. Eram peças grandes de metal, pesadas,

nós havia feito a travessia de navio de lá para

desembarcadas próximo à costa em pequenos

cá. Ele nada contava, quase não falava, mas

barcos, e carregadas por nós, homens cativos.

tínhamos a certeza de que havia enlouquecido

Aos poucos, levantamos uma base de concreto

ao ver corpos sendo atirados ao mar – era o

por cima das pedras em que o mar quebrava,

que os africanos diziam – e ao perceber tam-

onde ficaria o tal farol. Estávamos atentos às

bém que não pertencia mais a lugar algum.

ordens dos engenheiros e cuidando dos movimentos certos para que não ocorresse nenhuma avaria que prejudicasse o trabalho.

E nossos pés descalços caminhavam todos os dias até as pedras, e as subiam na maré baixa para com nossas forças levantarmos a

Estávamos também cansados, mas havia

casa de luz.

em muitos de nós uma grande alegria por estarmos contribuindo com esta tarefa. Dia após

Quando ela ficou pronta, já não éramos

dia, a casa de luz que construíamos foi cres-

vinte e três, dois homens haviam morrido de

cendo em meio ao mar e à areia, numa região

exaustão, não por esse trabalho, mas por tudo

onde nunca havíamos estado, mas que enchia

que tinham sofrido na vida. À noite, quando a

os nossos olhos com as cores dos muitos pás-

casa de luz estava acesa, também não parecia

saros e da vegetação rasteira. Fazia dias que

em nada com a lua, como os homens da ar-

não víamos a cidade, estávamos distantes.

mada haviam falado. Era uma luz pequena que

Éramos vinte e dois homens e uma mulher,

surgia e sumia, surgia e sumia, sem fazer di-

que tinha sido levada para cozinhar somente

ferença para nós que estávamos na terra, em-

para os cativos. As noites eram quase frias, de

bora eles estivessem entusiasmados. Deixa-

grande vento, e teve uma noite muito bonita

ram tudo pronto para a visita do presidente da

quando vimos a lua surgir imensa e amarela

província e alguns de nós permanecemos por

no horizonte das águas. Quando os engenhei-

lá para ajudar na manutenção, nos primeiros

ros viram a grande luz disseram que o farol

tempos em que o homem quis clarear a noite.

seria como a lua.


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Foi a mulher que cozinhava para nós que nos perguntou, em segredo, quem acendia a casa de luz. Os homens da armada, dissemos. Ela lamentou não achar justo que aquele monstro de ferro que cuspia luz à noite servisse para guiar as embarcações que traziam os nossos para morrerem de maus-tratos e trabalho. Não era só para isso, dissemos, mas também era. E vimos, cada um à sua maneira, que de dia ela espreitava pela janela de onde estava e era capaz de nos dizer quais embarcações abrigavam almas aflitas, e que buscavam conforto. Era como se ela mesma fosse um emissário no alto da casa de luz a nos informar sobre o que os navios traziam. Ainda vimos a lua surgir grande e enfeitiçando os homens na terra, até que a outra cozinheira, a da armada, voltou para a cidade. Foi quando aquela mulher, que nos assombrava com sua magia, que encontrava e falava além do vento com as almas embarcadas, passou a cozinhar para eles. Nunca esquecemos desse dia, porque logo depois da ceia eles caíram num grande sono. Mesmo nós, que não dormimos, andamos como se em sonho estivéssemos. Não sabemos dizer ao certo quem apagou o farol, nem quem nos ordenou que seguíssemos com os barcos para o mar em direção ao pequeno lume no breu da noite. Nem soubemos dizer também por que os homens da tripulação do navio, a quem estendemos as mãos para os nossos barcos, foram afogados da mesma forma por elas. Nem mesmo sentimos culpa, porque nossos corpos eram guiados por tudo o que sonhávamos, e foram os nossos braços marcados que conduziram os irmãos do mar para a terra, e da terra para as veredas da liberdade.

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É doutor em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA) com pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste Brasileiro. O escritor é autor dos contos reunidos no volume “Dias” (Caramurê, 2012), vencedor do XI Prêmio Arte e Cultura (Literatura – 2012) e do livro “A oração do carrasco” (Mondrongo, 2017), finalista do Prêmio Jabuti 2018, vencedor do Prêmio Humberto de Campos, da União Brasileira de Escritores (seção RJ) biênio 2016 – 2017, e um dos vencedores do Prêmio Bunkyo de Literatura 2018 concedido pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social. Também em 2018, seu romance “Torto Arado” foi galardoado com o prestigiado Prémio LeYa. Seus contos foram traduzidos e publicados em revistas especializadas na França e EUA.


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CONTO Miriam Alves

Mergulho


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Acordou cedo. Na verdade, se levantou, porque não dormiu, a ansiedade a fazia sonhar acordada. Há três meses esperava pela realização de seu sonho de infância. Acabara de completar dezoito anos, seus pais lhe prometeram, que daquele ano não passaria, realizaria seu desejo. Eles já haviam tentado algumas vezes, mas por um motivo, ou outro, nunca dava certo. Ora era o horário, que coincidia com o da escola, eles não queriam comprometer os estudos de sua menina, ora era o orçamento, que não dava para cumprir as exigências. Mas desta vez, não haveria erro, não iriam desapontar Ana, a caçula de uma prole de três, era rapa de tacho, como a avó Sebastiana costumava dizer. Ela era o xodó, a única que permaneceu na companhia deles. Os outros dois, mais velhos, ganharam o mundo, um estava nos Estados Unidos, fazendo aperfeiçoamento em química, o outro na França, se especializando em antropologia urbana, com bolsas de estudo, não poderiam ajudar a irmã a realizar seu sonho, diferente dos deles. Mas a estimulavam a não desistir de forma alguma. Comunicavam-se sempre pelas redes sociais, estavam longe, porém na tela do celular, era como estivessem ali com ela, os pais e a avó.


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Matilde e Ivair, no começo viram com estranheza, quando a filha ainda criança, manifestou o seu desejo, mas eles mesmo pertenciam a uma família visionária, que acreditava romper com os estigmas, forjados para pessoas como eles, e poder ser o que se deseja. Sebastiana, lá nos idos também sonhou, guerreira lutou contra as desigualdades, foi as ruas, participou, militou, acreditou. Hoje, via os netos colhendo um pouco da obstinação, de outros tantos negros e negras como ela: “Agruras temos. Mas temos mais a força de continuar. Desistir não é para nós. Ou caminhamos, ou nos atropelam. Nos meus tempos de juventude, fomos a luta como a época exigia. Vocês têm a época de vocês. Os que vieram antes de mim, também lutaram, senão não estaríamos aqui. Somos frágeis, e ternos, mas as vezes, temos que endurecer para não esmorecer. Não deixar que a tristeza nos corrompa, nos elimine. Nossa maior atitude é estar vivo e viver.” – Dizia, abraçando Ana, que adormecia em seu colo, sonhando seus próprios sonhos. Após pesquisarem, se utilizarem dos contatos de Sebastiana e deles próprios, descobriram um lugar ideal, não muito longe de casa. Ana não atravessaria zonas de riscos da cidade, cada vez mais perigosas, afinal estar vivo é a maior resistência. Havia chegado o esperado grande dia. Foram acordar a filha, não precisaram, ela estava pronta, com um sorriso feliz, apesar do olhar demonstrar anseio e preocupação. “Vamos criança, é chegada a hora.” Ela desceu as escadas feito uma flecha, dispensou o café, entrou no carro, o pai a levaria no seu primeiro dia. Abraçou o equipamento novinho que estava no banco traseiro, da mesma forma que, aos sete anos, acolheu sua primeira boneca negra. Ao chegarem no clube, apresentou-se ao instrutor, correu ao vestiário, colocou a roupa para sua primeira aula de mergulho, enfim veria por dentro o oceano.


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Miriam Alves. Integrante do Quilombhoje Literatura, entre 1980 e 1989, publicou em Cadernos Negros, de 1982 a 2011, contos e poemas. Poeta, contista, ensaísta, performance e romancista, seis livros individuais publicados, diversos trabalhos, em antologias, teses e dissertações dentro e fora do Brasil. Lançou na FLIP (2019) seu segundo romance Maréia, editora Malê. Organizou duas antologias, poemas e contos bilingues, Português-inglês, publicadas respectivamente nos EUA e Inglaterra.


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CONTO Taylane Cruz

BAMBOLÊ DE GUERRA Saí para fumar um cigarro no beco. Estava com uma dor de cabeça que não passava, o corpo cansado. Há dias variando. Coração da gente é feito estações. Eu estava assim e só queria sair para fumar. O beco é um lugar tranquilo, só de madrugada vira quarto de motel, escopo para uivos e cantorias de ébrios. Amanhece sob os fachos de luz do sol com os passarinhos entre bitucas de cigarro e chispas espalhadas pelo chão. O beco tem um cheiro forte de madrugada, mas também tem cheiro de amanhecer. Aqueles pássaros batendo asas iluminados pelo comecinho da manhã me fazem gostar de ir lá, um jeito de me limpar a poeira dos olhos. Quando saio para fumar, fumo, pelo menos, seis cigarros, em intervalos longos de contemplação dos bichinhos ali em volta disputando as migalhas deixadas pelos restos da madrugada. Sempre gostei muito da minha própria companhia. Sou capaz de passar dias, semanas em mim. Ir para o beco sozinha é o meu momento, lugar onde ninguém além de mim. No beco, só fumo e contemplo os pássaros porque ser simples já é. Naquele dia estava de folga, folga do serviço. Peguei minha cadeira de plástico e sentei lá como a rainha do beco, a perna passada, o cigarro enfiado no miolinho dos lábios. Me deleitava com o canto dos pássaros, quando ouvi a gritaria se aproximar, uma cantoria de gente espantando passarinhos. Estridência, chinelos pateando no paralelepípedo.


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Se essa rua Se essa rua fosse minha Eu mandava Eu mandava ladrilhar Com pedrinhas Com pedrinhas de brilhantes Para o meu Para o meu amor passar


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CONTO Taylane Cruz

Reconheci uma das vozes. Era Ritinha, minha filha. Subia a ladeira com aquelas perninhas finas e vinha, seguida por seu bando, em direção ao beco. No meio do meu prazer aquela trupe de pirralhas barulhentas apareceu e espantou os pássaros, até então tranquilos com a minha presença ali. Apaguei o cigarro no braço da cadeira e gritei, me antecipando ao grupo: Chispem daqui! Queria defender meu território. Ritinha se apressou, ofegante, correu até mim. Trazia pendurado no ombro o bambolê que ganhou de aniversário. Olhei as outras meninas por detrás do ombro dela. Todas traziam bambolês coloridos, decorados com fitas de muitas cores. A moda do bambolê havia voltado mesmo no bairro. Ritinha sabia barganhar, A gente brinca neste lado aqui, a bandida riscou, com uma pedra, uma linha no chão para dividir o meu espaço e o delas. Eu era a adulta ali, tive de considerar. Estava sob a pressão daquele bando de meninas espevitadas me olhando. Elas venceram. Poderiam brincar ali.

Acendi outro cigarro. Elas, do outro lado da linha, começaram uma brincadeira permeada por cantigas. Ritinha é boa, a danada! Sapeca igual a mim. Poderia ganhar fácil a competição, eu queria só ver. As outras meninas não deixavam por menos, girando e correndo em duplas dentro dos bambolês. Fiquei zonza só de olhar. Mas devo ter me distraído demais fumando porque o que era uma brincadeira colorida, uma guerra de bambolês, de repente virou uma batalha perigosa. Ritinha gritava proferindo palavrões contra uma das meninas. A confusão ganhou dimensão, as outras meninas se empurravam, os bambolês caídos no chão, cuspe e tapas. Ritinha pegou o bambolê dela e prendeu no pescoço de uma das meninas, gritava: Macaca, sua macaca suja! Saltei da cadeira furiosa, surtada. Agarrei Ritinha pelo braço, salvei a menina do enforcamento e recolhi os bambolês do chão. Gritei de modo que entendessem: Acabou a festa! Pendurei os bambolês nos braços, as meninas me olhando com medo, já chorando, Devolve os bambolês, tia. Devolvo não! Elas saíram correndo. Ritinha me conhecia bem, não retrucou, sabia que um pio e eu arrebentava a cara dela. Fez um muxoxo, olhou pra mim como se quisesse me xingar de macaca suja também e eu juro que quase quebrei a cara dela, tive mesmo que segurar a mão porque me causou um medo tão fundo os olhos azuis daquela criança pousados em mim como duas coisas frias. Ela


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ficou ali parada me olhando um instante, o jeito como seus olhos pareciam turvados era como se buscassem um modo de me apagar. Pois eu era um espelho ao contrário revelando a tão nítida diferença entre nós. Ela tão clara, os olhos cor de água-marinha como os do pai. Eu… a madrugada sem estrelas. Mas no espelho Ritinha viu algo, algo que era ela e era eu, como se fôssemos duas numa só. Eu era a noite e ela o dia? Acho que foi susto o que ela viu. Enxugou os olhos e saiu correndo. Coloquei os bambolês no chão, acendi outro cigarro. Um pássaro pousou próximo ao meu pé. Senti um calafrio. Eu era uma menina a quem soltaram a mão e largaram sozinha no meio da rua.

Taylane Cruz é formada em Jornalismo pela Universidade Federal de Sergipe, é escritora e assessora de comunicação da Mostra de Cinema Negro de Sergipe − EGBÉ e do Festival Sergipe de Audiovisual − Sercine. Em 2015 lançou seu primeiro livro de contos Aula de Dança e Outros Contos (Infographics). Já colaborou com a antologia Senhoras Obscenas (Editora Benfazeja, SP) e Golpe: uma antologia-manifesto (Nosotros Editorial, SP). Participou de oficinas de criação literária com os escritores Luiz Rufatto, Marcelino Freire e Gonçalo Tavares. Já ministrou a oficina de Microcontos durante a semana literária do Sesc em 2017. E hoje atua como palestrante e ministrando oficinas de escrita criativa. Seu segundo livro de contos foi lançado em 2018, A pele das coisas (Editora Multifoco, RJ). A autora também lançou o livro durante sua participação no Fliaraxá, em Minas Gerais, em 2019, ao lado de autores consagrados como Conceição Evaristo, Marina Colasanti e Antônio Torres.


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TIRINHA E CHARGE Luiza de Souza

Oi, eu sou a Luiza de Souza. Tenho 26 anos, cursei Comunicação Social − Hab. Publicidade e Propaganda na UFRN e larguei a vida de agência pra trabalhar com ilustração desde o início de 2014. Eu gosto de pensar que sou uma pessoa muito comum, com apenas alguns costumes estranhos, cabelo bagunçado, um pouco empolgada, com alguns projetos na manga e cultura inútil de sobra. Fiz trabalhos para pessoas incríveis com histórias bonitas, agências de publicidade descoladas, ONGs e murais para diversos clientes espalhados pelo Brasil.


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TIRINHA E CHARGE Patrícia Galelli

Patrícia Galelli é escritora e artista. Mestre em Artes Visuais (Processos Artísticos Contemporâneos) pelo Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). A dissertação, defendida em agosto de 2018, investigou os processos de escrita e suas articulações com a arte contemporânea. Publicou os livros Carne falsa (Editora da Casa, 2013), Cabeça de José (Editora Nave, 2014 / Prêmio Elisabete Anderle de Incentivo à Cultura da Fundação Catarinense de Cultura — FCC), Gávea (selo Formas Breves/egaláxia, 2014) e o livro de artista Um bicho que (Miríade Edições), com primeira edição em 2015 e segunda edição em 2016. Lança em 2020 seu primeiro livro infantil, GatoÁtomo (Editora Nave).


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TIRINHA E CHARGE Rhafael Porto Ribeiro

Rhafael Porto Ribeiro possui graduação em Artes Visuais pela Universidade Federal de Roraima (2018) e é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM). Tem experiência na área de pesquisa sobre Histórias em quadrinhos, com ênfase em Artes, comunicação e o social, atuando de forma prática como quadrinista, ilustrador e professor.


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e poma


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POEMA Aline Bei

Aline Bei nasceu em São Paulo em 1987. É formada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e em Artes Cênicas pelo Teatro Escola Célia-Helena. É colunista do site cultural Livre Opinião – Ideias em debate e foi escritora convidada na Primavera Literária (Sorbonne Université, França 2018). Também em 2018 foi autora convidada para a Feira Internacional do Livro de Guadalajara, México. O peso do pássaro morto, finalista do prêmio Rio de Literatura e vencedor do prêmio Toca e do prêmio São Paulo de Literatura, é o seu primeiro livro.


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MÃE OU O NASCIMENTO DE UMA ARTISTA a casa não me pertencia, em absoluto. minha mãe desde o berço deixava isso claro em seus gestos, teu pai trabalha muito para comprar esses cueiros, ouviu? também este coelho que você se agarra feito tábua de salvação, minha mãe cantava que larará a morte existe a partir do momento em que se põe a cabeça para fora do útero ou mesmo antes, no aborto, se alimente bem para viver bastante você terá que cuidar de mim e do seu pai daqui uns anos, olha o cesto de roupa suja, cheira, de tudo isso 75 por cento é seu. ela acende um cigarro, o que quero dizer? abre a geladeira. o que quero dizer, filha, é que você deve aproveitar o seu tempo com esse coelho, ela solta a fumaça não te enxergo, digo para as costas inclinadas de mamãe enquanto ela escreve uma carta para a tia da Bolívia colocando fotos minhas, Pare!, no envelope, Pare! larga a mão de ser besta, tapa na boca. anos depois na escola de Teatro,


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POEMA Aline Bei eu Gritei uma cena, rasguei a caixa com as fotos que exigiam a minha tomada de decisão diante da outra atriz muito assustada na cena eu fui um trator explodindo queria ser Boa, mas o grito não era sobre isso, eu estava tentando arrancar de mim a Velha Raiva. com o tempo, percebi que não se joga assim um caldeirão de fogo na cabeça de ninguém afinal as pessoas também tem os seus próprios problemas insolúveis, com o tempo eu percebi que O Certo, O Jeito Ideal que as pessoas recebem é: fósforos pela floresta que são apagados um pouco antes de entrar em contato com a grama, é preciso quase deixar o fogo destruir a grama e então não deixar, eis a dança do despejo na Arte mas naquela época eu era muito jovem gritei meus anos ninguém me ouviu já eu estava bem acostumada a ouvir da minha mãe as definições do meu Ser que ela enxergava com clareza, me dizia, justamente por estar de fora. você é isto, isto e aquilo, enumerava me aprisionando quando terminei o grito


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Rui - o Diretor - colocou seus óculos redondos de grau e me perguntou com muita calma - quem você pensa que é? respondi internamente: tem uma onça humilhada por anos Aqui dentro do meu peito, professor, e esse escândalo que acabou acontecendo não foi sobre o senhor nem sobre o que eu penso a respeito do Teatro sei que ser atriz é algo mais parecido com o que a Cacilda Becker fazia com o que a Cleyde Yáconis fazia peço, inclusive, desculpas por essa onça escancarada que nasceu em mim quando a minha mãe se revelou irreversível n'A Mãe Que Eu Tinha e deu meu(s) coelho(s) para outra(s) criança(s) chorei desesperada você é muito materialista (fumaça de cigarro) você precisa aprender a se alegrar com a felicidade dos outros, também.


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POEMA Aline Bei

PAI OU O NASCIMENTO DE UMA ARTISTA ele ficava em casa de fim de semana. e se não estivesse guardando a feira lavando o carro fazendo algo que a minha mãe pedia o tempo todo para mantê-lo Perto, então ele me dava alguma atenção. um dia brincamos de esconde-esconde esperei por horas atrás da máquina até que me levantei e fui eu mesma procurá-lo – Achei. de frente para a televisão. de segunda a sexta a primeira pessoa que meu pai chamava quando chegava em casa era: – Má? sua voz tão terna ecoando pela casa minha mãe se fingindo de surda já eu largava meus brinquedos meu diário eu, o verdadeiro cão da família disfarçado de menina com blusa do castelo rá tim bum. tentava absorver todos os sons que meu pai fazia primeiro em direção à presença da minha mãe, os risinhos que eles davam, eu a segunda coisa que eles tinham. então meu pai subia até meu quarto


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com as suas grandes mãos morenas que minutos antes estavam perdidas na cintura da minha mãe. temos a mesma cor de pele, meu pai e eu, os mesmos cabelos úmidos. ele afagava a minha cabeça, perguntava se meu dia tinha sido bom e antes que eu pudesse responder meu pai já tinha saído pela porta me abandonando no quarto em todas as vezes que eu quis dizer pra ele pai, meu dia foi difícil peguei recuperação ralei o joelho quero mudar de escola dormir na Júlia ir no parque na festa morreu o gato da prima da mari beijei um menino no acampamento meu pai escorria pela porta mas quando eu disse quero fazer Teatro, então ele Parou. éramos jovens, ainda, quantos anos tínhamos? ele parou na porta – de onde você tirou isso? estranhei


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POEMA Aline Bei a sua imobilidade, o senhor não vai escorrer? – de onde você tirou essa ideia? -­ele repetiu, seu ouvido finalmente em mim. – a professora de Artes disse que eu tenho talento. – respondi crescendo meu pai também, crescendo – era só o que me faltava! para os lados, para a frente. – isso não é sobre o senhor, pai. – não estou te reconhecendo. – é sobre mim. éramos gigantes, agora. – pela primeira vez na vida, eu sinto meu coração bater por alguma coisa. – lágrimas nublando meus olhos, minha mãe não importava nem que ela aparecesse não havia espaço. – o senhor não vai me tirar mais isso. – mais isso? – ele riu, furioso. – as aulas começam semana que vem. – com que dinheiro? – consegui uma bolsa. ele me olhou, incrédulo – você não vai fazer teatro. – disse com força como se desse a última palavra – não estou pedindo a sua autorização – respondi com Medo e no centro de tudo uma bola de fogo lotada de Vida.


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IRMÃO OU O NASCIMENTO DE UMA ARTISTA os dois estavam no banheiro quando me contaram: sua mãe está grávida, apesar dos miomas. fazia dois anos que eles tentavam me dar um irmão, diziam, como se aquilo fosse sobre mim, como se alguém tivesse me consultado: o que está faltando na sua vida, querida? talvez uma pessoa? para compartilhar Angústias, assim como eu e papai fazemos? acontece que você e o papai se escolheram. (apertando a minha bochecha) gracinha. se afastaram. (gritando) ei! o que eu quis dizer é que irmão a gente não escolhe! meus pais de costas, Dançando. bem, de qualquer forma esse não é o jeito que eles falam comigo eles conversam primeiro entre si pra depois despejar em mim as ordens, também algumas sugestões de comportamento, como se eu não tivesse que descobrir sozinha os meus próprios caminhos para que então e finalmente a minha essência pudesse reverberar do lado de fora. até eu na época com 12 anos sabia disso. o problema dos meus pais, entre tantos: eles me tratam como se eu fosse uma idiota. bem, no momento em que disseram que eu ganharia um irmão, não me afetei. devo ter ficado em estado de choque. lembro de ter dito minha nossa, ou algo assim. se anime, filha, uma criança em casa é uma verdadeira benção. (mãe) e eu, por acaso não sou uma criança? ou pelo menos é o que vocês me dizem o tempo todo. então o que eu sou fica completamente na mão de vocês, é isso? saí do quarto, furiosa.


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POEMA Aline Bei cheguei no meu pesadamente. de alguma forma eu sabia, aquele bebê ia sobrar pra mim. minha mãe não daria conta, ela nunca dá conta de nada, e meu pai trabalha em doses cavalares. me virei de lado na cama. chorei. a gravidez da minha mãe seguiu seu curso. ela sentia muita dor por conta dos miomas (bebê monstro) a recomendação era não fazer esforço, então ela se tornou uma pessoa calma por nove meses, uma pessoa que assoviava pela manhã (minha mãe assoviando!) tirava cochilo pela tarde ( ! ) ainda por cima na cadeira de balanço. os dias ficavam estranhamente silenciosos, a mão um pássaro repousado na barriga. ela tinha razão, não havia mais criança naquela casa. eu menstruava desde os 11 anos, e quando desceu meu primeiro sangue minha mãe me deu um roupão seu jeito de dizer não fique pelada depois do banho. esse roupão não é pra mim, mãe. esse roupão é para o seu medo de perder meu pai e de repente numa quinta 6 de agosto noite alta nasceu em mim um híbrido que de apelidei de Irmãe porque nasceu no mundo o Nico* *única pessoa que tem nome nessa história por ainda ter a esperança de não ser só uma função. dormi no quarto de hospital com a minha mãe. e isso, se você for pensar, é muito estranho. quem deveria ter dormido no quarto? Pai. então ela me cobrou por eu não estar ajudando


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o bastante, eu levanto operada para cuidar desse bebê enquanto você folheia a Capricho* *uma revista da época. me bateu, na frente do Nico e isso eu não podia suportar, ser humilhada na presença do meu irmão. daqui a pouco ele estaria fazendo o mesmo comigo e eu não sou nenhum jesus. então comecei a: trocar fralda/limpar bunda/ dar mamadeira (que minha mãe deu o peito seu bico caiu no banho) embalar o Nico/ brincar/ segurar no colo/ ensinar palavra minha mãe fazendo o serviço da casa é muito serviço, ela dizia já eu falava pouco preferi escrever um diário que escondia debaixo da cama. na rua - olheiras enormes - as pessoas me perguntavam se o bebê era meu. eu negava com tanta veemência me sentindo uma velha sendo virgem. o único momento em que eu conseguia me Livrar era quando eu dizia: - mãe, toma o Nico. - (largando a vassoura) o que? - toma o Nico. - por quê? - (saindo) tenho Ensaio.


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POEMA Débora Arruda quando peguei em sua mão, inda menino achei que te ensinaria somente a nadar te coloquei em meus braços e você foi sentindo minha pele lentamente se afastar

zé peixe

seu corpo criança, no Sergipe suspenso foi a melhor lição sobre a vida, que te deixei você e Rita, brincando no rio, tão imenso correndo ondas, seus pés não tinham lei em terra você não gostava, era só saudade que desenhava navios para fugir do mundo encontrava nas folhas a sua liberdade mergulhando nos sonhos de um mar profundo viveu a bordo, sem atracar na correnteza saltava da mais alta embarcação capitão das marés, a sua natureza era aquática, estrangeira do próprio chão de um tempo onde os cajus eram abundantes você fez da Barra dos Coqueiros o seu quintal hoje observa triste, o menino comandante o seu rio poluído e tanto descaso ambiental ganhou prêmios, grande Prático conhecido o seu nome se espalhou pelo universo

Débora Arruda é natural de Aracaju (SE), formada em Letras pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), é professora, escritora e poeta. O contato com a poesia começou dentro de coletivos como o Sarau de Baixo. Autora do livro de poesias Coração despovoado (Chita Cartoneira, 2017).

Zé Peixe era apenas um apelido hoje o José é tão grande que não cabe nesse verso ao seu lado, no céu, agora estou vivendo depois de muito tempo, meu filho, te encontrei daqui das nuvens, seu recado, vou logo dizendo “digam que estou no azul, onde sempre morei”


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Meu bem, quando você me diz: tente dormir Penso no ventilador girando bem na nossa frente e que não tenho como colocá-lo um pouco mais para trás. Pois as paredes daqui de casa são muito finas, tanto o som como o sol invadem o quarto inteiro. Enquanto as hélices giram, a minha garganta seca. Percebo que a água acabou e que ainda não sobrou dinheiro para comprar um filtro e que talvez a água só seja potável no mês que vem. Meu bem, quando você me diz: tente dormir Deduzo que se estivesse dormindo não sentiria sede e não estaria pensando em desenvolver algum método mirabolante para aliviar securas. Talvez eu pudesse estudar sobre técnicas e desenvolvimento de poemas para esquecer o gosto da água da torneira. Talvez se o saneamento deixasse de ser básico e fosse sportchiq, não precisaríamos nos preocupar com isso e além de beber a água da torneira, beberíamos também da água do chuveiro enquanto tomaríamos banho e as gotas iriam deslizar devagar pelas suas costas. Paro de olhar para você, pois os seus olhos sorriem enquanto uma outra gotinha escorre do lado esquerdo do seu rosto. Meu bem, quando você me diz: tente dormir A minha cabeça aperta. Abri a caixinha de ferramentas, que fica guardada lá no quintal, para verificar se todos os pregos estavam lá, restavam apenas dois. Também não encontrei o martelo e estou até agora tentando entender como posso ter esquecido onde eles estão se passo o dia inteiro ouvindo a minha cabeça martelar. Mainha dizia que eu encasquetava com as coisas e não largava nunca mais, talvez sejam os pregos da parede da memória. Meu bem, quando você me diz: tente dormir Olho para o lado e vejo que você, ao contrário de mim, dormiu. Que há alguns minutos atrás você me dizia de forma discreta, como quem já sabe a resposta do que vai perguntar, como quem não quer incomodar, mas poucas coisas incomodam tanto quanto a fome. Tem alguma coisa pra comer, aí? Nesse momento acabei ficando sem jeito e depois de pronunciar o não, te peço com os olhos marejados e com zelo: meu bem, tente dormir.

a noite nunca dorme


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POEMA Débora Arruda

amor de mulher

A mulher que eu amo divide o mundo comigo é casa, é rua, é bar é abrigo travesseiro compartilhado na cama é bonita a rotina ao lado de quem se ama A mulher que eu amo espalha sua voz por onde passa

A mulher que eu amo

seja nos palcos com microfone

por amar outras iguais

ou descalça, no meio da praça

é cobrada o tempo inteiro

sua arte não é só talento

e por ser negra

é estudo, dedicação

a querem viva

potência não se resume

mas trancada em cativeiro

a uma mera atração A mulher que eu amo A mulher que eu amo

é grande e infinita

espalha pelo rosto

escreve a sua história

os seus cabelos

cantando a própria vida

ativa poderes espaciais

sem amarras

e ganha força

trocou as notas de avaliação

sentindo a conexão

por acordes e mãos livres

com as suas ancestrais

que passeiam pelo seu violão.


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POEMA Mailson Furtado

invejo os rios e seus desapegos não se guardam nem água nem cacimbas nem suas margens são o que não juntam

Mailson Furtado é escritor, ator, diretor teatral, produtor cultural e cirurgiãodentista.

introspectivas árvores se enfeitam de sol engolem suas sombras de julho à dezembro nuas e caladas por fora lotadas por dentro


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na parede da sala o retrato sorria já há muitos anos era bonita a grafia da foto e só uma foto de alegria que já foi dele que já foi ele não reconhecia retrato nem parede nem alegria nem ele o quadro mantinha-se a dar razão ao prego que sozinho motivo não tinha


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POEMA Sandro Sussuarana

Sandro Sussuarana é um dos idealizadores do projeto Sarau da Onça, é produtor cultural e articulador de Jovens do bairro de Sussuarana, tem participação em várias atividades culturais da cidade do Salvador; Ações Poéticas nas Comunidades do MAM (Museu de Arte Moderna) e na comunidade de Novos Alagados (Uruguai) em 2012. Foi um dos idealizadores do Projeto Perife’Art projeto este que foi realizado com o apoio da CESE (Coordenadoria Ecumênica de Serviço).

Chegando antes da bala


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Já me disseram que seria impossível Que sonhar pode, Realizar só se for rico Que a periferia não produz não existe cultura Que a juventude de hoje só quer saber de aventura... E mesmo assim a gente enfrentou Na linha de frente, a poesia como santo protetor Não o bastante esta audácia, Saímos do centro para ocupar as praças, as escolas, os becos as quebradas Invadimos presídios, centros de privação. Onde eles depositam a hipocrisia Nós resgatamos com o coração Para além dos discursos manjados Produzimos vivências E nunca ficamos parados Se o desafio era sobreviver a 1 Já são 10 anos e acreditem Nem de longe estou cansado Sem desmerecer a ninguém Nem dizer que sou o melhor Eu sei que na caminhada vai ter sempre um Querendo retorno sem derramar suor Cada um tem o seu papel a cumprir E o meu é espalhar a poesia por aí É fazer ela chegar onde antes não ia Dá criança de colo aos ouvidos de dona Maria, Joana, José E qualquer ser que precise Porque ela nunca precisou de convite Apenas de ouvinte E se escrever já muita ousadia Imagina lançar livro que nem eu faço na periferia Ninguém disse que seria fácil Como sei que nunca será O que eu faço é por amor E continuarei enquanto eu respirar Se fosse possível descrever o que sinto em cada abraço, cada aperto de mão Seria com certeza gratidão em cada lugar que passo O objetivo é plantar alguma semente. E mesmo que eles potencializem as informações contrárias Continuarei lutando E chegando antes da bala


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Contrariando as estatísticas

Eles disseram que eu não seria capaz. Por ser preto, pobre Meu destino estava selado entre as grades e um revólver Desde os 13 eu vivo assim Cada dia me superando mesmo com alguns da minha família de mim duvidando Não imagino a frustração deles ao me ver na TV, rodar o país Pior ainda deve ser ouvir seus netos dizendo que querem ser iguais a mim.


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Fui forte quando esperaram minha fraqueza Inteligente quando não deveria pensar Sagaz quando não esperavam gentileza Pra na hora certa saber o que falar Me fiz ventania pra nunca mais ser sopro e espalhar que a leitura sim te torna perigoso. Na academia ou fora dela Meus tiros são de consciência Pra cês perceberem que a periferia é quem mais produz (cons) ciência Vários Van Gogh, muitas Cassia Eller, inúmeros Neymar Talentos extraordinários perdidos Por um estado que não oportuniza e sim criminaliza. Eu sei a importância de um “canudo” diplomático Porém, ao adentrar esses espaços não se esqueça que a rua tem sua linguagem própria, e ao invés de querer vim ensinar, sente e ouça o que os nossos griot tem pra falar. Nessa escola chamada rua foi onde me formei, fiz mestrado em sobreviver, pra mostrar que mesmo com destino selado eu me superei. Hoje, faço doutorado em tirar os meus do lugar comum Incomodar Mesmo que tenha que ser um a um Não irei parar Ser Ubuntu é muito mais do que falar é fazer Contrapor o que esperam de você Sair da linha de tiro, Se manter esperto Transmitir esperança E continuar vivo Só de vingança!


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POEMA Wesley Peres

Wesley Peres é autor do romance Casa entre Vértebras (Record), vencedor do Prêmio Sesc 2006, finalista do Prêmio SP e semifinalista do Portugal Telecom. Publicou em 2013 o romance As Pequenas Mortes (Rocco). Romance atravessado pela tragédia do Césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987. No fim de 2019, publicou o livro de poemas O Corpo de uma Voz Despedaçada (Martelo Casa Editorial), que forma uma espécie de bilogia com As Pequenas Mortes, afinal o livro reconstrói poeticamente a estranha experiência estética que as vítimas descreveram com o azul luminoso do Césio: beleza-ruína, letal. E, assim, como em As Pequenas Mortes, o tema da morte coloca no centro a pergunta universal que todo o mundo faz a si mesmo ao adentrar a linguagem: “o que fazer com este (meu) corpo?”


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NA ORIGEM, SABIA-SE O NADA, e saber era nada, e não havia véus, e por isso, tudo estava oculto. E ocultuava-se o corpo com o corpo, e o corpo, enrolado em papiro, sendo o papiro feito do corpo. Sendo o corpo feito papiro: planura de inscrição de coisas, das coisas, das fímbrias oscilações constantes da textura das águas dos corpos, seus extratos de ares ásperos. Dizem que, na origem, o corpo era todo línguas e lábios, e havia matérias espécies, especiarias cortantes, capazes de gravuras sobre superfícies águas do corpo e suas abismas quedas d’aves estroçadas de tal modo que até mesmo os antepassados d’águas se arrepiavam qual nuvem desaba do oitavo andar d’algum sol há muito nem servindo mais a título de ocidentações nem de orientações. Na origem, sabia-se o nada, e o destino é o outro nome para origem, e origem é o outro nome para o destino. E origem e destino são nomes outros para esse imenso outro da palavra: o corpo.


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POEMA Wesley Peres

Dois poemas enquanto o sol se escora em meu corpo

I Talvez eu seja um menino que não tenha assunto senão outro que olhar com as mãos o vento; talvez o vento me represente para as palavras mais do que os lugares ou as paredes de adobe que imundam minha memória de cheiro apocalíptico.

II Talvez eu fume cigarro para ver a alma dele se ir desenhante alma de gente é animal verbal então vem o vento e espalha essa alma cinzazulada, e resta o nada – que pode ainda úmido da próxima chuva. Uma palavra que represente o vento me representando para as outras palavras, procuro, e quando não encontrá-la, enfim a terei inventado.


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E CONTEMPLAVA EM LÁGRIMAS O GRANDE DESERTO DO MAR, o dizente corpo — o corpo, este ninguém sobre o qual falamos como se o portássemos —, foi o que disse Homero, o disse ligando as duas águas, aquela do corpo e aquela do mundo, ao atrevessá-las da palavra sal, e, assim, esse mero homem, Homero, qual duas folhas de um livro aberto, separou e uniu o Um e o Outro, forjou abismo e ponte, sólidos ambos, a partir de antípodas — uma solvente, outra solvida — matérias. Pela vez primeira, a matéria se olhava, não com os olhos do corpo, mas com o aparelho sensório das palavras. Neste instante, aves voaram de árvores, e muitas outras coisas romperam-se em duas, por razão nenhuma que não a de imprimir belezas, simplesmente ligando coisas por meio de abismos, simplesmente separando coisas por meio de sólidas pontes.


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RESENHA Mateus Baldi

O legado de nossa miséria Felipe Holloway Vencedor do prêmio Sesc em 2019, "O legado de nossa miséria" é uma homenagem à literatura, sobretudo a latino-americana. Evidenciando Jorge Luis Borges, autor central para compreender a proposta de Felipe Holloway, este romance discorre sobre a vida e a morte tendo por base o conto "A forma da espada", do escritor argentino.

Mateus Baldi é escritor e jornalista. Em 2016 criou a Resenha de Bolso, voltada para a crítica de literatura contemporânea. Assina a coluna Livros da Quarentena na revista Época.

Em uma fictícia cidade de Minas Gerais, um crítico literário é impedido de assistir à única mesa que lhe interessava em um congresso. Desolado, ele vai para o bar do hotel e lá encontra um de seus escritores preferidos. Na conversa entre os dois, o protagonista analisa todas as possibilidades de existências em uma narrativa que se espalha por quase todos os campos das Humanidades. Em seu primeiro livro, Felipe Holloway criou um enorme quebra-cabeças para o leitor, que precisa permanecer atento aos infinitos detalhes e possibilidades, exatamente como numa narrativa borgeana.


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Maréia Miriam Alves

A cidade inexistente José Rezende Jr.

Entrelaçando duas famílias, uma branca e outra negra, evidenciando características marcantes de cada uma, a veterana Miriam Alves faz de "Maréia" uma tentativa de transcender o racismo. Em capítulos curtos, que se conectam por histórias transcendentais ou não, são apresentados os Albuquerque de Menezes e a família de Maréia, profundamente ligada às religiões de matriz africana.

Evocando nomes como João Cabral e Dias Gomes, José Rezende Jr. constrói com esmero a fábula de uma cidade inundada pela construção de uma hidrelétrica. Seus personagens, multifacetados em capítulos curtíssimos, se espicham ao longo das 80 páginas desta novela para tecer a crônica de um país à beira da miséria. Desenhando imagens potentes, José Rezende Jr. vai nas raízes do cordel e do sertanejo em busca de uma história simples, porém comovente.

Reconstruindo a memória, Miriam Alves vai das Grandes Navegações ao Teatro Municipal de São Paulo para unir um país fraturado. Conspirações, viagens espirituais, descobertas ancestrais: tudo converge para uma narrativa que sobrepõe seus elementos em tom de fábula. Integrante do movimento Quilombhoje, a literatura de Miriam Alves está profundamente ligada à denúncia do racismo e à promoção da literatura negra brasileira. Ler "Maréia" é testemunhar um país que, lentamente, começa a se descolonizar.

Em "A cidade inexistente", tudo que inexiste é a própria realidade. A dicção fortemente oral, atravessada por inversões como os próprios fatos narrados, ilumina um livro pequeno, porém, mais uma vez, inversamente potente. Entre sereias e homens-peixes, passando por circos e pássaros replicados, tudo nessa fábula parece brilhar. Boa oportunidade mergulhar não só nos vestígios de uma usina, mas na própria história do país, tão cheia de personagens e tramas singulares, "A cidade inexistente" é uma atualização do chamado realismo mágico. Para o leitor, o que resta é o convite irrecusável: entre e saia assombrado.


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RESENHA Isabel Costa

Água de mortas Isadora Salazar Marina é uma daquelas personagens que parecem ter saído de um sonho embaçado. Advogada detentora de muito prestígio e de caráter duvidável, ela está imersa em um esquema secular marcado por machismos, misoginias e intrigas. Tudo assinalado pelo plural, pois as questões da personagem central são inúmeras. O sogro mau caráter, a mãe alienada, o pai aproveitador, o noivo infiel, a babá meticulosa e o amante vingativo são algumas das peças do tabuleiro montado pela escritora paraense Isadora Salazar. Isabel Costa. Repórter do Vida&Arte, eterna estudante de Letras da UFC, tem MBA em Marketing e é especialista em Semiótica e Literatura pela Uece. É apaixonada por literatura brasileira, pequenos afetos, publicações artesanais e cultura pop. Escritora de cartas e de livros não publicados. Encabeça o blog Leituras da Bel para falar sobre literatura e novos autores. É também integrante do Selo Editorial Aliás.

A advogada move sua existência através de torres, de reis e de damas. Após seguir os passos da família e conseguir a graduação em Direito, ela tem suas temporadas em Portugal. Algumas das passagens mais interessantes do livro Água de mortas são narradas, inclusive, quando a jovem está no “Velho Continente”. Mas Marina retorna ao Brasil, encontrando os rostos conhecidos em São João da Ponta e em Belém. A volta é marcada por um crime sanguinário que muda os eixos da narrativa. A novela Água de mortas consegue surpreender ao transformar um personagem secundário e cabisbaixo na mais expressiva súplica que a obra possui.


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O Doce e o Amargo João Gabriel Paulsen

Correr com rinocerontes Cristiano Baldi

Existe um clichê que, há muito tempo, vem sendo questionado por pesquisadores e por escritores: quem produz contos está apenas ensaiando para a publicação de um romance. Essa máxima, já tão questionada, cai por terra, mais uma vez, quando lemos "O Doce e o Amargo", livro do mineiro João Gabriel Paulsen.

Você já imaginou a sensação de correr em um campo aberto com meia dúzia de rinocerontes? Possivelmente, é a mesma sensação causada pela leitura da obra que lança o caxiense Cristiano Baldi como um romancista. O escritor mostra como é possível reunir elementos utilizados em demasia na literatura para formar uma história nova, perspicaz e repleta de contornos. O protagonista de "Correr com Rinocerontes" é um jovem estudante da pós-graduação, marcado por uma família de intelectuais e morador de São Paulo. Mas ele precisa retornar à Porto Alegre, sua terra natal, quando uma nova situação de calamidade acomete os parentes que o sustentam.

Não parece que esta é a obra de estreia do autor – que começou a escrever aos 15 anos e venceu prêmios quando mal acabara de completar os 19 anos. A “literatura agridoce” praticada por João Gabriel tem a pulsação própria de um tema tão apreciado quanto temível: a morte. Os contos formam uma fileira lógica – transpassando o suicídio, a doença, a pobreza e o esquecimento. É possível sentir, por alguns instantes, o desamparo dos órfãos que perderam a mãe após cartelas de remédio serem consumidas. É possível encontrar, com certo lamento, a carta de despedida da criança que nunca teve uma figura materna clara. Difícil é terminar a leitura sem sentir que algo morreu internamente. Mas não seria este, justamente, o poder da literatura? "O Doce e o Amargo" é um livro, sobretudo, capaz de mostrar o quanto a existência humana é finita.

E o protagonista – até então fugitivo de uma infância conturbada e de uma adolescência pautada pela perplexidade – é obrigado a encarar tudo aquilo que mais o aprisiona: a condição do irmão, a doença da mãe, a velhice dos avós. Fugindo do passado e tentando desenhar um futuro sem pertencimentos, o personagem tem uma hesitação sobre assumir o relacionamento amoroso com Bárbara e parar de gastar o dinheiro da família com cursos inexistentes.


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DEPOIMENTO Claudia Lage

DUAS SOLIDÕES, DUAS ESCRITAS No início, escrever, para mim, estava ligado ao recolhimento. Era no silêncio e na solidão que as palavras se manifestavam, foi no silêncio e na solidão que as primeiras histórias apareceram. Na infância, escrever histórias, inventá-las, era também desbravar a própria escrita, a aventura de colocar uma palavra atrás da outra e dessa organização enigmática nascer personagens, enredos, como se brotassem do papel. A prosa de ficção me trouxe esse deslumbramento: escrever era estar sozinha e, ao mesmo tempo, com o mundo. Do meu quarto, me aproximava de tudo lá fora, mas de uma forma diferente, era preciso imaginar, criar em mim o mundo primeiro, para então me aproximar. A literatura começou para mim como uma longa viagem íntima. Descobrimentos. Na dramaturgia, e mais tarde, na escrita de roteiros, dei o primeiro passo para fora. As palavras mal nasciam no papel e já iam para o mundo. Às vezes, o nascimento da história acontecia na rua mesmo, na frente de outras pessoas, e outras vezes, com a participação delas. Várias mãos davam forma e sentido aos personagens, várias mentes direcionavam as tramas. Algumas vezes, me


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sentia exposta, invadida. Como manter a solidão? Eu me perguntava. Já havia entendido que a solidão era solo fértil para a escrita. Eu tive que aprender a preservar um espaço interno ao mesmo tempo que o abria, era como estar no quarto e ao mesmo tempo no mundo, um pé em cada ponta, mas o corpo inteiro envolvido. A dramaturgia, o roteiro, são escritas que não se bastam, precisam de outros elementos: a atuação, a direção, o cenário, o figurino, a luz, a música, o som. O aviso está na natureza deste outro ofício, tão similar e ao mesmo tempo tão diferente do literário: é impossível ficar sozinho. Diferente da literatura, a criação do outro é necessária para a obra se materializar por completo. É preciso estar junto nessas criações, e, ao mesmo tempo, solitário na própria. É uma solidão que não se fecha em si mesma, uma solidão acompanhada. Isso é possível? O teatro, o audiovisual, me mostraram que sim. Ainda sinto, porém, como um mistério habitar, ora um ora outro, esses dois mundos, como dois lugares que falam a mesma língua, mas com linguagens completamente diferentes.

Claudia Lage é escritora, roteirista, parecerista e consultora de ficção, professora de Escrita Criativa e de Roteiro audiovisual. Na literatura, acaba de lançar o romance “O corpo interminável”, pela Ed. Record. É autora do livro de contos “A pequena morte e outras naturezas” (2000, Record) e do romance “Mundos de Eufrásia” (2009, Record), finalista do Prêmio São Paulo de Literatura de 2010.


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DEPOIMENTO Gelson Bini

Machado de Assis lia contra a exclusão. Kafka lia Walser contra os projetos mercantis do seu pai. Flannery O’Connor lia Dostoievski contra a ironia da mãe. Lobo Antunes lia Tolstói contra o medo da morte na guerra da Argélia. A leitura é um ato de resistência. É um ato de recusa, uma oposição contra todas as eventualidades: sociais, familiares, domésticas, profissionais, afetivas, climáticas, pecuniárias, ideológicas, culturais e até mesmo umbilicais! Eu lia contra o bullying, contra a violência doméstica e o alcoolismo que rondava a família. Na minha casa não havia orçamento para o livro e o meu primeiro contato com a leitura foi por intermédio de um cara “esquisito” que chegava na escola montado numa moto barulhenta e enferrujada. Tinha cabelos compridos e desgrenhados pelo vento, usava sempre uma japona (expressão sulista para jaqueta) de nylon azul-marinho e calça jeans. A tiracolo, uma pasta escolar branca da positivo com muitos livros, carnês, contas de energia, chaves e velas de ignição. Na sala de aula ele escolhia um livro e olhando para o alto como


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que em devaneio, começava a ler em voz alta. Sem nada cobrar. Sem exigir nenhuma recompensa. Esse cara “esquisito” era o professor Osmar. Ele nunca perguntava: “entenderam?”. Ele apenas lia para nós. Foi assim que eu descobri que a moeda do encantamento pela leitura é a gratuidade! Ao escrever esse depoimento, a intenção era contar sobre a experiência com o projeto Guia de Leitura ao longo desses 10 anos de estrada. Entretanto, achei que seria mais justo voltar quatro décadas para falar e prestar homenagem ao professor Osmar, que além de ler em voz alta sem brandir a ameaça do futuro, foi o meu Guia de Leitura na busca de livros contidos em discos de bandas de rock que eu havia encontrado no lixo. E para terminar, quero dizer duas coisas: o verbo LER não tolera censores e imperativos. E a minha meta para 2021 é cair na estrada e formar um exército de novos leitores. O Exército das Forças Amadas do Livro e da Leitura. Creio e confio!

Gelson Bini é narrador de histórias da oralidade, mediador de leitura e debates literários. É idealizador e responsável pelo projeto “Guia de Leitura”. Atua como mediador de leitura há mais de 10 anos percorrendo escolas públicas, feiras de livros, festivais literários e presídios.


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Ilustração para a capa da edição nº 10/2020 Anna Cunha Créditos das fotos dos autores

Aline Bei - Juliana Lubini

Bruno Ribeiro - Marcinha Lima

Carlos Eduardo Pereira - André Arruda Claudia Lage - Flavia Lage

Débora Arruda - Luli Morante Elimacuxi - autorretrato

Gelson Bini - Henrique de Castro Helder Hérik - Larissa Assunção Isabel Costa - Aurélio Alves

Itamar Vieira Jr. - @Câmara Municipal da Póvoa de Varzim, 2019 Luiza de Sousa - Caroline Macedo Mailson Furtado - Aurélio Alves

Marta Barcellos - Carolina Fernandes Mateus Baldi - Mariana Vieira Elek Miriam Alves - Gean Carlo Sena Patrícia Galelli - Ayrton Cruz

Rhafael Porto Ribeiro - Levi Damasceno Sandro Sussuarana - Evanilson Alves Taylane Cruz - Pritty Reis

Ticiane Simões - Preta Rafa

Wesley Peres - Dennis Melo

Wilson Coelho - Pedro Padilha

Ailton Krenak (pág. 20) - Helio Carlos Mello Ailton Krenak (pág. 23) - Arquivo pessoal

Banco de imagens

miguel-padriñán - guardas, sonia-sanmartin - pag. 8, age-barros - pag. 34, mitchell-luo - pag. 36, karolina-grabowska - pag. 53, nick-fewings - pag. 75.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida sem autorização prévia por escrito do Departamento Nacional do Sesc, sejam quais forem os meios e mídias empregados: eletrônicos, impressos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.


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EXPEDIENTE PALAVRA 10 SESC | SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Presidência do Conselho Nacional José Roberto Tadros

DEPARTAMENTO NACIONAL Direção-Geral

Carlos Artexes Simões Diretoria de Programas Sociais Lucia Prado

CONTEÚDO

Gerência de Cultura

DEPARTAMENTO REGIONAL CE Presidencia da Fecomércio-CE e

dos Conselhos Regionais do Sesc e Senac CE Maurício Cavalcante Filizola

Diretoria do Departamento Regional Sesc e Senac Rodrigo Leite Rebouças

PRODUÇÃO EDITORIAL Editora Senac Ceará

Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista. ©Sesc Departamento Nacional, 2020 Tel.: (21) 2136.5555 www.sesc.com.br Tiragem: 19.000 exemplares. Distribuição gratuita, venda proibida. ISSN 2178-1443

Para sugestão ou recebimento de exemplares, entre em contato conosco pelo seguinte endereço eletrônico: secascom@sesc.com.br Escreva-nos, sua opinião é muito importante para o aprimoramento da revista!




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ISSN 2178144-3


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