Revista Sinais Sociais

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v.5 nº15 janeiro > abril | 2011 SESC | Serviço Social do Comércio Administração Nacional

ISSN 1809-9815 Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 1-176 | janeiro > abril 2011


SESC | Serviço Social do Comércio | Administração Nacional PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL Antonio Oliveira Santos DIRETOR-GERAL DO DEPARTAMENTO NACIONAL Maron Emile Abi-Abib COORDENAÇÃO EDITORIAL Gerência de Estudos e Pesquisas / Divisão de Planejamento e Desenvolvimento Mauro Lopez Rego CONSELHO EDITORIAL Álvaro de Melo Salmito Luis Fernando de Mello Costa Mauricio Blanco Nivaldo da Costa Pereira secretário executivo

Mauro Lopez Rego assessoria editorial

Andréa Reza EDIÇÃO Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral Christiane Caetano projeto gráfico

Vinicius Borges produção editorial

Duas Águas editoração e consultoria revisão

Clarissa Penna revisão do inglês

Idiomas & cia diagramação

Livros & Livros | Susan Johnson produção gráfica

Celso Clapp Sinais Sociais / SESC, Departamento Nacional - Vol. 1, n. 1 (maio/ ago. 2006)- . – Rio de Janeiro : SESC, Departamento Nacional, 2006 - . v.; 30 cm. Quadrimestral. ISSN 1809-9815 1. Pensamento social. 2. Contemporaneidade. 3. Brasil. I. SESC. Departamento Nacional. As opiniões expressas nesta revista são de inteira responsabilidade dos autores. As edições podem ser acessadas eletronicamente em www.sesc.com.br.


SUMÁRIO APRESENTAÇÃO5 EDITORIAL7 SOBRE OS AUTORES8 a desordem do mundo10 André Bueno

escuta, arte e sociedade a partir do músico enfurecido44 Daniel Belquer

A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRIÇÕES AO INGRESSO82 Márcia Marques de Carvalho

APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO112 Pedro Demo

A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO: DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO138 Sylvia Moretzsohn

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APRESENTAÇÃO A revista Sinais Sociais tem como finalidade precípua tornar-se um espaço de debate sobre questões da contemporaneidade brasileira. Pluralidade e liberdade de expressão são os pilares desta publicação. Pluralidade no sentido de que a revista Sinais Sociais é aberta para a publicação de todas as tendências marcantes do pensamento social no Brasil hoje. A diversidade dos campos do conhecimento tem, em suas páginas, um locus no qual aqueles que têm a reflexão como seu ofício poder-se-ão manifestar. Como espaço de debate, a liberdade de expressão dos articulistas da Sinais Sociais é garantida. O fundamento deste pressuposto está nas Diretrizes Gerais de Ação do SESC, como princípio essencial da entidade: “Valores maiores que orientam sua ação, tais como o estímulo ao exercício da cidadania, o amor à liberdade e à democracia como principais caminhos da busca do bem-estar social e coletivo.” Igualmente, é respeitada a forma como os artigos são expostos – de acordo com os cânones das academias ou seguindo expressão mais heterodoxa, sem ajustes aos padrões estabelecidos. Importa para a revista Sinais Sociais artigos em que a fundamentação teórica, a consistência, a lógica da argumentação e a organização das ideias tragam contribuições além das formulações do senso comum. Análises que acrescentem, que forneçam elementos para fortalecer as convicções dos leitores ou lhes tragam um novo olhar sobre os objetos em estudo. O que move o SESC é a consciência da raridade de revistas semelhantes, de amplo alcance, tanto para os que procuram contribuir com suas reflexões como para segmentos do grande público interessados em se informar e se qualificar para uma melhor compreensão do país. Disseminar ideias que vicejam no Brasil, restritas normalmente ao mundo acadêmico, e, com isso, ampliar as bases sociais deste debate, é a intenção do SESC com a revista Sinais Sociais. Antonio Oliveira Santos Presidente do Conselho Nacional do SESC

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EDITORIAL O mito de Narciso apaixonado por si mesmo a ponto de morrer em sua imagem serve de fio condutor a esta edição da revista Sinais Sociais. Como evitar a busca por espelhos indulgentes, como dialogar com realidades que desmentem nossas premissas, como prevenir o autoencantamento que pode antecipar a morte? Conhecer a violência existente no diálogo entre o “mesmo” e o “não eu” – para usar conceitos de Levinas – nos remete às escolhas éticas que todos devemos tomar para o entendimento e a ação. O artigo de Sylvia Moretzsohn traz já em seu título o questionamento da “naturalização” da cidadania referida nos meios de comunicação pela repetição, pelo reducionismo, pela face de benevolência que se lhe atribui. A visão da violência, a omissão da escuta, a criação estética como recurso de compreensão do mundo se fazem presentes nos instigantes textos de André Bueno e Daniel Belquer. Para o entendimento acerca da aprendizagem, Pedro Demo reflete sobre o processo educacional não como uma reprodução de “mesmos”, mas como o estímulo e o acompanhamento à autoconstrução individual. O estudo sobre a abrangência da educação superior, desenvolvido por Márcia Marques de Carvalho, ilustra as possibilidades restritas de acesso, no Brasil, a uma formação crítica, questionadora, criativa e não reprodutora ou autorreferenciada. Com esse conteúdo, a revista Sinais Sociais 15 propõe desafios sobre o pensar e o agir no mundo, confrontando-os criativamente com os dilemas de nossos diversos “eus” frente à vida em sociedade. Maron Emile Abi-Abib Diretor-Geral do Departamento Nacional do SESC

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SOBRE OS AUTORES André Bueno É paulista radicado no Rio de Janeiro, professor associado da Faculdade de Letras da UFRJ, pesquisador do CNPq desde 1991, no presente período, com o projeto A desordem do mundo – literatura e estados de exceção. É mestre em Literatura Brasileira (PUC-Rio, 1978), doutor em Teoria da Literatura (UFRJ, 1987), pós-doutor em Letras Modernas (USP, 2008) e escreveu vários livros, capítulos de livros e artigos publicados em revistas. Em livro, publicou nos últimos anos Memórias do futuro (2009), Pássaro de fogo no Terceiro Mundo – o poeta Torquato Neto e sua época (2005) e Formas da crise – estudos de literatura, cultura e sociedade (2002). É coordenador do grupo de pesquisa Formação do Brasil Moderno – Literatura, Cultura e Sociedade, registrado no diretório de grupos de pesquisas do CNPq, que reúne pesquisadores da UFRJ, USP, UFPR, UFG, UFCE e UFRN. Foi coordenador da Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ de 1991 a 1995. Até o momento, já orientou cinquenta teses de doutorado, dissertações de mestrado e projetos de iniciação científica. Daniel Belquer Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), desenvolve pesquisa interdisciplinar em artes. Trabalha como compositor, diretor de espetáculos, diretor musical e diretor de vídeo, programador em MAX/ MSP/Jitter, músico instrumentista e performer. Interessa-se pela pesquisa que integra pensamento, ação artística, tecnologia e as chamadas vanguardas históricas. Últimas publicações: Escutar a cena: um outro olhar para o que soa (dissertação de mestrado) e o artigo “Descontrole, sensores e o atuador interativo”. Márcia Marques de Carvalho Formada pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mestre em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora assistente do Departamento de Estatística da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora da Economia da Educação (ensino superior) e Políticas Sociais (previdência social e programas assistenciais como bolsa-escola).

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Pedro Demo PhD em Sociologia (Alemanha, 1971). Teve sua tese aprovada com nota máxima, premiada e publicada (Herrschaft und Geschichte, 1973). Técnico de Planejamento e Pesquisa do IPEA (1976-1994). Professor titular, aposentado e emérito de Sociologia do Departamento de Sociologia da UnB (1976-2008). Consultor de experiências pedagógicas locais (atualmente, em Campo Grande/MS e Porto Franco/MA). Autor de 90 livros nas áreas de metodologia científica e política social (com ênfase em Sociologia da Educação). Mantém um blog (http://pedrodemo.sites.uol.com.br) voltado para questões educacionais, em particular, para as experiências locais. Sylvia Moretzsohn Jornalista e professora adjunta de jornalismo no curso de Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Comunicação e doutora em Serviço Social, leciona também no Mestrado Profissionalizante em Justiça Administrativa, da mesma Universidade, na área de mídia e justiça. É membro de conselhos editoriais e parecerista de revistas acadêmicas. Desenvolve pesquisas de cunho interdisciplinar, voltadas principalmente para as relações entre jornalismo e tecnologia, ética, cidadania, questão social, cotidianidade e senso comum. Tem diversos artigos publicados sobre o tema. Atualmente, é diretora de Jornalismo da Associação Brasileira de Imprensa.

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A DESORDEM DO MUNDO André Bueno

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Este artigo trata de um problema crítico difícil: como dar forma literária a alterações radicais da vida cotidiana, produzidas pelos estados autoritários de exceção, sem estetizar a violência e o sofrimento humano, como não banalizar a oscilação radical entre civilização e barbárie que resulta da desordem do mundo à qual o título alude. Com isso em mente, este artigo oferece uma breve abordagem de alguns trabalhos específicos dos escritores W.G. Sebald, Roberto Bolaño, José Saramago, Julio Cortázar e Juan José Saer. Palavras-chave: estado de exceção, literatura, violência This article deals with a very difficult critical problem: how to give literary form to the radical alterations of daily life, produced by authoritarian states of exception, without aestheticizing violence and human suffering, how not to banalize the radical oscillation between civilization and barbarism that results from the disorder of the world to which the title alludes. Having that in mind, this article offers a brief approach to some specific works by writers W.G. Sebald, Roberto Bolaño, José Saramago, Julio Cortázar and Juan José Saer. Keywords: state of exception, literature, violence

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INTRODUÇÃO O que se lê a seguir é uma análise de representações literárias que tratam de alterações extremas da produção e reprodução da vida comum e cotidiana, resultando em rupturas radicais com a apenas aparente normalidade e estabilidade da experiência do dia a dia. No limite, rupturas que suspendem o Estado de Direito, as garantias individuais, os parâmetros básicos da vida civilizada, mostrando como são frágeis os limites que separam civilização e barbárie e instaurando pela violência a desordem do mundo a que alude o título deste trabalho. A história do século XX mostrou, pelo ângulo mais negativo, como é possível instaurar estados de exceção a partir de situações de aguda crise social. Mostrou mais, e muito pior, que estados de exceção são criados a partir de uma peculiar combinação de coerção e consenso, não apenas da imposição direta e arbitrária de sistemas políticos totalitários. Essa combinação se expressa na vida cotidiana, misturando o trivial e o terrível, a violência extrema e uma aparência de normalidade, daí resultando uma mistura insidiosa, que interessa pensar. A convivência pacífica e sem conflitos, em uma mesma pessoa, do torturador e do chefe de família, do delator e do defensor exemplar da moral e da religião, do bom vizinho que fica indiferente ou ajuda a promover perseguições e massacres, ilustra em profundidade o alcance crítico do problema. Sem esquecer das livrarias, dos teatros, dos museus, dos espetáculos, que continuam na vida cotidiana da cidade ocupada pelo estado de exceção, indicando uma sempre incômoda relação entre cultura e regressão bárbara, fazendo justiça a Walter Benjamin, quando notou que “não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie”, contribuindo muito para que não se pense a cultura pelo ângulo idealista, como se fosse o lugar por excelência dos mais altos atributos humanos, compartilhada sem crises por espíritos sensíveis e cultivados. A história do século XX, na Europa e em quase toda a periferia do capitalismo, deixou em seu rastro uma quantidade enorme de massacres e estados de exceção. Indicação segura, para lembrar aqui Freud, de que a civilização é um compromisso frágil e instável, que precisa ser cultivado e preservado o tempo todo, justo contra o mal-estar

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que a própria civilização produz, não sendo descabido associar essas regressões autoritárias a uma volta desordenada do reprimido e do recalcado, invertendo os sinais da cidade e promovendo uma profunda desordem do mundo. Na outra ponta do processo, para não criar uma redução drástica do problema, há também as variadas redes de resistência, que se organizam e espalham na contramão da vida cotidiana ocupada pela violência e pelo arbítrio. São vários os exemplos, e às vezes inesperados, da virtude cívica que se prova justo em situações extremas de crise social, onde não há mais espaço para a retórica das boas consciências querendo se colocar à margem das impurezas do branco e da sujeira do mundo, ao modo dos inocentes do Leblon, virando o rosto e passando na pele um óleo suave e perfumado, marca da indiferença e da aceitação passiva da desordem do mundo. Em resumo, há uma variedade de configurações, de relações, de refrações, de matizes, de sutilezas, de ângulos agudos e sutis, a que cabe ao escritor de primeira linha dar forma literária elaborada. E ao crítico e estudioso cabe pensar com paciência e atenção, para trazer à tona sentidos cifrados, os que realmente contam para uma boa análise. Inevitável, o problema que se apresenta para a análise crítica é a própria dificuldade da representação estética dessas experiências extremas que alteram de modo radical todas as esferas da vida social. No limite, o que se apresenta é o problema de nomear o inominável, pensar o impensável, representar o mal absoluto sem estetizar a violência, que tornaria desfrutáveis e consumíveis formas extremas de sofrimento humano. Não é uma tarefa simples, de jeito nenhum se trata de um trabalho fácil. Tudo considerado, o problema crítico é, ao mesmo tempo, estético e ético. Como estar à altura de experiências extremas, ao mesmo tempo triviais e terríveis, opacas e sutis, difíceis e muitas vezes quase intratáveis? Como não há uma resposta simples e direta para nenhuma dessas perguntas, tampouco uma forma estética abstrata e ideal que possa dar conta do alcance e da profundidade do problema, resta ao crítico discernir, caso a caso, com cuidado, os erros e os acertos na tarefa de evitar as inúmeras armadilhas que a complexa configuração dos estados de exceção apresenta o tempo todo. Há sempre a tentação, fácil, de aderir ao ângulo aberto dos processos históricos e sociais, como que aderindo, sem mais, à superfície dos

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processos, deixando de lado o ângulo fechado. Vale dizer, perdendo de vista o particular sensível, configurado e cifrado na experiência comum de todo dia, daí tirando consequências que apontam para uma percepção mais forte do movimento geral em curso. Interessa, nesse passo, a conquista propriamente moderna que traz a vida comum e cotidiana e seus personagens, também comuns e nada heroicos, para o centro mesmo da configuração literária, com pleno direito de cidade. Os leitores de Eric Auerbach, de Walter Benjamin, de Theodor Adorno, de Antonio Candido e de Roberto Schwarz, para ficar em alguns exemplos fortes, sabem a força crítica que deriva da análise imanente, objetiva e detida, do pequeno e do particular, dos detalhes relevantes e carregados de significado, dos restos e sobras, das margens quase sempre anônimas. Irrelevantes para os grandes sistemas filosóficos, totalizados e fechados, irrelevantes também para os sistemas positivos e abrangentes de análise histórica, preocupados com a generalidade das linhas de força, esses particulares sensíveis apresentam um elevado teor de verdade, lembrando nesse passo da análise de Theodor Adorno e os modos de exposição sistemática do negativo, do avesso das visões triunfais. Ao modo também dialético, lembrando agora Walter Benjamin, o cuidado com os particulares sensíveis, com os restos e sobras, com as margens consideradas irrelevantes ou pouco importantes pelos sistemas fechados, a atenção neles focada permite, muito justamente, perceber a totalidade a partir do particular, a verdade negativa do todo através da percepção intensa do detalhe e da variedade da vida cotidiana. A forma do ensaio nos interessa na sua mobilidade e intransigência, na sua capacidade de modular, de variar os ângulos da percepção analítica, no seu modo peculiar de não aderir ao que existe, ao que se apresenta como dado objetivo, ao que se deseja positivo e determinado. Para dizer de outro modo, fechado e integrado num sistema domesticado e sem falhas. Por extensão, o que interessa é o ensaio como uma forma do espírito crítico insubmisso, que não quer se reconciliar com a miséria do mundo. Como se trata de uma tradição crítica do cotidiano, desde logo se evitam os equívocos, simétricos e complementares, de aderir sem mais aos dados imediatos e positivos da vida cotidiana, como se fossem naturais e transparentes; e também o oposto, considerar

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irrelevante a vida cotidiana, com isso esvaziando de sentido a experiência da vida de todo dia em favor de algum tipo de análise abstrata e impessoal, do tipo que reduz os massacres a números e estatísticas, a abstrações impessoais, tratando de tantos milhares ou milhões de mortos. O que seria uma forma de reproduzir o horror dos massacres, deixando de lado e esquecendo o sofrimento e as dores pessoais e particulares, intransferíveis e irredutíveis a qualquer abstração desse tipo. Passando pela configuração dos particulares sensíveis da vida cotidiana, o artista de primeira linha é capaz de dar forma aos estados de exceção, mostrando uma espécie de verdade negativa dos mitos que acompanham a expansão do capitalismo a partir da Europa, à frente as trocas mercantis, o progresso triunfante, a ciência e a técnica como ideologia, o domínio cego e a destruição da natureza, a civilização industrial e urbana como parâmetro de que se queria uma “civilização avançada”, o tempo todo desmentida em suas pretensões. Mas nem por isso é menos forte e capaz de criar um mundo à sua imagem e semelhanças. Verdade negativa, vale insistir, que se apresentou dentro e fora da Europa. Fora da Europa, verdade negativa amplamente demonstrada pelo Imperialismo e pelo Colonialismo, assim como pelas sequelas de longo prazo deixadas mundo afora. Dentro da Europa, pela ascensão dos sistemas totalitários, que levaram a “civilização avançada” a extremos de barbárie até então impensáveis. No vértice mais agudo e difícil dessa oscilação, o nazismo e o Holocausto, memória incontornável e indesculpável do pior estado de exceção. As narrativas do escritor alemão W.G. Sebald, um conjunto muito forte e configurado, se dedicam a esses temas, com uma capacidade crítica e criativa que, de fato, dão notícia da grandeza literária possível em nossa época, para lembrar aqui o comentário de Susan Sontag. Os leitores de Os emigrantes, Os anéis de Saturno, Vertigem e Austerlitz por certo não discordariam da avaliação. Também entre os escritores contemporâneos, não é descabido lembrar de Roberto Bolaño, escritor chileno muito capaz de representar estados de exceção ao modo forte e configurado. Os leitores de Nocturno de Chile, Amuleto e Estrela distante dificilmente discordariam. Muito conhecidos, o Ensaio sobre a cegueira e o Ensaio sobre a lucidez, dão notícia do modo

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alegórico de representar estados de exceção, combinando justamente ficção e ensaio, reflexão crítica e narração, em contextos imaginados pelo autor, sem referências históricas e sociais específicas e definidas, como é o caso de W.G. Sebald e Roberto Bolaño. Para estender um pouco a lista de exemplos mais próximos da representação literária de estados de exceção, é possível lembrar de Libro de Manuel e dos contos “Escuela de noche” e “Pesadilla”, todos de Julio Cortázar, situados em polos por assim dizer opostos, mais adiante comentados. Ainda um exemplo: Nadie, nada, nunca, de Juan José Saer, narrativa das mais densas e cifradas, muito capaz de ir fundo nos avessos e refrações da experiência individual e coletiva. Os exemplos apresentados, é fácil notar, carregam em si tanto a evidência das escolhas objetivas quanto o peso das afinidades eletivas, sempre menos definíveis, mas nem por isso menos importantes. Desde logo, são escritores que se deslocam e tomam distância de seus contextos nacionais de origem. Distância e deslocamento que vão de par com os temas fortes da viagem, do exílio, da memória, do trauma e do luto. Escritores que se deslocam e tomam distância de seus contextos nacionais de origem, mas que continuam escrevendo na língua materna, e que continuam sendo, caso seja necessário enfatizar, escritores que de longe percebem e pensam melhor seus países. Escapam de certos constrangimentos do nacionalismo, da pátria, do localismo estreito, do orgulho vulgar e das cores locais folclóricas, mas não se lançam no espaço fútil e estéril do “cidadão do mundo”, vale dizer, do cosmopolita vazio e, tantas vezes, pedante e presunçoso. No limite, escritores que se colocam, por escolha ou sob pressão, em uma posição que tem sempre algo de extraterritorial. Para dizer melhor, posição distanciada e deslocada, difícil e refratada, que ressalta a profunda estranheza do material configurado pela forma literária, aumentando sua potência crítica e criativa. Uma breve apresentação de cada um desses escritores dá notícia do que foi acima indicado. W.G. Sebald nasceu em Wertach im Allgäu, na Alemanha, em 1944, quase no final da Segunda Guerra. Desde 1966 foi professor de literatura na Inglaterra, primeiro em Manchester, depois, por muitos anos, em East Anglia. Viveu na Inglaterra até sua morte, em 2001, num acidente de automóvel. Roberto Bolaño nasceu em Santiago do Chile, em 1953. Em 1968 foi para o México.

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Em 1973, foi preso, no Chile, após o golpe militar. Libertado, voltou para o México, indo em 1977 para a Espanha, onde viveu até 2003, ano de sua morte. José Saramago nasceu em Portugal, na província do Ribatejo, em 1922. Viveu a maior parte de sua vida em Portugal e, já entrando na velhice, deixou seu país e foi com a mulher para Lanzarote, nas Ilhas Canárias, onde morreu. Julio Cortázar nasceu por acaso na Bélgica, em 1914, filho de pai diplomata. Desde pequeno viveu na Argentina, onde estudou Letras e foi professor em diversas cidades do interior do país. Em 1951 se mudou para Paris, vivendo como tradutor da Unesco, depois como escritor reconhecido. Viveu em Paris até sua morte e lá está enterrado, no cemitério de Montparnasse. Juan José Saer, filho de imigrantes sírios, nasceu na província Argentina de Santa Fé, região dos pampas, em 1937. A partir de 1968 passou a viver na França, onde foi professor universitário até sua morte. Sem forçar a mão, são escritores contemporâneos, das últimas décadas do século XX e começo do XXI, muito diferentes entre si, e que interessam pela variedade de modos de montar a desordem do mundo que deriva dos estados de exceção. 1 LITERATURA E ESTADOS DE EXCEÇÃO Antes de seguir, vale a pena voltar um pouco no tempo e lembrar narrativas fundamentais, que marcaram o tratamento literário do mesmo problema. A primeira referência, sem dúvida, é a obra de Franz Kafka, pioneiro na representação da vida cotidiana opaca que se altera, configurando o mundo administrado e controlado, de cima até embaixo, que se veria em seguida na história da Europa. Na obra de Kafka, O processo é exemplar no modo como cifra a força cega e impessoal que destrói a vida de um personagem comum, absolutamente comum na sua rotina de vida e de trabalho. De ponta a ponta, Joseph K. faz perguntas que nunca são respondidas. Não entende porque está sendo processado, nem sabe quem o está processando. A cena final, em que é morto como um cão na periferia da cidade que conhecia tão bem, cujos sinais pareciam para ele perfeitamente comuns e normais, é exemplo marcante de tantas outras vidas e rotinas que seriam alteradas e destruídas quando os estados de exceção, totalitários, destruíram a civilização europeia. Lido como romance

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na linha do fantástico ou do absurdo, O processo perde toda sua força crítica. Se assim fosse, no final do livro Joseph K. acordaria, digamos, de um pesadelo, e a vida comum de todo dia continuaria. Lido de outro ângulo, como o fez Theodor Adorno, o pesadelo era a própria realidade, da qual era impossível acordar. Pior, que era impossível entender. Uma segunda referência importante é A peste, de Albert Camus. Também trata de um estado de exceção, mais referido e situado que o universo de Kafka. A narrativa se passa em Argel, num momento histórico definido, com personagens também nomeados e definidos, postos em situação crítica pela chegada dos ratos e da peste. Num primeiro nível de leitura, se trataria da peste literal que já assolou antes a humanidade. Num segundo nível, peste alegórica, que aponta para a barbárie e a regressão totalitária, tendo no vértice os massacres da Segunda Guerra. Postos em situação crítica, os personagens dão respostas diferentes à pressão e ao isolamento. Escapa ao alcance desse pequeno estudo, mas vale a pena analisar esses personagens e suas respostas à crise, indicando, por exemplo, que a virtude cívica sem alarde, digna diante do desastre, pode vir de um simples funcionário público, nada heroico e bastante prosaico. No livro, fica claro que a peste existe há séculos, reaparece e pode voltar a aparecer. Indicador seguro, não de um pessimismo vago e genérico, mas de uma visão realista dos processos históricos e sociais. A mostrar, ainda uma vez, como são frágeis os limites que separam civilização e barbárie. Uma terceira referência fundamental são os livros de Primo Levi, que tratam diretamente do estado de exceção cujo vértice foi o Holocausto. São as narrativas de um sobrevivente do campo de concentração que montam uma figura forte do mais difícil dos problemas de repre­ sentação estética, sem nunca ceder passo à estetização da realidade violenta do estado de exceção. Traçam um arco completo: em A tabela periódica, a vida do químico de Turim em seu contexto comum e cotidiano, um homem pacato vivendo uma vida regular, sem qualquer traço de heroísmo; em É isso um homem?, a descida ao inferno do Lager, do campo de extermínio como forma extrema do mal. Como em todos os campos de concentração, mal absoluto, inominável, que convive com as casas bem cuidadas dos alemães, seus jardins, seus

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jantares em família, suas formas banais de viver ao lado do inferno como se estivessem em suas cidades na Alemanha, pacatos, ordeiros, metódicos, disciplinados, impessoais, como quem estivesse fazendo apenas mais um trabalho. Fique sempre frisado o alcance crítico desse contraste, dessa insólita e estranha convivência do banal e do bestial, do trivial e do terrível. Fecha o arco A trégua, livro cujo assunto é o final da guerra, a saída do campo e a volta para casa. Mostra o mundo ainda desordenado, uma incrível variedade de personagens que se encontram, que se cruzam, que conversam, que voltam à vida. Segundo o próprio Primo Levi, a do livro foi uma das épocas mais felizes de sua vida, simbolizando não a guerra e a destruição, mas a volta para casa. Ulisses voltando para casa. Para viver, amar, trabalhar, em seu ambiente familiar e rotineiro, por muitos anos ainda, até certa altura na fábrica, depois apenas como escritor. Até não suportar o peso da memória e, já na velhice, se matar. 2 W. G. SEBALD Voltando aos escritores contemporâneos, faço a seguir uma apresentação, resumida, do escritor alemão W.G. Sebald. A força crítica e criativa das narrativas de Sebald indica, sem nenhum exagero, o lugar central que ocupa na literatura do final do século XX e início do XXI, a começar por Vertigem – sensações, passando por Os emigrantes e Anéis de Saturno, até chegar a Austerlitz, seu último livro. O método de composição surpreende e fascina, pelo modo original e o longo alcance das narrativas, altamente digressivas e cifradas, que combinam biografia, memória, anotações variadas, relatos de viagem, ensaios históricos e científicos e um uso constante de imagens: fotos, filmes, desenhos, esboços e quadros. Nascido no final da Segunda Guerra, num vilarejo distante dos centros urbanos, de família católica, as primeiras cidades que Sebald conheceu foram as cidades alemãs destruídas pela guerra. Pensou que era essa a forma das cidades, imagens de uma vasta devastação. Crescendo na Alemanha do pós-guerra, ficou surpreso com a “conspiração de silêncio” que suprimia a guerra, os massacres e o envolvimento dos alemães com o nazismo. Fez sua a tarefa, extremamente difícil, de acertar as contas com esse passado, sempre sabendo dos riscos da empreitada, que podia resultar

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em fracasso. Levando mais longe a composição, Sebald também acerta as contas com a verdade negativa da própria formação do mundo moderno: a expansão colonial e imperial da Europa e seus resultados destrutivos nos países periféricos que vão sendo tomados e ocupados. Leitor atento de Walter Benjamin, assim como da Teoria Crítica, Sebald traz para suas narrativas uma visão crítica do progresso que promove regressão, da dialética de dominação que relaciona civilização e natureza, da personalidade autoritária, do antissemitismo, da vida administrada, da experiência empobrecida, da razão apenas instrumental e pragmática, colonizando não apenas a vida e o mundo das trocas mercantis, mas também dando a forma e a lógica da organização dos massacres. A relação de suas narrativas com Walter Benjamin é forte e marcada. Sebald escreve depois do desastre, depois do “aviso de incêndio” do crítico judeu-alemão, que via a proximidade do desas­tre e que por esse mesmo desastre foi destruído. Sem dúvida, memória e melancolia, luto e trauma, em narrativas que passam longe da estetização banal da violência, justo pela sutileza, precisão, delicadeza e dignidade da composição. É notável como Sebald monta o mosaico da memória através de aproximações sutis e inesperadas, em que os destinos particulares de seres humanos específicos são trazidos para o centro da cena e não se dissolvem, sem mais, na também precisa e sutil combinação de ensaios históricos e científicos, por sua vez combinados com exercícios de imaginação criadora dignos de artistas de primeira linha. Por exemplo, as digressões, as recorrências, os acasos, o diálogo com outros escritores, com a pintura, com a arquitetura, com a paisagem, com a vida nas cidades industriais, sempre vistas a partir da decadência e da ruína, jamais do ponto de vista de algum apogeu histórico do progresso e do capitalismo triunfante. Quanto ao narrador, temos a figura do viajante, que se desloca, que observa, que anota, que anda à margem, que está sempre deslocado e desconfortável nas cenas e situações. Não é difícil, nem é exagerado, perceber a proximidade, frequente, entre o narrador e o próprio Sebald, um pouco a quebrar o dogma teórico, muito marcado, que separa por inteiro vida e obra, autor e narrador. Sem esquecer que essa aproximação, de fato muito evidente, não dá conta dos processos mais elaborados de composição criados por Sebald, que vão muito além, por certo, de

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uma simples aproximação entre vida e obra, autor e narrador. Partindo dos destinos particulares, dos detalhes carregados de sentido, fazendo digressões cujo sentido a princípio o leitor não acompanha, Sebald também usa na composição de suas narrativas ensaios históricos e ensaios científicos que conferem um inegável peso de realidade a seus livros. Muito ao contrário de quem o imaginasse escritor de jogos de linguagem vazios e abstratos, combinatórias elegantes sem qualquer teor de verdade digno de nota. Não é nem de longe o caso. Porque a elaboração estética, de primeira, vai sempre fundada numa ética rigorosa. Sebald, de modo muito original, renova a tradição do romance, elaborando um narrador-viajante, sempre em movimento, deslocado e distanciado, através de monólogos dramáticos, que lembram Thomas Bernhard, e de uma prosa lírica e elegíaca, daí resultando seu estilo sutil e digressivo, que jamais aborda diretamente o assunto: a própria arquitetura do capitalismo moderno como processo que conduz à catástrofe. Depois da catástrofe, Sebald trabalha com rastros e ruínas, montando o mosaico da memória em linha com a teoria crítica e a imaginação dialética de Walter Benjamin. Na exata contramão do esquecimento, da mitologia regressiva do progresso, dos aparatos técnicos e produtivos, da larga escala monumental, do tempo e do espaço tornados homogêneos e vazios pela lógica expansiva do capitalismo ao longo da formação do mundo moderno. Sebald desconfia do canto da sereia do progresso que promove regressão, da dialética da dominação do mundo natural e humano, do fetichismo técnico e mercantil. Mais que isso, não confia nos sistemas de pensamento fechados e totalizados, sem restos e absolutos, associando esses sistemas diretamente à própria lógica da dominação e da destruição. É possível argumentar que o estilo digressivo e distanciado de Austerlitz, para ficar em apenas um exemplo, traz para a configuração literária a forma do ensaio, que trabalha justamente com restos, refugos, ruínas, com o transitório e o passageiro. Vale dizer, os particulares sensíveis da vida cotidiana montando contraste estrutural com a larga escala monumental. É no contraste da pequena escala dos particulares sensíveis da vida cotidiana com a larga escala monumental do processo histórico que se pode ler uma linha forte, carregada de sentido,

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indicando uma relação marcante com a imaginação dialética de Walter Benjamin no modo como monta imagens/conceitos que explodem o continuum cego e fechado do progresso, através de uma percepção profunda e aguda das sutilezas, dos detalhes, da variedade da experiência da vida cotidiana. Escapa, assim, da estetização da violência e da banalização do mal, com a infinita delicadeza de uma escuta incansável e paciente, enfrentando a conspiração de silêncio que desde sua juventude na Alemanha o incomodava profundamente. 3 ROBERTO BOLAÑO O escritor chileno Roberto Bolaño também desconfiava das fronteiras e limites nacionais. Não é difícil aproximar seu tipo de revolta das recusas radicais que gravitam em torno de 1968, dos impulsos contraculturais vindos da década de 1950, como também não é difícil aproximar seu anticapitalismo das revoltas românticas que vieram do século XIX e foram retomadas pelas vanguardas do começo do século XX, por exemplo, o Dadá e o Surrealismo. O Infrarrealismo, como uma espécie de Dadá à mexicana, que criou com alguns amigos, ilustra bem esse ponto. Seu tipo de recusa passava com muita ênfase, como era de se esperar, pela própria literatura, sobretudo pela poesia, porque mais que tudo Bolaño pode ser considerado poeta, apesar da sua extensa obra narrativa. Com ironia forte, sua crítica se voltou para a própria posição do escritor e do intelectual, pelos compromissos e pelas carreiras, pelas formas de se estabelecer e se conformar e ia longe na ironia contra esse mundinho estabelecido, instituído, conformado e cooptado. Era, e refiro aqui o título de um livro de poemas do próprio Bolaño, un perro romântico. Sem sombra de purismo estético, Bolaño não se incomodava em combinar e misturar estilos e tipos diferentes de cultura. Nisso, e não apenas nisso, mas também no sentido de sua recusa radical, poderia ser aproximado de Julio Cortázar. Resumindo a originalidade de Bolaño, Alan Pauls escreveu que se tratava do cruzamento eficaz de tradições que nunca tiveram muita simpatia uma pela outra: a aventureira e espontânea beatnik com a erudita e sofisticada ficção mais letrada. Vale dizer, uma espécie de combinação de Jack Kerouac e

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Jorge Luis Borges. Pode ser, mas certamente é bem mais que isso, traduzindo a posição iconoclasta do escritor chileno, que recusa a integração e não se cansa de fustigar as facilidades e futilidades que percebia. Foi assim até o final, com o longuíssimo 2666, publicado depois de sua morte. Duas narrativas de Roberto Bolaño podem ser referidas, quando se trata do assunto deste trabalho, a desordem do mundo produzida pelos estados de exceção: Noturno do Chile e Amuleto. O primeiro é, a meu ver, uma pequena obra-prima. Seu narrador é um padre conservador, ligado ao Opus Dei, crítico literário, pertencente à elite chilena e cúmplice da ditadura de Augusto Pinochet. Às vésperas de sua morte, agonizando, entre o delírio e a lucidez, o padre católico Sebastian Urritia Lacroix monta um monólogo febril, passando em revista sua vida e, através dela, todo um período da história do Chile. Padre, conservador e católico, Lacroix entra para o mundo das letras apadrinhado pelo maior crítico do país, o proprietário rural cujo pseudônimo é Farewel. De modo estranho e obscuro, é enviado pelo Opus Dei para uma missão, na aparência muito banal, que é estudar a conservação de catedrais antigas contra os dejetos dos pombos. Indo além desse primeiro nível de leitura, a peregrinação de Lacroix por sete catedrais da Europa, monta na verdade uma poderosa alegoria da violência, que em seguida se abateria sobre o Chile. É a dureza dos falcões atacando e destroçando os pombos que o padre chileno aprende a ver, alegoria de uma linha dura de católicos, militares, políticos e intelectuais que criaram o estado de exceção no Chile. Na volta ao Chile, Lacroix, já conhecido pelo pseudônimo de Padre Ibacache, se defronta com o período de crise que marca o golpe de Estado que derruba Allende e dá início à ditadura de Pinochet. É marcante o modo como Lacroix, que se percebe como um portador da civilização em terras bárbaras e atrasadas, símbolo da posição de tantos intelectuais latino-americanos, responde à crise: por contraste com a violência que ocupa a vida cotidiana, se dedica à leitura e releitura dos clássicos gregos, como refúgio “culto e civilizado”. Em um dos momentos fortes de Noturno do Chile, Padre Ibacache, insuspeito católico, membro do Opus Dei, é chamado para dar aulas de marxismo à junta militar e ao próprio Pinochet. Morto de medo, temendo

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ser associado ao inimigo, dá várias aulas sobre o materialismo histórico para os tiranos. No vértice do livro, a convivência aguda entre civilização e barbárie, a convivência estranha e sintomática entre uma pretensa normalidade da vida cultural, das letras e das artes, do espírito e do conhecimento, com as câmaras de tortura. A certa altura crucial do livro, em uma mesma casa, a de Maria Canales, uma mulher com veleidades poéticas, convivem a tertúlia e a tortura, como se esse fosse o mais natural dos mundos. Na sala de visitas, em pleno estado de exceção, o convescote literário e poético. No subsolo, a descoberta acidental de um homem sendo torturado, já que o marido da anfitriã era agente norte-americano, especialista em tortura a serviço da tirania. Um grande acerto de Noturno do Chile é a escolha do narrador, do ponto de vista do narrador, que é o da elite e que a partir dessa posição conduz o relato, o tempo todo acossado por um estranho personagem, denominado “o jovem envelhecido”, que cobra de Sebastian Urritia Lacroix seus atos, suas escolhas e seus compromissos com o poder. Há uma divisão da consciência, uma culpa constante, que atravessa o livro inteiro. Ao final, o leitor entende que “o jovem envelhecido” é o próprio Lacroix, a consciência culpada que cobra, na hora da morte, as escolhas, que poderiam ter sido outras; a vida vivida, que poderia ter sido muito diferente. Tarde demais, é claro. Narrado pelo alto, Noturno do Chile apresenta ao leitor o processo histórico e social do período, refratado e referido de viés, de modo muito eficaz, já que evita a facilidade de narrar a partir, por exemplo, de um militante da Unidade Popular, coalizão que apoiou Salvador Allende. Em surdina, pelo avesso, refratado, o processo se apresenta ao leitor com a força e a concisão, de fato, das obras-primas. Como segundo exemplo de narrativa de estados de exceção em Bolaño, cabe Amuleto, relato situado em outra ruptura radical com a vida cotidiana da cidade, suspendendo garantias e direitos pela força bruta: a ocupação da Universidade Autônoma do México em 1968. No centro do relato, conduzindo a narrativa, uma figura de mulher fora de todos os padrões convencionais: Auxilio Lacouture, que se refugia em um dos banheiros da Faculdade de Filosofia e Letras, lá ficando durante um mês inteiro. Inspirada na pintora Alcira, Auxilio

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Lacouture é uma outsider em vários sentidos, fora de toda norma burguesa, alheia a toda convenção, uma imigrante uruguaia, dissonante, lírica e delirante, que se intitula “mãe de todos os poetas”. É musa fora de esquadro, desafinando o coro dos contentes, destoando da desordem do mundo, na improvável resistência no banheiro de uma Universidade ocupada pelos militares. É também o ponto de condensação e de inflexão de toda a narrativa, que vai e volta, entrecortada, montando fragmentos da memória. E que é, bem feitas as contas, a elegia trágica da geração derrotada em 1968 em toda a América Latina. O final de Amuleto dá o tom trágico de todo o conjunto: uma geração inteira de jovens que cantam e caminham para o abismo, de peito aberto, com o coração generoso dos idealistas que não medem riscos. E mais belo se torna o trecho final do livro narrado por Auxilio Lacouture, a mãe de todos os poetas, vendo os meninos cantando e caminhando para o abismo, sem nada a ser feito. Ao modo de uma homenagem, e com respeito, cito o final do livro: Assim, pois, os rapazes cruzaram o vale e despencaram no abismo. Um trânsito breve. E seu canto fantasma ou o eco do seu canto fantasma, que é como dizer o eco do nada, seguia marchando ao mesmo passo que eles, que era o passo do destemor e da generosidade, em meus ouvidos. Uma canção apenas audível, um canto de guerra e de amor, porque os meninos sem dúvida se dirigiam para a guerra, mas faziam isso recordando as atitudes teatrais e soberanas do amor. Mas que classe de amor eles puderam conhecer?, pensei quando o vale ficou vazio e só seu canto seguia ressoando em meus ouvidos. O amor a seus pais, o amor, o amor a seus cães e a seus gatos, o amor a seus brinquedos, mas sobretudo o amor que tiveram entre eles, o desejo e o prazer. E embora o canto que escutei falasse da guerra, das façanhas heroicas de uma geração inteira de jovens latino-americanos sacrificados, eu soube que acima de tudo falava do destemor e dos espelhos, do desejo e do prazer. E esse canto é nosso amuleto (BOLAÑO, 2008, p. 131).

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4 JOSÉ SARAMAGO No conjunto da obra de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira e Ensaio sobre a lucidez apresentam ao leitor exercícios literários que combinam relato e reflexão, criando situações e contextos largamente imaginados, distantes de referências históricas situadas e precisas. Para tratar, justamente, de estados de exceção, o escritor português constrói situações de crise extrema, que alteram a vida cotidiana da cidade e provocam rupturas radicais no contrato social. Embora situados em contextos genéricos e imaginados, os dois ensaios têm uma clara intenção crítica ao combinar relato e reflexão. Desde logo, o que se lê, se percebe e se pensa a partir das narrativas é matéria crítica e imaginativa que gravita sempre em torno do problema do contrato social, da vida coletiva, do modo como a apenas aparente normalidade da produção e reprodução da vida de todo dia pode ser rompida. De certo modo, são ensaios de um escritor racionalista, cético, herdeiro da tradição francesa que passa por Voltaire, mas também, não é ocioso acrescentar, são ensaios de um escritor de esquerda em uma época de derrota e desencanto. Basta aqui marcar a distância que separa esses dois livros de Levantado do chão, muito anterior, ainda ligado ao Neorrealismo e às lutas dos camponeses. No Ensaio sobre a cegueira, o que cabe desde logo indicar é o recurso à alegoria como elemento forte da composição da narrativa, já que a cegueira que de súbito acomete os habitantes de uma cidade moderna qualquer não é biológica, não é do campo das doenças físicas. Tem outro sentido, de todo alegórico, que arma a narrativa a partir da cena em que o médico não reconhece na cegueira nenhuma doença conhecida. É uma “cegueira branca”, que precisa ser pensada, caso se queira entender o sentido do Ensaio sobre a cegueira. A composição do Ensaio parte do contraponto entre a vida comum e cotidiana, de gente também muito comum, no espaço que poderia ser o de qualquer cidade moderna, já que não há referências históricas que situem o contexto da narrativa e a súbita entrada em cena da cegueira altera a vida de todos os personagens. Mais adiante, quando a cegueira ganha dimensões de epidemia, o problema põe em movimento o aparato do Estado, que precisa lidar com a emergência. E lida, justamente, pela via típica de um estado de exceção: os cidadãos cegos são confinados,

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vigiados, mantidos fora da vida da cidade. Aqui, sem dúvida o modelo é o campo de confinamento, típico do século XX, em vários momentos de crise aguda. Confinados e vigiados, presos e segregados, os cidadãos cegos experimentam uma espécie de regressão à barbárie, reduzidos quase que a uma horda primitiva, o que se pode entender como um avesso bem negativo do mal-estar na civilização, como se lê em Freud. Rompido o contrato social e as garantias básicas da vida civil, os cidadãos cegos – indefesos, isolados, vigiados e punidos pela polícia – são submetidos à degradação, à sujeira, à fome, ao abuso, quando um grupo de cegos, pela via da força bruta, controla a comida e o sexo. Regressão que pode ser lida como uma forma de descida ao inferno, em pleno contexto de uma cidade moderna, que não é jamais precisada e identificada, mas tem como referência, inescapável, os extremos negativos do século XX, o breve século que combinou as mais altas esperanças – científicas, tecnológicas, políticas, culturais – com as piores formas de regressão totalitária, para lembrar Eric Hobsbawn. Para a condução da narrativa, é central a posição da mulher do médico, único personagem que não cega, a quem cabe guiar e conduzir os que cegaram. Perguntada sobre o estranho privilégio de não ter cegado, em trecho marcante do livro, ela responde que não cegou para “testemunhar o inominável”. O passo seguinte do Ensaio sobre a cegueira é a volta à cidade, ficando para trás o campo de confinamento. Mas não se trata de um movimento de ascese e redenção, ao modo idealista, resolvendo a crise pelo caminho fácil do final feliz. Os cidadãos cegos passam então por várias praças e por uma igreja, cenas cujo sentido é central para o entendimento crítico do Ensaio. A praça onde se vendem milagres de todo tipo, a lembrar o bazar místico e de autoajuda de nossa época, mas não apenas dela. A praça onde se vendem falsas promessas de felicidade, ligadas ao progresso, à técnica, às maravilhas da vida integrada às trocas mercantis. A igreja com as estátuas de olhos vendados, pondo em pânico os fiéis, que de repente se percebem sem o amparo, ilusório mas necessário, da religião, problema de fundo também analisado por Freud. Passam também, em cenas muito sutis e delicadas, por lugares marcados pela memória humana. A moça prostituta deixa uma mecha de cabelo na porta da casa dos pais para que a reconheçam, caso

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ainda estejam vivos e voltem para casa. Um escritor cego continua a escrever, compondo um estranho palimpsesto, sua maneira de resistir à regressão e manter viva a força da civilização e da cultura. No espaço protegido de uma casa limpa e clara, a mulher do médico lê para os cegos, marcando um vivo contraste com o confinamento e a degradação a que foram submetidos. É possível perceber, ao longo de todo o Ensaio sobre a cegueira, uma espécie constante de oscilação dialética, gestos e cenas humanos em meio à desumanidade do processo. Oscilação, parece-me, boa para se entender o movimento geral. Ainda aqui, a força dos detalhes significativos, dos particulares sensíveis, versus a força cega do aparato do Estado e seus mecanismos de controle e repressão. No final do livro, os cegos voltam a enxergar a cidade, que lá está, bem diante de seus olhos, mas de um modo muito peculiar e refletido, que o narrador indica: “cegos estavam e cegos continuaram”. Qual o sentido dessa cegueira que não termina quando os olhos voltam a enxergar? Entra aqui, é certo, o sentido principal do recurso à alegoria no Ensaio sobre a cegueira. Alegoria que pode ser entendida como crítica à época em que vivemos, cega diante da necessidade de pensar a polis em profundidade e refazer o contrato social marcado pela injustiça e pela violência. Por extensão, cega diante da profusão de sinais sociais à solta, literais e virtuais, regidos o tempo todo pela lógica do fetiche da mercadoria. Não seria descabido ainda lembrar, lógica de coisas conversando com outras coisas, num mundo que os humanos não reconhecem como seu, no qual se sentem pouco à vontade. Pode ser isso, mas também caberia, quem sabe, a seguinte crítica: o recurso à alegoria generaliza demais a narrativa do Ensaio, perdendo de vista a força específica e contraditória dos processos sociais e históricos. Se assim for, enfraquece a própria crítica, generalizada, de fundo moralista, mas incapaz de dar conta da complexidade do processo em curso. Problema que se torna mais claro quando se contrasta, por exemplo, os ensaios de Saramago e as narrativas de Sebald, mais complexas e elaboradas, por esse motivo muito mais capazes de dar conta da densidade e da dificuldade da matéria social e histórica configurada pela forma literária. O Ensaio sobre a lucidez também combina relato e reflexão, tendo no vértice o problema do contrato social e da vida coletiva. Ao contrário do Ensaio sobre a cegueira, não faz uso da alegoria como princípio

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forte de construção da narrativa. Mas também simula, para seus propósitos, uma situação de crise na vida comum e cotidiana: certo dia, em mais uma eleição, a maior parte dos cidadãos, sem combinação prévia de qualquer tipo, vota em branco. Apenas isto: uma esmagadora maioria de eleitores saturados dos simulacros da política formal vota em branco. É esse o ponto de partida e de inflexão do livro. Não há nada de ilegal ou de subversivo no voto branco, pois se trata de uma escolha elementar da vida social democrática e do contrato social dos estados modernos em que há eleições. Se quase oitenta por cento dos eleitores votam em branco, está criado um impasse. Dentro das regras do jogo, mas um impasse. No mínimo, matéria para reflexão. A reação do aparato do Estado, no entanto, indica uma percepção completamente diversa da situação. É como se um jogo de cartas marcadas, cheio de fundos falsos, de repente viesse à tona. O que se lê, na sequência do Ensaio sobre a lucidez, é uma resposta agressiva. Em nossa época, estamos acostumados, todos os dias, a associar terrorismo a pequenos grupos extremistas, desta ou daquela posição política e religiosa, com uma força real muitas vezes menor que a que os Estados lhes atribuem. A resposta que se lê no livro de Saramago é de tipo bem diverso: é uma reação terrorista, mas de terrorismo do próprio Estado, que não aceita a formação de uma ampla maioria negativa. Não aceita e abandona a cidade, imaginando que se instalaria o caos na vida cotidiana. Manobra com alvo certo: instalado o caos na vida cotidiana, os cidadãos, arrependidos, pediriam a volta de seus senhores e protetores, para estabelecer de novo a ordem. Bem ao contrário, a vida de todo dia segue, não há ondas de saques, de estupros, de incêndios e outras barbaridades, e os cidadãos se mostram capazes de organizar o essencial para que a vida coletiva continue, sem maiores atropelos. É uma primeira reflexão a ser pensada com cuidado: o mito do Estado onipotente, onipresente, provedor e protetor, indispensável, faz logo água, mostrando que outras formas de vida e de organização da sociedade são possíveis. Vale dizer, formas solidárias e democráticas de associação coletiva, contratos sociais de tipo horizontal, não as hierarquias fossilizadas e falsas dos simulacros de democracia que se conhecem até a saturação. Por certo que o aparato do Estado terrorista tenta sempre e o tempo todo associar os movimentos que o ameaçam à anarquia, como

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sinônimo exato de bagunça, baderna, confusão e desordem. No entanto, é interessante notar, um princípio fundamental e positivo do pensamento anarquista é justamente o contrário disso: as organizações horizontais, solidárias, sem hierarquias, sem Estado onipotente, a partir de baixo, justo na vida mais comum e cotidiana. Claro que esse possível histórico e social precisa ser o tempo todo minado e combatido, porque desmonta o mito do Estado e todo o aparato burocrático, político e militar que o sustenta. No caso do Ensaio sobre a lucidez, não será diferente. Toda a tensão da narrativa se concentra nesse contraponto forte, anteriormente indicado, criando um hiato radical de representação política. Não havendo inimigos, é preciso criar um para justificar a repressão e a necessidade do Estado forte. A lógica do terrorismo de Estado, é claro, segue este caminho: inventa uma conspiração, um grupo organizado que, como todo grupo político organizado, precisa ter um líder bem identificado. Não há tal grupo, nem tal líder, mas as forças da polícia política se encarregam da tarefa. Unindo as pontas de seus dois ensaios, o da cegueira e o da lucidez, Saramago coloca justamente a mulher do médico, a mesma que não cegara no livro anterior, como protagonista. Sem o recurso à alegoria, já que voto em branco, ao contrário de cegueira branca, tem fundamento real, a mulher do médico é apenas uma cidadã comum vivendo sua vida. Não tem nada a ver com qualquer trama ou conspiração. Posta no ângulo agudo do estado de exceção, ela é espionada, investigada, delatada, perseguida e acossada. A cena final do livro, lírica e difícil, dá mais uma volta no parafuso do ceticismo de Saramago. Um agente da polícia política do Estado, com arma de precisão e longo alcance, mata a mulher do médico, ao mesmo tempo em que um pássaro se assusta e levanta voo. Símbolo e síntese de todo o Ensaio, seca e direta, a cena é um contraponto difícil a uma possível mudança coletiva na vida social, marcando, pela força direta do assassinato político, o poder do Estado e sua capacidade de se perpetuar. Por certo um final cético e desencantado. A seu modo, realista. Na contramão da época em que vivemos, onde se vê Estados fortes e hegemônicos recorrendo à existência de grupos terroristas, ampliando largamente sua existência e alcance, quando não francamente forjando tais grupos de opositores, plantando

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no imaginário de massa as bases para consensos forjados cujos resultados são bem conhecidos: a invasão arbitrária, a destruição, a guerra civil, o massacre, levados aos países que precisam ser trazidos de volta para o mundo “livre” e “democrático”. Atualiza a novilingua que já se usava no 1984, de George Orwell, onde as palavras significam sempre algo muito diferente do que parecem significar. Assim como dá razão aos argumentos críticos de Avram Noam Chomsky, crítico rigoroso dos consensos sociais fabricados e manipulados. Inventado o inimigo, os meios justificam os fins. E o massacre da população civil se justifica. No extremo maniqueísta do problema, afinal, se o Bem está combatendo o Mal, todos os desastres e horrores da guerra são válidos. 5 JULIO CORTÁZAR No conjunto da obra de Cortázar, o Libro de Manuel ocupa um lugar difícil. Sem exagero, é possível dizer que nessa narrativa o escritor argentino fez uma aposta de alto risco, com plena consciência do que fazia e das reações que poderia desencadear. Ao contrário do escritor famoso que apenas administra sua obra e seu patrimônio, o valor do seu nome já firmado e consolidado, na década de 1970, em meio ao estado de exceção duríssimo criado pela ditadura militar Argentina, Cortázar se arrisca escrevendo e publicando o Libro de Manuel. De fato, as críticas vieram, várias vezes muito duras, algumas vezes de uma flagrante injustiça. E vieram de dois ângulos muito definidos. Numa ponta, os admiradores de Cortázar como grande escritor ligado ao fantástico, à construção da estranheza a partir da mais comum vida cotidiana, linha de força que teria sido desperdiçada pela intenção de narrar e participar diretamente de um estado de exceção, da resistência armada ao regime. Na outra ponta, críticos muito politizados, de esquerda, que consideraram o livro um lamentável equívoco, até certo ponto um exercício fútil, incapaz de dar conta da dureza do processo em curso na Argentina, a secura do estado de exceção, a realidade da própria ditadura militar e dos grupos armados. É como se fossem, essas duas linhas fortes, inconciliáveis, sobretudo no tratamento de um estado radical

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de exceção. O que criaria um problema quase insolúvel na própria estrutura da narrativa, tentando combinar princípios de construção incompatíveis, como que se desautorizando mutuamente. Em resumo, como se Cortázar lançasse Rayuela, seu Jogo da Amarelinha, com todas as suas inquietações e experimentações, no contexto rea­ lista da ditadura e da luta armada. Logo na abertura do livro, Cortázar mostra como se dá conta do problema, nos seguintes termos: Por razones obvias habré sido el primero em descobrir que este libro no solamente no parece lo que quiere ser sino que con frecuencia parece lo que no quiere, y asi los propugnadores de la realidad en literatura lo van a encontrar más bien fantástico, mientras que los encaramados en la literatura de ficción deplorarán su deliberado contubernio con la historia de nuestros dias... (CORTÁZAR, 1973, p. 5).

O destinatário do polêmico livro é um bebê, para quem um grupo de militantes latino-americanos exilados em Paris monta uma espécie de álbum para o futuro. Nele se pode ler, desde logo, a esperança de um vir a ser, de um mundo diferente daquele, regido pela violência. Fiel a si mesmo e a seus empenhos, Cortázar tenta fazer a ponte entre as duas principais linhas de força de sua vida e de sua trajetória como escritor. De um lado, a herança da revolta romântica, que remonta a Rimbaud e ao lema il faut changer la vie. De outro, a herança revolucionária, cuja referência é Marx e “a necessidade de mudar o mundo”. A tradição da revolta romântica remete mesmo a Rimbaud, e não apenas a ele, passando depois pelas vanguardas do começo do século XX, chegando com força ao Maio de 1968 na França, a Paris, onde Cortázar viveu até sua morte. O espírito libertário e antidogmático dessa tradição encontra no escritor argentino um representante dos mais lúcidos e dotados, o que se pode ler em muitos momentos de sua obra. No vértice da posição está uma ideia radical de liberdade, associada a um inconformismo em sentido forte, que não se acomoda ao existente e não aceita compromissos e comissões, a pretexto de pragmatismo. Aqui, é possível lembrar Walter Benjamin, quando percebeu no Surrealismo “o último instantâneo da inteligência europeia”, porque

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apresentava uma “ideia radical de liberdade”. Valha o exemplo do Surrealismo para lembrar como nunca foi simples a aproximação entre revolta romântica e revolução organizada. Ao tentar aproximar sua estética da política da época, essa vanguarda bateu de frente com o dogmatismo stalinista. O Libro de Manuel, eis a hipótese, ensaia e aposta na aproximação justamente entre a herança das revoltas românticas e a organização revolucionária da luta política, no contexto mais que difícil de um estado de exceção. Não era, sem dúvida, uma aposta pequena. Mas é evidente que, para Cortázar, era a aposta fundamental: a Revolução, para ser bem-sucedida, não poderia se enrijecer, perder seu impulso radical de mudança, fechando-se em posições duras e dogmáticas, mas precisaria sempre do impulso libertário, da afirmação constante de uma ideia e uma prática inseparáveis da liberdade. Pode-se perceber, talvez e desde logo, o que há de idealismo romântico na posição quando se faz apenas uma breve e objetiva consideração sobre o mundo moderno e a história do século XX. Mas não se deve nunca esquecer que foram os recuos autoritários e contrarrevolucionários que jogaram na lata de lixo da história as cem flores que poderiam ter brotado e mudado a história do mundo. Quando se dizia “matem os sonhos, sejam realistas”, faltava sempre acrescentar: bem-vindos ao vosso velho modelo, o pesadelo. Na fortuna crítica de Cortázar, é comum encontrar quem o considere um contista de primeira linha, mas um romancista de menor envergadura. Libro de Manuel seria Rayuela, “o jogo da amarelinha” trazido diretamente para a luta armada no contexto de um estado de exceção. E seria um experimento falhado, apesar de suas ótimas intenções. O escritor argentino gostava dos livros-montagem, dos livros-almanaque, bastando lembrar aqui a inusitada combinação de materiais que se leem nos volumes de Ultimo round e La vuelta al dia en ochenta mundos. Livros que se leem e releem com muito prazer e admiração, dada a liberdade e a variedade da combinação de materiais. O problema crítico, no entanto, é a representação literária de um estado de exceção. Sem levar adiante o debate, que tomaria muito tempo e escaparia dos limites deste pequeno estudo, há na obra de Cortázar dois exemplos bons, e não apenas dois, de como representar estados de exceção fazendo uso da forma breve e concisa do conto:

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“Pesadilla” e “Escuela de noche”. De fato, a leitura desses contos parece dar razão aos críticos do Libro de Manuel. Em poucas páginas, muito cifradas e carregadas de sentido, sem se alongar e sem se explicar, Cortázar dá forma ao mais íntimo dos estados de exceção, por meio de um efeito estético poderoso, que pega o leitor de surpresa e deixa um largo campo para imaginação de tudo que cerca o medo, a violência, a covardia, a crueldade humana, percebida do ângulo mais íntimo e sutil da vida cotidiana. O pesadelo a que alude o primeiro conto, na aparência o estado de coma de uma mulher jovem, é de fato o pesadelo da história que invade a casa da família a golpes de bota e de fuzis, enquanto lá fora se ouvem tiros e gritos. A visita que os meninos fazem à escola, de noite, na aparência uma peraltice sem consequências, vai longe e fundo, de modo premonitório, no ovo da serpente que já rondava a Argentina, muito antes do golpe militar e dos massacres que começam na década de 1970. Sem o compromisso de se explicar, de se alongar, de se justificar, que se percebe no Libro de Manuel, apesar de seus acertos, os dois contos acertam no alvo com incrível precisão. 6 JUAN JOSÉ SAER Para Ricardo Piglia, Juan José Saer é o maior escritor argentino contemporâneo. Para acrescentar em seguida, escapando da armadilha nacionalista, regionalista e localista, escritor de primeira linha, que pode ser situado, com justiça, no nível de escritores europeus como Thomas Bernhard e W.G. Sebald. O leitor de Saer não tem motivos para discordar da avaliação de Piglia. De fato, trata-se de um escritor de primeira linha. Filho de imigrantes sírios, Saer nasceu em Santa Fé, no meio dos pampas, às margens do Rio Paraná, no armazém do pai, em junho de 1937. Radicou-se na França, onde foi professor universitário por muitos anos, até sua morte, em Paris. Escreveu sempre em espanhol, vivendo os contrastes e confrontos do artista que muda de país e de continente, sem nunca perder de vista o lugar de onde veio. Fique, como exemplo saliente, o peso que tem a vastidão dos pampas em suas narrativas, configurando um modo denso e cerrado de narrar, fazendo da paisagem, da vastidão e da geografia extensa e plana

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personagens importantes, contribuindo muito para a estranheza, a densidade e a opacidade que se leem em seus relatos. Não é diferente no romance que comento a seguir, de interesse a este pequeno estudo. Em Nadie, nada, nunca a vastidão e a presença opressiva dos pampas montam um efeito estético poderoso, associado à espera, ao medo, ao misterioso assassinato de cavalos, no contexto de uma ditadura militar que em nenhum ponto da narrativa é abordada diretamente. Bem ao contrário, a presença opressiva da repressão está cifrada e, por assim dizer, escondida nos níveis mais evidentes dos personagens e situações da narrativa. No posfácio da edição brasileira, Bernardo Carvalho nota que, em Saer, a força dos pampas é centrípeta, uma espécie de limbo, onde o calor e a gravidade subjugam os corpos e os jogam para dentro da natureza. É assim, mas cabe acrescentar que geografia não é destino, interessando muito pensar a relação entre geografia física, sociedade e história. Na obra de Saer, um bom exemplo é El rio sin orillas, cujo assunto é justamente a civilização que se forma às margens do Rio da Prata e se estende pelos pampas em linha reta, tendo como vértice a cidade de Buenos Aires. Desde os primórdios da colonização até o presente, uma formação geográfica, social, histórica e cultural muito marcada, que inclui o Uruguai, marcando uma região cultural, uma espécie de comarca, que vai além das fronteiras nacionais. É certo que essa posição tem peso na obra de Juan José Saer. Mas também é certo que o escritor argentino radicado em Paris evitou, com toda a ênfase, ser absorvido por qualquer clichê que o vinculasse a uma ideia estreita do que deveria ser uma típica literatura argentina. Indo além, refutou a ideia de uma literatura latino-americana como conceito unificado, que desse conta da variedade de regiões e situações dos diversos países do nosso Continente. Evitava, assim, ser fixado e reduzido a algum tipo de cor local, de lugar comum turístico, de visão idealizada da nossa realidade, mesmo quando lugar comum mais ou menos culto, para consumo de letrados daqui, da Europa e dos Estados Unidos. Seu projeto estético foi muito além dessas determinações limitadoras. Levando longe o alcance de suas indagações, o projeto estético de Saer deriva sua força do modo como enfrenta o próprio problema da representação, os limites e impasses que se apre-

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sentam para o escritor ao tentar dar forma à realidade. Ou seja, problema com o qual todos os escritores de talento se defrontam, sejam daqui ou de qualquer outro país. Na verdade, precisam se confrontar, ao preço de caírem na diluição, na abordagem ingênua dos assuntos e materiais abordados, na redução a priori do alcance de sua literatura, como forma crítica e criativa. Daí que não seja exagerada a aproximação de Saer a escritores do porte de Sebald e Bernhard. Também para o escritor argentino a distância e o deslocamento foram partes importantes de um projeto estético, inseparável, por sua vez, de um projeto crítico. Desse ângulo, o problema mais constante foi evitar a evidência do material histórico e social, pela escolha de modos muito mediados e elaborados para tratar do peso da história e da vida política. Em Nadie, nada, nunca isso pode ser percebido com clareza: o estranho assassinato dos cavalos, o clima opressivo da narrativa, quase de romance policial, a espera angustiada, a noite em que o carro dos sequestradores chega ao Paraná, são modos muito fortes e mediados de dar forma ao clima opressivo de um estado de exceção. Assim considerado, o problema crítico passa pelo uso da alegoria no relato, pois não é difícil perceber que o assassinato dos cavalos, de forma cruel e sangrenta, impiedosa e seca, não é apenas literal, remetendo mais longe e mais fundo, ao próprio clima de massacre e perseguição, esse sim situado no plano da vida social e histórica da desordem do mundo criada pelo estado de exceção. Nesse passo da análise, cabe considerar que, ao tratar desse tipo de problema, há uma divergência de fundo, que merece consideração. Para alguns críticos, de pendor universalista, Nadie, nada, nunca é um comentário filosófico, de tipo existencialista, acerca do mal-estar no mundo, um desconforto profundo, absorvido e ampliado pela força da paisagem, da natureza física, levando a uma espécie de consideração metafísica. É um ângulo de leitura que o livro de Saer pode sugerir e sustentar. Mas também é possível pensar o contexto muito preciso em que se situa a narrativa, a força e a violência do que se passa, dando a forma e o sentido da alegoria que se lê. Por essa via, mais que a representação de tipo trágico da existência humana emparedada e limitada, o livro de Saer cifra e dá forma à violência histórica e social. De modo muito acertado, porque evita sempre o tratamento direito da matéria

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histórica e social, daí resultando uma potência crítica e criadora de longo alcance. Para levar um pouco adiante a análise, há interesse em contrastar o modo de narrar de Juan José Saer em Nadie, nada, nunca e o de Julio Cortázar em Libro de Manuel. No plano mais imediato da biografia, ambos foram escritores argentinos que se radicaram na França, não por motivos de perseguição política, mas por escolha pessoal, mantida até o final da vida. Saer e Cortázar nunca se integraram, de modo conformista, à França e a Paris, como se tivessem aportado, deslumbrados, à própria civilização. Tiveram sempre muita consciência de sua posição como escritores estrangeiros vivendo na França, percebendo muito bem as ilusões e armadilhas colocadas por essa posição, deslocada e distanciada, compondo um campo de força que atravessa suas vidas e suas obras. No que diz respeito à relação entre estética e política, há uma divergência de fundo. Para Saer, o modo direto e explícito como Cortázar trouxe seus empenhos políticos para a forma mesma de sua literatura era um equívoco, um modo fraco de lidar com a densidade do material, prejudicando a força da configuração estética das narrativas, como, por exemplo, no Libro de Manuel. Vale acrescentar que Saer também estava situado no campo crítico da esquerda, embora numa posição diferente da defendida por Cortázar. Em resumo, o que estava em jogo era mesmo um problema crítico forte e difícil: a própria representação da realidade de estados de exceção, de alterações radicais na vida cotidiana. Divergência que não se confunde com uma crítica vinda do campo conservador, que considera a forma estética uma espécie de castelo da pureza, que precisa ser defendido, a todo custo, da sujeira do mundo e das impurezas do branco. O que equivale a ter uma visão elitista, fechada e estetizante da arte e da literatura. Alguns críticos de Cortázar, que não gostaram do Libro de Manuel, podem ser situados nessa posição. Não é, em nenhum nível, o caso de Saer, que considerava Cortázar um contista de primeira linha, mas não um bom romancista. Analisando a obra de Saer, Beatriz Sarlo nota que suas obras dialogam entre si, havendo uma constante recorrência de situações e de personagens, montando um cenário que permitiria uma leitura de conjunto das narrativas. É o caso, para ficar no exemplo que aqui

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mais interessa, da noite em que o carro dos sequestradores chega à costa do Paraná, que se lê em Nadie, nada, nunca, de 1980, mas que também se lê em Glosa e a pesquisa, de 1994. Aproveitando mais uma indicação crítica de Beatriz Sarlo, é notável como a poesia está presente nas narrativas de Saer. Não ao modo de um lirismo estetizante, efeitista e fácil, mas como princípio de construção. A leitura em voz alta de trechos de Nadie, nada, nunca torna bem perceptível essa força lírica, concentrada e bem resolvida. Para concluir, também é interessante a aproximação que Sarlo faz entre Saer e Musil, no que diz respeito à construção de diálogos, que se passam entre a consideração séria do irrelevante e a perspectiva irônica sobre o que se intui verdadeiramente sério. CONSIDERAÇÕES FINAIS O resumo crítico que se acaba de ler tratou do problema crítico da representação estética dos estados de exceção. Quando o artista, no caso escritores, acerta o tom, passa longe da estetização da violência e consegue, como que andando na corda bamba, narrar o inenarrável, representar o irrepresentável, dando forma sensível e inteligível à matéria densa e difícil de que são feitos os estados de exceção. E o faz partindo da vida cotidiana, dos detalhes significativos, dos particulares sensíveis, mesmo quando combinados com os ângulos mais amplos do processo histórico e social. Ao modo dialético, o olhar atento para os particulares sensíveis traz à tona a verdade negativa do todo, que é falso, assim como o tratamento mais amplo do processo histórico e social não se desliga nem se desvincula dos mesmos particulares sensíveis. É possível dizer que os escritores de que tratou este pequeno estudo, em graus diferentes, acertaram o tom ético e estético na abordagem dos estados de exceção. A diferença de grau, é certo, importa, porque algumas narrativas, como as de Sebald e Bolaño, atingem um nível complexo de configuração literária, enquanto outras narrativas, como as de Saramago, embora não desafinem, ficam num estágio de menor complexidade no processo de configuração dos estados de exceção. Também pode haver diferenças de grau na obra de um mesmo escritor. É o caso de Julio Cortázar, romancista e contista, abordado nas páginas anteriores, dando notícia

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de uma controvérsia que tem peso e interessa. No extremo oposto, ficam as narrativas que não acertam o tom, estetizam a violência, banalizam o mal e tornam desfrutável o sofrimento humano que acompanha todos os estados de exceção, todas as rupturas radicais com a vida comum e cotidiana, todas as oscilações violentas entre civilização e barbárie. É assunto para outro estudo.

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ESCUTA, ARTE E SOCIEDADE A PARTIR DO Mร SICO ENFURECIDO Daniel Belquer

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Este artigo levanta alguns tópicos oriundos de campos distintos, mas que se relacionam por trazerem como epicentro a questão da sonoridade, da escuta. Com a premissa de que a escuta é muito desfavorecida em nossa cultura eminentemente visual, busca-se “trazer à luz” uma série de estudos e pensamentos que fazem parte de correntes que não só tratam do tema em si, mas que possuem um tipo distinto de raciocínio mais conduzido pela auralidade. Palavras-chave: auralidade, escuta, artes, visualidade, sociedade This article raises some issues emerging from distinct fields but that relate to each other by having the issue of sound/listening at the heart of the analysis. Starting with the premise that listening is very much out of favor in our exceedingly visual culture, it seeks to “shed light” on a series of studies and lines of thought that not only deal with the subject but have a distinct line of reasoning guided more strongly by aurality. Keywords: aurality, listening, arts, visuality, society

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INTRODUÇÃO A escuta está impregnada de ordenações sociais. O processo de recepção do som, sua filtragem e decodificação, relaciona-se diretamente com os mecanismos construídos dentro de um contexto humano onde o indivíduo se insere. Mas o que é som? Pela física, som é o resultado de complexos padrões de choque entre moléculas que são captados pelos ouvidos. Essa definição, no entanto, não vai ser levada adiante aqui, uma vez que não leva em conta a interação sonora humana, o processo de recepção em sua fenomenologia. Pode-se entender o som como uma conexão entre a vibração das moléculas e a percepção. Então, para efeito deste estudo, som é o resultado da percepção auditiva, seja ela feita exclusivamente pelo ouvido ou pelo corpo por meio da sensação tátil (principalmente no caso das frequências graves). Numa cultura em que se debate frequentemente a inundação de imagens cada vez mais predominante, sentimo-nos atraídos a questionar o papel do som dentro desse universo imagético. Por que, apesar de falarmos em cultura audiovisual, a primeira parte do termo é tão minoritariamente abordada? Essa questão encontra raízes culturais e históricas complexas, que nos conduzem a uma pergunta mais abrangente: quais as causas da predominância da visualidade em nossa cultura? Ihde (2007) aponta que o caráter de prevalência da visão com relação aos demais sentidos remonta à nossa herança da civilização grega. Citando Heidegger, nos explica que “o pensamento grego emerge do processo de se permitir que o Ser ‘se revele’ como o ‘brilho’ da physis, da ‘manifestação’ do Ser como uma ‘clareza’, tudo evocando a visão vibrante do Ser”. (HEIDEGGER apud IHDE, 2007, p. 6). Ou seja, as metáforas linguísticas que aludem à própria existência nos remetem ao universo visual. Ihde também apresenta o pensamento de ThassThienemann que, pela análise da etimologia grega, mostra que o verbo eidomai combina os sentidos de “ver” e “saber” com “aparecer” e “reluzir”, portanto, o grego “sabe” o que “viu”. Até o verbo grego que significa “viver” é sinônimo de “observar a luz”. Também Aristóteles diz textualmente que “a visão é a principal fonte de conhecimento” (ARISTÓTELES apud IHDE, 2007, p. 7).

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Mas não é preciso nos afastar tanto para notar as correspondências entre a língua e a visualidade. “Esclarecer”, “olhar por outro ângulo”, “veja bem”, “olha só”, “no meu ponto de vista”, “no meu modo de ver”, “dar perspectiva”, “abrir o olho”, “visivelmente”, “dar foco”, “não perder de vista” e inúmeras outras expressões mostram, inequivocamente, como o olhar está presente em nossa “visão de mundo”. É interessante notar como esse sentido está ligado a metáforas que dizem respeito ao conceito de verdade e ao próprio conhecimento. Pedir que uma pessoa “esclareça” alguma coisa, quer dizer que se espera dela algo para dirimir questões pendentes, aproximando mais o interlocutor do que seria uma versão mais “real” do fato. Por outro lado “ouvir dizer” nos remete a uma versão não muito confiável do fato. A expressão em português “dar à luz”, significa entregar o indivíduo para onde a vida acontece, ou seja, para a “claridade” do mundo. Além disso, a cultura da oralidade está ligada a uma noção ancestral, “primitiva”, enquanto a noção de modernidade está fortemente associada às imagens; pensamos o mundo atual como um mundo da visão. McLuhan, ao discutir as novas mídias que, na década de 1960 do século passado, estavam apenas surgindo, encontra também metáforas que relacionam a visualidade à linguagem: “Nós empregamos metáforas espaciais e visuais para inúmeras expressões cotidianas. (...) Nós somos tão apoiados na visão que chamamos nossos homens mais sábios de visionários ou videntes!1 (McLUHAN, 2003, p. 117). Apesar de concordar com o entranhamento da visualidade na linguagem, Jonathan Sterne contesta a concepção de Modernidade associada ao deslocamento de uma cultura da audição, “primitiva” ou originária, para uma cultura da visão, racionalista e tecnológica: Não há dúvida de que a literatura filosófica do Iluminismo – assim como a linguagem cotidiana de muitas pessoas – é amparada pela luz e por metáforas visuais de verdade e entendimento. Mas, mesmo a visão sendo de algumas maneiras o sentido privilegiado no discurso filosófico europeu desde o Iluminismo, é falacioso pensar que a visão sozinha ou em sua suposta diferença com a escuta explica a modernidade2 (STERNE, 2003, p. 3). 1 2

Os grifos são do autor.   Todas as traduções são minhas.

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O Iluminismo pode ter sido um grande catalisador da visualidade para o pensamento ocidental, o próprio nome do movimento apoiando-se em uma metáfora visual, mas, conforme expusemos, podemos notar a força da cultura visual mesmo na Grécia Antiga e, provavelmente, isso influenciou os pensadores iluministas, interessados como eram pela cultura clássica. De qualquer modo, a partir do Iluminismo, o som começou a ser objeto de análise de forma mais sistematizada: Durante o Iluminismo e depois, o sentido da audição tornou-se um objeto de contemplação. Passou a ser medido, objetificado, isolado, e simulado. (...) O som foi mercantilizado; tornou-se algo que pode ser vendido e comprado. Esses fatos problematizam o clichê de que a ciência moderna e a racionalidade foram frutos da cultura visual e do pensamento visual. Eles nos obrigam a repensar exatamente o que queremos dizer com “privilégio da visão e das imagens”. Tomar seriamente o papel do som e da audição na vida moderna é problematizar a definição visualista de modernidade (STERNE, 2003, p. 3).

No entanto, mesmo uma vez reconhecida a importância da escuta na formação da racionalidade e do conhecimento, é preciso também apontar a grande desvantagem do sonoro com relação ao visual no que tange a estudos nas chamadas Humanidades. A penetração do pensamento visual se espraia por campos tão díspares como “o feminismo, a teoria da crítica racial, a psicanálise e o pós-estruturalismo, (...) a semiótica, estudos sobre cinema, várias escolas de interpretação literária e de história da arte, arquitetura e comunicação” (STERNE, 2003, pp. 3-4). Com relação ao sonoro, embora haja vários trabalhos acadêmicos espalhados por áreas específicas, “o som não é normalmente um problema teórico central nas principais escolas de teoria cultural, excetuando-se o privilégio da voz na fenomenologia e na psicanálise” (p. 4). Essa disparidade se deve, por um lado, ao fato de os teóricos culturais aceitarem muito facilmente os discursos quase automatizados sobre a predominância da visão e, por outro, à tendência tecnicista dos estudos sobre o som, que, em sua maioria, afastam-se dos teóricos e pensadores culturais e sociais. No que diz respeito à filosofia e à história da audição, ainda que a bibliografia seja vasta, o problema é que esses estudos encontram-se

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conceitualmente fragmentados: “só raramente os autores das histórias do som sugerem de que maneira seu trabalho se conecta com outros, seja com trabalhos que se relacionam ou com domínios intelectuais mais amplos” (p. 5). Essa configuração das áreas de estudo relega o som a um impasse conceitual: por normalmente estar associado a áreas musicais ou técnicas, o estudo do som e da escuta parece relacionar-se mais com a engenharia do que com a antropologia, por exemplo. Esse enfoque, no entanto, é uma limitação para os encaminhamentos que o sonoro poderia assumir. O som pode perfeitamente ser entendido em seus aspectos culturais, sociais e antropológicos. Nas artes cênicas, a demanda de escuta ainda é bastante restritiva. Ecoando Verstraete (2009), percebe-se que os estudos do som da cena escorregam por entre os vãos que separam os Estudos Teatrais e a Musicologia. O som não é percebido materialmente, ficando restrito a suas qualidades comunicativas (fala e sonoplastia) e à música. Esse entendimento do som por meio de tipos específicos de manifestações sonoras pode ser localizado em estudos anteriores ao advento do conceito de frequência, no século XIX. Mais uma vez de acordo com Sterne: Antes do século XIX, os filósofos do som geralmente consideravam seu objeto através de uma instância particular, idealizada, como a música ou a fala. Estudos de gramática ou lógica diferenciavam sons significantes de não-significantes, chamando a todos os sons significantes vox – voz. (...) Em contraste, o conceito de frequência (...) introduziu uma maneira de se pensar o som como uma forma de movimento ou vibração. (...) Se até então a fala ou a música tinham sido as categorias gerais por meio das quais o som era compreendido, agora elas eram consideradas casos especiais do fenômeno geral do som (STERNE, 2003, p. 23).

Essa inversão de eixo proposta pelo autor é um dos movimentos que gostaria de empreender para se pensar o som nas artes cênicas. Se pensarmos na sonoridade como um conjunto que engloba as categorias música, fala e ruído significante, e entendermos a totalidade dos sons como material de criação e reflexão artísticas, estaremos expandindo a palheta do material auditivo a ser trabalhado, virtualmente,

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ao infinito. Dessa maneira, pode-se começar a imaginar uma cena que entenda o som como fator de múltiplas camadas. O pensamento cênico-sonoro pode produzir uma escuta como tato e textura, como forma e deformação, como volume e densidade, como espaço e tempo, como luz e sombra, pressão e despressurização, na qual o silêncio atue como articulação e os ruídos se expandam para além de suas implicações semânticas. Estamos acostumados a fingir que não escutamos o sibilar da máquina de fumaça, o ar condicionado da sala de espetáculos, o zumbido dos refletores se acendendo... Para se traçar uma comparação com a visualidade, é como se víssemos figurinos manchados, refletores que se acendem só pela metade ou cenários com furos que revelam a parede do teatro. A principal finalidade deste trabalho é trazer para a luz do estudo, da análise e da contemplação, fragmentos de um universo paralelo que nos cerca desde o nascimento, mas que geralmente acontece na sombra de nossas atenções, nos propondo outro olhar para o que soa.

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1 O MÚSICO ENFURECIDO: OS SONS DA VISUALIDADE A gravura da página anterior foi desenhada em 1741 pelo pintor inglês William Hogarth (1697-1764) e chama-se The Enraged Musician (O músico enfurecido). Se olharmos para o quadro, notaremos que à janela está o músico enfurecido que dá nome à gravura. Ele segura um arco de violino enquanto tenta tapar seus ouvidos e supostamente protesta contra o ruído que perturba seu estudo. Ele não pode suportar as manifestações do mundo ruidoso que o cerca. Atrás dele, vê-se duas folhas de partitura sobre a estante de um piano e, próximo ao instrumento, vemos uma pena mergulhada num pote de tinta. A partir desse dado pode-se concluir que não se trata de um simples instrumentista, mas de um compositor. Para um compositor, a situação é ainda mais complexa do que para um instrumentista, porque ele deve conseguir escutar seus sons internos, uma atividade que demanda alto grau de concentração. Em suas sobrancelhas arqueadas, seus olhos arregalados e seus lábios entreabertos, pode-se identificar uma mistura de emoções como surpresa, incômodo e a raiva que nomeia a obra. Ele ouve, mas não quer ouvir, e nessa recusa ele tenta, desesperadamente, refutar o mundo como ele é, ou como ele soa. Talvez esse músico esteja escutando “demais”, e o que seria um pano de fundo para outros, ou até silêncio para alguns, para ele é uma algazarra insuportável. Mas por que ele não fecha a janela, simplesmente? Em se notando a falta de neve na imagem, pode-se deduzir que se trata de uma estação quente e que com a janela fechada o músico sofreria com o calor. Então, o que seria pior para ele: trabalhar suando em bicas ou tendo que resistir ao barulho ensurdecedor da turba? O compositor está curvado em direção à janela numa atitude de enfrentamento. Ele está a ponto de protestar ou já o está fazendo e, ao fazê-lo, acaba se tornando apenas mais uma voz a ser acrescentada à massa sonora. Desejando controlar o ruído, combatendo-o com seus protestos, ele acaba apenas reforçando-o e a massa sonora se alimenta até das oposições que tentam dominá-la. O músico ostenta uma peruca branca típica da nobreza daquele tempo; tendo acesso à corte, ele levará suas queixas às mais altas instâncias? Mesmo em caso positivo, que poder disciplinador poderia controlar a vida em curso?

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Instituir-se-ia, então, um toque de silêncio permanente? E como medir e controlar o nível do som e determinar quando ele deveria ser limitado? Seria pela arbitrariedade da queixa dos que detêm o poder social coercitivo? Esse desejo explícito na atitude do compositor, o de se opor ao caos, de legitimar sua vontade para impor a ordem, uma ordem que considera imperiosa por suas necessidades pessoais, também está impregnado das noções de poder e autoridade. A atitude do músico enfurecido é uma atitude de conservação. Conservação de seu silêncio ou de sons que ele aprove por predileção. Denuncia-se aí um desejo de moldar o mundo de acordo com suas preferências, e o desejo de conformar o mundo ao que se idealiza é o pai de todas as utopias totalizantes. Mas então o que haveria de errado com a conservação e a tradição? A “neofilia”, ou as obsessões pelo “novo”, é um mal do nosso tempo. Coloque-se o selo de novo em um produto e ele terá mais chances de venda. Mas algumas coisas são melhores velhas, gastas, a grande questão é a hegemonia imposta. A hegemonia da conservação é tão danosa e opressora quanto o consumismo compulsivo da neofilia. Pode-se questionar também, por meio da imagem, o problema do gosto. Se os sons à sua volta produzissem um tipo de música que fosse de seu agrado, será que ele ficaria tão irritado? O gosto pela música é definido também pelas camadas sociais, e o que é vulgar para uns é o deleite de outros. Em sua ilha de paz e prosperidade, o músico quer extirpar o inferno que o cerca composto de vozes desafinadas, sons de animais, ruídos, sons sem altura definida, enfim, tudo o que ele considera errado em sua atividade musical. As grades que cercam seu apartamento e resguardam seu território deveriam se estender para seu território sonoro. Infelizmente, para ele, o som não é tão facilmente domesticável quanto seu espaço geográfico. Seu desejo de controle acaba se convertendo numa impossibilidade. O projeto de higienização do espaço acústico, além de ser um projeto benéfico com relação à saúde física e psicológica, também traz a reboque questões sobre a limitação da liberdade de ação do indivíduo. Até hoje, em nosso país, a disciplina das atividades soantes é um assunto quase intocado, se restringindo quase que apenas à lei do silêncio após as 22 horas. Será que as gerações futuras olharão para a

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má vontade, ou para o total desconhecimento da população no que tange a esse assunto, da mesma maneira que hoje vemos a reação contrária à campanha sanitarista de Osvaldo Cruz, no começo do século XX, como uma atitude resistente ridícula e anacrônica? Na parede ao lado de sua janela, vemos um quadro que anuncia A ópera dos mendigos, de John Gay, grande sucesso da época e que, aliás, serviu de base para A ópera dos três vinténs, de Brecht e Weill. Uma vez que para se colar aquele cartaz seria necessário passar pelas grades, entende-se que ele tenha sido colado com o consentimento do proprietário. Ao se autorizar a afixação na parede, pode-se reconhecer uma identificação entre o músico e o cartaz. Seria o próprio John Gay o músico enfurecido? Estaríamos diante da fúria santa do compositor da obra-avó de nossa afamada Ópera do malandro? Empoleirado no poste de iluminação vemos um papagaio de bico aberto, como se emitisse sons. Estando tão próximo da janela do compositor seria seu bicho de estimação? Esse papagaio poderia então estar cantando a ópera e ser um estimado companheiro. Mas poderia também ser um motivo de preocupação para nosso protagonista: o papagaio corre o risco de aprender aquelas músicas “horríveis” que a moça que segura o bebê está cantando. Ela poderia estar acalentando seu bebê com seu canto, se utilizando do poder calmante da música, sendo esta uma prática comum a vários povos. A musicoterapia possui resultados comprovadamente eficazes, embora a criança chorando mostre que, nisso, a cantora não está sendo muito bem-sucedida. Mas, além do bebê, ela segura um menu, uma lista, com os preços das canções conhecidas por ela, o que nos faz inferir que seu canto não pretende acalmar seu bebê. Ela deve ganhar seu sustento a partir da venda de músicas específicas, com um repertório limitado. Pensando-se que o gosto de quem paga à cantora deva restringir ainda mais as escolhas por recair nos hits do momento, como é comum no comportamento musical popular (e não devia ser muito diferente àquela época), ainda acrescenta-se ao sofrimento do músico o martírio da repetição. Ele não só escutaria a cantora sem o treinamento que ele considera fundamental para uma voz de qualidade, mas teria que escutar sempre as mesmas músicas. Mas a situação ainda pode piorar: e se seu papagaio de estimação aprendesse não as músicas da cantora de rua, mas o intermitente choro

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do bebê? Então, o compositor teria o inimigo dentro de casa. O que faria com esse animal defeituoso? O esganaria, projetando toda a fúria que sente da situação no pobre bichinho? Outros animais presentes na imagem são um par de gatos, que brigam no telhado da construção em frente ao apartamento, e o cachorro, que late para o homem que afia seu cutelo. São todos animais domésticos perfeitamente adaptados ao habitat sugerido pelo quadro. Descolando-nos um pouco da relação de desconforto produzida pelo latido insistente e agudo do cachorro – pode-se deduzir que seu latido é necessariamente agudo pelo porte do animal –, gostaríamos de trazer à discussão a questão da biomúsica, que consiste na gravação e difusão de sons produzidos por organismos vivos. As manifestações sonoras humanas estão, geralmente, fora dessa definição por possuírem terminologias específicas. A exceção a isso são os sons biológicos humanos geralmente não associados à voz ou à música, como os sons das ondas cerebrais ou do sistema circulatório. O programa de estudos em biomúsica da National Music Arts, em Washington (EUA), foi criado no final dos anos 1980 para estudar, principalmente, os sons produzidos pelos animais, cuja função pode ser dividida entre conectar e comunicar dentro de um grupo, atrair um parceiro ou expressar-se individualmente. Entende-se que as razões animais para gerar sons, ao menos as detectadas pelos biólogos, não devem se distanciar muito dos motivos que levam alguém a fazer música. Entre os exemplos de registros de sons dos animais em áudio, podem-se destacar as Canções da baleia Jubarte colhidas pelo Dr. Roger Payne3, em que se ouvem a riqueza da sonoridade e a complexidade rítmica e melódica do canto da baleia. Como exemplos de utilização artística da biomúsica, podemos citar o grupo inglês de rock progressivo Pink Floyd, que produziu um vídeo em que o cachorro da banda estabelece um contracanto de uivos enquanto a banda executa um blues. No Brasil, o compositor de música eletroacústica Rodolfo Caesar, usou gravações de grilos e sapos em sua obra Círculos ceifados. O multi-instrumentista e compositor Tato Taborda escreveu sua tese de doutorado estabelecendo conexões entre a música europeia e a polifonia dos sapos. No teatro, o uso de sons de animais está geralmente 3

Disponíveis em: http://www.biomusic.org/audio.html.

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associado a cenários sonoros, já preconizados por Stanislavski no século XIX. Assim, utilizam-se sons de pássaros para mostrar que a cena se passa no campo etc. No entanto, como pode ser conferido nos exemplos anteriores, podem-se utilizar sons de animais fazendo uso de suas qualidades estéticas. No quadro, além da voz destreinada da cantora de rua, pode-se ver um instrumentista que toca seu oboé (ou corne inglês, não sabemos precisar) em direção à janela. A julgar por suas roupas, ele não deve conseguir muito dinheiro exercendo seu ofício. É possível que queira mostrar suas habilidades para conseguir um posto na orquestra, a que o compositor da corte certamente tem acesso. De todos os elementos presentes no quadro, o músico enfurecido parece estar olhando diretamente para ele. De todos os ruídos aparentes, talvez o que mais o agrida seja uma “música” de seu repertório mal executada. Não recebido no altamente seletivo ambiente do músico, o oboísta estaria tentando forçar uma apreciação de suas habilidades. Ou, revoltado por não conseguir uma audição com o eminente compositor, ele sopra seu instrumento de modo a produzir guinchos e outros sons desagradáveis, numa vingança dirigida ao mestre, e se vale do caráter invasivo do som, com sua capacidade de transpor barreiras físicas, como a grade, que o impede de se aproximar. Outra alternativa, mais perversa, e que pode se combinar com a anterior, é a de o oboísta citar músicas apreciadas pelo compositor como as árias de sua suposta ópera. Num requinte de crueldade, o instrumentista, diante da completa impossibilidade de ascensão aos cargos dos nobres músicos da orquestra da corte, poderia distorcer propositalmente os sons das árias da ópera, causando um sofrimento atroz ao compositor. O músico não aceito estaria calmamente saboreando sua revanche em tripla camada: uma reação social, contra a recusa de sua admissão em círculos elevados do status quo; uma reação musical, contra o repertório que ele não está “autorizado” a executar por sua suposta incompetência: e uma reação bélica: sons fortes e agudos, como um armamento sônico, produzindo dor física e levando sua vítima ao desespero. Ainda sobre as vozes “despreparadas”, podemos localizar, no centro do quadro, uma mulher que carrega uma tina que pode estar carregada com água ou leite. Ela nos parece bela e serena, sendo a única personagem do quadro que nos olha diretamente. Seu canto pode

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servir para amenizar o peso da carga que ela carrega e aí teríamos os chamados “cantos de trabalho”, encontrados em diversas culturas espalhadas pelo mundo. Esses chamados “cantos de trabalho” servem para aliviar o esforço físico de uma longa caminhada ou melhorar o ânimo em situações de fadiga. Outra forma de música utilizada para alterar a disposição física do ouvinte pode ser encontrada nos cantos de guerra, para levantar o moral das tropas ou amedrontar o inimigo. Exemplos contemporâneos desses usos podem ser a seleção nacional de rugby da Nova Zelândia, com seu canto e dança maori, temidos pelos adversários, os heavy metal ouvidos pelos pilotos americanos durante os bombardeios ao Iraque e o simples ato de se ouvir um mp3 player durante um passeio de bicicleta, no ambiente hostil do trânsito das grandes cidades. A menina próxima à grade gira uma catraca que pode levantar a questão de objetos situados entre instrumentos musicais e produtores de ruído. Similar à catraca, mas com produção sonora menos evidente, está a pequena prancha amarrada à cintura do menino que urina (essa atividade, por sua vez, também produz som). O brinquedo, embora talvez não especificamente desenhado para esse fim, deve produzir um som característico enquanto o menino corre pelas ruas. Quantos objetos soantes poderiam ser aproveitados em suas qualidades enquanto manipulados em cena? Um bom exemplo de utilização do som de um objeto não musical em uma montagem teatral pode ser encontrado no trabalho que o diretor Paulo de Moraes fez com o Grupo Galpão, de Belo Horizonte. Nessa montagem, chamada “Pequenos Milagres”, havia uma cena na qual, durante a intensa briga de um casal, o arrastar da estrutura de uma cama pelo homem, com a mulher deitada em cima, produzia um som forte que em muito acentuava a dramaticidade da cena, servindo também para os atores, imagino, como um estímulo para a intensidade dramática requerida pela situação encenada. Vê-se, ainda, outra criança na gravura. É um garoto, com uma cruz no bolso, tocando um tambor. Ele ostenta uma aparência distinta, talvez seja um coroinha da igreja. Os sons que ele produz em seu tambor podem trazer, além da questão rítmica, a questão dos sinais sonoros religiosos produzidos em procissões, cânticos, ladainhas, coros, cortejos fúnebres, exaltações, homilias etc. O universo religioso

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é pleno de sons característicos que comunicam a seus iniciados uma vasta gama de informações e também indicam protocolos a serem cumpridos. O mesmo pode ser indicado pela bandeira hasteada na igreja ao fundo. Isso revela que um evento importante está ocorrendo e, por isso, certamente, os sinos estão badalando. E os sinos eram um dos marcos sonoros mais significativos da vida em sociedade naquele tempo. Além de avisarem sobre os eventos religiosos, também serviam de importantes marcadores temporais, que regulavam os encontros e as atividades em geral. O peixeiro, que anuncia seus produtos em altos brados, nos remete aos chamados “pregões”. Os pregões são uma maneira ancestral de oferecer produtos e podem ser encontrados hoje nas feiras, nos camelódromos, nos ambulantes das praias. Pode-se notar também um lixeiro que toca sua sineta e grita e um castrador de porcos que sopra seu berrante (por sua expressão, podemos afirmar que o faz com grande força). Eles não oferecem produtos, mas serviços, também realizando seus pregões, com o auxílio de objetos específicos. Suas estratégias, intuitivas ou não, consistem em criar pregões dos mais originais com a finalidade de se destacarem nos contextos sonoros geralmente muito ruidosos em que se inserem. Um exemplo, mais sutil, facilmente encontrado em nossas ruas, é o distribuidor de filipetas, que usa o flap flap dos papéis em suas mãos para chamar nossa atenção para o que deseja nos entregar. Com relação ao homem que nivela as pedras do pavimento com uma pesada ferramenta e, ao fundo, o homem na chaminé, que, supostamente, se comunica com seu colega que está no chão, podemos refletir acerca dos sons produzidos pelas relações de trabalho, especialmente as produzidas em espaços públicos. Também outro exemplo pode ser localizado nos cobradores dos ônibus do Rio que, ao baterem repetidamente uma moeda contra um cano de metal chamam a atenção do motorista para algo que desejam comunicar. Esse som agudo destaca-se perfeitamente mesmo dentre a densa massa sonora do trânsito ruidoso, de pessoas conversando no coletivo etc. Ainda podemos falar das paisagens sonoras alteradas pela ação humana. Na parede do edifício ao fundo pode-se ler John Long – Pewterer ou, em português, “fundidor”, e podemos imaginar o constante ruído de martelos e metais se chocando. A pilha de tijolos em primeiro

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plano indica que há uma construção próxima em andamento, aumentando ainda mais o rol dos suplícios auditivos de nosso atormentado personagem. Para efeito de análise, suponhamos que o músico enfurecido seja um personagem fictício que representa o superego artístico incorporado ao subconsciente de nossos espetáculos. Sobrecarregado de cultura, erudição e conhecimento técnico e histórico, ele fecha seus ouvidos para os sons que não provenham de sua refinada musa e grita contra as iniciativas que profanem o sagrado musical. Vozes desafinadas são amplamente reprimidas, instrumentos com sons “feios” são banidos e os ruídos são entendidos como excentricidades ou, quando muito, utilizados para a criação de cenários sonoros, aliás, como já preconizava Stanislavski no século XIX (apud GUINSBURG, 2001). Os sons da natureza (o papagaio, o cachorro, os gatos), os ruídos das vozes, dos objetos, enfim, todo o som da cidade que o cerca não só não lhe interessa, como nosso paladino se insurge contra eles. Ele vai até sua janela para, com seu protesto, tentar calar as vozes polifônicas da vida que pulsa ao seu redor. 2 AS ESCUTAS Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato psicológico. Roland Barthes

O propósito de se trazer uma pluralidade de escutas para este trabalho é dar a noção de que o processo de recepção é sempre ativo. A escuta constrói o som, é uma atividade cultural e, portanto, precisa ser aprendida. Quando consideramos uma música “alegre”, “triste” ou “animada” não podemos perder de vista que essas qualificações são formadas dentro de um ambiente cultural específico. É preciso problematizar a escuta. Dependendo de com que ouvidos se escuta o objeto, as relações que ele desperta são radicalmente alteradas. É preciso distender as escutas, tensioná-las, para as acordarmos de seus hábitos empedernidos. As escutas são instrumentos de criação: por meio delas o som pode ser modulado, descartado, fatiado, e é sempre a partir delas que a matéria som pode ser construída e desconstruída.

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A audição é o primeiro sentido ativo no feto, a visão se inicia com a luz, só após o nascimento. Segundo Schafer, a escuta4 (em seu sentido amplo) se divide em quatro fases: ouvir, escutar, reconhecer e compreender. A primeira etapa da percepção auditiva é ouvir. Ouvir é apreender o som sem lhe dedicar o foco de atenção. Ouvimos durante o sono, ouvimos o tempo todo, “o ouvido não tem pálpebras” (SCHAFER, 2001). A única razão pela qual não nos afogamos na loucura de um mar de estímulos sonoros que nos invade o tempo todo, por todas as direções, é nosso complexo sistema cerebral de filtragem e seleção desse material. A ação de se prestar atenção no que se ouve é o que se chama escutar (sentido estrito). A escuta não é necessariamente voluntária, o cérebro pode destacar o som da campainha de casa, mesmo sem estarmos esperando que ela toque. O condicionamento gerado pelo uso repetido desse sinal sonoro faz com que se preste atenção a esse som de modo quase automático. Ouvimos, prestamos atenção, então escutamos. Após esse primeiro momento de seleção, no qual separamos um determinado som de seu entorno, de todos os outros sons que estamos ouvindo, tem-se o reconhecimento. O reconhecimento é a ação perceptiva de conectar o que se está escutando, portanto, selecionando, à fonte que está produzindo o som. É o processo de identificação que se faz com o som que se escuta. Após o reconhecimento da fonte sonora5, nos encaminhamos para o ato de compreender. Compreensão é a etapa em que, racionalmente, interpretamos o som de maneira a criar relações a partir do que aquela informação sonora nos propõe.   Para efeito de melhor compreensão, dividi a escuta em sentido amplo e sentido estrito. No sentido amplo, a escuta envolve todo o processo de recepção do som. A partir do sentido amplo é que se pode falar em “modelos de escuta”, “projetos de escuta” e “tipos de escuta”, como discutiremos adiante. A escuta no sentido estrito é aquela parcela do processo perceptivo entre o ouvir e o reconhecer, é a simples ação de destacar um som de seu entorno com a intenção de interpretá-lo. 5   Fonte sonora é aquilo que produz som enquanto está soando. Têm-se, então, duas dimensões envolvidas nessa relação: aquilo que soa, e a dimensão temporal, o momento em que está soando. Portanto, fonte sonora não é apenas o objeto, mas o objeto enquanto está produzindo som (RODRÍGUEZ, 2006, p. 55). 4

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Esse mecanismo auditivo trabalha ininterruptamente, em frações de tempo pequenas, a ponto de quase sempre não conseguirmos distinguir o momento da separação do objeto de seu entorno (escuta no sentido estrito) e da identificação do que está produzindo o som (reconhecimento). Outro conceito importante para este trabalho é o da auralidade. Aural vem do grego auris, que significa orelha, mesma raiz que originou auricular. Mas o som não pode ser entendido meramente como um fenômeno externo, como diz Sterne: “O som é uma percepção muito particular das vibrações” (STERNE, 2003, p. 11). Assim, auralidade passou a ser entendida como a qualidade do que é sonoro, sendo resultado da percepção. Poderíamos traçar um paralelo entre visual/ aural e visualidade/auralidade. Assim como o visual não é apenas o que se vê, mas como se percebe o que se vê, também aural não é apenas o que se ouve. 3 TIPOS DE ESCUTA Cotidianamente, utilizamos a escuta das mais variadas formas. Pode-se escolher escutar coisas que estão fora do nosso foco de atenção direta, como um movimento de zoom que se faz com os ouvidos, o que Schaeffer chamou de “escuta seletiva”. Pode-se também sentir a soma de várias sonoridades simultâneas, percebendo-se uma textura, uma massa sonora. Esse processo de apreensão de uma malha, de uma rede de interrelações, chamo de escuta textural. Ao tipo de atenção acionada para o entendimento de um texto falado, pode-se chamar de escuta “semântica”, como o faz Chion. Com ela, desloca-se a atenção para vários itens simultaneamente: o que está sendo dito, como está sendo dito, por quem está sendo dito. Essa tripla interpretação levada a cabo pela escuta semântica gera um tipo de atenção que requer um alto grau de direcionamento, fazendo com que o entorno acústico se apague mais do que um evento que exija menor esforço de decodificação. Também o ruído pode ser escutado semanticamente: o barulho do vidro se estilhaçando “quer dizer” que algo se quebrou. Durante décadas o cinema industrial norte-americano experimentou o posicionamento espacial dos sons. Hoje, todos os filmes que

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assistimos transmitem a voz dos atores pela caixa de som central atrás da tela. Percebeu-se que o deslocamento espacial dos diálogos prejudicava o entendimento do texto e o subsequente acompanhamento da trama. A escuta semântica necessita de bastante foco e atenção e o trânsito sonoro no espaço ativa outra escuta que compete com a decodificação semântica. A escuta espacial também pode ser arquitetônica, quando se amplia para perceber conscientemente a propagação sonora num determinado ambiente acústico, as propriedades de reverberação e propagação do som no espaço. Augoyard e Torgue (2005), ao descreverem o que chamam de “efeitos sônicos”6, nos trazem alguns conceitos interessantes: o “efeito coquetel”, que é nossa habilidade de focar a atenção em quem fala, descartando todo o ruído ao redor7; a “anamnesis”, quando uma memória é ativada no ouvinte por um som escutado; a “antecipação”, que ocorre quando um ouvinte que espera intensamente um som o “pré-escuta”; o “assíndeto”, que é a deleção de sons específicos em um dado ambiente sonoro, quando não mais escutamos um som que permanece soando mas não nos interessa; o “sombreamento” (estompage), quando percebemos um som após sua completa desaparição; a “hiperlocalização”, quando uma fonte sonora se desloca, forçando o   Sonic effects, ou efeitos sônicos, para Augoyard e Torgue, são as distorções perceptivas que todo sinal sonoro recebe quando é percebido. Segundo eles, não se trata de um conceito, mas uma ideia que ainda permanece aberta, sua noção não é totalmente compreendida. A preocupação dos autores, mais do que definir as coisas de maneira fechada, é abrir um campo para “uma nova classe de fenômeno por fornecer alguma indicação de sua natureza e seu status” (AUGOYARD e TORGUE, 2005, p. 9). É interessante apontar que os estudos desses autores são desenvolvidos a partir do Centro de Pesquisa do Espaço Sonoro e o Ambiente Urbano (Cresson) na Escola Nacional Superior de Arquitetura em Grenoble (França). Apesar de Augoyard (das áreas de filosofia, planejamento urbano e musicologia) e Torgue (sociologia, planejamento urbano e composição musical) assinarem o trabalho, ele ainda contou com participações de especialistas nas áreas de geografia, arquitetura, engenharia e acústica, em um tipo de colaboração interdisciplinar que vem crescendo nos últimos anos e que é fundamental para o tratamento complexo que esses novos temas vêm exigindo. 7   Tendo em vista a terminologia já trabalhada, esse efeito seria a forma de escuta seletiva que ocorre especificamente para nos permitir a escuta semântica. 6

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acompanhamento de seu percurso pela escuta; a “phonomnesis”, disposição mental que se refere a um som imaginado ou lembrado, mas que, ao contrário da anamnesis, não tem uma provocação externa; a “sinédoque”, a que chamamos anteriormente de “escuta seletiva”, com Schaeffer; “ubiquidade”, quando um som parece vir de todos os lugares e de nenhum, ao mesmo tempo, tornando difícil ou impossível a localização da fonte sonora. Outra escuta possível é a escuta “afetiva”. Não só no sentido de afeto, mas de afetação. Essa escuta é ativada quando, consciente ou inconscientemente, o som nos conduz a uma alteração em nosso estado emocional. Especificamente para quando desperta um estado de euforia, Augoyard e Torgue cunharam a expressão “phonotonia”. Podemos ainda pensar em uma escuta da “voz do self”, que utilizamos para comentar mentalmente os acontecimentos do dia, para conversarmos internamente e para leituras “silenciosas”, como a deste texto. Essas maneiras de escutar não são estanques, se entrelaçam e se sobrepõem o tempo todo. Além disso, muitas alternativas podem ser elencadas. Há também a questão da sobreposição dos sentidos e de como eles interferem mutuamente. 4 SOM E ESPAÇO: ARQUITETURA AURAL E ARTE SONORA O pior cego é o surdo. Tirem o som de uma paisagem e não haverá paisagem. Nelson Rodrigues

Em “Spaces Speak, Are You Listening?”, Blesser e Salter traçam uma linha evolutiva para analisar a percepção do espaço sonoro, desde as cavernas até hoje, passando pelos xamãs, pelo teatro de Epidauros e pelo Globe Theatre, que abrigou as peças de Shakespeare em seu tempo. Com a colaboração dos estudos em arqueologia acústica, pode-se indicar como o espaço sonoro interferia na vida humana, notadamente nas artes cênicas. Nessa obra, os autores buscam desenvolver uma arquitetura aural, que é o pensar arquitetônico combinando questões acústicas, sociais, evolutivas, artísticas, físicas e a percepção auditiva espacial, discutindo também a influência do espaço sonoro na recepção.

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Para começar, imagine que, como uma criança, você tenha sido adotado por uma comunidade entre os primeiros humanos cinquenta mil anos atrás, e que você tenha crescido num mundo sem relógios, calendários, eletricidade, telefones, ou até mesmo papel e lápis. (...) Suponha agora que, como um adulto procurando por comida, você encontre uma abertura numa montanha que desemboque numa vasta caverna. (...) O som entrando numa caverna se modifica o suficiente de modo que, quando é rebatido através da entrada, dá a impressão que está vindo de dentro. A caverna não estaria quieta: quando você passasse por sua entrada, você ouviria a caverna falar com você (BLESSER e SALTER, 2007, p. 71).

O trabalho de estudiosos de várias áreas combinadas permitiu o desenvolvimento de pesquisas pelas quais é possível reconstituir a auralidade espacial desde as cavernas. Foram feitos estudos que apontam a influência da acústica das cavernas nos desenhos encontrados em suas paredes em diversas partes do mundo. Por exemplo, após estudar pessoalmente mais de 150 cavernas, Waller (apud BLESSER e SALTER, 2007) descobriu que os animais de maior porte geralmente eram desenhados naquelas com uma reverberação maior, que amplificavam mais os sons, enquanto desenhos de felinos eram mais encontrados em cavernas mais silenciosas. Outros estudiosos, analisando complexos monumentos pré-históricos na Escócia, notaram que certos pontos formavam câmaras de reverberação que alteravam o som da voz. Durante cerimônias religiosas, alguém que falasse daquele ponto (presumivelmente algum tipo de sacerdote) poderia exercer fascínio sobre os outros por sua voz se espalhar pelo espaço de maneira totalmente diferente da dos demais. Segundo Blesser e Salter, Devereaux sugere que a voz de Trophonius, uma divindade grega, era na verdade uma corrente subterrânea. Ainda com Blesser e Salter, Aristóteles, o primeiro a escrever sobre o tema, observou que o ruído de fundo das tragédias seria reduzido se o chão do teatro fosse coberto de palha. Os maias, em 1500 a.C., construíram um campo onde se misturavam esportes e cerimônias religiosas. Como se pode atestar ainda hoje, mesmo um sussurro numa das extremidades daquele campo pode ser perfeitamente ouvido na outra, tornando esse ponto ideal para um líder cerimonial conduzir uma audiência. O anfiteatro grego de Epidauros

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é talvez, nas artes cênicas, o exemplo mais notório da importância da arquitetura aural. O teatro grego seria impensável sem o excelente resultado acústico desse espaço cênico. Nesse teatro, que abrigava 15 mil espectadores, como manter o entendimento do texto, mesmo tendo algumas pessoas a 80 metros do palco? Para isso contribuíram o terreno montanhoso e as máscaras dos atores. Aliás, a máscara em latim é chamada de persona (mesma raiz de personagem), derivada de per sonare (“soar através”), numa clara indicação de que as máscaras dos atores também buscavam propiciar uma amplificação vocal. Apesar de ser uma disciplina extremamente recente, a arquitetura aural procura raízes históricas antiqüíssimas, como podemos notar. Esse termo foi criado para dar conta das propriedades do espaço que podem ser “experienciadas” pela escuta. Dessa forma, ela se ocupa em observar e analisar os aspectos culturais da percepção espacial sonora. Quer estejamos conscientes ou não, sofremos a ação do som no espaço o tempo todo, alterando nossos humores e nossas emoções. Um ambiente com muita reverberação, como uma catedral ou uma sala vazia, por exemplo, destaca o valor de cada som individualmente e obriga-o a se apresentar lentamente caso se esteja procurando clareza, pois tanto a fala quanto os sons apresentados tendem a se “embolar”, somando-se temporalmente e criando confusão e ininteligibilidade se apresentados rapidamente. Já ambientes “secos”, com reverberação menos evidente, permitem velocidades mais rápidas, mas perdem em “grandiosidade”. A arquitetura aural também se ocupa do espaço sonoro virtual, ou seja, aquele criado, artificialmente, pelos meios eletrônicos, que altera a percepção do espaço em que o som se insere. Dessa maneira, a espacialização sonora criada por alteradores eletrônicos como o reverb8 é também foco de análise. Alguns conceitos trazidos por Blesser e Salter (2007, pp. 29, 52 e 82) também podem ser úteis para se pensar o som da cena, entre os quais destacamos: 8   O reverb é um efeito elétrico ou eletrônico que simula a ambiência sonora de diferentes espaços. Leva esse nome por causa do fenômeno da reverberação, que é, grosso modo, a forma pela qual um som se prolonga num espaço, mesmo quando a causa que o produziu já tenha cessado.

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a) Ornamento aural [aural embelishment]: quando nos utilizamos de artifícios para transformar a sonoridade do espaço com uma finalidade estética. Por exemplo, quando penduramos tapetes pesados e cortinas em um ambiente com reverberação excessiva para criar uma auralidade mais intimista. b) Marco Sonoro [sound mark]: esse conceito foi criado por Barry Truax, um compositor e estudioso da ecologia e da paisagem sonoras. Marcos sonoros são sons únicos, que detêm um alto status devido à sua importância histórica, social, simbólica ou prática. Sinos, apitos de fábricas, sinais de ferrovias, são alguns exemplos. c) Aurícone9 [earcon]: é o correspondente sonoro do ícone visual. Nos computadores, são aqueles sinais sonoros que indicam a inicialização do sistema, se alguma operação foi completada ou não foi executada corretamente etc. Aurícones adquirem significação pelo uso reiterado que associa um som a um determinado contexto. Podem ser também encontrados em outros lugares: a sineta usada para chamar o atendente de um hotel pode ser considerada um aurícone. É diferente do marco sonoro por seu caráter privado, contrastando com a dimensão social e grandiosa daquele. 5 ARTE SONORA Talvez o mais antigo exemplo de objeto comparável ao que se convencionou chamar, nos últimos tempos, de “arte sonora” seja a harpa eólica, feita para ser deixada em uma abertura, como uma janela, por exemplo, e lá permanecer até que o vento seja forte o bastante para movimentar as cordas, produzindo sons ao sabor da força e da eventualidade das correntes de ar. Segundo Alan Licht (2007), o termo arte sonora foi criado pelo compositor e audioartista canadense Dan Lander, em meados dos anos 1980, e tem sido usado para dar conta de uma produção crescente na área das artes visuais que trabalha com elementos multidisciplinares com características sonoras que não se deixam enquadrar pacificamente na noção de “música”.   Earcon / aurícone: tradução sugerida por mim.

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Geralmente, localiza-se o futurista Luigi Russolo, e seu manifesto de 1913, como o principal precursor da chamada arte sonora. Oriundo das artes visuais, Russolo declara, em carta ao amigo músico Balila Pratella, ter vislumbrado uma “música” que inclui o som dos trens, das metralhadoras, das sirenes, das máquinas em geral. Essa carta a que chamou de “A arte dos ruídos” foi a primeira iniciativa que se tem registro, de organizar, de criar uma espécie de tipologia dos ruídos para uso estético, inclusive os ruídos vocais. Russolo também imaginou instrumentos sonoros que imitam os ruídos das máquinas, que chamou de trovejadores, rugidores, roncadores etc. Com esses instrumentos, realizou verdadeiros concertos de ruídos que, à época, não foram levados devidamente a sério, sendo considerados mais uma das extravagâncias reputadas aos futuristas em vez de uma proposição artística consistente. No mesmo ano de 1913, Marcel Duchamp concebeu sua Sculpture musicale, que consistia em várias caixinhas de música soando simultaneamente no espaço. Essa obra não foi a primeira a pensar o som no espaço. No século XIX, George E. Ives (1845-1894), pai do compositor Charles Ives, concebeu e realizou uma obra em que duas bandas marciais vinham tocando duas canções diferentes pelas ruas de sua cidade. O público ficava parado numa esquina ouvindo as bandas que se aproximavam. Elas então se cruzavam no ponto onde estava a plateia e continuavam tocando enquanto se distanciavam. Voltando ainda mais no tempo, durante a renascença, o compositor Gabrielli compôs uma peça em que quatro corais cantavam posicionados em quatro pontos distintos numa catedral. A utilização do espaço como fator que interfere na concepção sonora e a integração dos ruídos à obra são características importantes que incluem as realizações citadas no que está se convencionando chamar de “Arte sonora”. O ímpeto de criar uma nova designação que possa abrigar iniciativas sonoras que parecem ter grande dificuldade de serem acolhidas sob o rótulo de “música” vem de longa data. O compositor Olivier Messiaen cunhou, na década de 1940, o termo “organização sonora”, que tentava acolher as iniciativas nascentes no campo da música eletrônica. John Cage chegou a adotar esse termo por um tempo, mas depois recuou, por achar que problematizaria mais a música se mantivesse suas atividades sob esse rótulo.

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A arte sonora, apesar de controversa, encontra uma acolhida crescente no campo das artes visuais. Inhotim, um espaço nos arredores de Belo Horizonte dedicado à arte contemporânea, possui em seu acervo algumas obras de arte sonora. Entre elas encontramos uma obra da artista canadense Janet Cardiff, baseada no moteto a quarenta vozes Spem in Alium, de 1573, do compositor inglês Thomas Thallis. A obra de Thallis divide-se em oito coros de cinco vozes cada e, na instalação de Cardiff, há oito grupos de cinco alto-falantes. Em cada alto-falante se ouve uma linha vocal da obra de Thallis. Nessa obra, podem-se encontrar algumas das características comuns a numerosos trabalhos denominados “arte sonora”: a multiplicação dos sons em vários canais independentes, a inclusão do espaço como fator determinante da obra e o descompromisso com a relação de tempo que o espectador/ouvinte estabelece para a fruição. Essa relação de trânsito livre aproxima a arte sonora das artes visuais, em que o tempo de observação de uma obra pode ser determinado por aquele que a aprecia, diferentemente da música, na qual o tempo é, geralmente, conduzido pelo desenvolvimento da obra. Mesmo hoje, quase trinta anos depois da criação do termo “arte sonora”, a tensão sobre essa área híbrida entre a música e as artes visuais está longe de ser diluída. Uma parte da chamada música experimental considera que esse rótulo estaria sendo usado exclusivamente por artistas que querem se beneficiar do sistema mercadológico de que dispõem as artes plásticas hoje. Outros pensam que por suas características de exposição, em vez de apresentação, e por sua interdisciplinaridade, a arte sonora mereceria um campo de atuação emancipado da música. O fato é que, atualmente, é extremamente difícil delimitar fronteiras precisas entre as artes visuais e a música. Talvez esse rótulo não deva ser levado às últimas consequências do rigor conceitual, mas possa servir para encaminhar o escoamento de uma produção que não se adequaria aos espaços convencionalmente dedicados à música. A arte sonora estaria, assim, fora das salas de concerto, auditórios e casas de espetáculos, sendo mais adequadamente acolhida nas galerias e nos espaços públicos das grandes cidades, a exemplo da performance, da videoarte e das instalações visuais.

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Alan Licht cria três categorias para a arte sonora: 1. Uma instalação de ambiente sonoro que é definido pelo espaço (e/ ou pelo espaço acústico) mais do que pelo tempo e que pode ser exibida como seria uma obra de arte visual. 2. Uma obra de arte visual que também possui uma função de produção sonora, como uma escultura sonora. 3. O som de artistas visuais que serve como uma extensão da estética particular daquele artista, geralmente expressa em outra mídia (LICHT, 2007, pp. 16-17).

Na primeira categoria da divisão criada por Licht, ele aponta o que talvez seja a maior questão da arte sonora: a relação entre tempo e espaço. Como apontam Campesato (2007) e Vaz (2008), a separação música/tempo e arte sonora/espaço não se sustenta porque não é que a arte sonora não trabalhe a questão do tempo – e alguns artistas sonoros articulam justamente essa questão –, mas ela o faz de maneira diferente da música, e sempre levando em conta o fator espaço, seja ele trazido à obra por meio de uma instalação ou numa relação com o ambiente ou com elementos arquitetônicos. 6 AURALIDADE E TECNOLOGIA 6 de dezembro de 1877: Nessa data, Thomas A. Edison fez a primeira gravação de uma voz humana num rolo de papel-alumínio, cantando Mary Had a Little Lamb. Como nunca antes, a voz é separada do corpo e eternizada num mecanismo tecnológico. Allen Weiss

Sterne ataca afirmações como a da epígrafe acima sob a alegação de que elas constituem o que ele chama de “narrativas de impacto”, sob a argumentação de que elas limitam o entendimento histórico a uma perspectiva causalista. Essas narrativas, porém, se não servem para inserir os fatos nos complexos panoramas de forças que agem nos caminhos que conduzem às grandes invenções, servem para evidenciar o “impacto” que elas exercem a seu tempo. O fato é que hoje, quando a reprodução sonora tomou uma proporção de quase onipresença, é difícil imaginar o assombro que a escuta dos primeiros sons separados

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da fonte causou na sociedade que começava a ser exposta a eles. Uma escuta totalmente nova começou a surgir: uma escuta sem presença. O rádio e o telefone podiam transportar o som de um lugar a outro, separado de sua fonte original. Essa escuta do som descorporificado (disembodied, conforme Weiss (2002) e Kahn (2001)) precisou ser aprendida da mesma maneira que o olhar teve que se acostumar com a introdução da perspectiva na pintura, alguns séculos antes. Uma imaginação totalmente nova surgiu com o advento dessas tecnologias. Tanto o rádio quanto o telefone, em sua origem, são ferramentas para transmissão de som em tempo real. Ambos atuam como transportadores, promovendo a aproximação, ainda que indireta, entre fonte sonora/ouvinte. Pierre Schaeffer (1988, p. 113), citando Larousse, nos traz o conceito de “acusmático”, nome dado aos discípulos de Pitágoras que, durante cinco anos, escutavam totalmente em silêncio as lições do mestre, que permanecia oculto atrás de um pano. Como adjetivo, é usado para definir um som que se escuta sem a presença de sua fonte original. Os meios de gravação, quando surgiram, adicionaram ainda dois fatos que tornam ainda mais complexa a desvinculação da presença da escuta acusmática: a gravação traz sons do passado que se extinguiram e ainda possibilita a repetição ad infinitum de um evento sonoro específico. Esses dois fatores devem ter atuado como um verdadeiro choque anafilático para as escutas daquele tempo. A partir de então, era possível que um som, cuja fonte não estava presente no espaço e que já não era mais presente no tempo, fosse repetido de maneira idêntica. A repetição idêntica, já antiga para a visualidade mesmo antes da invenção da imprensa, era trazida agora para o universo das sonoridades. Para Murray Schafer, compositor canadense criador do termo “paisagem sonora” (soundscape) e pensador da ecologia sonora, a desvinculação do som de sua fonte original causou danos à psiquê do homem contemporâneo, num fenômeno que ele chamou de “esquizofonia”, unindo fonia (do grego phono, som, voz) a schizo (separado): Desde a invenção dos equipamentos eletrônicos de transmissão e estocagem de sons, qualquer som natural, não importa quão pequeno seja, pode ser expedido e propagado ao redor do mundo, ou empacotado em fita ou disco para as gerações do futuro. Separamos o

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som da fonte que o produz. A essa dissociação chamo esquizofonia, e se uso, para o som, uma palavra próxima de esquizofrenia é porque quero sugerir a vocês o mesmo sentido de aberração e drama que essa palavra evoca. (...) Através das transmissões e gravações, as relações obrigatórias entre um som e a pessoa que o produz foram dissolvidas. (...) O som vocal, por exemplo, não está mais ligado a um orifício na cabeça, mas está livre para sair de qualquer lugar do mundo (...) e, assim como o grito transmite aflição, o alto-falante comunica ansiedade (SCHAFER, 1991, p. 173).

Esse viés pessimista de Schafer está vinculado a um pensamento mais amplo de “higienização” da escuta, ou “limpeza de ouvidos”, como ele prefere. O World Soundscape Project, do qual Schafer foi um dos fundadores, constituiu-se numa tentativa de catalogar, ordenar e controlar os sons do mundo. Essa busca pela “correção” da sonoridade das sociedades pós-industriais estende-se aos sons gravados e transmitidos nos automóveis, shopping centers, elevadores, aeroportos etc. Podemos notar, inclusive, que, para nós, é bem mais comum escutar música usando os meios de transmissão do que “ao vivo”, um fenômeno impensável há algumas décadas. Schafer chega a vaticinar que o mesmo ocorrerá com nossas vozes, ou seja, segundo ele, daqui a alguns anos, será mais fácil dialogar com outra pessoa por meio de um aparelho tecnológico do que pessoalmente. Giuliano Obici recorre à noção de Deleuze e Guattari do prefixo grego schizo para problematizar a noção maniqueísta de Schafer: Nos termos de Deleuze e Guattari, o esquizo é uma fonte desejante de fluxo contínuo, que está em constante atividade, operando sempre por cortes e ligações numa produção incessante de sentidos. (...) Pensando assim, a esquizofonia se põe em um estado de ligação e corte constante dos fluxos sônicos, produzindo ininterruptamente escutas e relações com o mundo. Os aparatos midiáticos não operam simplesmente um regime de dissociação entre espaço e som, entre a fonte de emissão e o objeto sonoro. Há uma espécie de desterritorialização tomada como ordem fundamental que também cria outras referências. É sob esse contínuo desfragmentar esquizofônico que novas produções de escutas são possíveis.

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Dizemos que a produção sonora – por todo tipo de alto-falantes (TV, rádio, celular etc.) – hoje é esquizofônica, não para dizer que ela produz a esquizofrenia, como estado de aprisionamento psíquico, ou que a esquizofonia gera mais nervosismo e ansiedade no mundo, como aponta Murray Schafer. Entendemos que o efeito contrário também acontece, isto é, que essa cisão pode gerar estados de conforto e bemestar. (...) Não queremos, com isso, amenizar a situação em que se encontra a escuta hodierna, (...) o que entendemos é que a atual condição da escuta exige de nós uma postura tão potente quanto a produção veloz dos territórios sonoros que circunscrevem nossos ouvidos (OBICI, 2008, p. 38).

Com Obici, não se trata de negar a complexidade e as consequências da escuta esquizofônica de nossa sociedade, mas de entender modos criativos de operar com ela e a partir dela para nos mantermos no embate, uma vez que o retorno a uma situação pré-acusmática só seria possível em caso de uma catástrofe ecológica que destruísse as possibilidades atuais de armazenamento e transmissão de energia elétrica! Já Weiss, a partir de Jacques Perriault, descreve as estreitas relações entre os primórdios da gravação do som e as expectativas de próteses auditivas para os surdos: “Por um lado, a canção passava a ser prosteticamente acessível aos surdos, por outro, voz e canção poderiam ser preservados para a posteridade, transcendendo a morte do cantor” (WEISS, 2002, p. 96). Esse autor ressalta que Edison se deleitava em ouvir ópera através de seu invento, o fonógrafo, mesmo com sua surdez avançada, fruto de uma surra quando criança. Mas é preciso atentar também para outras implicações: a imortalidade da voz gravada e o aperfeiçoamento do humano através da tecnologia. McLuhan disse que “a roda é uma extensão do pé, o livro é uma extensão do olho, a roupa uma extensão da pele e o circuito elétrico uma extensão de nosso sistema nervoso” (McLUHAN, 2003, pp. 3141). Então, o microfone seria a extensão da boca e o alto-falante uma extensão do ouvido. Por trás dos avanços tecnológicos, sempre existe uma intenção de controle, correção ou aperfeiçoamento da natureza: a voz que vive

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eternamente, o surdo que escuta, o cego que enxerga. Esse desejo de superação do biológico humano e sua correspondente reação pode ser encontrada mesmo em tempos imemoriais. Schafer nos traz algumas lendas antigas que comprovam esse fato: Tomar e preservar a textura do som ao vivo é uma antiga ambição do homem. Na mitologia babilônica, há indicações de uma sala especialmente construída em um dos ziggurats (espécie de torres para enterrar os mortos), na qual os sussurros permanecem para sempre. Numa antiga lenda chinesa, um rei tinha uma caixa secreta, dentro da qual ele ditava suas ordens e as enviava por seu reino, conduzidas por seus súditos (SCHAFER, 2001, pp. 173-174).

Podemos estabelecer uma analogia entre a tentativa de aprisionar o som e a criação da escrita. Esse desejo de fixar a oralidade em caracteres desenhados, de transferir a fala para um suporte visual, é um movimento também bastante problemático, como nos revela a queixa de Platão contra a escrita, que ele entendia como uma revolução destrutiva: O específico que você descobriu não é um auxílio à memória, mas à reminiscência, e você dá a seus discípulos não a verdade, mas somente a aparência da verdade; eles serão ouvintes de muitas coisas e não terão aprendido nada; eles aparentarão serem oniscientes e em geral não saberão nada; eles serão companhias enfadonhas, possuindo a exibição da sabedoria sem a realidade (PLATÃO apud McLUHAN, 2003, p. 61).

Walter J. Ong, em seu Orality and Literacy – no qual analisa em várias frentes as consequências da transição da oralidade para uma sociedade apoiada na escrita – também aponta o discurso de Platão. Ong ainda vai adiante quando afirma o caráter tecnológico da escrita e revela a equivalência entre a reação do filósofo e a postura que alguns mantêm, ainda hoje, contra o desenvolvimento tecnológico: Platão estava pensando na escrita como uma tecnologia externa, estranha, como muitas pessoas hoje pensam sobre o computador. (...) A

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escrita (e especialmente a escrita alfabética) é uma tecnologia que pede o uso de ferramentas. (...) Não há meios de se escrever “naturalmente”. (...) Tecnologias são artificiais, mas – paradoxo de novo – a artificialidade é natural para os seres humanos (ONG, 1982, pp. 181-182).

Uma fragilidade do discurso de Platão, apontada por Ong, é que ele precisou escrever o texto no qual se insurgiu contra a escrita. Como, hoje, os que se queixam do computador e pagam suas contas por códigos de barra em leitores ópticos. Mas Platão está historicamente situado no alvorecer da fixação pictórica do alfabeto: ele conheceu o mundo antes dela. Se, para nós, é inconcebível pensar um mundo sem a escrita, é também cada vez mais difícil pensar no mundo antes da popularização da cultura digital. Então, podemos imaginar um mundo sem a gravação e a difusão sonoras? O mundo da oralidade ainda não descorporificada? A quase total impossibilidade desse exercício imaginativo nos revela a importância da escuta acusmática para nossa cultura e como ela nos é “natural” hoje em dia. A cultura digital reforçou ainda mais o que já nos parecia hegemônico. É comum, nas grandes cidades, que pessoas de quase todas as faixas etárias e classes sociais portem seus pequenos aparelhos sonoros, sejam celulares ou tocadores de mp3. 7 A GRAVAÇÃO A captura do eu que soa nasceu bem mais tardia e problemática do que o eu que nossos olhos inventam. Tida como incapturável, a voz sempre foi ouvida de dentro para fora. Livre e expansiva por natureza, desrespeitando barreiras físicas, acostumou-se a viver atravessando paredes e se lançando em vales distantes. O grito constitui-se num extremo que pode variar desde uma violência a um susto ou a um lamento. O sussurro, oposto em intensidade ao berro, em sua confidencialidade misteriosa, porta os significados mais privados. Não faz muito tempo a voz era sempre “em presença”, tanto por precisar da presença quanto por trazê-la. Comentar a ausência de alguém é buscá-lo, é trazê-lo para o espaço psíquico que só a imaginação auditiva cria. Tenta-se tirar uma fotografia do som com uma gravação. Mas não se consegue congelar o tempo como na foto. A gravação de um som é

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sempre um som em movimento. Som é movimento. Então, a fotografia do som só é possível em seu cinema. O som reproduz-se na reprodução de seu movimento. A manipulação de um som é sua escultura, é a alteração de suas qualidades físicas por meios técnicos e sua colocação no espaço. Mas mais uma vez não se consegue congelá-lo como na maioria das esculturas. O som é sempre quente e se transforma no tempo. O som é fogo, é necessariamente transformação, o som é água, é fluxo, mesmo ao repetir-se. Percebe-se um pássaro que voa no escuro pelo bater de suas asas. Não o vemos, mas escutamos seu movimento. Uma mosca que voa rapidamente e não é vista pode ser nitidamente percebida pelo zumbido que produz. Por outro lado, não se pode escutar uma cadeira parada no espaço. Também não se pode escutar o movimento de uma expressão facial. Então, num extremo da visão encontra-se a mudez da imobilidade e de alguns movimentos inaudíveis, no extremo da escuta encontra-se o movimento das coisas invisíveis. Mas a imobilidade pertence ao olhar, o som é sempre fruto de movimento. A imobilidade desafia o tempo, congelada em sua mudez. O movimento na cena pode oscilar entre o que é só escutado, o que é só visto e o que é visto e escutado. Pensando-se na ligação entre o universo sonoro e a cena, podemos traçar mais um paralelo entre o visual e o aural conforme nos é apresentado por Rodríguez (2006), desta vez no que diz respeito à continuidade. A visão migra de um ponto a outro. O olhar é inquieto, está o tempo inteiro trocando de objeto. Se repararmos no movimento que fazemos com os olhos, notaremos que raramente nos fixamos num mesmo ponto por muito tempo. Se vemos alguém com o olhar fixo, interpretamos essa atitude concluindo que não está olhando para nada, ou melhor, olhando para o nada, ou ainda, que nem mesmo está vendo, apenas absorto em seus pensamentos. Em todo caso, o comportamento “normal” do olhar humano é sua inquietude, não só com relação ao seu objeto de foco, mas, inclusive, movimentando-se ao acompanhar o movimento de seus pensamentos. Pode-se saber se uma pessoa está se lembrando, projetando ações futuras, formando imagens ou verificando suas sensações internas, somente analisando o movimento dos olhos. Assim, a experiência visual é necessariamente descontínua, fato ainda acentuado por nosso constante piscar. Nesse

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sentido, a audição é bem mais estável que a visão. Se pensarmos no ambiente que nos circunda e ficarmos atentos aos nossos movimentos visuais e auditivos, poderemos perceber que a familiaridade do ambiente sonoro ao nosso redor é responsável pela sensação de continuidade. Qualquer alteração marcante na paisagem sonora que nos rodeia imediatamente nos solicita atenção. CONSIDERAÇÕES FINAIS A audição, apesar de ser um sentido de importância fundamental para o ser humano, ainda é pouco abordada nos estudos humanísticos e sociais. Saindo do escopo das análises técnicas e dos domínios especificamente musicais, as iniciativas que não só buscam a escuta como tema, mas que se pautam por uma abordagem mais aural das questões apresentadas, ainda são muito escassas. É preciso que as ciências humanas e sociais prestem um pouco mais de atenção ao “ouvir dizer” para, dessa forma, descobrir novas camadas de entendimento de seus objetos e campos e, assim, adensar ainda mais nossa eterna busca pelo conhecimento. Este artigo, mais do que informar ou criar novas relações entre conhecimentos já existentes, buscou fazer uma provocação ao leitor/ ouvinte (ou seria melhor escutador?). Para além da teleologia, ele pretendeu se espraiar num campo entrópico, numa rede de interrelações que se entrecruzam discretamente, subjacentes, porém plenas de vida e movimento. O que se deseja, aqui, é chamar a atenção para “vozesobjeto” que gritam, cantam e sussurram em busca de ouvidos que as encontrem em seu trajeto errático. Errar é não temer, é vagar sem propósito, mas não sem consequências, é apreender sentidos e colher sensações rumo a uma cultura menos funcionalista. A escuta é hoje o que podemos chamar de uma “minoria conceitual”, com todos os paralelos que o conceito de minoria possa atrair. Esse desfavorecimento do sentido da audição esconde a resistência por uma cultura aural, menos diretiva, menos retilínea, frontal, monolítica e mais aberta às influências de direções inesperadas, de vetores “des-hierarquizados”, rizomáticos, intuições, saberes por “ouvir dizer”, tradição oral, contação de histórias, transmissão de conhecimento interpessoal direto, corporificado e não apropriável.

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Talvez essa necessidade de maior abertura da escuta seja sintomática de algo bem maior e oculto que permeia todo esse discurso. Talvez uma sociedade mais voltada para a escuta se confunda com uma sociedade que recebe o outro com ouvidos mais atentos. Talvez a utopia da escuta se confunda com a utopia de uma sociedade da aceitação da liberdade do indivíduo, uma sociedade mais despreocupada com as idiossincrasias e opções de cada um e mais atenta ao que concerne às condições do humano e do mundo que o cerca.

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A EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL: O RETORNO PRIVADO E AS RESTRIÇÕES AO INGRESSO Márcia Marques de Carvalho

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A educação superior é um elemento importante para a obtenção de qualificação e emprego no mercado de trabalho. No Brasil, apesar do avanço educacional dos últimos anos, as pessoas que conseguiram ingressar no curso de graduação e concluí-lo têm salário em média 2,7 vezes maior do que aquelas que pararam seus estudos no ensino médio. Apesar do alto retorno privado desse nível de ensino, no Brasil existem 29 milhões de pessoas que não frequentam o ensino superior, segundo o IBGE. O objetivo principal deste trabalho é caracterizar a demanda potencial para o ensino superior e identificar, com a aplicação do modelo de regressão logística, quais são os determinantes do ingresso. A idade é importante? Estar trabalhando é uma restrição ou um impulso à entrada no ensino superior? Palavras-chave: educação superior, graduação, mercado de trabalho Higher education is an important element for obtaining qualifications and employment in the labor market. In Brazil, despite the educational development of recent years, people who managed to enter and complete the degree course has an average salary 2.7 times higher than those who quit their studies in high school. Despite the high private returns of higher education in Brazil there are 29 million people who do not attend higher education, according to IBGE. The main objective of this paper is to characterize the potential demand for higher education and to identify in the application of logistic regression model, what are the characteristics that are associated with admission to higher education public and private. Does the individual’s age important? The fact that the individual be working is a constraint or an impulse to the higher education? Keywords: higher education, degree course, labor market

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INTRODUÇÃO O Brasil teve um bom desempenho em termos da educação da população nos últimos 15 anos: em 1995 os adultos com idade entre 25 a 64 anos tinham, em média, 5,6 anos de estudos. Em 2009 esse valor cresceu para 7,7, segundo dados do IBGE. Apesar desse avanço, ainda é grande a proporção de brasileiros com até o nível fundamental, atingindo aproximadamente a metade da população adulta em 2009 (54,3%). Houve um aumento contínuo da parcela dos adultos com ensino médio (de 15,2% para 30%) e um progresso lento da educação superior (de 6,5% para 10,9%). A educação afeta diversos aspectos da vida social e econômica, traz vantagens tais como aumento da remuneração e menor exposição ao desemprego. As pessoas com mais tempo de estudo têm mais chances de conseguir e manter um emprego e o desemprego atinge de forma diferenciada as pessoas com nível superior – em média sendo apenas a metade do que ocorre com os demais níveis de escolaridade. Além de reduzir a taxa de desemprego, outro “prêmio” da educação é o aumento da remuneração. Observamos que, em 2009, os indivíduos que concluíram o ensino fundamental possuíam rendimento 65% menor do que aqueles que avançaram nos estudos e concluíram o ensino médio. No mercado de trabalho brasileiro, o rendimento médio do trabalhador com ensino superior é 2,6 maior do que o rendimento médio do trabalhador que parou os estudos no ensino médio. Essa diferença é especialmente elevada se comparada aos países europeus e também aos países da América Latina. Por que, apesar do enorme retorno da educação superior no Brasil, muitos brasileiros, hoje, não possuem esse nível de ensino? Atualmente existem no Brasil 29 milhões de pessoas com ensino médio completo que não frequentam o ensino superior, segundo o IBGE1. Se todas essas pessoas ingressassem no ensino superior, não teríamos vagas suficientes: em 2009, esse nível de ensino dispunha de apenas três milhões de vagas no vestibular e em outros processos seletivos, segundo o Censo da Educação Superior do Inep. 1

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009.

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Quem são os felizardos que conseguiram ingressar no ensino superior? Quais são as barreiras que impedem o acesso a ele? Este artigo tem como objetivo principal identificar quais são os determinantes do acesso ao ensino superior (público e privado) no Brasil. Procura responder também às seguintes perguntas adicionais: a renda da família é a variável que mais contribui para o acesso ao ensino superior? O fato de o indivíduo estar trabalhando é uma restrição ou um impulso à entrada no ensino superior? 1 OS BENEFÍCIOS PRIVADOS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO BRASIL Esta seção apresenta algumas evidências da motivação de se cursar o ensino superior no Brasil, em termos dos benefícios apropriados pelo indivíduo. Para tanto, vamos utilizar os microdados do censo demográfico de 20002 do IBGE. Do total de observações disponíveis nesse enorme banco de dados, foram incluídas somente as pessoas de 25 a 64 anos com pelo menos o ensino médio completo e que faziam parte da população economicamente ativa, ou seja, que estavam trabalhando na semana de referência da pesquisa ou que estavam procurando emprego. A Tabela 1 comprova que a taxa de desemprego3 dos indivíduos com ensino superior é metade daquela dos com ensino médio. O rendimento médio por hora dos concluintes do curso de graduação (R$ 54,36) é 2,6 vezes maior que o rendimento médio dos trabalhadores com ensino médio (R$ 21,07). Para aqueles que avançaram ainda mais nos estudos e completaram o mestrado ou doutorado, o salário médio por hora é R$91,53, cerca de quatro vezes maior do que aqueles que pararam os estudos no ensino médio. Observe que, independentemente do curso de graduação concluí­ do, o rendimento médio por hora é maior que o rendimento dos   Até a data de apresentação deste artigo, os microdados do censo demográfico de 2010 não estavam disponibilizados pelo IBGE. O motivo para utilizar o censo em vez da Pnad é devido ao fato de o censo ser a única pesquisa que coleta a informação do curso de graduação mais elevado concluído. 3   A taxa de desemprego foi calculada como a razão entre o número de pessoas à procura de emprego sobre o total de pessoas economicamente ativas. 2

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trabalhadores com ensino médio. Entretanto, podemos destacar que o rendimento médio por hora dos formados em medicina, engenharia e direito é superior ao rendimento médio da graduação. Por outro lado, os concluintes de ciências contábeis e atuariais, matemática, enfermagem, educação física, recebem um salário médio por hora inferior à média dos cursos de graduação no Brasil. O fato reflete as forças de oferta e demanda do mercado de trabalho, uma vez que o salário é o preço que o mercado paga pela mão-de-obra especializada. Quanto maior a oferta, menor será seu preço, quanto menor a oferta, maior será o preço que o mercado pagará por ela. Tabela 1 Taxa de desemprego e rendimento médio por hora das pessoas de 25 a 64 anos, segundo o curso mais elevado concluído – Brasil – 2000

Curso mais elevado concluído

Pessoas de 25 a 64 anos Total

%

ENSINO MÉDIO

10.963.581 -

ENSINO SUPERIOR - GRADUAÇÃO

5.034.129

Rendimento Taxa de médio por desemprego hora (R$) 10,9%

100,0% 4,9%

21,07 54,36

Administração

598.592

11,9%

5,9%

62,11

Agronomia

66.766

1,3%

4,1%

62,27

Arquitetura e Urbanismo

63.059

1,3%

4,8%

61,55

Artes

94.065

1,9%

6,6%

43,17

Biblioteconomia

21.437

0,4%

6,6%

41,73

Biologia

99.697

2,0%

4,6%

37,43

Ciências

25.404

0,5%

3,9%

29,79

Ciências Contábeis e Atuariais

271.981

5,4%

5,1%

48,16

Ciências da Computação

101.596

2,0%

4,3%

54,60

Ciências e Estudos Sociais

79.904

1,6%

6,0%

37,23

Ciências Econômicas

178.810

3,6%

5,1%

72,38

Comunicação Social

145.633

2,9%

8,4%

57,49

Direito

569.799

11,3%

4,2%

76,08

Educação Física

135.759

2,7%

4,0%

37,70

Enfermagem

78.514

1,6%

3,3%

39,45

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Pessoas de 25 a 64 anos Total

%

Rendimento Taxa de médio por desemprego hora (R$)

Engenharia Civil

141.049

2,8%

3,6%

79,71

Engenharia Elétrica e Eletrônica

79.916

1,6%

3,5%

76,94

Engenharia Mecânica

85.142

1,7%

4,2%

81,24

Curso mais elevado concluído

Engenharia Química e Industrial

29.172

0,6%

4,3%

72,99

Estatística

5.033

0,1%

4,6%

60,00

Farmácia

47.292

0,9%

2,1%

50,88

Filosofia

30.968

0,6%

5,4%

42,28

Física

11.507

0,2%

4,4%

57,51

Formação de Professor

7.035

0,1%

4,1%

52,73

Geografia

72.025

1,4%

3,8%

31,24

Geologia

5.742

0,1%

5,2%

74,23

História

106.145

2,1%

4,0%

32,56

Letras

342.498

6,8%

4,5%

35,37

Matemática

123.644

2,5%

2,5%

40,83

Medicina

209.118

4,2%

1,5%

92,44

Medicina Veterinária

32.046

0,6%

3,1%

55,75

Odontologia

124.363

2,5%

1,7%

68,60

Pedagogia

530.790

10,5%

5,4%

32,67

Propaganda e Marketing

16.990

0,3%

6,8%

64,68

Psicologia

131.462

2,6%

7,8%

51,33

Química

30.684

0,6%

3,9%

56,28

Serviço Social

74.393

1,5%

8,1%

36,99

Teologia

31.139

0,6%

3,4%

27,27

Outros cursos de Engenharia

66.448

1,3%

3,9%

92,08

Outros de Ciências Biológicas e da Saúde

80.419

1,6%

6,4%

44,48

Outros cursos de Graduação

88.091

1,7%

6,0%

50,18

MESTRADO OU DOUTORADO

282.200

100,0% 2,1%

91,53

Fonte: Tabulação da autora com base nos microdados do censo demográfico de 2000 do IBGE.

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Fernandes e Narita (2001) fizeram um estudo descritivo semelhante, estimando os diferenciais de rendimento por área de formação do ensino superior em relação à média dos trabalhadores com nível superior, com base nos censos demográficos de 1980 e 1991. Eles concluíram que os diferenciais de renda entre as áreas de formação são bastante significativos. 1.1 EQUAÇÕES MINCERIANAS TEÓRICAS PARA ESTIMAR O RETORNO EDUCACIONAL A análise dos diferenciais de rendimentos até o momento não considerou alguns fatores que são importantes para a determinação do salário de um trabalhador, tais como a idade ou os anos de experiência no trabalho, a posição na ocupação (se empregado, empregador ou conta-própria), o ramo de atividade (se comércio, indústria ou serviços) e a região de moradia. A melhor forma de incorporar esses fatores na análise dos rendimentos é pelo uso de uma equação. Mincer (1974) foi o pioneiro a estimar o retorno da educação através de uma equação em que o logaritmo dos rendimentos seria relacionado com os anos de estudo do indivíduo. A forma mais simples da equação minceriana de rendimento é 1n Ysi = α + r s s i + ui (1), em que Ysi é o rendimento do indivíduo i com s anos de investimento em educação, rs é a taxa de retorno do s-ésimo ano de educação, si é o número de anos de escolaridade completados pelo indivíduo i, ui é o termo aleatório e i = 1,2,...,n. O modelo (1) parte do pressuposto de que os rendimentos individuais estão diretamente relacionados com o montante de capital humano acumulado pelo indivíduo ao longo da vida. Esse modelo supõe também que o indivíduo ingressa no mercado de trabalho imediatamente após o período de educação formal, e que não trabalhem durante a acumulação do capital humano, deixando de ganhar uma renda que seu nível educacional permitiria (custo de oportunidade). Logo, o modelo também pressupõe que o estoque de capital humano do indivíduo não se eleva após sua entrada no mercado de trabalho.

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Segundo Becker (1993)4 e Schultz (1961) o contínuo desenvolvimento de habilidades é aprimorado na execução das tarefas. Visando captar os efeitos dos investimentos após a educação formal, Mincer ampliou o seu modelo com a inclusão da variável experiência: ln Yi = a + b 1 S i + b2 Ji + b3 Ji2 + ui (2), em que: lnYi é o logaritmo natural do rendimento do indivíduo i Si = anos de escolarização ou instrução formal do indivíduo i Ji = anos de experiência no mercado de trabalho do i-ésimo indivíduo a = constante b1 = taxa de retorno à escolarização b2 = taxa de retorno à experiência b3 = coeficiente do quadrado da experiência que represente o perfil rendimento-idade côncavo para baixo ui = termo aleatório5 i = 1,2,...,n De acordo com o modelo (2), anos adicionais de estudo e de experiência no trabalho proporcionam rendimento mais elevado (b1 > 0 e b2 > 0), porém com retorno decrescente a partir de certo período (b3 < 0). Isso significa que em algum momento, devido à depreciação do estoque de capital humano do indivíduo, os aumentos ocorrem de forma decrescente. A taxa de retorno do investimento em educação do modelo ampliado (b1) difere da encontrada no modelo mais simples (rs) porque o modelo ampliado mede a taxa de retorno à educação isoladamente dos efeitos da experiência. O modelo ampliado supõe que as taxas de retorno à educação formal e ao investimento após a escola são iguais para todos os indivíduos. Isso equivale a admitir que no mercado de trabalho haja informação perfeita, mobilidade total dos agentes e ausência de forças monopolistas e monopsonistas, ou seja, mercado de trabalho em concorrência perfeita.   Human Capital, de Becker, foi publicado originalmente em 1964 e reeditado em 1993. 5   O termo aleatório representa um grande número de pequenas causas. São fatores que perturbam a relação, tais como a imprevisibilidade do comportamento dos indivíduos, as variáveis omitidas e os erros de medida. 4

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A variável educação no modelo (2) está especificada como uma variável contínua (anos completos de estudo). Para estimar o retorno de cada nível de escolaridade, pode-se substituir essa variável por duas variáveis binárias para distinguir os três níveis de escolaridade: ensino fundamental, médio e superior. Note-se que a denominação utilizada significa que o correspondente nível de escolaridade foi completo (Sj), obtendo o respectivo diploma, que é o que o mercado considera na hora da contratação, o chamado efeito “diploma”. Como o objetivo deste trabalho é estimar o retorno da educação superior, a variável S será 1 se o indivíduo i completou o ensino superior e 0 se parou os estudos no ensino médio: ln Yi = a + λ0 S i + b2 Ji + b3 Ji2 + ui (3). Aprimorando a equação (3) para captar o efeito “formação” ou “profissão”, as dummies (Fj) representarão os 19 cursos de graduação selecionados da base de dados. Assim, o j representará a taxa de retorno do formando no curso de graduação j: ln Yi = a + ∑j λj F j i + b2 Ji + b3 Ji2 + ui (4). As características do emprego e do mercado de trabalho na região de residência do indivíduo também são importantes na determinação do salário. Por esse motivo, o termo ∑j δj Mi j será adicionado à equação (4) e serão incluídas variáveis representando os domicílios urbanos: quatro variáveis binárias para as regiões (Nordeste, como base), três variáveis binárias para distinguir quatro categorias de posição na ocupação (empregado com carteira assinada, empregador, conta-própria e empregado sem carteira assinada), sendo esta última categoria tomada como base: ln Yi = a + ∑j λjFji + b2 Ji + b3 Ji2 + ∑j δjMij + ui (5). Um problema bastante ressaltado nos trabalhos especializados em analisar a relação entre educação e rendimento é o fato de não serem incluídas na equação determinadas habilidades individuais, tais como a persistência, a ambição, a iniciativa e o desembaraço; ou fatores ligados às condições socioeconômicas da família6. O problema é que essas características não são facilmente mensuráveis ou não estão incluídas nas bases de dados. Como a equação a ser estimada neste trabalho considera os retornos do ensino superior comparado aos do ensino médio, as habilidades individuais e da característica da família estão supostamente relacionadas ao fato de o indivíduo ter ingressado no ensino superior e o concluído naquela área de formação.

6

Para mais detalhes sobre essa discussão, ver Ueda e Hoffmann (2002).

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Antes de apresentar a equação minceriana estimada para cada curso de graduação, farei uma breve revisão dos trabalhos empíricos sobre a influência da educação no rendimento do trabalho. Gibbon (1975) mensura a taxa de retorno dos investimentos em educação desagregando em regiões e setores (urbano e rural) para o sexo masculino. O autor evidencia a alta estabilidade do investimento em educação no Brasil e enfatiza a contribuição da educação como instrumento de distribuição de renda. Para reduzir o viés de estimação causado pela ausência de variável que capte a habilidade natural das pessoas na equação minceriana ampliada, Lam e Schoeni (1993) acrescentam a escolaridade dos pais na equação de salário tradicional e estimam o modelo com base em uma amostra de homens com idade entre 30 e 55 anos. A Pnad de 1993 coletou a informação da educação dos pais no suplemento. Como principal resultado, eles concluem que o nível educacional do pai da esposa do indivíduo (sogro) apresenta maior efeito sobre o rendimento do indivíduo do que o proporcionado pela educação dos pais. Kassouf (1997) trabalhou com uma amostra de indivíduos com idades entre 18 e 65 anos, diferenciando homens e mulheres e setores urbano e rural. O autor concluiu que os retornos à escolaridade e ao treinamento são maiores no setor urbano do que no rural e, segundo ele, “os trabalhadores urbanos atingem o pico de rendimento mais cedo do que os trabalhadores rurais”. Ramos e Vieira (1996) estimam simultaneamente os retornos à educação diferenciados por cinco níveis educacionais completos (analfabeto, primário, ginásio, colegial e superior), numa amostra de homens ocupados, assalariados e com idade entre 25 e 65 anos, selecionada nas Pnads de 1976, 1981, 1985 e 1990. Os resultados mostram que os retornos à educação são diferenciados por grupo educacional e que existe um prêmio adicional ao término de cada nível, por eles denominado “efeito diploma”. 1.2 EQUAÇÕES MINCERIANAS ESTIMADAS PARA O RETORNO DOS CURSOS DE GRADUAÇÃO EM 2000 Inicialmente, foi estimado o modelo (3) para mensurar o retorno da formação no ensino superior comparado ao ensino médio, o “efeito

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diploma”. Em seguida, para captar o efeito “formação”, controlado pelas características da posição na ocupação e localização geográfica, foi estimada a equação mais completa, representada pelo modelo (5). A variável dependente é o logaritmo do rendimento por hora de todos os trabalhos das pessoas de 25 a 64 anos, com ensino médio ou ensino superior (graduação) como curso mais elevado concluído. Na Tabela 2, podemos observar que o fato de ter ensino superior aumenta o salário em 153,75%7 comparando-se ao que recebem os trabalhadores com ensino médio. Esse é o “efeito diploma”. A variável idade utilizada neste modelo é proxy da experiência no trabalho e o coeficiente desta variável é a taxa de retorno à experiência. O aumento de um ano de idade/experiência eleva a taxa de variação do salário em 6,7%. Para captar o efeito “área de formação”, foram incluídas dummies na equação 19, representando os seguintes cursos ou áreas de formação: Agronomia, Medicina Veterinária, Medicina, Odontologia, Ciências da Computação, Engenharias, Estatística, Geologia, Matemática, Administração, Ciências Contábeis, Economia, Comunicação Social, Direito, Pedagogia e Letras. Como essas variáveis são dicotômicas, ou dummies, para calcular seu verdadeiro impacto na variação de salários, deve-se aplicar uma correção que consiste em calcular o antilog (função exponencial) do coeficiente estimado da dummy e subtrair 1, segundo Halvorsen e Palmquist (1980). No modelo mais completo estimado (5), o curso com maior retorno esperado é Medicina, com um retorno de 291,2%, ou seja, quase quatro vezes maior que o ensino médio. Engenharia Mecânica e Elétrica, Odontologia e outros cursos de Engenharia possuem retorno superior a 200%. Dentre os cursos analisados com menor retorno podemos destacar Letras e Pedagogia, o que significa que os formandos desses cursos ganham, em média, apenas 59,7% e 46,1% a mais que os trabalhadores com ensino médio, respectivamente. Os cursos de Direito, Economia, Comunicação Social, Estatística, Agronomia, Computação e Medicina Veterinária possuem retorno entre 125% e 180%. Observe que na análise do “efeito formação” não está considerada a ocupação exercida pelo trabalhador. Por exemplo, um médico pode ter como principal ocupação ser gerente ou dirigente da sua própria 7

Antilog de 0,931 menos 1; correção de continuidade.

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empresa. Nesse caso, ele exerce atividade administrativa e não de médico. O salário corresponde a de um gerente ou empresário e não de um médico. O desvio ocupacional não está incluído na equação minceriana. Com relação aos outros fatores que afetam o rendimento do trabalhador, pode-se destacar que os trabalhadores urbanos ganham em média 35,1% mais que os trabalhadores rurais; os trabalhadores do Sudeste e do Centro-Oeste ganham salários cerca de 40% superiores aos dos trabalhadores do Nordeste. Tabela 2 Coeficientes Estimados1 e Erro-Padrão dos modelos (3) e (5) – Brasil – 2000 Modelo (3)

Modelo (5)

Variáveis

Coeficiente Std. Error

Coeficiente Correção2 Std. Error

(Constant)

0,867

0,013

0,170

-

0,013

Idade

0,067

0,001

0,076

-

0,001

Idade 2

0,000

0,000

-0,001

-

0,000

Educação Superior

0,931

0,002

-

-

-

Medicina

-

-

1,364

2,912

0,006

Administração

-

-

0,776

1,173

0,004

Direito

-

-

1,035

1,815

0,004

Pedagogia

-

-

0,379

0,461

0,004

Letras

-

-

0,468

0,597

0,005

Contabilidade

-

-

0,638

0,893

0,005

Economia

-

-

0,905

1,472

0,007

Comunicação Social -

-

0,811

1,250

0,008

Engenharia Civil

-

-

1,072

1,921

0,007

Engenharia Mecânica

-

-

1,100

2,004

0,009

Engenharia Elétrica

-

-

1,119

2,062

0,010

Geologia

-

-

1,043

1,838

0,036

Outros-Engenharia

-

-

1,163

2,200

0,011

Odontologia

-

-

1,126

2,083

0,008

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

93


Modelo (3)

Modelo (5)

Variáveis

Coeficiente Std. Error

Coeficiente Correção2 Std. Error

Estatística

-

-

0,967

1,630

0,040

Matemática

-

-

0,587

0,799

0,008

Agronomia

-

-

0,829

1,291

0,010

Computação

-

-

0,984

1,675

0,009

Med.Veterinária

-

-

0,848

1,335

0,015

Urbano

-

-

0,301

0,351

0,004

Norte

-

-

0,199

0,220

0,004

Sudeste

-

-

0,391

0,478

0,002

Sul

-

-

0,289

0,335

0,002

Centro-Oeste

-

-

0,363

0,438

0,003

Empregado com Carteira

-

-

0,042

0,043

0,002

Empregador

-

-

0,605

0,831

0,003

Conta própria

-

-

0,002

0,002

0,002

Fonte: Tabulação da autora com base nos microdados do censo demográfico de 2000 do IBGE. 1Todos os coeficientes são significativos a 5%. 2Correção de continuidade de variáveis binárias, calculado como ecoef-1.

1.3 RETORNO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR EM 2009 NO BRASIL E EM OUTROS PAÍSES Os dados sobre o retorno do ensino superior apresentados até aqui se referem ao ano de 2000. Qual é a situação do retorno nos dias atuais? A participação de pessoas com ensino médio no mercado de trabalho aumentou de 22% em 2001 para 33% em 2009. O mesmo aconteceu com o ensino superior: um aumento da oferta de 7% da população ocupada em 2001 para 11% em 2009. Porém, como a participação do ensino superior ainda é pequena, comparada a outros países, a razão entre o rendimento médio do ensino superior e do ensino médio continua elevada, variando de 2,9, em 2001, para 3,2, em 2009. Devido à relação entre oferta e preço pago pela mão-de-obra, o rendimento médio dos trabalhadores com ensino superior também

94

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011


varia com as regiões geográficas. Um trabalhador com ensino superior, na região Sudeste, ganha em média sete salários-mínimos e, no Centro-Oeste, 8,1 salários mínimos, com uma média nacional de 6,8 salários mínimos. Comparando-se o salário médio dos trabalhadores com ensino superior e o salário médio dos com ensino médio, a região Nordeste é a que possui a maior diferença de salário entre os níveis de ensino (3,9) e a menor proporção de pessoas no mercado de trabalho com ensino superior (6%). Tabela 3 Classes de rendimentos da população ocupada, em salários mínimos (SM) – 2009 Classes de rendimento mensal de todos os trabalhos

Regiões Geográficas Brasil Norte

Nordeste

Sudeste Sul

CentroOeste

77%

81%

71%

70%

72%

16%

12%

21%

23%

20%

2%

1%

2%

2%

3%

ENSINO MÉDIO Até 3 salários mínimos 74% (SM) (até R$ 1.395) Mais de 3 a 10 SM 19% (de R$ 1.395 a R$ 4.650) Mais de 10 SM 2% (mais de R$ 4.650) Sem declaração

5%

5%

6%

5%

5%

5%

Total

100%

100%

100%

100%

100%

100%

Rendimento médio, em SM (Ensino Médio)

2,1

1,9

1,6

2,3

2,5

2,5

31%

36%

40%

28%

32%

28%

48%

40%

46%

49%

44%

12%

16%

18%

16%

24%

ENSINO SUPERIOR Até 3 SM (até R$ 1.395)

Mais de 3 a 10 SM 45% (de R$ 1.395 a R$ 4.650) Mais de 10 SM 18% (mais de R$ 4.650) Sem declaração

6%

4%

4%

8%

4%

5%

Total

100%

100%

100%

100%

100%

100%

5,8

6,1

7,0

6,4

8,1

Rendimento médio, 6,8 em SM (Ensino Superior)

Fonte: Tabulações da autora com base nos microdados da Pnad de 2009 do IBGE. Na data da pesquisa (em setembro de 2009) o salário mínimo era de R$ 465.

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

95


Comparando-se os resultados brasileiros aos de 16 países europeus, observa-se que o retorno da educação terciária é, em média, apenas uma vez e meia a do nível médio. Isso significa que no Brasil o retorno médio da educação superior é 73% superior a seu equivalente para países europeus. Na França e no Canadá, o retorno é de 1,4, na Itália, de 1,6 e na Hungria, de 2,1. Isso ocorre porque nesses países o percentual médio de adultos com nível superior é de 22%; no Canadá e nos EUA, mais de 35% da população adulta possui ensino superior. Menezes-Filho (2001) mostrou que o Brasil possui um dos maiores retornos à educação entre vários países da América Latina e do Caribe. Uma vez comprovado empiricamente o ainda substancial retorno do ensino superior no Brasil, pergunta-se qual é o perfil das pessoas que estão atualmente matriculadas nesse nível de ensino, ou seja, que conseguiram ingressar na universidade. Qual o perfil dos indivíduos aptos ao ingresso devido à conclusão do ensino médio e que não ingressaram? É o que veremos na próxima seção. 2 PERFIL DA DEMANDA POTENCIAL AO ENSINO SUPERIOR No início dos anos 2000, o governo instituiu uma meta para o ensino superior em 2010: matricular 30% da população de 18 a 24 anos. Já estamos em 2009 e apenas 15% da população de 18 a 24 anos está matriculada no ensino superior; 16%, em outros níveis de ensino (fundamental ou médio) e os 70% restantes não estão estudando. Para atingir a meta de matricular 30% da população de 18 a 24 anos de idade, que totalizava 6,9 milhões de pessoas em 2009, o Brasil precisaria duplicar o número de vagas existentes no ensino superior, que, em 2009, eram 3,2 milhões, segundo o Inep. Em 2001, o número de vagas oferecidas no ensino superior era inferior ao número de concluintes do ensino médio. Mas, em 2005, esse problema já não existia, pois o número de vagas oferecidas era 30% superior ao fluxo de concluintes do ensino médio daquele ano (Gráfico 1). Em 2009, o número de vagas superou o fluxo de concluintes do ensino médio em 76%. Isso significa que pelo menos nos últimos cinco anos não houve insuficiência de vagas no ensino superior para atender o fluxo corrente dos concluintes do ensino médio. Entretanto, enquanto o número de vagas no ensino superior cresceu 124%

96

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011


na última década, o número de ingressantes pelos processos seletivos cresceu apenas 45%, o que indica que o gargalo está no ingresso e não nas vagas oferecidas. Gráfico 1 Concluintes do ensino médio, candidatos, vagas e ingressos no ensino superior de graduação (em mil pessoas) – Brasil – 2001, 2005 e 2009 Concluintes do Ensino Médio

Candidatos Inscritos¹

Vagas oferecidas

Ingressos

6,500

6,223

6,000 5,500 5,061

5,000 4,500

4,260

4,000 3,500

3,165

3,000 2,436

2,500 2,000 1,500

1,855

1,859

1,797

1,408

1,511

1,397 1,037

1,000 500 -

2001

2005

2009

Fontes: Censo da Educação Superior e Sinopse Estatística da Educação Básica (Inep). ¹Candidatos inscritos no vestibular e em outros processos seletivos.

Barros et al. (2007, p. 82) apontam que no início da década o gargalo do ensino superior era a insuficiência de vagas, e isso causou um substancial estoque de demanda não atendida. Segundo os dados da Pnad de 2009, das 29,3 milhões de pessoas de 16 a 40 anos8 com ensino médio completo, apenas 19,4% estavam cursando o ensino superior, ou seja, um estoque de 23,6 milhões de pessoas que poderiam estar cursando o ensino superior (demanda potencial). A Tabela 4 indica as principais características dessa demanda potencial (coluna B), das 5,6 milhões de pessoas que estavam cursando   Esse grupo etário representa 95% dos estudantes das Instituições de Ensino Superior (IES) públicas e 92% dos estudantes das IES privadas.

8

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

97


o ensino superior em 2009 (coluna C) e, entre estas, as matriculadas no ensino público (coluna D) e no ensino privado (coluna E). Segundo esses dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), 77 % das pessoas matriculadas no ensino de graduação estudavam em instituições privadas e 23% em instituições públicas (federais, estaduais ou municipais). Tabela 4 Perfil da demanda potencial ao ensino superior (estoque de diplomados do ensino médio) – Brasil – 2009

Variável

Indivíduos

Sexo

Estado civil

Condição de ocupação Rendimento mensal familiar per capita (R$) Idade

98

Pessoas de 16 a 40 anos com ensino médio completo¹ Frequenta o ensino superior? Categorias Total Sim Não (A) Total Público Privado (B) (C) (D) (E) Nº (mil pessoas) 29.392 23.695 5.697 1.310 4.387 Em %

100,0

80,6

19,4

-

-

Em %

-

-

100,0

22,9

77,1

Masculino

46,1

46,7

43,3

46,8

42,2

Feminino

53,9

53,3

56,7

53,2

57,8

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Solteiro

61,6

57,5

78,4

84,9

76,53

Casado

35,2

39,0

19,3

13,7

21,02

Outro

3,2

3,5

2,2

1,4

2,5

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Ocupadas

73,9

75,5

67,4

53,4

71,5

Não ocupadas

26,1

24,5

32,6

46,6

28,5

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Média

721

622

1.140

1.082

1.157

83%

74%

86%

28

25

23

25

-12%

-16%

-11%

Variação da média Média Variação da média

27

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011


Variável

Categorias

Norte Região geográfica

Posição relativa do rendimento familiar²

Pessoas de 16 a 40 anos com ensino médio completo¹ Frequenta o ensino superior? Total Sim Não (A) Total Público Privado (B) (C) (D) (E) 7,7 7,7 7,8 12,2 6,4

Nordeste

23,5

24,2

20,5

29,9

17,7

Sudeste

46,9

47,1

45,8

33,6

49,5

Sul

14,4

13,7

17,0

14,9

17,6

Centro-Oeste

7,6

7,2

9,0

9,4

8,9

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

20% + pobres 20% intermediários 20% meio 20% intermediários + 20% + ricos

10,3

7,5

3,3

5,7

3,3

15,8

9,6

6,9

10,0

6,9

19,1

13,1

12,1

12,7

12,1

27,1

22,8

25,0

23,0

25,0

27,7

47,0

52,7

48,5

52,7

Total

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

100,0

Fonte: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2009. Tabulação do autor. ¹Nível de instrução mais elevado concluído. ²Os quintis que separam as famílias nesses grupos são: R$ 584, R$ 1.000, R$ 1.530 e R$ 2.605 em reais de 2009.

As pessoas com ensino médio completo no Brasil são, em sua maioria, mulheres (53,9%); solteiras (61,6%); com trabalho (73,9%); com rendimento mensal familiar per capita de R$721; com idade média de 27 anos, residentes na região Sudeste (46,9%) e 55% delas pertenciam ao grupo de 40% das famílias mais ricas do Brasil. A diferença entre as colunas (B) e (C) é um indicativo da fronteira/ barreira do acesso ao ensino superior. Pode-se observar a diferença entre a idade e a renda familiar per capita entre os ingressantes (coluna C) e os não ingressantes (coluna B): de 25 para 28 e de R$1.140 para R$622. A renda dos ingressantes é 83% superior à renda dos não ingressantes e a diferença etária média é de três anos. Isso indica que a renda familiar e a idade parecem ter uma grande contribuição ao ingresso no ensino superior. O acesso ao ensino superior público é maior nas regiões Norte e Nordeste (42,1%) se comparado ao ensino privado (24,1%) e é maior

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

99


também no grupo das 40% famílias mais pobres (15,7%) se comparado ao ensino privado (10,2%). Os dados da Pnad não possuem informação do tipo de escola cursado anteriormente. Ou seja, no caso de uma pessoa matriculada no ensino superior atualmente, sabemos se essa instituição é pública ou privada, mas não existe informação sobre o tipo de ensino médio cursado. Outra falha da Pnad é não pesquisar qual curso superior o aluno está cursando (Medicina, Engenharia etc.). É possível obter o perfil dos ingressantes por área de formação nos cursos avaliados pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enade). A próxima subseção apresenta algumas informações sobre os ingressantes do ensino superior. 2.1 PERFIL DOS INGRESSANTES POR CURSO Com base no perfil dos ingressantes dos cursos de graduação fornecidos pelo Enade nos últimos anos disponíveis (2006 a 2008), aproximadamente seis em cada dez ingressantes no ensino superior cursaram o ensino médio todo em escola pública. O perfil do ingressante é diferenciado segundo o curso. Observe-se na Tabela 5 que a incidência de ingressantes com pai com ensino superior é muito maior em Medicina que em outros cursos e extremamente menor em Pedagogia, Letras, Matemática e Geografia. Quanto à renda familiar, nos cursos de Medicina, Odontologia e Arquitetura, mais de 80% dos ingressantes são oriundos de famílias com renda superior a três salários mínimos. Já nos cursos de Pedagogia, Matemática e Letras, menos de 40% das famílias são desse estrato de renda. Como a escolha do curso/formação é feita pelo aluno? Os alunos levam em consideração o retorno esperado em cada carreira? Um estudo feito por Casari (2006), com os dados da Fuvest de 1995 e 1996, para verificar se o retorno esperado do ensino superior é determinante na escolha profissional concluiu que o retorno de cada área de atuação não tem efeito na escolha do curso.

100

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011


Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

101

9.196

41.878

172.291

2008

2007

2006

2008

2006

2006

2006

2007

2006

2007

Direito

Engenharia Civil

Comunicação Social

Psicologia

Ciências Econômicas

Ciência da Computação 2008

2006

Medicina Veterinária

Administração

Fonoaudiologia

Turismo

Fisioterapia

25.411

11.979

2.038

24.720

24.093

15.182

135.595

8.942

12.650

9.395

2007

Arquitetura 75,4

74,8

72,8

66,6

67,1

69,9

70,8

68,0

2,7%

1,3%

0,2% 62,7

62,7

61,4

18,4% 67,8

4,5%

1,0%

2,6%

2,6%

1,6%

14,4% 66,4

1,0%

1,3%

1,0%

74,7

Odontologia

1,7%

15.619

Branco

938.689 100% 63,6

%

2007

Número

Medicina

Ano

37,3

37,3

38,6

32,2

33,4

32,9

30,1

29,2

32,0

33,6

24,6

25,2

27,2

25,3

36,4

37,5

37,4

35,8

52,4

32,2

38,1

42,8

29,3

33,3

39,8

24,4

24,0

22,4

11,4

51,1

37,3

35,0

36,2

30,6

37,8

32,7

29,9

34,2

32,6

28,9

35,4

32,5

33,4

22,1

28,9

23,9

26,2

26,0

16,0

28,7

28,5

26,3

35,5

33,4

30,4

39,3

42,9

43,2

66,0

19,8

44,8

49,4

46,2

60,3

53,0

47,3

46,0

39,4

43,2

41,1

30,3

31,5

26,0

11,4

56,9

39,7

35,7

40,4

25,1

34,3

40,4

38,7

46,0

44,8

41,3

53,5

56,4

58,7

80,5

29,1

Privado

Ensino médio

Ensino Ensino Público médio superior

Educação do pai

Não Ensino Branco fundamental

Como você se considera

TOTAL

Curso

Ingressantes

Tabela 5 Perfil dos ingressantes segundo o curso – Brasil – 2006-2008

35,3

34,9

34,0

33,8

30,6

27,3

26,4

23,5

23,4

22,9

20,7

18,1

15,7

7,0

39,4

Até 3 SM

64,7

65,1

66,0

66,2

69,4

72,7

73,6

76,5

76,6

77,1

79,3

81,9

84,3

93,0

60,6

Mais de 3 SM

Renda familiar


102

Sinais Sociais | RIO DE JANEIRO | v.5 nº15 | p. 82-111 | janeiro > abril 2011

2007

2007

2006

2008

2006

2006

2007

2007

2008

2008

2008

2008

2008

2008

2008

2008

Farmácia

Nutrição

Ciências Contábeis

Ciências Sociais

Arquivologia

Biblioteconomia

Enfermagem

Educação Física

Química

Física

Biologia

História

Matemática

Geografia

Letras

Pedagogia

12,0% 57,6

112.888

53,4

53,4

52,6

53,0

59,2

50,2

60,3

61,0

59,0

56,4

53,5

52,9

62,4

67,9

68,5

71,2

Branco

4,2%

1,0%

2,2%

1,9%

3,0%

0,6%

1,1%

4,5%

5,6%

0,2%

0,0%

0,4%

4,7%

1,4%

2,3%

0,6%

%

42,4

46,6

46,6

47,4

47,0

40,8

49,8

39,7

39,0

41,0

43,6

46,5

47,1

37,6

32,1

31,5

28,8

75,8

67,7

64,7

67,9

63,6

52,8

49,8

50,9

47,6

55,4

53,0

53,1

43,2

61,7

40,9

44,1

40,2

18,2

21,7

24,4

23,0

23,3

29,5

32,4

33,6

33,8

31,1

29,9

29,5

30,0

26,5

34,9

34,4

33,7

5,2

8,6

9,5

7,9

12,0

16,3

17,3

14,7

17,0

12,4

16,1

15,7

24,4

10,8

23,1

20,4

26,1

78,2

73,0

72,9

76,7

67,9

64,9

60,6

63,5

63,8

59,7

62,6

62,8

50,0

69,5

48,7

51,4

46,4

9,4

15,1

16,2

14,6

19,0

24,0

29,0

27,1

21,9

24,5

25,2

23,7

37,6

17,6

38,9

33,8

39,0

Privado

Ensino médio

Ensino Ensino Público médio superior

Educação do pai

Não Ensino Branco fundamental

Como você se considera

39.343

9.812

20.459

17.709

27.790

5.872

10.557

42.517

52.153

1.735

354

4.175

44.006

13.358

21.605

5.367

Número

Fonte: MEC/Inep/Enad. Relatórios de Cursos.

2007

Ano

Agronomia

Curso

Ingressantes

64,5

61,8

61,1

60,6

56,8

53,7

50,9

49,6

48,3

48,2

42,4

42,2

40,4

39,3

35,9

35,7

35,6

Até 3 SM

35,5

38,2

38,9

39,4

43,2

46,3

49,1

50,4

51,7

51,8

57,6

57,8

59,6

60,7

64,1

64,3

64,4

Mais de 3 SM

Renda familiar


A Tabela 5 indica que, segundo informações da família (renda e educação do pai) e do indivíduo (cor e tipo de curso médio), o ingresso nos cursos de ensino superior é diferenciado. Além dessas informações, quais são os outros determinantes de ingresso no ensino superior como um todo? É o que veremos na próxima seção. 3 OS DETERMINANTES DO ACESSO AO ENSINO SUPERIOR Os fatores que determinam o nível de escolarização dos indivíduos abrangem características pessoais circunstanciais (tais como gênero e cor), características pessoais inatas (esforço, determinação, força de vontade), características familiares (escolaridade e renda dos pais) e características regionais (oferta de ensino na região de moradia). O objetivo desta seção é identificar e mensurar os determinantes do acesso ao ensino superior público e privado no Brasil em 2009, considerando essas características a partir de uma regressão logística. A variável resposta Y dessa regressão se refere ao ingresso no ensino superior. Dessa forma Yi = 1 se o indivíduo i ingressou no ensino superior e Yi = 0 se o indivíduo i não ingressou no ensino superior9. Pretende-se identificar com este modelo que características (X) da demanda potencial (indivíduos i) estão associadas ao ingresso ao ensino superior público e privado. O modelo10 especificado é o seguinte: P(Yi = 1 / X ik) ln  = α + ∑k βk X i k + ui (6) P(Yi = 0 / X ik)    onde X é a matriz das características da demanda potencial utilizadas no modelo, representada pelas seguintes variáveis: Fem = 1 se feminino e 0 se masculino Ocup = 1 se o indivíduo trabalhava na semana de referência da pesquisa e 0 se não trabalhava I 25 a 29 = 1 se o indivíduo possui entre 25 e 29 anos e 0 se caso contrário   As pessoas que já concluíram o ensino superior não entraram nesta análise, dado que eles uma vez ingressaram no curso e o terminaram numa determinada época, que pode ter sido há 20 anos, e as condições de acesso não estariam retratadas nas informações atuais. 10   Mais informações sobre o modelo disponível em Neter (1996). 9

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I 30 a 34 = se o indivíduo possui entre 30 e 34 anos e 0 se caso contrário I 35 a 40 = 1 se o indivíduo possui entre 35 e 40 anos e 0 se caso contrário. A categoria base é a de 16 a 24 anos, faixa etária considerada ideal pelo Mec para se cursar o ensino superior Reg = 4 dummies regionais. A categoria base é o Centro-oeste Ricos 20 a 40 = 1 se a renda familiar está entre as 40% e 20% mais ricas do Brasil (renda familiar entre R$ 1.530 e R$ 2.605 em 2009) e 0 se caso contrário Ricos 20+ = 1 se a renda familiar está entre as 20% mais ricas do Brasil (renda familiar acima de R$ 2.605 em 2009) e 0 se caso contrário Ocup = 1 se o indivíduo estava ocupado, trabalhando na semana de referência da pesquisa e 0 se caso contrário Branco = 1 se o indivíduo se autodeclarou da cor branca e 0 se caso contrário (pardo, negro, amarelo, indígena). A Tabela 6 apresenta os parâmetros estimados (β) e as razões de chance (Exp(β)) de cada um dos três modelos de regressão logística estimados: um para o ingresso no ensino superior, um para os que ingressaram no ensino público e outro para o ensino privado. O erropadrão indica a qualidade dos parâmetros estimados: quanto menor, mais confiável é o estimador. A razão de chances mostra a razão entre a probabilidade de o indivíduo ingressar e não ingressar. Isso significa que uma razão de chances igual a 2, que pode ser escrito como 2 dividido por 1, implica que a probabilidade de o indivíduo com essa característica ingressar é duas vezes maior que a probabilidade de ele não ingressar. Quando a razão de chance é menor que 1 significa que é mais provável que o indivíduo com essa característica não ingresse no ensino superior. Como todas as variáveis utilizadas são binárias ou dummies, isto é, com duas categorias possíveis de resposta, a magnitude da razão de chances indica a força da contribuição da variável. As características da demanda potencial que mais contribuem para o ingresso no ensino superior como um todo (público e privado) são, nesta ordem, pertencer ao grupo de 20% das famílias mais ricas do Brasil (renda familiar acima de R$ 2.605 em 2009) e estar na idade ideal para cursar o ensino superior (até 24 anos de idade).

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-0,0831

-0,3652

-0,2629

0,2352

-0,6139

-1,0242

-1,4039

0,7885

1,7133

-0,3133

0,4197

-1,6849

Nordeste

Sudeste

Sul

Fem.

I 25 a 29

I 30 a 34

I 35 a 40

Ricos 20 a 40+

Ricos 20+

Ocup.

Branco

Constant.

-

0,0000

0,0000

-

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0296

0,0172

0,1855

1,5215

0,7310

5,5470

2,2001

0,2456

0,3591

0,5413

1,2652

0,7688

0,6941

0,9202

1,1093

-2,4856

0,4364

-0,8622

1,7016

0,7666

-1,9899

-1,5133

-0,9483

-0,0347

-0,3637

-0,6008

0,2005

0,5577

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,4094

0,0000

0,0000

0,0035

0,0000

Sig.

0,0833

1,5471

0,4222

5,4829

2,1524

0,1367

0,2202

0,3874

0,9659

0,6951

0,5484

1,2220

1,7467

Exp.(B)

-2,1744

0,4295

-0,1697

1,7565

0,8168

-1,2728

-0,9074

-0,5273

0,3239

-0,2393

-0,2990

-0,1711

-0,0728

B

IES Privado

-

0,0000

0,0000

-

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0000

0,0001

0,1396

Sig.

Fonte: Tabulação da autora com base nos microdados da Pnad 2009 do IBGE. ¹Todos os parâmetros estimados são significativos a 5%.

0,1037

B

Exp.(B)

B

Sig.

IES Público

Total

Norte

Variáveis

Tabela 6 Parâmetros estimados¹ (β) e razões de chance (exp(β)) do modelo de regressão logística

0,1137

1,5364

0,8439

5,7921

2,2632

0,2801

0,4036

0,5902

1,3825

0,7871

0,7415

0,8428

0,9298

Exp.(B)


INTERPRETAÇÃO DOS PARÂMETROS ESTIMADOS: a) Região geográfica – a região de residência do indivíduo é estatisticamente significativa a 5% para o ingresso no ensino superior em geral, público e privado, exceto residir na região Norte no ingresso do ensino superior privado. Por outro lado, residir na região Norte aumenta em 74% a chance de ingressar no ensino superior, comparado com os residentes da Região Centro-Oeste; o fato de residir na região Nordeste aumenta em 22,2% a chance de ingressar no ensino superior público. Isso se dá devido ao número de vagas das instituições federais nessas regiões, comparado com o número de habitantes. b) Gênero – ser do gênero feminino aumenta em 26% a chance de ingresso no ensino superior como um todo comparado com os homens e em 38%, a chance de ingressar no ensino superior privado. O gênero não é estatisticamente significativo para o ingresso no ensino superior público. c) Idade – quanto mais distante de 18 a 24 anos for, mais difícil é o ingresso no ensino superior. No caso geral, ter entre 25 a 29 anos é duas vezes mais provável não ingressar do que ingressar (1/2), ter entre 30 a 34 anos é três vezes mais provável não ingressar do que ingressar (1/3), comparando-se com aqueles com 18 a 24 anos. E, finalmente, para aqueles entre 35 e 40 anos, é quatro vezes mais provável não ingressar do que ingressar (1/4). d) Renda – o fato de o indivíduo estar no grupo das famílias mais ricas do Brasil (20% mais ricas) aumenta em cinco vezes a chance de ingressar no ensino superior, comparando-se a outras faixas de renda, tanto no ensino privado quanto no público. A razão de chances (exp.(B)), superior a cinco, mostra o peso do rendimento familiar no ingresso. A alta correlação observada entre renda familiar e acesso ao ensino superior também ocorre em outros países como Bélgica, Alemanha, Hungria e Reino Unido. Carneiro e Heckman (2002) consideram como possíveis fatores determinantes para o fato a falta de dinheiro no momento do ingresso no ensino superior e a falta de acesso a subsídios ou empréstimos. Outra possível causa é o efeito dos antecedentes familiares (background familiar) de longo prazo e os efeitos ambientais, que interferem

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nas capacidades cognitivas e por isso influenciam decisivamente nas escolhas e nos resultados educacionais. e) Estar trabalhando – o trabalho não é um impulso à entrada do ensino superior e sim uma restrição, até mesmo no ensino privado. f) Cor – ser branco aumenta em média 50% as chances de ingresso no ensino superior público e privado. Essa contribuição é pequena, comparada com a renda familiar e a idade. Os modelos econométricos indicaram alguns fatores que influenciam no acesso ao ensino superior. Para verificar o peso/contribuição de cada fator isoladamente, vamos calcular a contribuição marginal de cada variável a partir da Soma dos Quadrados da Regressão (SQRtotal) de cada modelo. Depois calcula-se a SQR quando retiramos cada variá­vel (ou grupo de variáveis, no caso das dummies) do modelo. Quanto maior for a diferença entre o SQRtotal e o SQR sem a variável maior será o peso/contribuição desta variável na explicação de Y. Tabela 7 Contribuição marginal das variáveis ao acesso do ensino superior Variá­veis

Total

eliminadas SQR

IES Público Diferença Contribuição SQR

IES Privado

Diferença Contribuição SQR

Diferença Contribuição

Total

7.691 6.826

100,0%

3.376 3.143

100,0%

5.963 5.275

100,0%

Região

7.480 210

3,1%

3.003 373

11,9%

5.897 67

1,3%

Gênero

7.586 105

1,5%

3.375 1

0,0%

5.803 161

3,0%

Idade

5.569 2.121

31,1%

2.166 1.210

38,5%

4.557 1.406

26,7%

Renda

3.752 3.939

57,7%

2.302 1.074

34,2%

2.611 3.352

63,6%

Ocupação

7.541 150

2,2%

2.990 386

12,3%

5.929 34

0,6%

Cor

7.390 301

4,4%

3.277 99

3,2%

5.709 255

4,8%

Fonte: Tabulação da autora com base nos microdados da Pnad 2009 do IBGE.

Os determinantes ao ingresso no ensino superior são a idade e a renda familiar. Quanto mais jovem, mais chances de ingressar na universidade. A renda familiar tem uma participação maior que a cor no ingresso no ensino superior no Brasil.

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Para ingressar no ensino superior público, a idade do aluno e a renda da família são fatores determinantes, sendo que a região de moradia também é importante devido à oferta de vagas federais nas regiões Norte e Nordeste. Finalmente, para ingressar no ensino privado, a característica que mais contribui é a renda familiar, com um peso maior que no ensino público. Em segundo lugar está a idade. O pequeno peso da característica cor mostra que a política de reserva de vagas raciais não é eficiente, comparada ao peso da renda familiar no ingresso. Matta (2010) corrobora esse resultado numa pesquisa que compara a renda familiar, a educação do pai e a quantidade de automóveis dos ingressantes não cotistas, ingressantes cotistas do ensino médio público e cotistas negros ou pardos nos cursos da UERJ e da UENF. Winther e Golgher (2010), por meio de simulações com os dados do Enem, mensuraram os impactos que políticas de bônus adicional teriam no ingresso de alunos dos diferentes grupos de cor e de rendimento familiar. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como apenas 11% das pessoas de 25 a 64 anos no Brasil possuem ensino superior, o mercado premia esses indivíduos com menos desemprego e mais salário. Afinal, o salário é o preço pago pelo mercado à oferta de trabalho. Em 2000, uma pessoa com ensino superior completo como curso mais elevado concluído recebia, em média, 153,7% mais do que aquela que parou os estudos no ensino médio, ou seja, mais que o dobro. Entretanto, esse prêmio do diploma de educação superior varia muito entre os cursos de graduação. O curso com maior retorno privado é Medicina. As carreiras de educação superior com menor retorno privado são Pedagogia e Letras. Apesar de todo esse retorno, em 2009 o Brasil detinha um estoque de 23,6 milhões de pessoas de 18 a 40 anos de idade aptos a ingressar no ensino superior (demanda potencial). No início dos anos 1980, esse estoque foi causado pela insuficiência de ofertas de vagas. Mas, atualmente, o gargalo está no ingresso no ensino superior. Os dados do Inep, obtidos com os ingressantes dos diferentes cursos, mostram que o acesso é muito desigual entre os cursos de graduação. O modelo de regressão logística estimado sobre as características

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da demanda potencial, indica que o fator que mais contribui para o ingresso no ensino superior é a renda familiar, seguido pela idade considerada ideal (até 24 anos), isto é, logo após a conclusão do ensino médio. O fato de o indivíduo estar trabalhando é restrição ao ingresso no ensino superior (público e privado) e não um impulso, como muitos pensam. Desde o ano 2000 o Brasil possui políticas de ação afirmativa para o ingresso no ensino superior. A UERJ e a UENF foram as pioneiras na implementação de cotas para alunos da rede pública estadual de ensino, para negros e minorias étnicas e para deficientes. Esse sistema, porém, tem sido mais conveniente para um grupo e não para a sociedade como um todo, em termos de custos e benefícios (eficiência). Nesse sentido, políticas de acesso ao ensino superior que focalizem os jovens de baixa renda familiar são mais eficientes.

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KASSOUF, A. L. Retornos à escolaridade e ao treinamento nos setores urbanos e rural do Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, Brasília, v. 35, n. 2, p. 59-76, abr. 1997. LAM, D.; SCHOENI, R. F. Effects of family background on earnings and returns to schooling: evidence from Brazil. Journal of Political Economy, v. 101, n. 4, out. 1993. MATTA, L. G. Sistema de cotas: uma perspectiva de análise a partir do caso da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Vértices, Campos dos Goytacazes, v. 12, n. 3, p. 107-124, set./dez. 2010. MENEZES-FILHO, N. A Evolução da educação no brasil e seu impacto no mercado de trabalho. [S.l.]: Instituto Futuro Brasil, 2001. Disponível em: <http://www.ifb.org.br>. Acesso em: abr. 2011. MINCER, J. B. Schooling, experience and earnings. New York: NBER, 1974. NETER, J. Applied linear statistical models. 4th. ed. Illinois: Burr Ridger, 1996. RAMOS, L.; VIEIRA, M. L. A relação entre educação e salários no Brasil. In: A ECONOMIA brasileira em perspectiva. Rio de Janeiro: IPEA, 1996. v. 2. SCHULTZ, T. W. Investment in human capital. American Economic Review, v. 51, mar. 1961. UEDA, E. M.; HOFFMANN, R. Estimando o retorno da educação no brasil. Economia Aplicada, São Paulo, v. 6, n. 2, abr./jun. 2002. WINTHER, J. M. ; GOLGHER, A. B. Uma investigação sobre a aplicação de bônus adicional como política de ação afirmativa na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Revista Brasileira de Estudos Populacionais, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 333-359, jul./dez. 2010.

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APRENDIZAGEM POR PROBLEMATIZAÇÃO Pedro Demo

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Este texto discute o tema da aprendizagem por problematização, levando em conta uma história já longa em torno do assunto, pelo menos desde Dewey até os dias de hoje, em que a ideia retorna com grande força em ambientes virtuais (em especial em videogames). A expectativa principal se volta para a reinvenção da função docente em sala de aula, não mais como transmissora de conhecimento perante alunos passivos, mas como orientadora e avaliadora da produção própria dos estudantes. Essa expectativa tem recebido vários nomes: além de aprendizagem por problematização, fala-se em aprendizagem pela pesquisa ou por projeto, tendo em comum que o papel docente é o de organizar o processo de reconstrução de conhecimento feito pelo aluno, postulando que esse processo se torna mais viável quando concebido e praticado frente a problemas autênticos, em especial problemas que dizem respeito à vida concreta dos estudantes. Espera-se que essa proposta mude a formatação curricular, bem mais reduzida e aprofundada, não apenas vinculada a conteúdos, mas igualmente à promoção de habilidades, entre elas saber pensar, aprender, pesquisar, elaborar, e que podem ser resumidas na noção de autoria discente. Palavras-chave: aprendizagem por problematização, autoria discente, docência This text discusses the issue of learning through problem solving, taking into account a long history concerning this matter, at least since Dewey to this day, when this idea returns with great emphasis on virtual environments (in particular, videogames). The main expectation turns to the reinvention of the teacher’s role in the classroom, no longer as a transmitter of knowledge before passive students, but as a guide and evaluator of students’ own production. Besides learning through problem solving, this expectation has received several other names, including leaning through research or project-completion, both having in common the teacher’s challenge to organize the knowledge reconstruction process performed by the students, under the supposition that this process becomes more viable when conceived and performed against authentic problems, especially problems which are related to students’ concrete lives. We also hope that this proposal will change the curricular format into one that is well-reduced and far deeper, not only tethered to contents, but equally to the promotion of skills, particularly thinking, learning, researching, and developing which may all be summarized by the notion of student authorship. Keywords: learning by problem-solving or problematization, student authorship, teaching

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INTRODUÇÃO Existe muita badalação em torno dessa proposta de aprendizagem que, para muitos, é a melhor maneira de aprender e fazer aprender. Tal expectativa está sendo amplamente reforçada pelos videogames (de boa qualidade), considerados por alguns educadores como os ambientes mais efetivos de aprendizagem disponíveis (GEE, 2003; 2007; 2010 e PRENSKY, 2001; 2006; 2010). Consta que a Universidade de Maastricht (Holanda) tem todo seu programa formatado sob essa ótica. Tornou-se comum também em ciências naturais e matemática, não só em ciências sociais e humanas. Para elucidar essa proposta, tomo como ponto de partida um texto da Wikipedia, Problem-based Learning, de 2010, também porque está disponível para todos na internet. Deixo de lado aqui restrições que muitos colocam a textos da Wikipedia (KEEN, 2007; CARR, 2010). Não pretendo “consagrar” ou “adotar” esse texto, mas apenas tomá-lo como ponto de partida, ressaltando alguns tópicos da discussão e da prática em torno da aprendizagem por problematização. Em geral, essa modalidade se alinha com a noção de aprendizagem centrada no estudante, na qual o estudante ocupa o centro, não o professor (WEIMER, 2002), visando acuradamente a aprendizagem do aluno como preocupação crucial do professor. No pano de fundo, estão teorias da aprendizagem que visualizam o aprendiz como figura ativa, motivada, movida por atividades reconstrutivas, não passivas ou reprodutivas (PRENSKY, 2010; DARLING-HAMMOND, 2010). Nesse contexto, a ideia do aluno ativo, sujeito de sua própria aprendizagem, ainda que sempre sob orientação e avaliação do professor (DARLING-HAMMOND, 2010; RAVITCH, 2010; KAMENETZ, 2010; KNOBEL & LANKSHEAR, 2010), tem história extensa, pelo menos desde Dewey, no início do século passado, passando por Piaget, Vygotsky e outros (DARLING-HAMMOND, 2008; EAGLETON & DOBLER, 2007). Tendencialmente, essa visão encontra na prática da pesquisa a referência fundamental para instigar o aluno à autoria, englobando algumas expectativas, tais como maior motivação, iniciativa, questionamento (problematização), capacidade de estudo e argumentação e assim por diante (DEMO, 1996). A própria noção de pesquisa induz à problematização, porque somente se quer investigar

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aquilo que nos parece problema, carecendo de estudo, análise e reconstrução. 1 REFERÊNCIAS NORTEADORAS Segundo o texto da Wikipedia, aprendizagem por problematização é “estratégia formativa centrada nos estudantes, que, colaborativamente, resolvem problemas e refletem sobre suas experiências”. Inspira-se, de modo geral, em aportes teóricos de Vygotsky, Dewey, bem como de Piaget, aproveitando com alguma intensidade ideias tais quais a da “zona do desenvolvimento proximal” (aprendizagem mediada e “puxada” pelo professor – scaffolding1), o sentido pragmático da pedagogia voltada para a vida concreta dos estudantes, o desafio de produzir conhecimento próprio em contato com a realidade e colaborativamente e a busca de conhecimento significativo implicando entendimento reflexivo (DARLING-HAMMOND, 2008). Por isso, são características da aprendizagem por problematização: “a) aprendizagem instigada por problemas abertos, mal definidos e mal estruturados; b) em geral os estudantes trabalham em grupo; c) o papel docente é de facilitador (orientador e avaliador)”. A noção de problemas “mal definidos e estruturados” significa que o professor faz uma apresentação genérica do problema, evitando insinuar soluções prontas ou fáceis. Os estudantes são empurrados a assumir responsabilidade pelo trabalho próprio e coletivo, tendo no professor suporte mediador. Em especial, não cabe ao docente ficar respondendo a perguntas dos estudantes, tanto porque aprendizagem profunda convive fecundamente com perguntas e dúvidas (HECHT, 2003; COPELAND, 2005) quanto porque não se pode atrapalhar o processo próprio de pesquisa e elaboração com sentido emancipatório (DEMO, 1996). Espera-se incutir nos alunos senso por autonomia e autoria, à medida que conseguem tomar iniciativa e buscar soluções próprias,   Zona do desenvolvimento proximal significa a distância que existe entre o que o estudante pode fazer com apoio do professor e o que já consegue fazer sozinho. Em inglês cunhou-se a expressão scaffolding, aproveitando a metáfora do andaime: quem deve construir o prédio é o estudante, mas precisa do andaime como apoio (papel do professor).

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apresentando-se como capazes de autoria cada vez mais desenvolta. É importante que aprendam a divisar “saídas” mesmo quando, à primeira vista, não veem por onde começar. Na vida real aparecem continuamente problemas que nos perturbam a ponto de, no primeiro momento, não sabermos para onde ir. Esta é referência importante: os problemas apresentados aos estudantes deveriam encaixar-se, de alguma forma, na vida deles, de modo “situado” (GEE, 2004), ainda que nem sempre se consiga fazer isso claramente. Quando bem posta, a aprendizagem por problematização conjuga dois vetores fundamentais frente ao desafio de produzir conhecimento com autoria e autonomia: a) dar conta de conteúdos curriculares previstos, sem, porém, tratá-los como camisas de força; b) cuidar do desenvolvimento de habilidades voltadas para a reconstrução constante dos conteúdos, como referência fundamental da formação permanente, para a vida. Supõe-se, pois, que se deixe de lado a obsessão curricular, entendida esta como sentir-se “obrigado” a “repassar” tudo, embora não caiba, jamais, abandonar o tratamento de conteúdos. Como observa Marzano, no Third International Mathematics and Science Study (TIMSS), constatou-se que os docentes americanos cobrem muito mais conteúdo do que em outros países: Por exemplo, livros-texto do 4º e 8º anos em matemática cobrem entre 30 e 35 tópicos, enquanto na Alemanha e Japão 20 e 10 respectivamente. Embora livros-texto de ciência do 4º, 8º e 12º anos abordem, nos Estados Unidos, entre 50 e 65 tópicos, os livros-texto japoneses cobrem entre 5 e 15, e os alemães, 7. Em suma, o estudo do TIMSS indica que livros-texto americanos abordam 175 % a mais de tópicos que os alemães e 350 % a mais que os japoneses. Os livros-texto americanos cobrem nove vezes mais tópicos que os alemães e mais de quatro vezes que os japoneses. No entanto, estudantes alemães e japoneses se desempenham bem melhor em matemática e ciência do que os americanos (MARZANO, 2003, p. 26).

A discrepância entre tais concepções e práticas curriculares é escabrosa, desvelando o quanto nos Estados Unidos se cultiva o “conteudismo”, apesar dos resultados sabidamente pífios. Parece claro que é bem mais produtivo destacar alguns tópicos curriculares considerados

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mais relevantes e emprestar-lhes profundidade consequente, tanto no trato do conteúdo, quanto no cultivo das habilidades (estudar, pesquisar, elaborar, argumentar) (DEMO, 2008; 2010). Como consta do texto da Wikipedia: desenvolvimento da comunicação, solução de problemas, aprendizagem autodirecionada (RHEM, 1998; KNOBEL & LANKSHEAR, 2010; KAMENETZ, 2010). A aprendizagem por problematização favorece claramente a prática da pesquisa como princípio educativo (DEMO, 1996), reconhecida como proposta que motiva modos mais profundos e autorais de aprendizagem (FINKEL, 2000). Em geral, conseguem-se mostrar ganhos expressivos no desempenho de estudantes (HMELO-SILVER, DUNCAN & CHINN, 2007; HMELO-SILVER, 2004), inclusive em áreas mais surpreendentes como na formação de médicos (KOH et al., 2008). Não é o caso de aproximar em excesso a aprendizagem por problematização da visão “construtivista”, porque filiação exagerada denota traço estranho à proposta piagetiana, sem falar que é sempre mais inteligente saber lidar com outras fontes pertinentes e sempre na posição de autor (estudar teorias para se tornar autor, não apenas porta-voz). No construtivismo, o traço mais útil talvez seja a valorização da participação ativa dos estudantes, combinada com o desafio de se tornarem capazes de produzir conhecimento próprio. Essa marca, entretanto, pode ser encontrada em outros aportes teóricos, inclusive o socrático (COPELAND, 2005). Alguns autores, além de reclamarem de filiações apressadas e curtas, também apontam para estudos que mostram ser mais produtivo trabalhar “exemplos elaborados” com alunos mais jovens (SWELLER, 2006), em vez de lhes abrir desafios mais complexos. Na prática, é uma questão de dosagem, além de se levar sempre em conta as condições concretas dos estudantes, em especial o que já sabem fazer com alguma autonomia. Nesse sentido, Schmidt (1993) ressalta algumas referências interessantes da aprendizagem por problematização: a) análise inicial do problema apresentado e ativação do conhecimento prévio já disponível em grupo; b) reestruturação do conhecimento, no sentido de reconstruir estratégias que deem conta do desafio; c) construção social do conhecimento, contando com a participação do grupo; d) aprendizagem contextualizada (situada), procurando-se sempre encaixar em situações concretas da vida dos estudantes; e) instigação da

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curiosidade em face a desafio complexo instigante, mobilizando as energias de todos para um fim coletivo. Um dos traços mais importantes da aprendizagem por problematização é o desenho de um processo participativo de pesquisa, exigindo fundamentação teórica, capacidade de solução de problemas, habilidade crítica, organização produtiva do trabalho. Pode-se traçar, neste particular, um paralelo com a pesquisa-ação, como ocorre em Darling-Hammond & Hammerness (2005), ainda que esse vínculo não seja nem propriamente necessário, nem automático. A pesquisa-ação facilmente contém o olhar da pesquisa voltada para questões da práxis cotidiana, buscando problematizá-la e oferecer possíveis soluções. De fato, a pesquisa detém, normalmente, a expectativa de confrontarse com algum problema considerado relevante e que se quer desvendar. Essa perspectiva é cada vez mais valorizada (DONOVAN, 2004; DARLING-HAMMOND, 2006; SCHNEIDER, 2007; ELDER, 2007), valendo lembrar a proposta de Prensky (2010) de mudar o nome de aluno para “pesquisador”. Embora mudar de nome não implique grande coisa, é interessante o reconhecimento generalizado de que aprender bem exige pesquisa (ITO, 2009; MOYER et al., 2007; WEIMER, 2002). A própria noção de “problema” também acarreta pesquisa, como estratégia para dar conta de algo de que não se tem ideia clara, mas de que se pode montar uma ideia apropriada num processo sistemático e bem conduzido de pesquisa. Ao mesmo tempo, pesquisa sugere formação de autonomia e autoria, à medida que o estudante toma iniciativa e assume o compromisso de ir até ao fim. Savin-Baden & Wilkie (2006) trabalham a aprendizagem por problematização no mundo virtual (online), mostrando que, em outro ambiente, outros fatores entram em campo, como acesso mais facilitado à informação, condições mais propícias de trabalho coletivo (uso de wiki, por exemplo), utilização de softwares adrede concebidos para aprimorar a argumentação dos estudantes (ERTL, 2010), revisão do que se imagina ser currículo e assim por diante. Dizem os autores: A aprendizagem por problematização online é uma abordagem da aprendizagem onde currículos são concebidos com cenários de problemas centrais para a aprendizagem do estudante em cada componente curricular (módulos/unidades). Os estudantes que trabalham

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em pequenos grupos examinam uma situação-problema e, através de sua exploração, espera-se que localizem lacunas em seu próprio conhecimento e habilidades com o objetivo de decidir que informação precisam adquirir com o fito de resolver ou manejar a situação. Preleções, seminários, workshops ou laboratórios suportam o processo de pesquisa, ao contrário de transmitir conhecimento baseado em sujeito (subject-based). O ponto de partida deveria ser um conjunto de cenários de problemas independentemente se um módulo ou um programa todo está sendo concebido. Os cenários capacitam os estudantes a tornarem-se pesquisadores independentes e auxiliam-nos a verem aprendizagem e conhecimento como entidades flexíveis (SAVINBADEN, 2006, pp. 3-4).

Eagleton & Dobler (2007) também trabalham a noção e a prática da pesquisa na internet, sugerindo um contexto talvez aferrado em excesso ao construtivismo, mas que indica pesquisa não só como procedimento metodológico da construção do conhecimento, senão principalmente como ambiente de formação mais burilada e elaborada, à medida que o estudante também desenvolve a capacidade de pensar. Abandona-se o argumento de autoridade – sempre estranho ao mundo científico – e valoriza-se a autoridade do argumento, sempre aberta, instigante e capaz de escutar vozes divergentes e mudar. Fomenta-se que o estudante produza conhecimento próprio, a exemplo da Wikipedia, no contexto das “novas epistemologias” (LIH, 2009; ANDRIESSEN et al., 2010; ERTL, 2010), mesmo que sua produção possa ser considerada incipiente, iniciante e mesmo insuficiente. Não se buscam propriamente produtos acabados, mas incentiva-se o processo de pesquisar com profundidade, método e resultados. Ao contrário da aula instrucionista, a aprendizagem por problematização realiza uma “reengenharia da aprendizagem” (SAVIN-BADEN, 2006, p. 8) no sentido de reconstruir radicalmente os ambientes de aprendizagem, garantindo o direito do aluno de aprender bem. Savin-Baden & Gibbon (2006, p. 128) propõem distinção terminológica interessante. Uma coisa é problem-based learning (com hífen): abordagem na qual os estudantes se envolvem com situações complexas e realistas, que em geral não possuem resposta “correta” e que representam o foco organizador da aprendizagem; os estudantes trabalham em grupo

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para enfrentar problemas, identificando vazios de conhecimento, desenvolvendo soluções pertinentes e buscando nova informação e novo conhecimento; outra coisa é problem based learning (sem hífen): problemas são usados como chamariz e em geral possuem uma resposta correta, razão pela qual são suficientes habilidades lineares. De fato, quando a problematização estiver bem colocada, emerge a noção de conhecimento flexível e discutível, na qual toda pesquisa chama mais outra, indefinidamente. Solucionar linearmente a questão somente caberia em questões simples, lineares e que não são, a rigor, “problemas” (MITCHELL, 2009). “A aprendizagem como construção de conhecimento” é perspectiva crucial (RONTELTAP, 2006). 2 APRENDIZAGEM CENTRADA NO ALUNO Nesta seção analiso rapidamente a obra de Weimer (2002) sobre formação centrada no aluno, como parte fundamental da aprendizagem por problematização. Como vimos, o professor assume o papel de coach, orientador, avaliador, ou de parceiro (PRENSKY, 2010). Por vezes usa-se o termo “facilitador”, mas talvez fosse o caso de evitá-lo, porque, entre nós, aponta imediatamente para um professor “que tira dúvidas” e acaba fazendo parte ou grande parte do que os alunos deveriam fazer. Weimer critica a postura universitária comum muito distanciada da aprendizagem, considerada, em grande parte, produto automático das aulas. Na própria pedagogia isto é comum: discutese muito pouco aprendizagem, postulando-se que aulas bastam. A pergunta básica é: “O que deveriam os professores fazer com o intuito de maximizar resultados de aprendizagem para seus estudantes?” (WEIMER, 2002, p. 43). Embora a resposta só possa ser complexa, uma de suas faces mais cruciais é “centrar no estudante”, cuidando que ele aprenda (DEMO, 2004). Não se trata, jamais, de dispensar, de ignorar, muito menos de desprezar o professor. Ao contrário, trata-se de colocá-lo no seu devido lugar, que não é no centro, mas ao lado do aluno como orientador e avaliador (não “the sage on the stage” – o sábio no palco; mas “the guide on the side” – o guia ao lado). Ele deixa a posição clássica de “argumento de autoridade”, para assumir a “autoridade do argumento”, em condição – neste sentido epistemológico – igualitária (PRENSKY, 2010). A muitos professores é doloroso

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mudar de posição, porque apreciam dar aula, ter público cativo, disciplinar estudantes, parecer doutos incontestáveis (SCHNEIDER, 2007; FINKEL, 2000; PRENSKY, 2010). Se pensarmos, porém, que somos professores para cuidar que o aluno aprenda, nosso foco não pode ser aula ou palco, mas a aprendizagem dos alunos (WEIMER, 2002). Essa ideia, aliás, não é nova. Muito ao contrário, é tão antiga quanto a maiêutica socrática (COPELAND, 2005; HECHT, 2003; CRITICAL THINKING COMMUNITY, 2009). Cito Weimer: Aderir à noção de o aluno como centro foca a atenção diretamente na aprendizagem: o que o aluno está aprendendo, como o aluno está aprendendo, as condições sob as quais o aluno está aprendendo, se o aluno está ampliando e aplicando sua aprendizagem, e como a atual aprendizagem posiciona o estudante para a aprendizagem futura (2002, p. 90).

Para nos aproximarmos dessa ideia, cumpre desconstruir nossas práticas dominantes, assumindo nosso papel de orientação e avaliação, como consta da proposta de Brookfield (1995) sobre “professor reflexivo”. Refletindo (desconstruindo) criticamente sobre sua prática, o docente pode flagrar-se autoritário, disciplinador, controlador, incorporando as misérias do “argumento de autoridade”. O aluno perde a noção própria da construção de sua autonomia e autoria, uma vez que comparece para encaixar-se submissamente na expectativa docente. Professores gostam de colocar-se no centro, também porque faz parte da didática prevalente, ignorando que a função crucial da educação é formar cidadãos capazes de tomar o destino em suas mãos, como sempre sugeriu Paulo Freire (1997). A politicidade da aprendizagem aparece claramente, por mais que muitos docentes confundam politicidade com politicagem. A aprendizagem por problematização requer esse olhar “político”, bastando que se visualizem os problemas como complexos e não lineares, exigindo negociação cuidadosa, comportamento ético, trato adequado das ambiguidades, respeito a argumentos alheios, negociação de significados e assim por diante (DEMO, 2002). Muitas vezes apreciamos habilidades críticas, mas não sabemos bem onde pendurá-las, porque é estranho esperar por elas em aulas

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instrucionistas. Na aprendizagem por problematização a capacidade crítica, questionadora, toma a dianteira, conduzindo o processo de pesquisa. Primeiro passo é, postando-se perante problema complexo, sopesar o conhecimento disponível, desconstruindo posições, para podermos dar conta de horizontes novos e inovadores; desestruturar “esquemas” prévios, como diria Piaget (1990). Nunca damos conta, por completo, de problemas complexos, porque é de sua estruturação não admitir solução final (ULANOWICZ, 2009; MITCHELL, 2009). Resolver problemas implica criar outros, indefinidamente. Aprende-se a ler (contraler), procurando desvendar significados de tal sorte que possam ser reconstruídos no contexto do problema a ser elucidado. Aprende-se a arguir coletivamente, com o intuito de chegar a plataformas de sentido compartilhado. Aprendese a duvidar, sobretudo a questionar. Esse horizonte facilmente é definido como “construtivista”, reportando-se à importante obra de Piaget, mas, como apontamos anteriormente, não se trata de filiação linear, até porque esta não cabe no construtivismo (é tese central que ele mesmo precisa ser reconstruído), embora este certamente tenha o mérito de propor estilos de aprendizagem ativos, participativos, reconstrutivos, que são tanto mais bem exercidos em ambientes problematizadores centrados nos alunos. O segundo passo é preocupar-se com o desafio de incentivar a autonomia/autoria discente, em especial porque se espera isso hoje, inapelavelmente, para a vida e para o mercado. Um dos pontos mais importantes é aprender a estudar. Em geral, nos bastamos com escutar aula, tomar nota e fazer prova, um tipo de “habilidade” arcaica, reprodutiva. Para quem ainda quer insistir em “aula”, no mínimo se espera que entenda que a única finalidade da aula é a aprendizagem do aluno. O sentido de ensinar é aprender, no professor e no aluno. Por isso, falamos hoje que é compromisso fatal do professor garantir que o aluno aprenda. Embora possa ser exigência excessiva (nem sempre conseguimos isso, por muitas razões), vale repisar que se o aluno não aprender bem, não houve professor! Quando o professor aceita a noção de centrar no aluno, o “poder é compartilhado, não transferido indiscriminadamente” (WEIMER, 2002, p. 491). Weimer propõe alguns princípios orientadores:

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a) Professores insistem menos em atividades de rotina (dever de casa, por exemplo), principalmente, não podem oferecer receitas prontas ou questões que encontram solução linear em qualquer apostila; é fundamental oferecer aos estudantes problematizações que os levem a questionar e a questionar-se como pesquisadores, valorizando mais o processo de busca do que soluções; torna-se central aprender a estudar, pesquisar, elaborar, bem como saber ler (contraler); b) Professores carecem reduzir o tempo de aula, em especial de instrução reprodutiva (no fundo inútil), em nome do incentivo à descoberta por parte do aluno; “professores têm séria propensão de dar aula; falamos tudo aos alunos; fazemos demonstração e contamos aos alunos que vamos fazer; quando acabamos, lhes contamos o que aconteceu; contamos aos estudantes quando e como deveriam estudar; falamos aos estudantes que leiam e que partes da leitura são mais importantes...” (WEIMER, 2002, p. 1.177); no fundo, tutelamos os alunos, impedindo aberturas emancipatórias; c) O papel do professor é montar o design pedagógico: construir oportunidade de aprender através de problematizações inteligentes, provocativas, instigantes, esperando que os alunos se envolvam de verdade e se descubram como pesquisadores; d) O grupo docente deveria centrar-se na modelagem dos cursos, flexibilizando currículos em nome de seu aprofundamento; em vez de aferrar-se a carradas de conteúdos, é preferível selecionar poucos e os tratar com consequente aprofundamento, implicando a autoria do aluno; busca-se oferecer aos estudantes horizontes alternativos de aprendizagem, nos quais sejam protagonistas centrais; e) O grupo docente deveria insistir na aprendizagem coletiva, apostando que os estudantes são capazes de produzir conhecimento próprio, começando do começo; em geral se reconhece que aprender coletivamente é modo mais efetivo, além de cidadão; embora sempre exista o risco do aproveitador e da superficialidade, ainda assim trabalhar em grupo pode mais facilmente ser formativo, além de produtivo (LIH, 2009);

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f) É papel crucial dos docentes “criar climas de aprendizagem” (WEIMER, 2002, p. 1.268), ou seja, ambientes favoráveis, instigantes, conclamando também motivação e interesse; significa dizer que o professor organiza atividades produtivas dos alunos, mantendo-se como orientadores e avaliadores, não preceptores; g) Os docentes deveriam preocupar-se sempre com o devido feedback (avaliação), acompanhando aluno por aluno e garantindo-lhe a devida aprendizagem; trata-se de estilo processual e formativo de avaliação, cuja finalidade única é cuidar que o aluno aprenda. Esse tipo de argumentação facilmente se rende ao mercado, que exige de todos constante reconstrução de suas habilidades e conteú­ dos. Para educadores, porém, é mais importante sublinhar os desafios pedagógicos, em especial a capacidade de continuar aprendendo sempre. Não se menospreza conteúdo, mas se agrega o compromisso com a construção de habilidades, desiderato que está no âmago da aprendizagem por problematização. Em geral se diz que bons jogadores de videogames sérios se saem melhor nas situações de vida e mercado, em grande parte porque possuem visível autonomia e iniciativa (GEE, 2010; ITO, 2009; ROSEN, 2010). Sabem enfrentar desafios e procurar soluções. Sabem trabalhar em equipe e compartilhar resultados e saberes. Uma de nossas lacunas mais preocupantes na escola é a valorização pequena (ou nula) da importância de “estudar” (DEMO, 2008). Não inventamos isso ainda entre nós, porque achamos que aula resolve tudo. Ao mesmo tempo, é desafio enorme para o professor deixar de ser o centro, para ocupar o posto de coach. Muitas vezes o problema também provém do aluno que gosta de aula, pois se acostumou a esse tipo de domesticação. É mais cômodo receber a solução pronta que meter-se a inventar uma própria. Ser professor, porém, é isto: cuidar que o aluno aprenda. Por fim, cabe acentuar que toda problematização bem feita é naturalmente interdisciplinar. Não há problema importante, sobretudo complexo e não linear, que seja “disciplinar”. Por isso também é importante o trabalho em equipe docente e discente, compondo olhares diversificados. A variedade de olhares corresponde à biodiversidade da natureza, que não se cansa de multiplicar opções e de deixar o

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futuro aberto. Vê-se melhor um problema, quando o vemos juntos e procuramos, juntos, alguma solução. Torna-se, então, fundamental perceber que as soluções são naturalmente plurais, em geral ambíguas, diversificadas, dependendo do ponto de vista do observador. Em vez de nos irritarmos, é muito mais decisivo fazer disso um trunfo pedagógico com base na autoridade do argumento. O olhar interdisciplinar não dispensa, porém, especialização (CARR, 2010) cuja necessidade sempre aparece quando nos pomos a aprofundar a pesquisa. Os problemas não são apenas “genéricos”, são igualmente “específicos”, requerendo conhecimento específico. Mas, a perspectiva maior será sempre interdisciplinar, no sentido de compor conhecimentos específicos num todo que respeite a complexidade da realidade. Em geral, quando em grupos, os alunos dividem tarefas para poderem dar conta mais amplamente do problema, esperando-se que cada qual aporte não “generalidades”, mas conhecimento aprofundado. Ao mesmo tempo, a noção interdisciplinar compõe-se bem com a noção de “problematização” em sua dimensão complexa e não linear porque se torna imediatamente claro que não esgotamos, nunca, a questão. O que fazemos é um cerco estratégico, do que resulta a construção de conhecimento sempre a caminho. É da inteligência do professor saber aproveitar, em cada problema (independentemente de sua origem em matemática, ciência ou ciências sociais) o pano de fundo diversificado de abordagens complementares, instigando os alunos a ampliarem suas visões. A pesquisa científica disponível recomenda fortemente essa perspectiva (MARZANO, 2003). Mesmo assim, a aprendizagem por problematização não pode incluir obsessão linear, como se fosse a única “saída”. Pode-se aprender de mil maneiras (DARLING-HAMMOND, 2005). Leve-se em conta que sempre precisamos de oportunidade para trabalhar conceitos formais, nem sempre facilmente tratáveis em ambientes de problematização. Melhor seria se conseguíssemos encaixá-los aí, porque isso reduz a aridez abstrata, mas não escapamos de lidar com noções abstratas. Em princípio, tudo é problematizável, pois se pode ver a própria realidade como “problema” a ser desvendado, o que é a perspectiva clássica da pesquisa (BUNGE, 2006): correr atrás da realidade nunca suficientemente desvendada. Pode-se partir das ciências sociais (por exemplo, estudar a Segunda Guerra Mundial, ou um tópico dela), agregando-se

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o olhar da ciência (novas tecnologias introduzidas nessa guerra) e da matemática (movimento populacional, balística, estatísticas da Guerra etc.). Pode-se partir de ciência (por exemplo, degradação ambiental de uma região próxima da escola) agregando-se o olhar da matemática (áreas degradadas, estatísticas da degradação) e das ciências sociais (origem social e histórica da degradação). Pode-se partir da matemática (por exemplo, estrutura dos preços no supermercado) agregando-se o lado da ciência (questões de produtividade em produtos naturais e manufaturados) e das ciências sociais (comportamentos que fomentam a inflação de preços). A atração por videogames se deve, em grande parte, ao fato de que são um “problema” envolvente, mesmo que muito difícil. É interessante observar que os jogadores querem problemas difíceis, quase desesperadores, alegando que o desafio é que os move (GEE, 2008). 3 QUESTIONANDO A AULA Como não há maior sacrilégio para o professor do que questionar sua aula, convém analisar essa questão, ainda que sumariamente. Há literatura incisiva e crescente de crítica à aula, podendo-se citar: a) No campo dos ambientes virtuais de aprendizagem é comum apontar para a inépcia da aula em geral, em especial da instrucionista, apegada ao teching by telling (ensinar falando), a exemplo de Prensky (2010); com respeito à nova geração, também é comum assinalar que ela “odeia a escola” (ROSEN, 2010), tornando-se a didática dominante signo do atraso; b) Ainda no campo do uso de ferramentas virtuais para a aprendizagem, valoriza-se muito mais a capacidade do aluno de argumentar por si (individualmente ou em grupo) do que a preleção docente, a exemplo de Ertl (2010) e Andriessen et alii (2010a); produzem-se softwares voltados para a “argumentação”, como o Web-based Inquiry Science Environment (WISE) – Ambiente de pesquisa em ciência com base na web –, sugerindo que aprendizagem implica naturalmente saber arguir e argumentar;

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c) Há também francas paródias à aula, como a de Schneider (2007) em sua obra Chalkbored, que brinca com o termo: em vez de board (lousa), usa bored (chateado), para indicar o quanto a escola se tornou enfadonha, insuportável, em grande parte por conta das aulas; d) O utra paródia é a crítica ferina de Finkel (2000) em Teaching with your mouth shut (Ensinando com sua boca fechada) aduzindo exercícios múltiplos de como lidar com os alunos sem ficar sempre falando para eles o que deveriam fazer; sugere, ainda, a importância da pesquisa e de outras atitudes ativas e reconstrutivas; e) Aponta-se igualmente para a busca crescente de ambientes interativos e igualitários, tendo como um dos exemplos a Wikipedia, onde não há preceptor, tutor, disciplinador, mas colegas trabalhando juntos (SHIRKY, 2008); em tais ambientes é inconcebível comportamento passivo de mera escuta, valendo isso em geral para o que se tem chamado de web 2.02; f) Há críticas mais gerais, mostrando a ineficiência da aula, tendo em vista que, não sendo produto de pesquisa, tende a reproduzir conteúdos, agredindo o mote fundamental das grandes universidades de que só pode dar aula quem é autor (DUDERSTADT, 2003); g) Há textos que, pesquisando razões de por que ex-alunos brilhantes mostravam apreço extraordinário a seus ex-professores, sinalizam que aula sempre foi item menor (BAIN, 2004); valorizam-se muito mais expertise incomparável, cuidado com os alunos na orientação constante, atualização permanente, scaffolding exigente e interativo etc.; h) H á textos que estudam a “mecânica” das aulas, sugerindo uso apenas limitado (BLIGH, 2000), tendo em vista que seu papel é supletivo; sendo objetivo maior a aprendizagem do aluno, dar aula só pode ser iniciativa suplementar.   Entendem-se por web 2.0 plataformas digitais que facultam autoria dos usuá­rios, como blogs, wikis, redes sociais, tendo como um dos exemplos mais palpáveis a Wikipedia (DEMO, 2009).

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Entre nós, porém, persiste o fetiche da aula. Bastaria lembrar a trajetória, desde a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), que aumentou os dias letivos para 200 ao ano; depois veio o 9º ano no ensino fundamental, em geral sob a alegação de dar mais aulas; quando se fala de “escola de tempo integral”, invariavelmente se acena com mais tempo de aula. O que o aluno faz – substancialmente – na universidade e na escola é frequentar aulas, supondo-se que aprende escutando aula. Essa expectativa não tem apoio nenhum nas teorias de aprendizagem, bem como na prática. Observando-se a Tabela 1, que apresenta uma série histórica de 1995 a 2009 (14 anos), não é possível verificar que o aumento dos dias letivos (introduzido em 1997) tenha tido qualquer impacto positivo. Ao contrário, em 1999 houve a maior queda histórica do desempenho escolar: por volta de 17 pontos em língua portuguesa e de 8 a 9 pontos em matemática (com exceção de matemática na 8ª série). Tabela 1 Média de proficiência em Língua Portuguesa (LP) e Matemática (M) no Ensino Fundamental (EF) e Médio (EM) – Brasil, 1995-2009 Anos

1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 4ª série EF 188,3 - 1.8

- 15.8 - 5.6

4.3

2.9

3.5

8.5 (184.3)

LP

8ª série EF 256,1 - 6.1

- 17.1

- 3.2

- 0.1

2.8

9.4 (244.0)

LP

3ª série EM 290,0 - 6.1

- 17.3 - 4.3

4.4

- 9.1

3.8

7.4 (268.8)

4ª série EF 190,6

- 9.8 - 4.7

0.8

5.3

11.1

10.8 (204.3)

8ª série EF 253,2 - 3.2

- 3.6 - 3.0

1.6

- 5.5

7.9

1.3 (248.7)

3ª série EM 281,9

- 8.4 - 3.6

2.0

- 7.4

1.6

1.8 (274.7)

M

0.2

6.8

2.3

Fonte: Inep: Saeb/Ideb. Média adequada para a 4ª série: 200 pontos; para a 8ª série: 300 pontos; para a 3ª série do ensino médio: 350 pontos.

Embora não se possa afirmar peremptoriamente – afirmações peremptórias com base em dados empíricos nunca são adequadas – que a queda se tenha devido ao aumento de aulas, os dados sugerem isso enfaticamente, ou seja, aumentando o que é ruim, é bem possível torná-lo ainda pior! Colhe-se essa mensagem facilmente, ademais, da

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própria série histórica: em 2009 os resultados eram sistematicamente ainda inferiores aos de 1995 (com exceção de matemática na 4ª série), sinalizando que esse sistema de ensino não estaria conseguindo corresponder minimamente às necessidades dos alunos. Aula não falta. Falta aprendizagem. A LDB confundiu aula com aprendizagem – confusão comum até hoje entre professores (DEMO, 2011). Esse desacerto pode ser visto igualmente no índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), conforme a Tabela 2, ainda que aí se desvelem outros problemas graves, como o da “progressão automática” (deveria ser “continuada”, segundo a LDB), começando pela proposta oficial de alfabetizar em três anos. Usar três anos é, primeiro, oferta pobre para o pobre, já que nenhum aluno precisa de tanto tempo, mesmo o mais pobre (GROSSI, 2004). Segundo, mascara a inoperância da escola que não sabe alfabetizar. Terceiro, oficializa-se a progressão automática, ignorando-se que, demorando três anos, provavelmente o aluno não se alfabetiza mais a contento, pois vai “caindo para cima” automaticamente. Por certo, não é o caso reprovar, pois reprovação não contribui para a aprendizagem, sabidamente (PARO, 2001; PATTO, 1993). Mas encobrir que o aluno não aprendeu, por meio de sua progressão automática, é apenas outra fraude. Embora a série histórica do Ideb ainda seja pequena (três pontos apenas, 2005, 2007 e 2009), insinua com alguma força que o sistema não consegue avançar de modo aceitável, sem falar que, na esfera pública, a melhoria dos dados é devida, em grande parte, à progressão automática e não reprovação. Objetivamente falando, os dados apresentam níveis muito baixos, reforçando o vexame constante de o Brasil aparecer nos últimos lugares do Programme for International Student Assessment (PISA). Observando o desempenho da escola privada, onde se pratica a progressão automática, nem se perde tempo com processos intermináveis de alfabetização, nota-se que o avanço é tímido ou nenhum: nas séries iniciais, de 2005 a 2009 houve um avanço de cinco décimos; nas séries finais, de apenas um décimo; no Ensino Médio, nada. A impressão que fica é a de que o sistema estancou, sugerindo que essa proposta pedagógica está visivelmente falida. Não cabe mais apenas “reformar”. Urge transformar radicalmente, buscando outros horizontes, nos quais aula naturalmente aparece como atividade apenas suplementar.

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Tabela 2 Séries iniciais e finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio Séries iniciais (Fundamental)

Séries finais (Fundamental)

Ensino Médio

IDEB

2005

2007

2009

2005

2007

2009

2005

2007

2009

Total

3,8

4,2

4,6

3,5

3,8

4,0

3,4

3,5

3,6

Pública

3,6

4,0

4,4

3,2

3,5

3,7

3,1

3,2

3,4

Estadual

3,9

4,3

4,9

3,3

3,6

3,8

3,2

3,4

3,1

Municipal

3,4

4,0

4,4

3,1

3,4

3,6

2,9

3,2

-

Privada

5,9

6,0

6,4

5,8

5,8

5,9

5,6

5,6

5,6

Fonte: Inep/Ideb.

Torna-se mais claro que aumentar o tempo de aula é contraproducente. É fundamental aumentar o tempo de aprendizagem, razão pela qual, por exemplo, em escolas de tempo integral não caberia mais “dar aula”, mas ordenar por “tempos de estudo” (dois pela manhã, dois pela tarde), nos quais o aluno, sob orientação e avaliação docente, produz conhecimento próprio, ora individualmente, ora coletivamente. Aula, como regra, sempre pode existir, mas é procedimento auxiliar. Desafio maior é mudar o professor habituado a pontificar como autoridade incontestável. Ocorre igualmente que muitos alunos e pais preferem aula, porque internalizaram a noção de que o filé mignon da escola é aula, como se pode facilmente observar nas greves escolares (MOE & CHUBB, 2009). CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora seja proposta já relativamente antiga, a aprendizagem por problematização ainda causa espécie. Parte dessa resistência advém de nossa visão de currículo como pacote fixo de conteúdos acabados e que precisamos repassar. Muitos professores ainda acreditam que sua função é ir enfiando na cabeça do aluno pedaço por pedaço curricular, tirando isso a limpo nas provas. Não atinam para o desafio de ver o currículo como um apanhado de conteúdos a serem reconstruídos, questionados, talvez mesmo superados. A apostila também traz

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sua contribuição negativa, à medida que vende a ideia tola de que seu conteúdo não existe para ser reconstruído, mas para ser engolido. Funda-se em concepção arcaica de conhecimento, quase bíblica (BURKE, 2003). Tais restrições, no entanto, precisam ser superadas, pois o mundo muda e não espera por nós. Dominar conteúdos já não basta, também porque quase todos se esfarelam com o tempo, tamanha é a velocidade de mudança nos tempos atuais. Como diz Weimer, é preciso descobrir a “aprendizagem” e fazer dela o sentido da docência. Uma das estratégias é saber desenhar problematizações instigantes para o aluno, sempre de estilo interdisciplinar, para que sejam tanto mais realistas. Ao fundo, porém, o desafio maior sequer é do aluno. É do professor (DEMO, 2011). Essa modalidade de aprendizagem proposta acaba questionando o comportamento instrucionista docente. Na prática, porém, acaba valorizando-o sobremaneira, à medida que assume sua função “eterna” socrática. Quem sabe lidar com problematizações inteligentes sabe aprender bem, condição fundamental. Bom professor é “tudo” na escola!

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A CIDADANIA ATRAVÉS DO ESPELHO: DO ESTADO DO BEM-ESTAR ÀS POLÍTICAS DE EXCEÇÃO Sylvia Moretzsohn

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Este artigo busca as raízes históricas do conceito de cidadania para analisar o processo de esvaziamento de seu sentido político original, deslocado para a esfera do consumo. Ocupa-se fundamentalmente do caso brasileiro, no qual esta nova “cidadania” se torna particularmente funcional à adoção do que Francisco de Oliveira chamou de “políticas de exceção”: a “focalização” (melhor diria, setorização) das políticas de assistência social, com ênfase especial em programas de voluntariado, em contrapartida à perspectiva universalista garantidora de direitos. A cidadania, portanto, seria vista rigorosamente “através do espelho”, não como uma conquista resultante de participação política, mas como um sinônimo para caridade, configurando a face “benevolente” de um mesmo projeto para os marginalizados: a “promoção do bem” para os pobres dóceis e o “combate ao mal” para os pobres delinquentes, enquadrados no sistema penal. Palavras-chave: cidadania, consumo, Estado do bem-estar This article seeks the historical roots of the concept of citizenship to analyze the process of emptying its original political sense, shifted to the sphere of consumption. It deals mainly from the Brazilian case, in which this new “citizenship” becomes particularly functional to the adoption of Francisco de Oliveira, who called it “policy exception”: the “targeting” (better say, sectorization) of social welfare policies, with special emphasis on voluntary programs, in contrast to the universalistic perspective guarantor of rights. Citizenship, therefore, would be viewed strictly “through the looking glass”, not as an achievement resulting from political participation, but as a synonym for charitableness by setting the “benevolent” face of the same project for marginalized: the “promotion of good” for the poor and docile and “fighting evil” for the poor offenders, framed in the penal system. Keywords: citizenship, consumption, welfare state

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INTRODUÇÃO “Quando eu uso uma palavra”, disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso,“ela significa exatamente o que eu quero que signifique: nem mais, nem menos”. “A questão é”, disse Alice, “se pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes”. “A questão”, disse Humpty Dumpty, “é saber quem vai mandar – só isto”. Lewis Carroll

O famoso diálogo entre Alice e Humpty Dumpty sintetizava, a meados do século XIX, a questão crucial sobre o poder de nomear – aquilo que, na conhecida remissão a Weber, Bourdieu (1989, p. 12) identificaria como a luta pelo exercício do “monopólio da violência simbólica legítima”, isto é, “do poder de impor – e mesmo de inculcar – instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomias) arbitrários – embora ignorados como tais – da realidade social”. Ao mesmo tempo, e de acordo com a sua formulação de “campo”, o sociólogo francês procurou demonstrar que, embora cumpram a função política de impor ou legitimar a dominação, os “sistemas simbólicos” constituem um campo de luta (propriamente simbólica) no qual as diferentes classes e frações de classe buscam definir o mundo social conforme seus interesses. Essa é certamente uma boa chave para se entender a mutação que vem ocorrendo no significado de certas palavras, nesses tempos de globalização neoliberal. O adjetivo é necessário porque não se trata de uma globalização qualquer, mas orientada no sentido da redução do papel do Estado (e de suas políticas sociais) em benefício do “mercado” – isto é, do capital. Note-se, a propósito, que “globalização” e “cidadania” são, no dizer de Saes (2000, p.1), temas que funcionam “como mitos, isto é, como ideias dotadas de um tal impacto emocional que chegam ao ponto de provocar a paralisia do pensamento” e, por isso, “parecem solicitar à sociedade que ela os submeta a uma avaliação plebiscitária, em termos de ‘sim’ ou ‘não’, de aceitação ou rejeição”.

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No caso, “cidadania” tornou-se um tema proeminente porque a vulgarização e disseminação desse termo levou a múltiplas interpretações, que vão do mais radical conservadorismo (convenientemente apresentado como novidade) a formulações que, embora contraditórias entre si, inscrevem-se numa perspectiva emancipadora. A polissemia atual exige uma remissão às matrizes históricas do conceito e a apreciação sobre a conjuntura política que fez ressurgir o debate em torno dele, para o esclarecimento das posições que as diferentes forças ocupam hoje nesse campo de luta simbólica. A partir dessa fundamentação, será possível tratar especificamente do caso brasileiro, que é o principal objetivo deste artigo. Pretendo sugerir que, acompanhando a tendência mundial própria ao neoliberalismo, segundo a qual atribuições tradicionais do Estado transferem-se para mãos privadas e o status de cidadão se desloca para a esfera do consumo, a palavra “cidadania” entre nós esvaziase completamente de seu sentido político e se torna particularmente funcional à adoção do que Francisco de Oliveira (2003) chamou de “políticas de exceção”: a famosa “focalização” (melhor diria, setorização) das políticas de assistência social, com ênfase especial em programas de voluntariado, em contrapartida à perspectiva universalista garantidora de direitos. Aqui, portanto, a cidadania seria vista rigorosamente “através do espelho”, não como uma conquista resultante de participação política, mas como um sinônimo para caridade, configurando a face “benevolente” de um mesmo projeto para os marginalizados: a “promoção do bem” para os pobres dóceis e o “combate ao mal” para os pobres delinquentes, enquadrados no sistema penal. Trata-se, portanto, de demonstrar como o termo “cidadania” é incorporado a uma determinada e muito antiga forma de encarar a “questão social” no Brasil e de apontar as dificuldades da necessária repolitização da luta pelos direitos sociais num contexto em que a forte e interessada presença da mídia hegemônica atua precisamente em sentido contrário.

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1 DE VOLTA ÀS ORIGENS: O SENTIDO POLÍTICO DE CIDADANIA E A AMPLIAÇÃO DOS DIREITOS Como se sabe, a matriz da ideia de cidadania remonta à Grécia Antiga, na qual o cidadão, segundo a clássica definição de Aristóteles, era alguém que tinha o direito e ao mesmo tempo o dever de votar nas assembleias e de participar do exercício do poder público. Cidadão era, portanto, aquele que governa e é governado, que obedece e se faz obedecer. E, como só se obedecia a uma lei de cuja elaboração se participava, o cidadão, em tese, só obedecia a si mesmo. Essa participação ativa na vida política, a par do sentido restrito de cidadania – pois dela estavam excluídos, entre outros, as mulheres, os estrangeiros e os escravos –, costuma ser associada também a um alcance territorial limitado – no caso, o das cidades-estado gregas, onde, pelo menos em princípio, as pessoas se conheciam, conviviam diretamente e podiam estabelecer uma relação de confiança mútua. Walzer (1989, pp. 214-15) nota que a situação muda quando se alarga o alcance da organização política: o Império Romano se expande garantindo cidadania aos povos que conquista, o que é uma forma de assegurar o exercício do poder sobre um território ampliado. Isso, segundo ele, “não altera a definição formal de cidadania, ainda expressa em termos de exercício do poder político, mas muda a realidade política e legal. (...) Um cidadão era mais propriamente alguém protegido pela lei do que alguém que fazia e executava a lei. (...) Cidadania para essas pessoas era (...) mais um status legal do que um fato da vida cotidiana”. Estaria aí a origem da dicotomia entre as concepções ativa e passiva de cidadania, que persistem até hoje. Mas, prossegue Walzer (1989, p. 216), esta é uma simplificação ideológica que, como todas as construções dualistas, não dá conta da realidade da vida social: na verdade, ambas existem simultaneamente, seja porque a “atividade” política seria associada a um improvável estado de mobilização permanente, incompatível com a inevitável dedicação aos interesses comezinhos da vida privada, seja porque a “passividade” no gozo de benefícios legais costuma resultar de uma luta muito ativa por esses direitos. Além disso, supor que o exercício da cidadania esteja associado a uma participação direta no poder político seria condenar à “passividade” as

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sociedades complexas, em que se multiplicam as mediações e instâncias de representação. A distinção mais importante talvez seja aquilo que Barbalet (1989, pp. 12-3) aponta como a principal diferença entre a cidadania nas cidades-estado gregas e no moderno Estado democrático: a extensão do âmbito da comunidade política em cada um deles. Para Aristóteles, cidadania era o status privilegiado do grupo dirigente da cidade-estado. No Estado democrático moderno, a base da cidadania é a capacidade para participar no exercício do poder político por meio do processo eleitoral. Assim, a participação dos cidadãos no moderno Estado-nação implica a condição de membro de uma comunidade política baseada no sufrágio universal e, portanto, também a condição de membro de uma comunidade civil baseada na letra da lei. Para Aristóteles, o status da cidadania estava limitado aos autênticos participantes nas deliberações e no exercício do poder; no presente, a cidadania nacional estende-se a toda a sociedade.

Assim, o que cabe investigar são as possibilidades de atuação política abertas com as progressivas conquistas democratizantes inauguradas pelas revoluções liberais de fins do século XVIII, no contexto da afirmação dos Estados nacionais. O ponto de partida para essas considerações costuma ser a conferência que Marshall (1967) proferiu em 1949, na qual estabeleceu uma classificação que se tornaria referencial, dividindo os direitos de cidadania em civis, políticos e sociais. Os direitos civis seriam os necessários à liberdade individual (liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade, à livre escolha do trabalho e à justiça); os políticos estariam vinculados à participação no exercício do poder político; os sociais, à assistência social, educação pública e demais elementos que configuram o Estado do bem-estar. Tomando por base a história da Inglaterra, o autor indica que tais direitos, grosso modo, corresponderiam sucessiva e respectivamente aos séculos XVIII, XIX e XX, e adota uma perspectiva evolucionista que enxerga a progressiva ampliação desses direitos, incorporando cada vez maiores contingentes da população. Essa perspectiva embute uma prévia resposta positiva à sua premissa de verificar o impacto dos direitos de cidadania sobre a desigualdade

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social, aqui identificada ao sistema de classes, um sistema excludente que impede os subalternos de participar, na prática, da comunidade à qual legalmente pertencem: especialmente o alargamento dos direitos sociais seria capaz de reduzir essa desigualdade e promover a integração. Talvez por isso, escrevendo em pleno período de aguçamento da Guerra Fria, o autor chame o Estado do bem-estar de “Estado socialista democrático” (MARSHALL, 1967, p. 97) e enxergue nele as condições para o desenvolvimento pleno da universalização dos direitos de cidadania. Importa observar ainda o papel especial que Marshall confere à educação, vista ao mesmo tempo como um direito social e como base para o exercício dos demais direitos: O direito à educação é um direito social de cidadania genuíno porque o objetivo da educação durante a infância é moldar o adulto em perspectiva. (...) Os direitos civis se destinam a ser utilizados por pessoas inteligentes e de bom senso que aprenderam a ler e escrever. A educação é um pré-requisito necessário da liberdade civil. (...) Tornou-se cada vez mais notório, com o passar do século XIX, que a democracia política necessitava de um eleitorado educado e de que a produção científica se ressentia de técnicos e trabalhadores qualificados. O dever de auto-aperfeiçoamento e de autocivilização é, portanto, um dever social e não somente individual porque o bom funcionamento de uma sociedade depende da educação de seus membros (Marshall, 1967, pp. 73-4).

Evidencia-se aí a crença iluminista no poder de esclarecimento que a educação proporcionaria, formando cidadãos que, aparentemente, constituiriam um todo homogêneo, trabalhando “para o bom funcionamento da sociedade”. Esquecem-se, aqui, as contradições que o processo educacional propicia e, por isso mesmo, afirma-se uma valoração intrinsecamente positiva desse processo. Bastaria lembrar a ênfase que o fascismo e o nazismo deram à educação de seus “moços”, e o uso que fizeram dela, para sugerir uma grave objeção a tamanho otimismo. Voltado fundamentalmente a uma apreciação crítica da obra de Marshall, Barbalet (1989, p. 17) destaca como seu principal mérito a maneira pela qual o autor demonstra o paralelo entre o desenvolvimento

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do capitalismo como sistema social (e a estrutura de classe que se desenvolve dentro dele) e as transformações operadas no conceito de cidadania moderna, que “passa de um sistema de direitos que nascem das relações de mercado e as apoiam para um sistema de direitos que existem num relacionamento antagônico com os sistemas de mercado e de classe”. Assim, “é ultrapassando a ideia convencional de que a qualidade de membro de uma comunidade é predominantemente uma questão política que Marshall pode contribuir para o estudo da cidadania” (idem, p. 18), pois “o problema de quem pode exercer a cidadania, e em que termos, não é apenas uma questão do âmbito legal da cidadania e da natureza formal dos direitos que ela implica. É também uma questão de capacidades não-políticas dos cidadãos derivadas dos recursos sociais que eles dominam e a que têm acesso” (idem, p. 11). Mas a contribuição de Marshall traz uma série de problemas. Um deles é a própria perspectiva evolucionista adotada, pois, como argumenta Barbalet (idem, p. 36), “os diferentes direitos da cidadania moderna não são todos talhados do mesmo pano e, em determinadas circunstâncias, podem desenvolver-se entre eles graves tensões”. É o que Saes (2000, p. 10) aponta como uma “concepção idílica de cidadania”, pois Marshall, sempre voltado para o caso inglês, desconsidera o papel das revoluções antifeudais (Revoluções Puritana e Gloriosa, respectivamente, em meados e fins do século XVII) na Inglaterra. “Dificilmente”, diz Saes, “uma efetiva libertação jurídico-política dos trabalhadores teria ocorrido, caso o ciclo revolucionário do século XVII não tivesse aberto a via para uma remodelação meritocrática e antiestamental do aparelho de Estado inglês”. Outro problema é a ideia de que a cidadania carrega em si um sentido positivo ao favorecer a integração, pois, como deveria ser óbvio, ao definir quem são os membros plenos de uma comunidade, aponta igualmente os que estão excluídos dela. Um outro, ainda, é a maneira subjetiva pela qual Marshall encara a classe social, como algo que existe em virtude das percepções e relações sociais que lhe são internas, constituindo basicamente um fenômeno de construção cultural: A identidade das divisões de classe com as diferenças sociais, percep­tuais ou culturais, explícita na concepção de Marshall da classe, indica um tratamento gravemente errado do problema. A classe contém um elemento

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cultural, é certo. Mas as classes sociais não podem existir como entidades abstratas; e a classe social não pode ser definida pela concepção dos seus membros quanto às suas relações com os outros. (...) O fato de as classes serem livres ou subordinadas, dominadoras ou dominadas é, em última análise, responsável pelas diferentes percepções e relações sociais das pessoas que as constituem. (...) As relações entre as classes sociais são mais importantes do que as relações dentro delas, e as relações interclasses são determinadas por coisas como o poder da propriedade privada nos meios de produção (...), que não “se estende ao longo de uma escala contínua”, mas ocasiona uma nítida divisão entre os que o possuem e os que não o possuem. (...) Por outras palavras, o desenvolvimento dos direitos de cidadania pode alterar a maneira como as pessoas se identificam a si próprias bem como os seus sentimentos quanto às desigualdades sociais e de classe. Mas é tudo (Barbalet, 1989, pp. 88-9).

A crítica dirige-se mais especificamente ao potencial inclusivo dos direitos sociais, que se limitam à esfera da distribuição, sem tocarem na matriz produtiva. Aliás, Barbalet (idem, pp. 107-8;114) questiona o próprio status desses direitos, que, segundo ele, não poderiam ser “de cidadania” senão secundariamente, e isso por três motivos: porque o componente social seria um meio para a realização dos direitos de cidadania (e não se pode confundir direitos com os meios para realizá-los); porque esses direitos são significativos apenas quando substantivos, “e os direitos substantivos nunca podem ser universais” (no sentido de que, para se atender às demandas dos necessitados, é preciso tratar desigualmente os desiguais); terceiro, porque se trata de direitos de consumo (dos serviços a serem garantidos pelo Estado), vinculados portanto, a uma base fiscal que é “ela própria dependente de um contexto econômico constantemente sujeito não só a mudanças mas também a forças da economia internacional que o Estado-nação nunca pode controlar”. No entanto, Barbalet (idem, p. 93) reconhece que a luta em torno desses direitos pode ser um importante elemento de mobilização, na medida em que expresse as “tentativas de grupos socialmente subordinados para vencerem as suas desvantagens e reivindicarem aqueles direitos que não podem ser concretizados numa sociedade desigual”. Boito Jr. (2007,

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p. 258) defende proposta semelhante, ao argumentar contra uma certa crítica à esquerda que tende a desqualificar o debate sobre cidadania por entender que o próprio conceito conduz a uma ilusão de igualdade de direitos formais que dissolve, aos olhos dos trabalhadores, a ideia de pertencimento de classe: ele reconhece esse desvirtuamento, mas considera que, diante do quadro atual de ameaça permanente aos direitos sociais, é necessário manter a luta pela preservação dessas conquistas, mesmo nos moldes limitados pelo sistema capitalista. O próprio caminho percorrido pelos direitos sociais indicaria essa importância. Como diz Marshall (1967, p. 72), em sua origem, esses direitos eram precisamente o contrário da cidadania: o amparo aos miseráveis, que na Idade Média ficava a cargo do trabalho de caridade das ordens religiosas e, portanto, não configurava um direito, ganhou esse status na Poor Law, sob a condição de que seus beneficiários abrissem mão de seus direitos civis e políticos (estaria aí, aliás, a origem da suspeição que vigora até hoje em relação à assistência social); a mesma lei retirava encargos da iniciativa privada, favorecendo o desenvolvimento capitalista e a competição no mercado de trabalho. Oliveira (2003) argumenta que o potencial contestador dos direitos sociais começa a ficar visível quando eles passam a ser incorporados pela nascente classe operária como resposta à total exclusão de direitos, resultante do interesse das empresas de se desvencilhar de todas as obrigações relativas à reprodução da força de trabalho. Representam, assim, uma denúncia sobre a insuficiência do salário para garantir as necessidades básicas dos trabalhadores – o que inclui a sua própria reprodução como classe social. Oliveira afirma que os direitos sociais se apresentam como uma contradição em relação ao capitalismo, na medida em que “fazem a operação radical de desmercantilizar a força de trabalho”: ao ganharem o status de direitos, saúde, educação, lazer escapariam às oscilações do mercado. Assim, a luta pela universalização desses direitos – não no sentido substantivo a que Barbalet se refere, mas em sua formalidade jurídica, que os torna uma obrigação do Estado – os eleva à condição de direitos de cidadania, configurando um conjunto de garantias que restringe a liberdade de mercado. E é justamente esse princípio que é posto em causa atualmente, quando a redução do papel do Estado faz florescer a proposta de políticas setoriais de assistência social, levando consigo

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a subversão completa do significado de cidadania, tradicionalmente vinculado à universalização dos direitos. Inversamente, é esse mesmo Estado encolhido que ampara a nova ordem do capital, estimulando a criação do chamado “terceiro setor”, fomentando o que Oliveira (2003) chamou de “ectoplasma”: o conceito de “público não estatal”, que, segundo ele, não existe em nenhuma parte do mundo. 2 A ATUALIZAÇÃO DO DEBATE E A PROPOSTA DE “CIDADANIA PLANETÁRIA” Num artigo voltado para a apresentação dos caminhos amplos e contraditórios que o debate sobre cidadania tomou na última década do século passado, Kymlicka e Norman (2007, pp. 5-6) afirmam que o recrudescimento da questão pode ser explicado por duas razões: em termos teóricos, como uma “evolução natural” do discurso político, “pois o conceito de cidadania parece integrar as exigências de justiça e pertencimento comunitário que são respectivamente os conceitos centrais da filosofia política dos anos setenta e oitenta”; em termos políticos, pela conjuntura internacional expressa em aspectos variados como “a crescente apatia dos votantes e a crônica dependência dos programas assistenciais nos Estados Unidos, o ressurgimento dos movimentos nacionalistas na Europa do Leste, as tensões criadas por uma população crescentemente multicultural e multirracial na Europa Ocidental, o desmantelamento do Estado do bem-estar na Inglaterra thatcheriana, o fracasso das políticas ambientalistas baseadas na cooperação voluntária dos cidadãos etc.”. De fato, as profundas transformações por que o mundo passou na virada para a última década do século XX, e que têm na queda do muro de Berlim seu símbolo mais eloquente, forneceram o terreno para o fortalecimento e a proliferação de uma multiplicidade de movimentos sociais refratários às formas tradicionais de organização política legitimadas nos tempos da bipolarização ideológica. O potencial contestador desses movimentos, especialmente visível em grandes manifestações como os protestos contra a Organização Mundial do Comércio e as edições do Fórum Social Mundial de Porto Alegre, vem sendo problematizado por diversos autores (por exemplo, Gómez,

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2000, 2001; Hardt in Moraes, 2003). A propósito, Hardt (idem, p. 342) define bem as duas vertentes gerais explicitadas no Fórum, relativas ao papel da soberania nacional: “ou se trabalha para reforçar a soberania do Estado-nação como barreira defensiva contra o controle do capital estrangeiro e global ou se luta por uma alternativa não nacional para a forma atual de globalização que seja igualmente global”, o que, neste segundo caso, implicaria a contestação do capital “em geral”, regulamentado ou não pelo Estado. Nesse contexto, surgem conceitos como os de “sociedade civil global” e “cidadania cosmopolita”, que embalam o discurso contestador em nome do “outro mundo possível”. Gómez (2000, p. 136) reconhece que, “contra toda visão romântica ou heroica da vida associativa transnacional, o potencial democratizador de atores e redes transnacionais é algo que precisa ser avaliado através da análise concreta das relações que se estabelecem entre instituições, grupos e redes específicos com problemas, atividades e contextos também específicos”. Rejeita, entretanto, o “realismo” da crítica à perspectiva do “compromisso cosmopolita com uma comunidade mundial de inclusão de todas as pessoas no âmbito da incumbência ética”, contra-argumentando “a partir da premissa moral da humanidade comum (ou do reconhecimento da igual dignidade de todas as pessoas) e do contexto histórico atual de transformações estruturais e de luta na política mundial” (GÓMEZ, 2000, p. 128). Resumindo: as mutações culturais e a estrutura social e técnica do mundo contemporâneo permitem a constituição de forças sociais e cívicas que, sob impulsos e orientações democratizantes de natureza cosmopolita, podem se tornar agentes de mudança radical da política mundial, apesar de sua limitada influência nas escolhas políticas efetivas globais e regionais. (...) É nessa direção que parece apontar a multiplicação de associações, movimentos sociais, grupos organizados ou informais e até indivíduos, movidos pela aspiração e pelo senso de responsabilidade de participar ativamente na construção de uma identidade cidadã desterritorializada e mais cosmopolita. Isto é: na formação do sentimento de pertencimento e lealdade a outras comunidades políticas em fase de invenção (regional, planetária) (Gómez, 2000, pp. 137-8. Grifo meu).

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Ora, a questão central é justamente a capacidade de influir nas escolhas políticas efetivas globais e regionais – embora falar em questão central talvez soe como odioso anacronismo num ambiente em que afloram múltiplas demandas represadas pelas formas tradicionais de militância, institucionalizadas em torno de sindicatos, partidos políticos e organizações semelhantes. A pertinência da crítica à rigidez dessas estruturas não evita, porém, o risco de uma atomização aparentemente explosiva mas realmente pouco eficaz como ação política, e até mesmo passível de resultar no mais radical conservadorismo, pois, em nome de um “respeito às diferenças” que resvala para um improvável retorno à “pureza” cultural, termina-se por se demarcar de maneira estanque o campo social, no caminho inverso à desejável – e conflituosa – integração entre distintas culturas (Young, 2002). Mas falar em “questão central” é algo suspeito para o discurso pósmoderno hegemônico, que, no embalo das promessas representadas pelas novas tecnologias de comunicação, e num desdobramento da tese foucaultiana expressa na Microfísica do poder (1982), sugere que o poder já não tenha mais um núcleo. E continua a afirmá-lo independentemente dos fatos, seja a recente demonstração de força da potência militar norte-americana no Iraque, ao arrepio do direito internacional e da vontade da maioria dos Estados nacionais reunidos na ONU, seja a simples verificação dos fatos corriqueiros da vida cotidiana, em que, em princípio, todos temos direito à diferença, mas raros conseguimos emprego – e onde a palavra “enxugamento” significa o poder de definir quais e quantos enfrentarão a brutal realidade da rua. É por isso que Barbalet (1989, p. 168) sublinha como “fundamental aceitar que, por muito intensa que seja a luta pelos direitos de cidadania, é o Estado que afinal os concede”. E é também por isso que Oliveira (2003) continua a enfatizar a necessidade da luta pelo poder do Estado e desconsidera, como ilusório, o discurso “alternativo” do “público não estatal” que prolifera entre esses movimentos. Habermas reforçou esse argumento ao tratar, num texto de 1990, da complexidade do quadro então insinuado pela União Europeia, reiterada no início do século XXI pelos debates em torno de uma Constituição comum: “A dissolução das chaves semânticas que definem a cidadania e a identidade nacional corresponde ao fato de que a forma

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clássica do Estado nacional se encontra hoje em dissolução, à medida que a Comunidade Europeia se transforma numa união política”. Porém, como “o papel de cidadão só é institucionalizado efetivamente em nível de Estado nacional, as pessoas não têm possibilidades de tematizar ou de influenciar decisões europeias” (Habermas, 1997, pp. 280-1, 292). Sem considerar essa questão central, portanto, ficamos numa espécie de internacionalismo utópico, confiante – para utilizar os termos de Gramsci – no imprescindível “otimismo da vontade”, mas sem levar muito em conta o “pessimismo da razão”, indispensável para a formulação de uma já bem antiga ideia de “outro mundo possível”: a avaliação das relações de produção e reprodução do capital como base para a mudança do sistema, que Neruda certa vez traduziu poeticamente como a possibilidade de “uma outra história e geografia”. 3 A CIDADANIA NA ESFERA DO CONSUMO As profundas transformações por que o mundo passou na virada para a última década do século XX deixaram caminho livre ao império do capital. A dissolução da União Soviética e o fim da “ameaça comunista” retiraram a justificativa ideológica para o investimento no Estado do bem-estar. Desenha-se aí o quadro do neoliberalismo resumido pela célebre frase de Margaret Thatcher: “não existe essa coisa chamada sociedade, o que há são indivíduos” (apud BAUMAN, 2000, p. 75). Emerge então o discurso neoconservador que condena a ideia de assistência social e outros investimentos públicos como contrários ao espírito empreendedor e à livre iniciativa, por favorecerem a acomodação e a dependência dos que não têm recursos. A tentativa de justificação ideológica desse discurso mal encobre as novas condições postas pelas forças do capital, cujo desenvolvimento tecnológico, além de prescindir dos trabalhadores desqualificados que outrora formavam o exército industrial de reserva e assombravam a luta por melhores salários e condições de trabalho, agrava o quadro geral de desemprego, dispensando contingentes crescentes de mão-de-obra. A vitória do mercado redefine as funções do Estado, que precisa ser um bom gerente de recursos e garantir a eficiência própria ao mundo empresarial. Assim, aquela componente social da cidadania, que para

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Marshall (1967, pp. 63-4) implicava uma série de direitos (“desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”), passa para a esfera privada: a sobrevivência é agora assunto de cada um. A síntese de Mattelart (1994, p. 279) esclarece a nova configuração do cidadão como consumidor: O consumidor é, na reorganização da livre empresa, uma peça central. É, ao mesmo tempo, como “co-produtor”, um dos elos do processo de produção e, enquanto representante do povo-mercado, o pedestal do processo de legitimação da concepção neoliberal da sociedade. Com efeito, não se trata de qualquer consumidor, mas de um consumidor soberano em suas escolhas em um mercado livre (...). Nesse aspecto, o neoliberalismo sente incessantemente a necessidade de invocar a representatividade dos consumidores que fazem parte integrante do mercado. Fala em nome deles. Refém e álibi, esse consumidor desempenha, com efeito, um papel principal no palco da democratic marketplace: é seu cidadão. O discurso construído a partir do consumidor – ou, antes e sempre, desse consumidor livre de todas as amarras e determinações que não sejam as de sua própria vontade – institui-se em tal argumento de autoridade que se torna, frequentemente, um discurso terrorista. Um discurso em que só há lugar para a questão relacionada ao campo do consumo, que deverá encontrar em si mesma sua explicação e razão de ser.

Há quem procure enxergar nessa nova situação um campo fértil para uma “reconceituação do consumo” que o transforme em elemento de mobilização para o alargamento da cidadania. É o que Canclini anuncia, tomando como referência os “conflitos multiculturais da globalização”, subtítulo de seu livro sugestivamente chamado Consumidores e cidadãos. Reconceituar o consumo significaria encará-lo “não como simples cenário de gastos inúteis e impulsos irracionais, mas como espaço que serve para pensar, onde se organiza grande parte da racionalidade econômica, sociopolítica e psicológica nas sociedades” (Canclini, 1999, p. 15). A singeleza do comentário há de dar conta do atual estágio de pelo menos uma parcela da crítica acadêmica,

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esforçada em esclarecer que consumo não deve ser tomado no seu sentido banal, associado ao consumismo, mas é uma atividade vinculada ao mercado e à satisfação das necessidades básicas de todo ser humano – e de modo algum estanques, pois, como argumenta Lukács (1979), na medida em que modifica a natureza, o homem também cria novas necessidades, de modo que o que o distingue das demais espécies é a ausência de um sistema fixo de necessidades. Ainda mais quando se recorda a célebre formulação de Marx (1982) sobre as necessidades humanas provenientes “do estômago ou da fantasia”. Mas a obra de Canclini está permeada por descobertas igualmente surpreendentes. Assim, num mesmo parágrafo da página 90, ficamos sabendo que o processo capaz de conduzir a ascensão (grifo meu) dos consumidores à condição de cidadãos implica “uma concepção de mercado não como simples lugar de troca de mercadorias, mas como parte de interações socioculturais mais complexas” – como se, desde Marx, não soubéssemos que o capital é uma relação social; que “o valor mercantil não é alguma coisa contida naturalisticamente nos objetos, mas é resultante das interações socioculturais em que os homens os usam” e que “o caráter abstrato dos intercâmbios mercantis, acentuado agora pela distância espacial e tecnológica entre produtores e consumidores, levou a crer na autonomia das mercadorias e no caráter inexorável, alheio aos objetos, das leis objetivas que regulariam os vínculos entre oferta e demanda”, mas que “em todas as sociedades os bens exercem muitas funções, e (...) a mercantil é apenas uma delas” – como se, desde Marx, não soubéssemos do fetichismo da mercadoria e das relações entre valor de uso e valor de troca. É escusado dizer que o autor não faz qualquer referência a essa fonte. 4 ESTADO SOCIAL X ESTADO PENAL O que, de todo modo, vale a pena explorar é a ideia de “ascensão” do consumidor à condição de cidadão, pois, na verdade, é o inverso que ocorre: cidadãos são considerados como tais porque consumidores. De fato, portanto, há um rebaixamento da cidadania para a esfera do consumo, com a consequência óbvia de alijar dela todos os que não satisfizerem esse requisito. Como diz Batista (2002b), “este novo cidadão pode comprar o que conseguir comprar, porém

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está perpetuamente exilado da política. Decidirão por ele e sobre ele aqueles que lhe usurparam as prerrogativas, dissolvendo-as numa obediência civil com tinturas éticas”. E aqui chegamos a uma equação crucial para o entendimento do que ocorre presentemente com o conceito de cidadania: a relação inversamente proporcional entre o Estado do bem-estar e o sistema penal. É ainda Batista (2002a, p. 272) que resume: O empreendimento neoliberal, capaz de destruir parques industriais nacionais inteiros, com consequentes taxas alarmantes de desemprego; capaz de “flexibilizar” direitos trabalhistas, com a inevitável criação de subempregos; capaz de, tomando a insegurança econômica como princípio doutrinário, restringir aposentadoria e auxílios previdenciários, capaz de, em nome da competitividade, aniquilar procedimentos subsidiados sem considerar o custo social de seus escombros; o empreendimento neoliberal precisa de um poder punitivo onipresente e capilarizado, para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza.

A contrapartida para a redução do Estado social é o fortalecimento do Estado penal, na acepção de Wacquant (2001), que verifica o paralelo entre a progressiva retirada de benefícios sociais nos Estados Unidos e a crescente política de encarceramento dos pobres, a ponto de observar que os projetos de habitação popular estão sendo rigorosamente cumpridos através da construção de mais penitenciárias. Atribuir a um Estado mínimo o controle social máximo sobre os excluídos é um aparente paradoxo, como já notava Batista (1997, p. 147), a não ser que se pense nos termos da “eficiência” requerida pelo discurso neoliberal. Adota-se então uma concepção retributivista da pena, que sustenta a lógica mercantil baseada na equação “comprou (atuou ilicitamente) pagou (seja punido)”. Mas, pensando sempre na lógica de mercado, para atender a dois clientes distintos, o sistema penal precisa empreender uma bipartição, que preserva o infrator-consumidor, evitando-se a todo custo o seu recolhimento à penitenciária, e isola o pobre, sobre o qual recaem as mais duras medidas repressivas. Inscrita no universo do consumo, a cidadania serviria, assim, para “incluir” os excluídos na ordem legal por meio da pena (Batista, 1997, p. 154).

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Seria preciso um recuo à época das revoluções liberais para perceber que a questão criminal é um divisor de águas quando se trata de cidadania: Ao procurar a relação das leis que versam a liberdade política com o cidadão, Montesquieu usará a palavra “segurança” no sentido – que hoje chamaríamos garantista – de segurança jurídica, uma segurança, frisava ele, que “nunca é mais atacada do que nas acusações públicas ou privadas”. Todo o 12º capítulo de seu livro trata de questões criminais (...) na perspectiva da desproteção do cidadão perante o “furor despótico” dos sistemas penais do antigo regime. O texto de Montesquieu inaugura uma vertente que, possivelmente ao influxo do princípio jurídico de que todo direito é integrado pela faculdade de sua própria defesa, interessa-se pela proteção desta unidade essencial ao governo através de leis: o cidadão. Mas aí se encontra igualmente a origem de algo que certa ocasião chamei de “concepção negativa de cidadania”, que abandona as linhas de participação política e do eventual exercício direto do poder para deter-se no conteúdo e nos limites da intervenção penal sobre o indivíduo: autorizações constitucionais e legais da própria prisão, direitos remanescentes dos presos, impedimentos à violação da intimidade e vida privada, proibição de tortura e tratamento desumano ou degradante, inviolabilidade do domicílio etc. Todo aquele capítulo do “Espírito das leis” integra, ao lado de outros textos mais ou menos seus contemporâneos, como que uma farta reserva geológica que fertilizaria, na metade do século XX, o núcleo duro dos nascentes direitos humanos civis e políticos, aqueles que se exprimem nas questões criminais, que em plena Revolução Francesa seriam capazes de extirpar a cidadania a quem nelas se envolvesse. De toda sorte, abria-se um estilo de pensar a cidadania não em sua positividade política, mas sim por meio de sua desativação criminalizante (Batista, 2002b).

Essa desativação criminalizante da cidadania é especialmente forte no empreendimento neoliberal, que, ao reduzir ao mínimo – quando não retira completamente – as garantias do Estado social, promove uma insegurança generalizada que estimula o ambiente hobbesiano de luta de todos contra todos, mas, ao mesmo tempo, exige segurança no que diz respeito à vida e à propriedade.

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Paralelamente, opera-se o processo que Batista (2002b) chamou de “privatização da cidadania”, com a substituição das políticas públicas pelas ações de voluntariado, apresentadas positivamente como o incentivo e o fortalecimento de laços de solidariedade e o estímulo à iniciativa dos cidadãos que deixariam de aguardar eterna e passivamente pelas providências do Estado e resolveriam substituí-lo, cada um “fazendo a sua parte” – e não, como seria de esperar de um efetivo exercício de cidadania, exigindo do Estado o cumprimento de suas responsabilidades. Trata-se do que Wacquant (2001, p. 136) chamou de um “regime liberal-paternalista”, que na verdade seria liberal-paternalístico-policial, pois é liberal no alto, em relação às empresas e às categorias privilegiadas, e paternalista e punitivo embaixo, para com aqueles que se vêem sob as tenazes da reestruturação e do desemprego e o recuo das proteções sociais ou sua reconversão em instrumento de vigilância”, embora, para percebê-lo, seja preciso sair da problemática “crime e castigo” que todos temos na cabeça (e particularmente os criminólogos: é de certa forma o axioma fundador de sua disciplina) e que políticos e jornalistas agitam ad nauseam justamente porque ela avança por si só e ninguém sente necessidade de submetê-la a exame.

Está aí a chave para a compreensão do processo que nos permite ver a cidadania através do espelho: a identificação das bases que sustentam o duplo discurso, aparentemente contraditório, mas de fato complementar, voltado para os marginalizados: de um lado, promover o “bem”, por meio do voluntariado; de outro, combater o “mal”, pela via do sistema penal. O que atualiza os termos da crítica do discurso político realizada por Cerqueira Filho (1982) sobre a “questão social”, ora como “caso de polícia”, ora como “caso de política”, tendo em vista que, agora, a “política” de assistência passa para mãos de particulares.

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5 NO BRASIL: AOS INIMIGOS, A LEI Como nota Carvalho (2002, p. 7), cidadania tornou-se uma palavra da moda no Brasil a partir de 1985, com o fim da ditadura militar, a tal ponto que a nova Constituição, promulgada em 1988, foi chamada de “Constituição Cidadã”. Mas, como o tempo passou e a palavra continua na ordem do dia, trata-se provavelmente de algo bem mais importante do que uma moda. De fato, cidadania é dessas palavras reconceituadas pelo léxico neoliberal no quadro de privatização das tarefas antes atribuídas ao poder público. Assim, a redução do tamanho do Estado é “compensada” pela “responsabilidade social” de “empresas cidadãs”, de acordo com a formulação de uma “nova ética de corresponsabilidade” (entre Estado, empresas e “sociedade civil”, genericamente referida tanto a instituições como a indivíduos) que mascara conflitos e valoriza indiscriminadamente iniciativas voltadas para “fazer o bem”. Francisco de Oliveira já sintetizou a crítica a esse conceito de “empresa cidadã” no tempo em que ele ainda não se havia disseminado, demonstrando o absurdo de se investir de sentido político algo que é do domínio estritamente econômico. Mas o neoliberalismo trabalha competentemente a polissemia que ele próprio ajuda a dar à palavra “cidadania”, de modo a diluir seu sentido político, para daí privatizálo. A proliferação de organizações não governamentais fundadas por empresas, destacando o sentido social de sua atividade, é uma demonstração do alcance desse trabalho permanente de produção de consenso (Moretzsohn, 2002a, pp. 293-4). Bem a propósito, o sentido de cidadania passa a restringir-se ao seu aspecto social, mas, transferido para mãos privadas, torna-se uma ação “que mais se assemelha a uma caridade deslocada de sua gestão eclesial histórica para um gerenciamento compartilhado por agências públicas e por sobras dos lucros pós-modernos, à qual não tem faltado o apoio entusiástico de partidos que se pretendem transformadores, ainda que dispostos a respeitar incondicionalmente o novo contrato social da globalização” (Batista, 2002b). Programas sociais amparados no estímulo ao voluntariado são – e aí temos um dos pontos culminantes da inversão de significados – um “não direito” (Montaño, 2002, p. 22) apresentado como “mais direito”, uma vez que ações

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voluntárias são... voluntárias, isto é, dependem da vontade de quem as promove, de modo que não criam obrigações passíveis de serem reivindicadas. No caso brasileiro, esse discurso encontra terreno fértil devido às particularidades da nossa muito precária e recente experiência de cidadania, que, segundo Carvalho (2002, p. 124), começou de fato pelo fim, com o avanço dos direitos sociais (introduzidos nos anos 30 do século XX) antes da expansão dos direitos políticos. Até então, como demonstra o autor, não se poderia falar propriamente de cidadania, no sentido da universalização de direitos que essa palavra originalmente implica. Durante o longo período colonial, a maioria da população permaneceu excluída de direitos civis e políticos. A primeira Constituição, dois anos após a independência, era liberal para os padrões da época e estendia o direito do voto aos analfabetos, mas silenciava sobre os escravos. Batista (2002b) diz que “aí está a nossa arte: bastava-nos ter mantido o direito de propriedade ‘em toda a sua plenitude’. A plenitude da propriedade é o contraponto da restrição à cidadania na carta de nossa fundação política”. Mas o voto era “mercadoria a ser vendida pelo melhor preço” (Carvalho, 2002, p. 36). Tampouco existia um sentimento de lealdade a uma pátria: a formação de uma identidade nacional começaria a se produzir muitos anos depois, com a mobilização para a Guerra do Paraguai (idem, pp. 37-8). Os direitos civis eram inviabilizados porque a Justiça era privada ou controlada por agentes privados: o direito de ir e vir, o direito de propriedade, a inviolabilidade do lar etc., tudo dependia do poder do “coronel”. O que pode ser sintetizado na frase incorporada às nossas tradições: “aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei” (idem, p. 57). A lei, que devia ser a garantia da igualdade de todos, acima do arbítrio do governo e do poder privado, algo a ser valorizado, respeitado, mesmo venerado, tornava-se apenas instrumento de castigo, arma contra os inimigos, algo a ser usado em benefício próprio. Não havia justiça, não havia poder verdadeiramente público, não havia cidadãos civis. Nessas circunstâncias, não poderia haver cidadãos políticos. Mesmo que lhes fosse permitido votar, eles não teriam as condições necessárias para o exercício independente do direito político (CARVALHO, 2002, p. 57).

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Foi apenas com a Revolução de 1930 que a situação começou a mudar. Mas o que avançou nesse período foram os direitos sociais, no quadro do positivismo, que enfatizavam a cooperação entre trabalhadores e patrões e buscava a solução pacífica dos conflitos: “Ambos deviam agir de acordo com o interesse da sociedade, que era superior aos seus. Os operários deviam respeitar os patrões, os patrões deviam tratar bem os operários” (CARVALHO, 2002, p. 111). A legislação trabalhista e sindical traduzia o controle do Estado sobre os trabalhadores, que assim se incorporavam à sociedade por meio desses mecanismos de controle e não por uma ação independente. E mesmo a Previdência Social, que representava um grande avanço, não tinha a característica universalizante que assumiria décadas depois: os vários institutos de aposentadoria e pensão vinculavam-se a categorias profissionais, o que, de saída, estabelecia a diferenciação de proventos entre uma categoria e outra. Mas, mais importante, esse instrumento deixava de fora todos os trabalhadores autônomos e domésticos, além dos rurais, que na época ainda eram maioria. Tratava-se, portanto, de uma concepção da política social como privilégio e não como direito. Se ela fosse concebida como direito, deveria beneficiar a todos e da mesma maneira. Do modo como foram introduzidos, os benefícios atingiam aqueles a quem o governo decidia favorecer, de modo particular aqueles que se enquadravam na estrutura sindical corporativa montada pelo Estado (CARVALHO, 2002, pp. 114-5).

A longa ditadura iniciada em 1964 cuidaria de universalizar esses direitos, preservando a lógica invertida de que, em regimes de exceção, os direitos tradicionais de cidadania (civis e políticos) ficam cancelados, suspensos ou pelo menos ameaçados, enquanto se garante o amparo social capaz de fazer arrefecer movimentos contestadores de cunho popular. Assim, o pálido esboço de Estado do bem-estar que atravessou as contraditórias fases do varguismo e prosseguiu nos anos do desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek e das anunciadas reformas de Jango conforma-se mais claramente após o golpe militar, portanto “sob a égide de um regime autoritário, nos quadros de um

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modelo econômico concentrador e socialmente excludente”, quando “se consolida o arcabouço político-institucional das políticas sociais brasileiras” (Soares, apud Montaño, 2002, p. 34). Assim, entre 1964 e meados de 1970, transformando as bases institucionais e financeiras da política social, supera-se a fragmentação existente até então. A partir daí pode-se desenvolver políticas de massa e de cobertura significativa. Instituem-se novos mecanismos de formação de um patrimônio dos trabalhadores (FGTS, PIS/Pasep), incluem-se os trabalhadores rurais na proteção social e ampliam-se os “benefícios” para os trabalhadores urbanos (Soares, ibidem).

6 O “CIDADÃO-CLIENTE” DO ESTADO GERENCIAL O lento caminho até a redemocratização culminaria no “novo pacto social” expresso pela Constituição de 1988, que “consagrou este profundo ‘avanço social’, resultado das lutas conduzidas, por duas décadas, pelos setores democráticos: sem ferir a ordem burguesa (...), ela assentou os fundamentos a partir dos quais a dinâmica capitalista poderia ser direcionada de modo a reduzir, a níveis toleráveis, o que os próprios segmentos das classes dominantes então denominavam ‘dívida social’” (Netto, apud Montaño, 2002, p. 35), e configurou um pacto social que, pela primeira vez no país, apontava para “a construção de uma espécie de Estado de bem-estar social”. O que era uma contradição com o cenário internacional: No Brasil, o processo aliancista é radicalmente diferente do ocorrido nos países centrais. Não é um pacto “social-liberal” que sucede, no nosso país, a aliança de hegemonia neoliberal, mas, contrariamente, é esta última que substitui, na década de 1990, o “pacto social-democrático” dos anos 1980. Se a década de 1980 marcou, nos países centrais, um avanço da hegemonia neoliberal mais radical, e no decênio seguinte consolida-se a chamada “terceira via”, considerada mais light, no Brasil, dadas as suas particularidades históricas, o processo é significativamente contrário: enquanto a década de 1980 é marcada por um “pacto social” entre os diversos setores democráticos, pressionados por amplos movimentos sociais e classistas (que levou à Constituição de 1988), os

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anos 1990 representam o contexto do desenvolvimento mais explícito da hegemonia neoliberal, onde até setores da esquerda resignada e possibilista sucumbem aos “encantos” ou às pressões do Consenso de Washington (Netto, apud Montaño, 2002, pp. 35-6).

É nesse quadro que se define uma “reforma gerencial” (supostamente) voltada para o “cidadão-cliente” e para a democracia; uma “reforma para a cidadania” (Montaño, 2002, p. 40). Dissemina-se o discurso moralista em relação ao cumprimento de compromissos assumidos (com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e outras agências semelhantes), de respeito ao pagamento de dívidas para afastar a imagem do calote e habilitar o país a novos créditos, que embutem mais e mais dívidas. A consequência é a progressiva redução do orçamento para gastos públicos, já de si vistos como desperdício, especialmente devido à corrupção associada à burocracia estatal. Paralelamente, incentiva-se a ampliação do “terceiro setor”, com a multiplicação de ONGs de variada extração e “projetos sociais” vinculados a grandes empresas, encarregados do amparo social do qual o Estado precisa livrar-se para ser “eficiente”. Tal é o processo de remercantilização da força de trabalho e de refilantropização da “questão social”: como diz Montaño (2002, p. 22), “a resposta às necessidades sociais deixa de ser uma responsabilidade de todos (na contribuição compulsória do financiamento estatal, instrumento de tal resposta) e um direito do cidadão, e passa agora, sob a égide neoliberal, a ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-direito do portador de necessidades, o “cidadão pobre”. O mesmo autor sublinha as sutilezas discursivas capazes de valorizar positivamente esse projeto: Escamotear a veracidade desse processo exige um duplo caminho: por um lado, o da indução a uma imagem mistificada de construção e ampliação da cidadania e democracia, porém retirando as reais condições para a sua efetiva concretização; por outro, o da indução a uma imagem ideológica de transferência de atividades, de uma esfera estatal satanizada (considerada naturalmente como burocrática, ineficiente, desfinanciada, corrupta) para um santificado “setor” supostamente mais ágil, eficiente, democrático e popular (o de uma “sociedade civil”

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transmutada em “terceiro setor”). Assim, a desresponsabilização estatal das respostas às sequelas da “questão social” seria (supostamente) compensada pela ampliação de sistemas privados: mercantis (empresariais, lucrativos) e filantrópico-voluntários (do chamado “terceiro setor”). A partir do tripé constitucional da seguridade social – previdência, saúde e assistência, de forma muito clara, porém não casual –, o “setor empresarial se volta para atender a demandas nas áreas da previdência social e da saúde, enquanto o “terceiro setor” dirige-se fundamentalmente à assistência social, notadamente nos setores carentes (MONTAÑO, 2002, pp. 22-3).

Como diz Oliveira (2003), esse processo de remercantilização torna o direito um custo para cada consumidor e tem como consequência o aprofundamento das divisões de classe. É nesse contexto que vão aparecer o que o autor chama de “políticas de exceção: bolsa-escola, bolsa-alimentação, auxílio-gás e Fome Zero, além das cotas étnicas no vestibular”, o que “leva a ilhas de excepcionalidade no interior das chamadas ‘classes perigosas’, tendendo a criar clientelas que são a negação da política universal e do próprio estatuto da cidadania”. Em breve artigo na Folha de S. Paulo, Claudia Antunes (2003) sintetiza o que bem poderia levar o nome de “bolsa-esmola”: Diante de orçamentos apertados, governantes do país inteiro têm optado cada vez mais por aumentar gastos com bolsas de todo tipo em detrimento da estrutura permanente de serviços sociais. As necessidades da população são imensas e imediatas, o retorno é rápido e não se pode exigir de políticos que esqueçam as urnas. Programas compensatórios existem na maioria dos países, e nem aqueles que têm maior equilíbrio na distribuição de renda puderam abrir mão deles. O problema é que, no Brasil, não há perspectiva de os beneficiários se libertarem. O crescimento medíocre da economia só faz piorar o mercado de trabalho, criando novos necessitados. Enquanto isso, a escola e a saúde públicas ficam estagnadas. (...) As bolsas e ajudas afins transformam-se em mais um maná para o clientelismo.

Essa “privatização da cidadania” provoca o comentário irônico de Batista (2002b):

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Dez peruas do society resolvem ensinar uns garotos, que caíram nas malhas da justiça da infância e adolescência, a se tornarem garçons compenetrados? Cidadania. As cadeiras de rodas com as quais animadores de auditório garantem audiência e patrocínio? Cidadania pura. O Estado reduz sua potência ao clientelismo de distribuir algum dinheiro para os pobres? Criou-se o “cheque-cidadão”. Alguém devolveu ao banco dinheiro que caiu do carro-forte? Ganhou o prêmio de cidadania. Uns estudantes de classe média foram a uma favela, por qualquer motivo distinto de comprar maconha? É cidadania no Jornal Nacional. O pior é quando, na própria concepção dos serviços executivos ou judiciários, se adota a perspectiva do fast-food cidadão: repartições públicas que sonham ser o McDonald’s, nas quais as batatas fritas decisórias prorrompem do computador para um homem cuja face jamais foi vista; uma feira de utilidades jurídicas, cujo consumidor poderá chamar-se agora cidadão. Um programa de orientação legal para pobres, desse partido conservador não registrado no STE chamado Viva Rio, levou o nome de “balcão de direitos”. A televisão, com seus reality shows judicialiformes, está na vanguarda desse movimento, como em outro trabalho procurei descrever1.

7 A MÍDIA E AS PERSPECTIVAS DE REPOLITIZAR A LUTA PELOS DIREITOS SOCIAIS A televisão, não por acaso a mídia hegemônica, grande corporação solidária ao neoliberalismo, ocupa um lugar privilegiado para a disseminação desse ideário, pois lida com a comunicação e o senso comum, naturalizando conceitos e escondendo seus interesses empresariais ao falar “em nome da sociedade”, amparada numa derivação do conceito clássico de “quarto poder”. Com uma particularidade fundamental: como grande corporação, adota o conceito de “empresa cidadã” e desenvolve seus próprios projetos sociais, aparecendo como legítima substituta do Estado exatamente pela interlocução direta que estabelece com seu público (a “sociedade”, de forma geral). No Brasil, este é, muito claramente, o caso das Organizações Globo, que dominam o mercado televisivo e cujas linhas de atuação, de acordo 1

O referido texto pode ser lido em Batista (2002a).

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com seus próprios representantes (ERLANGER e ALCOULOMBRE, 2003), dividem-se em “educação e direitos”, “educação e interesse público” e “educação, conhecimento e cultura”. No primeiro caso estariam os projetos Criança Esperança (“parceria de 17 anos entre a Rede Globo e o Unicef, considerada modelo pela ONU”), Amigos da Escola (“ação de incentivo à participação da comunidade no esforço de melhoria da qualidade de ensino nas escolas da rede pública por meio da ação voluntária”) e Geração da Paz (“programa de ações (...) de prevenção à violência, com participação da sociedade civil e governos”). No segundo caso, o “merchandising social” (por meio de campanhas incluídas nos roteiros de novelas e outros programas de entretenimento), campanhas sociais “de utilidade pública” (próprias ou de terceiros, como o apoio ao Natal sem Fome), incentivo à cultura (com o apoio a espetáculos teatrais e outras manifestações culturais) e “jornalismo social”2 (traduzido em campanhas de rua de cunho plebiscitário, como as urnas volantes no Rio de Janeiro, que indicariam “O bairro que eu quero”, pesquisas cujo resultado é encaminhado ao poder público). Finalmente, na área de “conhecimento e cultura”, a empresa destaca o “canal de comunicação permanente” com a comunidade acadêmica “para o intercâmbio de ideias e a cooperação tecnológica e de conhecimento” e a própria programação educativa (Sítio do Picapau Amarelo, Globo Ciência, Globo Educação e Globo Ecologia). A atuação das Organizações Globo já foi objeto de uma série de análises das mais variadas tendências, mas mereceria um estudo detalhado sobre o seu discurso em relação ao conceito de cidadania, seja em programas específicos dedicados ao tema, seja em telejornais, talk-shows ou programas de entretenimento. Uma abordagem inicial, especialmente voltada para o noticiário em época de eleição (MORETZSOHN, 2002b), quando proliferam reportagens declarada  Não deixa de ser curiosa essa classificação – pois jornalismo deveria ser, por princípio, social – e, mais ainda, a associação do “social” ao suposto incentivo à participação do cidadão comum, que circula aleatoriamente na rua e é solicitado a manifestar-se. Trata-se de mais uma expressão da tradicional crença no poder das pesquisas de opinião, cujos falseamento e funcionalidade já foram apontados por Bourdieu (1984) e Champagne (1998).

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mente empenhadas em estimular a “participação cidadã” dos eleitores, pode, entretanto, indicar o sentido de mistificação da já relatada crítica de Boito Jr. O modelo é clássico: apresentar situações vividas por classes sociais distintas (normalmente, uma comunidade pobre e outra de classe média ou alta) que, apesar das óbvias diferenças de status, têm de se organizar para defender seus direitos. Uma das reportagens da série que o Jornal Nacional veiculou em 2003 fornece um exemplo notável ao comparar “duas comunidades de Belo Horizonte” que mostravam “o caminho para melhorar as condições de vida nas metrópoles”: uma, de moradores de uma favela, com as habituais carências básicas de saneamento e infraestrutura; a outra, um condomínio de classe média que, “em comparação, já conquistou quase tudo”. Dizia o repórter: “Não importa qual seja o nível de renda das pessoas, a grande cidade brasileira trouxe uma importantíssima lição para as comunidades que vivem nela. É fundamental se organizar e não dá para esperar pelo poder público”. Não seria difícil perceber quantas questões fundamentais se escondem nessa formulação aparentemente inocente: dizer que não importa exatamente o que mais importa – a condição social das pessoas, indissociável de sua capacidade de organização e de seu poder de pressão para garantir direitos e ampliar conquistas; dizer que não dá para esperar pelo poder público, uma crítica à omissão (frequentemente real) do Estado em relação à periferia, mas uma crítica que estende facilmente seu sentido no caminho da desqualificação automática do poder público, quando é justamente na relação com esse poder – e não em substituição a ele – que as “comunidades” se organizam. O quadro se completa na fala final do repórter: “Organizar-se dentro da grande cidade é um dos poucos retratos unindo brasileiros por cima do fosso social que os separa”. Uma união, portanto, que passa “por cima” de conflitos, pois conflitos não cabem nesta muito peculiar noção de cidadania, que se impõe na generalidade abstrata do slogan repetido à exaustão, “a gente vê por aqui”: um achado, sem dúvida, considerando-se sobretudo que o original “Globo: a gente se vê por aqui” é indicativo desse sentido de comunidade e intimidade que a empresa procura disseminar, apresentando-se como “o” lugar onde os brasileiros se encontram e compartilham suas histórias, seus problemas, suas esperanças.

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Porém, esse tipo de questionamento só é possível a quem está acostumado a exercitar o pensamento crítico. Por isso é tão difícil disseminá-lo, tendo em vista que o pensamento crítico é, por definição, minoritário, e que um papel ideológico fundamental da mídia hegemônica é justamente reiterar e consolidar as crenças do senso comum (MORETZSOHN, 2007). Daí ser tão penoso trabalhar no sentido de repolitizar a luta pelos direitos sociais, que exigiria, na contramão da convocação plebiscitária referida no início deste artigo, a compreensão das contradições essenciais do sistema em que vivemos. Pois a participação igualitária de “todos” na política (proposta original de Marshall, cujas insuficiências foram analisadas acima) implicaria a igualdade de condição econômica. Ora, qualquer variante de “democracia econômica” é insuscetível de se concretizar numa sociedade capitalista, que evolui sempre na direção de uma crescente concentração e centralização do capital. Isso significa que a instauração da condição geral indispensável à concretização da participação política da maioria social implica a superação do modelo capitalista de sociedade. Noutras palavras: uma cidadania plena e ilimitada, conforme com as exigências ideológicas subjacentes ao conceito apresentado por Marshall, situa-se além do horizonte da sociedade capitalista e das suas instituições políticas (SAES, 2000, p. 46).

Se a participação política exige a participação nas decisões do Estado, e se “o coração do Estado são o orçamento e a moeda”, Oliveira (2003) aponta a recuperação do projeto de orçamento participativo como um caminho viável para a repolitização da luta pelos direitos sociais. Seria uma forma, quem sabe, de reconduzir Alice de volta de sua fantástica viagem através do espelho.

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CONFIGURAÇÃO DO MOVIMENTO SERINGUEIRO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA NAS DÉCADAS DE 1970-1980 – Elementos para pensar políticas públicas sustentáveis Cláudia Conceição Cunha

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EDIÇÃO 11 O SIGNIFICADO AMBIENTAL DO QUADRO JURÍDICO-INSTITUCIONAL DIANTE DA PRESENÇA DE ESPÉCIES EXÓTICAS NO BRASIL Anderson Eduardo Silva de Oliveira

MUSEUS: LIMITES E POSSIBILIDADES NA PROMOÇÃO DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPATÓRIA Andréa F. Costa Maria das Mercês Navarro Vasconcellos

PROTEÇÃO SOCIAL DOS IDOSOS NO BRASIL E NA AMÉRICA LATINA Graziela Ansiliero Rogério Nagamine Costanzi


GLOBALIZAÇÃO E CONVERGÊNCIA EDUCACIONAL Análise comparativa das ações recentes para a reforma dos sistemas educacionais no Brasil e nos Estados Unidos Rafael Parente

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A RESPONSABILIDADE SOCIAL E AS ENTIDADES CORPORATIVAS Eduardo R. Gomes, Leticia Veloso e Bárbara de S. Valle

A MODERNIZAÇÃO DE SÃO PAULO EM DOIS TEXTOS DE JOÃO ANTÔNIO (1937 – 1996) Ieda Magri DISCURSOS SOBRE O HAITI: O QUE ‘O GLOBO’ E SEUS LEITORES TIVERAM A DIZER SOBRE O TERREMOTO DE 2010 Larissa Morais OBSERVAÇÕES SOBRE A CHAMADA ‘MORTE DO AUTOR’ Paulo Cesar Duque-Estrada




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