Catálogo das Mostras CineSesc: Territórios hostis

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Sesc | Serviço Social do Comércio

TERRITÓRIOS HOSTIS



Sesc | Serviço Social do Comércio


APRESENTAÇÃO

Os territórios são expressões do conflito entre os homens. A discussão em torno desse tema aponta diretamente para os fatores que o propiciam: as desigualdades sociais, a ganância por lucros, a especulação imobiliária e o desrespeito por populações tradicionais e históricas, os despossuídos de terra e origem (no caso, os refugiados). Enfim, a falta de compreensão em torno desses conflitos possibilitam debates fundamentais sobre o tema. Mais uma vez são questões muito importantes a serem fomentadas nas escolas por estimularem uma visão crítica e consciente acerca dos conflitos que envolvem territórios. Fica difícil abordar o tema do território sem pensar, em paralelo, sobre a questão econômica da terra. O que é mais importante: a sobrevivência dos povos e a harmonia entre eles, ou a imposição da lei dos mais fortes e poderosos que almejam com a terra apenas aumentar seus lucros ou seus bens? Como se vê, essa é uma problemática complexa, ampla e necessária que merece cuidadosa atenção.


A escolha dos filmes foi realizada para evidenciar o quanto a questão do território não é só um fenômeno brasileiro. Trazemos aqui exemplos vindos da Argentina e da França, mas poderiam ser de muitas outras partes do mundo, já que essa problemática atinge várias culturas: a presença de refugiados vindos de países onde a deflagração da guerra afasta as famílias. Essa situação cria uma diáspora em que os costumes culturais são obrigados a tentar sobreviver em territórios hostis, em crise, onde esses despossuídos são vistos mais como ameaça do que como possibilidade de enriquecimento cultural. O cinema, então, cumpre o importante papel de propiciar discussões e aprofundar as oportunidades de convívio social. Por isso mesmo, recomendamos os quatro filmes para serem debatidos amplamente em escolas, lugares privilegiados para o fomento da formação de jovens que podem contribuir para amenizar a intolerância que normalmente envolve o tema.


MARTÍRIO


ORIGEM: BRASIL ANO DE PRODUÇÃO: 2016 DURAÇÃO: 160 MIN CLASSIFICAÇÃO: 12 ANOS DIREÇÃO: VINCENT CARELLI, ERNESTO DE CARVALHO, TITA

SINOPSE Análise da violência sofrida pelo grupo Guarani Kaiowá, uma das maiores populações indígenas do Brasil nos dias de hoje, que habita as terras do Centro-Oeste brasileiro entrando constantemente em conflito com as forças de repressão e opressão organizadas pelos latifundiários, pecuaristas e fazendeiros locais, que desejam exterminar os índios e tomar as terras para si.


BREVE REFLEXÃO Martírio é um dos filmes mais importantes do nosso cinema. Um documento raro, minucioso e preciso sobre a questão indígena no Brasil, tendo como foco a etnia Guarani Kaiowá. Apesar de centrado em uma única etnia, localizada na região do Centro-Oeste do país, o filme consegue abranger os problemas dos povos indígenas como um todo. O forte da obra é a sua perspectiva histórica contundente através de uma pesquisa detalhada. O filme amarra de forma eficaz presente e passado, e traça uma visão sombria para o futuro dos nossos povos originários. Os diretores fazem uma digressão utilizando-se de imagens e vídeos de arquivo que mostram a trajetória de destruição dos indígenas, século a século. A cada novo contato com os homens brancos, a cada nova política de Estado, mais um massacre anunciado. Esse passado é realmente desolador, mostra bem o quanto as gerações foram resistindo frente à Guerra do Paraguai e às políticas intervencionistas de Rondon, assim como da Era Vargas e dos militares a partir da década de 1960, que sempre assolaram essa população originária da região com o discurso de desenvolvimento. Há um decréscimo alarmante da população indígena no Brasil e não se podia esperar algo diferente da elite brasileira, sempre competente em reafirmar seus interesses mesquinhos e egoístas.


Quando os diretores tratam do presente, o panorama aterrador não muda. Talvez até piore. Fica evidente que as últimas políticas públicas nada fazem pela proteção territorial ou cultural. Há imagens de empresários da soja defendendo abertamente o aniquilamento deslavado do território indígena. Tudo é visto por esses invasores como uma batalha entre os “produtivos” e os “improdutivos”. O que fica ao final é uma ideia muito clara de genocídio e etnocídio. O primeiro dizima os corpos da população indígena (muitas vezes quase uma etnia inteira), já o segundo, a cultura e o espírito das nações originárias. Por tudo isso, Martírio já nasceu um clássico de nosso cinema, pois sua contundência é plena tanto no discurso quanto nas imagens com que o filme nos brinda.


ERA O HOTEL CAMBRIDGE


ORIGEM: BRASIL ANO DE PRODUÇÃO: 2016 DURAÇÃO: 99 MIN CLASSIFICAÇÃO: 12 ANOS DIREÇÃO: ELIANE CAFFÉ ELENCO: JOSÉ DUMONT, CARMEN SILVA, ISAM AHMED ISSA

SINOPSE Refugiados recém-chegados ao Brasil dividem com um grupo de sem-teto um velho edifício abandonado no centro de São Paulo. Além da tensão diária causada pela ameaça de despejo, os novos moradores do prédio terão que lidar com seus dramas pessoais e aprender a conviver com pessoas que, apesar de diferentes, enfrentam juntas a vida nas ruas.


BREVE REFLEXÃO O filme de Eliane Caffé já é considerado por muitos um marco de nosso cinema contemporâneo. Vamos tentar entender o porquê desse fenômeno. Ele tem dois vetores principais: um temático, já que o filme trabalha com a questão da moradia, ou melhor, da falta dela, e incorpora na discussão os refugiados internacionais. Outro vetor é o cinematográfico. Caffé assume o risco de fundir realidade e ficção de forma profundamente ousada, quando trabalha com uma locação real – um prédio ocupado por pessoas sem-teto – misturando personagens reais e enxertando nessa realidade atores e tramas ficcionais. Muitos questionaram essa ousadia, mas o que se vê é tão emocionante e verdadeiro que qualquer dúvida a ser levantada é diluída pela beleza e força do resultado final. Um dos grandes acertos da diretora foi a escolha de um velho parceiro de trabalho, o ator José Dumont. Seu carisma e seu tipo popular são combinações essenciais para as intenções de Caffé de criar uma obra de qualidade artística inquestionável, que consegue agregar um tom documental humanizador à sua história.


Por se tratar de um hotel abandonado, que outrora já foi grandioso para a cidade de São Paulo, o filme esbarra numa questão recorrente no próprio processo de modernização capitalista e sua relação com o espaço urbano. Para as cidades crescerem, é preciso derrubar os prédios existentes e implantar novos valores de consumo. O conceito de descartável vem junto com essa ideia. A construção antiga se desvaloriza e precisa ser ressignificada sob os auspícios da lucratividade. O coletivo perde força frente aos interesses de poucos empreendedores gananciosos alinhados a políticos corruptos que tiveram suas campanhas eleitorais apoiadas por esses grupos. A população torna-se, então, um mero inconveniente ao projeto macroeconômico da cidade. O que o filme denuncia é justamente isso: a indiferença do poder público e privado em relação aos despossuídos, aos sem-teto e aos refugiados. Quando o cinema se mistura assim com a realidade, sua potência se multiplica em uma progressão imprevisível, mas necessária. Que venham os debates.


FUTURO PERFEITO


ORIGEM: ARGENTINA ANO DE PRODUÇÃO: 2016 DURAÇÃO: 65 MIN CLASSIFICAÇÃO: LIVRE DIREÇÃO: NELE WOHLATZ ELENCO: NAHUEL PEREZ BISCAYART, XIAOBIN ZHANG, SAROJ KUMAR MALIK

SINOPSE Xiaobin, uma jovem chinesa de 17 anos, está perdida em um mundo novo. Após se mudar para a Argentina sem falar nenhuma palavra em espanhol, ela busca um rumo para seu futuro. Poucos dias depois de sua chegada, novos caminhos já se traçavam: tinha um novo nome, Beatriz, e um emprego em um supermercado chinês. Ao se matricular em uma escola de línguas, a jovem vai aos poucos aprendendo novas palavras, ao mesmo tempo em que seu futuro é delineado.


BREVE REFLEXÃO Futuro perfeito pode ser considerado um ótimo exemplo de desterritorialização ao tratar de uma adolescente chinesa que tenta sobreviver na Argentina sem conhecer o idioma local. Logo na primeira cena fica claro que as duas línguas (a chinesa e a espanhola) são visivelmente incompatíveis, dado o imenso abismo entre as suas estruturas linguísticas. Não por acaso, o filme começa numa aula de espanhol, de nível básico, bem rudimentar. Essa é justamente a metáfora que está em jogo, a da incomunicabilidade, e que vai permear todo o enredo. O que de início pode parecer engraçado, a falta de jeito dela com aquela língua tão estranha, adquire contornos trágicos quando a situação não é mais a de uma sala de aula, mas sim uma ação cotidiana simples como a de entrar em lugar para pedir uma refeição.


O filme se revela muito não só pelo que mostra, mas também pelo que oculta. Em muitas cenas, não vemos sequer os interlocutores de Xiaobin. A cineasta alemã Nele Wohlatz trabalha com maestria o extracampo, fortalecendo pelas imagens uma noção de como se configura esse mundo para quem não consegue se comunicar com o outro. A alteridade é tão pulsante nessa obra que, até quando Xiaobin consegue se relacionar com alguém, é com outro estrangeiro, um menino indiano, também desconectado desse mundo. Mas vale realçar que nesse encontro a comunicação está para além das palavras, podendo surgir de outras formas. O olhar e a companhia solidária demonstram a complexidade das relações e a possibilidade de se desenharem por caminhos inesperados, porém consistentes.


FÁTIMA


ORIGEM: FRANÇA | CANADÁ ANO DE PRODUÇÃO: 2015 DURAÇÃO: 79 MIN CLASSIFICAÇÃO: 10 ANOS DIREÇÃO: PHILIPPE FAUCON ELENCO: SORIA ZEROUAL, ZITA HANROT, KENZA NOAH AÏCHE

SINOPSE Fátima cria sozinha as duas filhas: Souad, de 15 anos, adolescente rebelde; e Nesrine, de 18 anos, começando os estudos de Medicina. Não fala bem francês, o que frustra sua comunicação com as filhas, mas ainda assim elas são a razão para a mãe seguir em frente. Um dia, em seu emprego como empregada doméstica, ela cai de uma escada. Convalescendo, escreve em árabe tudo o que nunca conseguiu dizer às filhas em francês.


BREVE REFLEXÃO Fátima é um filme singelo, simples em sua estrutura fílmica, mas importante e oportuno ao trazer à tona uma discussão muito atual, a dos imigrantes refugiados. Nessa obra, em especial, o foco é as mulheres muçulmanas e suas questões culturais em confronto com a cultura europeia, mais especificamente da França. A protagonista domina muito pouco a língua francesa e trabalha fazendo faxina para sustentar suas duas filhas adolescentes. Apesar de Fátima não se expressar bem na língua francesa, sua voz nos chega na solidão da escrita de um diário que ela escreve em árabe, e esse simples ato é de um valor especial ao colocar em suspenso, mesmo que seja do ponto de vista cinematográfico, sua invisibilidade cotidiana. O filme discute de forma aberta essa situação social e de classe. Qual a relação dessa mulher com o território onde vive? O quanto esse ambiente é hostil com ela, ao mesmo tempo que depende da sua aviltada força de trabalho? O papel do corpo feminino nesse território não é nada cômodo, pois vem revestido de uma subalternidade que desqualifica a própria situação social e humana de Fátima.


A tessitura narrativa do filme aborda ainda uma questão geracional que também traz interrogações importantes. As duas filhas possuem uma relação com as tradições muçulmanas que é completamente diferente da forma como Fátima vive esses costumes. Talvez a maior expressão dessa diferença de postura seja o uso do véu. Enquanto para mãe ele é fundamental, para as filhas ele é não só irrelevante, como atrapalha a socialização delas na sociedade francesa. Todavia, o que muito nos sensibiliza em Fátima é o seu caráter universal. Quantas Fátimas não conhecemos em nosso país? Ela nos faz lembrar a Val, do filme Que horas ela volta?, de Anna Muylaert. Basta olharmos à nossa volta para reconhecê-la em tantos rostos e histórias que existem bem próximos de todos nós. O diretor Philippe Faucon tem o mérito de ir direto no ponto, realizando uma obra intimista, delicada, respeitosa em relação aos seus personagens e notavelmente contemporânea ao trazer temas que precisamos debater, como a intolerância cultural e o afeto em um mundo cada vez mais regido pela impessoalidade, até mesmo quando se trata de um universo familiar.


Sesc | Serviço Social do Comércio PRESIDÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL

José Roberto Tadros DEPARTAMENTO NACIONAL DIREÇÃO-GERAL

CONTEÚDO DIRETORIA DE CULTURA

Marcos Henrique da Silva Rego GERÊNCIA DE CULTURA

Márcia Costa Rodrigues

Carlos Artexes Simões ANALISTAS EM AUDIOVISUAL

PUBLICAÇÃO DIRETORIA DE COMUNICAÇÃO SUPERVISÃO EDITORIAL

Jane Muniz

Fábio Lucas Belotte Marco Aurélio Lopes Fialho TEXTOS

Marco Aurélio Lopes Fialho

PRODUÇÃO EDITORIAL

Juliana Marques COPIDESQUE

Gustavo Barbosa (Conceito Comunicação Integrada) PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO

Paloma de Mattos

©Sesc Departamento Nacional, 2018 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610/1998. Distribuição gratuita, venda proibida www.sesc.com.br



Todo ano, o CineSesc adquire os direitos de exibição de longasmetragens que são levados para todo o Brasil nas programações dos Departamentos Regionais do Sesc. O projeto é organizado por mostras temáticas com filmes contemporâneos em que há uma seleção específica de um movimento estético ou diretor(a) importante na história do cinema. A área audiovisual do Sesc busca ofertar obras com formas narrativas impactantes e que trazem reflexões para todo o público, alinhadas com os princípios sociais que movem a instituição. A principal marca do CineSesc é o foco no cinema independente. Vale dizer que os filmes participantes têm muitas dificuldades para adentrar no circuito comercial, e até quando conseguem entrar em cartaz ficam restritos a uma ou duas salas nas maiores capitais brasileiras. Fazer esses conteúdos atingirem um público mais amplo é o nosso desafio e uma de nossas tarefas mais importantes.

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