Teatro | A Mentira - Cia Omondé

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De nelson rodrigues

A Mentira Adaptação e direção Inez Viana



EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE Em 2016, o Departamento de Dicionários da Universidade de Oxford elegeu “pós-verdade” (post-truth) o termo do ano na língua inglesa, sugerindo a seguinte definição: “aquilo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. De lá para cá, ao caldo de crenças e descrenças que regula as sociedades contemporâneas, foi adicionado o tempero das notícias falsas (fake news), tornando mais acaloradas as contendas sobre verdades, mentiras, fatos alternativos, provas ou convicções. Nelson Rodrigues trabalhou, como jornalista e ficcionista, várias dentre essas possibilidades. Em “A Mentira”, sua primeira obra publicada sem pseudônimo, tais questões adquirem papel central, a partir das transformações que uma falsa notícia desencadeia no cotidiano

de uma família. O público é convidado a testemunhar dinâmicas nas quais fatos objetivos desmancham-se e a emoção parece tomar as rédeas dos acontecimentos. A arte pode se revelar especialmente apropriada para abordar terrenos movediços como este; afinal, o campo da ficção dispõe de ferramentas que manejam habilmente as fronteiras, não raro tênues, entre a verdade e seus contrários. Em que medida tais criações ajudam a compreender o que se passa ao nosso redor é algo que depende do encontro, sempre renovado, entre palco e plateia. Cabe a instituições como o Sesc, empenhadas no aprofundamento dos debates de interesse público, acolher discussões que estimulem conexões desse tipo. Isso se aplica à obra de Nelson Rodrigues, capaz de engendrar leituras complexas do mundo, ultrapassando esboços simplificados daquilo que chamamos, por convenção, realidade. Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo


ABUSO¹ Segundo a Organização Mundial da Saúde, a cada mil adolescentes brasileiras, entre 15 e 19 anos, 68,4, ficam grávidas. O índice brasileiro está acima da média latino-americana, estimada em 65,5. E esta é a principal razão das mortes das adolescentes nas Américas. Muitas dessas gestações não são uma escolha deliberada, mas a causa, por exemplo, de uma relação de abuso.² O abuso consegue ser o carro-chefe das relações humanas, em suas várias escalas. Segue tentando abafar a dor e as consequências psicológicas deixadas e ainda legítima os abusadores quando é considerado coisa normal. Nos textos de Nelson Rodrigues, vemos isso claramente, como retrato de uma época na qual a maioria dos homens tratava suas mulheres como um pano de chão. Retrato de uma época? Tratava? Infelizmente estamos falando daqui, de hoje, e, no presente, voltamos ao passado. Ou, nunca saímos dele. Apesar de gritarmos “não é não!”, de denunciarmos, de sairmos para as manifestações com faixas e palavras escritas sobre nossos corpos e mentes abusados, parece que não saímos ainda daquela época, onde ultrapassar os limites era tolerado. E continua sendo.

Uma adolescente foi abusada. Seu nome: Lúcia. Tem catorze anos. Como consequência, ficou grávida. Mas não se sabe quem é o pai da criança que carrega. Ela não quer dizer. Lúcia é uma das personagens do romance A Mentira, de Nelson Rodrigues, que também nos coloca diante de outros temas abusivos como a misoginia. A pergunta principal que ecoou durante meses em minha cabeça e nas da Cia OmondÉ foi: Como montar um Nelson hoje, abordando esses pensamentos machistas? Como contar hoje essa história? As atrizes e atores que contam e vivem todos os personagens, não se atêm a fazer trejeitos de seus sexos opostos, quando compõem os mesmos. Aliás, não fazem mimeses de gênero. Assim, a crítica se evidencia mais e o jogo se expande para além do elenco, incluindo o espectador e a representação dá lugar a questões essenciais. Com pouquíssimos elementos externos, como um pano de chão, uma garrafa d’água, centenas de sandálias de dedo, um figurino vigente e uma luz decisiva, que corroboram com a encenação, levamos para o palco do Teatro do Sesc Ipiranga uma montagem

(1) Injustiça, desordem, excesso, ultrapassar limites. (2) Esteban Caballero, diretor regional do Fundo de População das Nações Unidas para a América Latina.


nada convencional, pelo jogo mencionado, e por colocar a plateia, desde o primeiro momento, cúmplice do espetáculo. Ela acompanha com interesse e envolvimento as trocas de personagens, a história desta gravidez indesejada, e se surpreende com o inesperado desfecho. No centro da cena, o retrato de uma classe média frágil e hipócrita. Durante o processo de ensaios, confirmamos que ainda carregamos muitos preconceitos em relação à nossa postura, não só diante da condição da mulher hoje, mas da falta de entendimento sobre o que caracteriza uma situação de abuso. E antes que alguém diga que estamos exagerando, que foi brincadeira, que agora não se pode dizer mais nada, peço que se coloque no lugar da outra e do outro. Só transformando a vida num grande espelho, a gente vai conseguir entender que o que vemos no outro, está em nós e, consequentemente, nossas adolescentes poderão chegar a fase adulta optando por serem ou não mães. Inez Viana Atriz e diretora da Cia OmondÉ Artigo publicado em junho/18 na revista Veja Online RJ



Lúcia é a caçula de uma família de quatro mulheres e um pai repressor, que vive na Zona Norte do Rio de Janeiro. Aos catorze anos ela sente um súbito mal-estar, que leva à terrível descoberta da gravidez. A suspeita sobre quem seria o pai da criança será o motor de uma sequência de revelações, acontecimentos passados e desejos ocultos sob a aparente harmonia familiar.


Experimentem cair assim. Temos composição hoje? É um jogo. Achamos o pano! E se todos jogassem o chinelo? Aproximem o personagem de vocês. Isso, que lindo! Que texto! Obrigada Zé Wendell por trazer o romance para a OmondÉ. Está horrível isso. Não estou ouvindo, articulem! Não faz barulho! Junior você é a nossa Lúcia mais sensual! Faz barulho! As oficinas foram um sucesso, nos salvaram. Nenhum edital! Tá foda. Hoje eu trouxe um bolo! Viva! Hoje eu fiz um bolo! Leo, você arrasa nessa receita. Ih, não posso, gordura no fígado! Gente, o André está dando o tom da peça; por que a gente não começa na rua? A Denise é a que tem melhor golfada. Risos. Atualíssimo! Gravidez na adolescência e misoginia. Nelson, né? O Lucas conseguiu apoio num restaurante aqui do lado, ufa! Nenhum edital! Tá foda. Gente, a Virginia Barros topou fazer nosso figurino! Oh Graças! Elisa, sabe jogar amarelinha? Se não

fossem vocês, eu nem levantava da cama. Que depressão... Que momento... É o golpe! O Ney falou com ele, vai dar a pauta! Debora vem hoje! Vou revezar com a Denise, meu Deus, não sei o texto. Bruna, fica de ponto? Estou amando esse processo. Fomos ver ontem, todo mundo tem que ver esse filme! Que elenco! Queria morar aqui dentro. Tá difícil demais... E qual peça não está? Nenhum edital... O público vai entender esse jogo? A Ana Luzia faz um recorte na luz. Hoje, a gente termina. Você fala isso há uma semana... Já estamos juntxs há algum tempo. Alguns 9 anos, outros 8, 1, e tem os que chegaram há 2 meses, mas parece que nos conhecemos por toda uma vida. O teatro faz isso com a gente. E chegamos aqui, hoje. E, nesta sétima peça da Cia OmondÉ, falamos de gravidez na adolescência e misoginia, temas tão atuais e centrais do romance A Mentira, de Nelson Rodrigues. Cia OmondÉ


Um dia encontrei Inez e disse a ela que não entendia como os atores convivem com um real não existente. Eu disse que queria entender esse processo e que pensava como seria a experiência de recuperar o tecido da escrita feita por outro alguém que reescreve a história no espaço. Ela então me falou de ‘A Mentira’, do Nelson Rodrigues, e me convidou para experimentar no corpo o que eu não entendia. E aqui estou eu trazendo corpo, movimento, dança e um espanto diante da possibilidade de fazer teatro como tentativa de entender uma história em um momento da nossa história onde a narrativa me parece uma grande mentira. Inez, Zé, Junior, Lucas, Leo, André, Elisa, Bruna, Debora, obrigada por este encontro, obrigada por me deixar habitar junto com vocês este espaço. O teatro é mesmo uma coisa impressionante. Denise Stutz


FICHA TÉCNICA

CIA OMONDÉ

Autor: Nelson Rodrigues

Criada em 2009, a partir de um encontro teatral que resultou na montagem de “As Conchambranças de Quaderna”, de Ariano Suassuna, a Cia OmondÉ é a concretização de um desejo que a atriz e diretora Inez Viana nutriu por mais de duas décadas. Naquela ocasião, movidos pela vontade de compartilhar processos e criar em colaboração, nove atores de diferentes lugares do Brasil e Inez, iniciaram uma pesquisa, dialogando com diferentes recursos do teatro e da dança contemporâneos, que se mantêm presentes nas obras atuais da companhia.

Direção e adaptação: Inez Viana Elenco: André Senna, Denise Stutz, Elisa Barbosa, Junior Dantas/Inez Viana, Leonardo Bricio, Lucas Lacerda, Zé Wendell Direção de movimento: Denise Stutz Iluminação: Ana Luzia De Simoni Operadora de luz: Thatiana Moraes Figurino: Virgínia Barros Assistente de direção: Bruna Christine Projeto gráfico: André Senna Fotos: Aline Macedo Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques Produção: Eu + Ela Produções Artísticas Direção de produção: Douglas Resende e Inez Viana Produção executiva: Junior Dantas Idealização: Cia OmondÉ

AGRADECIMENTOS Danilo Grangheia, Debora Lamm, Elídia Novaes, Felipe Soares, Gabi Gonçalves e Rodrigo Bolzan.

Próxima de completar 10 anos, a OmondÉ tem em seu repertório sete peças, todas de autores brasileiros, clássicos e contemporâneos, como Ariano Suassuna, Nelson Rodrigues, Grace Passô, Jô Bilac, Alcione Araújo e segue na busca de uma linguagem cênica que dialoga com temas vigentes, contribuindo para a reflexão sobre o nosso papel na sociedade. A OmondÉ são Carolina Pismel, Debora Lamm, Iano Salomão, Inez Viana, Jefferson Shroeder, Junior Dantas, Juliane Bodini, Leonardo Bricio, Luis Antonio Fortes e Zé Wendell.



A Mentira 9/11 a 2/12. Sex e sรกb, 21h | Dom, 18h Teatro|16 anos

Sesc Ipiranga

Rua Bom Pastor, 822 CEP 04203-000 - Sรฃo Paulo/SP Tel.: +55 11 3340 2000 /sescipiranga

sescsp.org.br/ipiranga


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