Teatro | Fim de Partida

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De Samuel Beckett Direção de Yoshi Oida e Matteo Bonfitto

F im de Par tida

setembro outubro 2019



Gestos de potência Entre os autores e autoras que expuseram, durante o século XX, os dilemas da vida moderna em meio a crises civilizacionais, Samuel Beckett destaca-se por propor uma dramaturgia avessa a conclusões e, também, a afirmações morais a serem depreendidas de suas obras. Nesse sentido, as falas de seus personagens são compostas por frases curtas, não raro ambíguas, sugerindo significados abertos às concatenações dos públicos. Seus diálogos, a cada réplica ou tréplica, desenham sequências sucessivas e reticentes, exigindo do espectador, a um só tempo, atenção aguda e intepretação ativa. É patente que sua poética extrapola a racionalidade, desafiando-a. Trata-se de uma obra complexa, dedicada a produzir revoluções estilísticas na linguagem dramatúrgica e nas formas de encenação. Com ela, veem-se elevados ao mais alto grau a capacidade do teatro de provocar reflexões e mobilizações que, a despeito das atrocidades e dos traumas vividos pela humanidade, a levam a buscar outros possíveis. Ao realizar o espetáculo Fim de Partida, o Sesc contribui para a reverberação de um legado artístico que, através de novas leituras e montagens, segue escancarando a dimensão tragicômica da vida, fazendo com que as pequenas e grandes catástrofes sejam decantadas em gestos de potência.

Sesc São Paulo

Uma sociedade cruel e eu, as dificuldades que permeiam as relações humanas e eu, a finitude da vida e eu. Todos os medos que tive em minha vida estão presentes nessa peça. Dor, sensação de desorientação, tristeza, raiva e um incrível senso de humor. Já o protagonista dessa peça - Hamm - não age de maneira desesperada, porque parece consciente de sua dupla existência: de um lado a vida ordinária, cotidiana, com seus amores, ódios, rancores, esperanças... e de outro a vida invisível, que ultrapassa as emoções reativas do dia-a-dia para observar o existir com serenidade, tentando não se perder em inúteis confusões. Mesmo após os momentos de confronto com Clov, ele diz: “estamos progredindo“. Quero ser como ele. Observar a sociedade atual com calma, e tentar evitar o caos, mesmo diante de tudo o que me circunda.

Yoshi Oida



Fim de partida (Endgame, no original em inglês) foi escrita por Samuel Beckett (1906-1989) num contexto pós-catástrofes. Na sucessão de duas guerras mundiais, sobre os destroços e os entulhos do nazi fascismo, Beckett desloca o olhar sobre este plano geral de destruição e envenenamento social e escreve, entre 1954 e 1956, uma peça sobre as relações tóxicas no seio de uma família blindada. Hamm é o protagonista estacionado no centro da cena, como um patriarca cego que nada vê e tudo sente na lógica peculiar da lembrança, da dependência, do domínio opaco, e dos “sofrimentos sublimes”. Nagg e Nell, pai e mãe de Hamm, de pernas amputadas, somente com as cabeças expostas e as mãos apoiadas sobre rejeitos, fazem a síntese dos afetos e dos jogos emocionais plenos de um exibicionismo decrépito e de um humor resiliente que se arrefece sob as divertidas parábolas da vida cotidiana, e a sombra da morte. Clov, o filho adotivo, é o único que tem ainda o poder precário e ameaçador de se mover, e fazer mover. Manipulados pelo jovem, os objetos que restam na casa-refúgio instauram a circularidade cômica de uma consciência áspera e mordaz. O fim de partida é o mecanismo interligado e recursivo pelo qual a micropolítica da família se torna um espelho satírico em que reconhecemos a fanfarronice do poder, reentrante e reincidente... hoje, de novo, aqui e acolá, um lugar comum.


Falar sobre a experiência vivida com Yoshi Oida, um dos mestres mais importantes do teatro, é como aceitar o desafio de fazer de uma complexa construção harmônica uma linha melódica. Faço, então, uma escolha: aquela de recuar, de voltar no tempo, e mais precisamente para o dia 3 de janeiro de 2018, quando aconteceu o meu encontro com Oida em sua casa. Esse encontro, que não foi o primeiro, aconteceu quando as causas e as condições permitiram a construção de uma busca, que se materializou em Fim de Partida de Samuel Beckett. Em função sobretudo da idade avançada – Oida completou 86 anos recentemente – e da consequente impossibilidade de vir ao Brasil, assumi nesse processo uma dupla função: a de ator e a de diretor associado. Um ano e dois meses após o encontro em Paris, novamente na França, o processo de criação dirigido por Oida teve início.

Se o desdobramento desse encontro possibilitou, por um lado, uma imersão gradual nessa obra de Beckett, por outro tal encontro permitiu uma experiência singular, de transmissão direta. Vi então um mestre se transformando num verdadeiro canal, nos colocando - eu e os outros três cúmplices dessa aventura - num lugar onde passado e futuro são dissolvidos. Impossível, nesse sentido, não mencionar a presença da equipe de documentaristas japoneses que captaram incansavelmente todo o nosso percurso, desde o primeiro encontro, passando pelos ensaios e por nossas moradias, até o jantar de celebração, ocorrido após os ensaios abertos do espetáculo. Criadores de um documentário sobre Oida que será lançado internacionalmente, esses “anjos silenciosos” eternizaram a intimidade de nosso trabalho com ele, registrando o que não pode ser descrito e nos protegendo com a delicadeza do olhar encantado, que testemunha a mágica transformação das palavras impressas em ações. Dentre as inúmeras operações concretizadas por Beckett em Fim de Partida, há um escancaramento dos múltiplos jogos que podem atravessar a nossa existência, todos eles bem perceptíveis hoje: jogos psicológicos, sociais, amorosos, de poder… Mas ao mesmo tempo, ao saturar tais jogos, assim como os discursos que os instauram, Beckett abre fissuras por meio de silêncios e suspensões de ações que permitem entrever possibilidades que escapam dessas engrenagens. Outros modos de vida?


Nesse caso, a maestria de Beckett encontrou a maestria de Oida. Em sintonia com a artesania colocada em prática por Peter Brook, com quem colabora há mais de cinquenta anos, Oida destilou Fim de Partida desespetacularizando-o, a fim de escancarar o humano em toda a sua vulnerabilidade. Tal operação guiou profundamente os nossos ensaios e é presente nesse espetáculo não somente na atuação mas também no minimalismo cênico proposto. Com poucos elementos e sem a presença de paredes, Oida, com Beckett, nos coloca em um topos aberto, movediço, profundamente existencial. Hoje, as múltiplas camadas que tornam essa experiência específica me fazem pensar sobre a noção de formação. Não qualquer formação, mas aquela gerada pelas investigações e encontros artísticos, que faz com que o diverso e o estranho funcionem como geradores de ampliações subjetivas. Essa é uma história de dissolvências. Além daquela entre passado e futuro, que nos finca no presente, também a dissolvência entre o Eu e o Outro e ainda entre realidade e ficção. Para além das oposições reducionistas, Beckett nos mostra como nos ficcionamos o tempo todo, num processo de perene autoconstrução, tal como Hamm parece perceber. E se Oida, como escreveu em seu texto, quer ser Hamm, com sua serenidade diante do caos, eu na pele de Hamm quero ser Oida, com seu olhar sem concessões, sua imunidade ao destrutivo, seu minimalismo mágico, seu rigor delicado e sua crueza profundamente poética.

Matteo Bonfitto


Variações em torno do fim Oswald de Andrade no seu “ato lírico em três quadros”, A Morta, numa das últimas falas do “Hierofante”, diante da “árvore da vida” queimando por obra do “Poeta” incendiário, vaticina: “o erro do homem é pensar que é o fim do barbante... O barbante não tem fim.”

Fim de Partida (1957), de Samuel Beckett, um dos textos mais famosos da dramaturgia do século 20, se tem em comum com A Morta (1937) a potência de muitas leituras possíveis, se distanciaria daquela peça icônica do modernismo teatral brasileiro quando esta propõe um gran finale , com o poeta anarquista e revolucionário, arquetípico da redenção romântica, queimando tudo na crença de que o fogo restaurará a vida diante das pulsões de morte que o circundam. Ao mesmo tempo, a frase do Hierofante, citada no início, relativiza esta hipótese e aproxima o misterioso oficiante de A Morta do “Hamm” de Fim de Partida, que entre cínico e realista, já na sua primeira fala, ao ouvir Clov começar dizendo que “acabou, está acabado, quase acabando, deve estar quase acabado”, concorda, mas emenda depois: “É, é isso mesmo, está na hora disso acabar e mesmo assim eu ainda hesito em ter um...(boceja) ... fim.” A hesitação persistirá até o final da peça sugerindo uma inescapável e infinita circularidade, que demarca na história do teatro uma inflexão notável. Até Beckett, os dramas, por mais inovadores que fossem temática ou formalmente, não abdicavam do fim.

Suas ações, ou a trama que os engendrava, caminhavam necessariamente para uma conclusão, trágica ou cômica, moral ou simbólica, mas sempre definitiva. Em Beckett, essa finitude atávica da ação dramática, o arco que necessariamente se completará, deriva para uma incompletude perene, uma ciranda de ações esvaziadas de finalidade que, apesar disso, quem sabe possam chegar a um final, ainda que, de fato, nunca o cheguem. Eis porque, já se disse, a palavra chave no teatro de Beckett seria talvez, pelo menos nas suas primeiras peças, quando se opera essa revolução silenciosa no modo dramático, que anuncia e consubstancia, entre outras rupturas, uma ideia como a do pós-dramático.

Fim de Partida, mais de sessenta anos depois de sua primeira estreia, entre as centenas havidas nesse período, pode mesmo ser considerado um marco da dramaturgia universal por outras razões além da implosão dos finais, felizes ou infelizes. Uma delas, por exemplo, é a escrita dramática de Beckett migrar da linearidade da literatura estrito senso para a espacialidade da cena enquanto matéria, distanciando-se da tradição anterior para explorar um novo modelo de escritura. Isto fica claro já na primeira cena de Fim de Partida, uma detalhada e extensa rubrica que define minuciosamente as ações de “Clov” por alguns minutos e funciona como um verdadeiro prólogo. Ao invés da enunciação de um discurso introdutório ao drama, ou à trama, aqui o que se apresenta é um corpo movendo-se no espaço e realizando operações físicas na cena, elemento fático que fala por si, mas não diz nada além de sua presença concreta.


Não está ali para imitar a ação de um personagem e servir a uma trama definida. De fato, não há trama definida e aquela ação não remete a um sentido e a qualquer origem que não seja a própria rubrica, escrito que define movimentos claros e precisos, mas não perfaz, propriamente, algum arco de ação. É como se nessa indicação objetiva a própria teatralidade se apresentasse despida, sem qualquer vestimenta que distraísse o público de perceber sua condição de mero suporte, sem algo a mais que atenuasse sua presença com o subterfúgio de uma ficção. Esta escritura vazia de enredo, que instaura diretamente a cena e que só se intensificará quando Beckett, quase dez anos depois da estreia de Fim de Partida, passar a encenar ele mesmo as suas peças, antecipa muitos dos procedimentos da dramaturgia e da encenação contemporâneas. Outro motivo no reconhecimento de que Fim de Partida forja um novo paradigma teatral, e ainda reverbera nos processos contemporâneos, pode ser localizado no desempenho de Clov como personagem. Trata-se do fato de, à parte sua limitação física (a incapacidade de sentar) e sua condição escrava (a incapacidade de não obedecer), que são máscaras caricaturais próprias ao exercício da farsa, ele ser também, para além de qualquer funcionalidade dramática, o principal operador da cena. Todas as ações que, praticamente, fazem a peça andar não estão apontadas nos diálogos travados entre os personagens, mas efetivam-se nas tarefas que Clov executa, seja por livre e espontânea

vontade seja por ordem de Hamm. Essa operação material da cena, que a realiza e, de certa maneira, a esgota, antecipa pois uma circunstância muito comum no teatro contemporâneo: agentes, despidos de máscaras e de função dramática, ocupam a cena para realizar ações concretas, articuladoras ou desarticuladoras da materialidade cênica. Muitos são os aspectos da dramaturgia e do teatro de Samuel Beckett que, passados trinta anos de sua morte, dialogam diretamente com nossa realidade histórica e artística. Os espectadores dessa montagem antológica de Yoshi Oida, atentos às catástrofes do século 20 e aos horrores do aqui agora planetário, farão certamente correlações entre estes fatos mundiais e as falas enunciadas pelas criaturas de Beckett nessa peculiar peleja, uma que ameaça terminar mas nunca termina. O que aqui se pretendeu foi destacar alguns aspectos fundantes do projeto teatral de Beckett , talvez menos evidentes que as misérias humanas que se explicitam em Fim de Partida, independente de suas marcantes indefinições. De qualquer modo, há na peça uma imensidão de possibilidades latentes que cada época haverá de realizar, como cabe aos grandes textos dramáticos, eternizados exatamente por não trazerem verdades definitivas e serem mutantes. Neste particular, as variações implícitas ao texto e a qualquer encenação que se faça dele terão um único e singular limite: a impossibilidade do fim. Intrinsicamente inconclusivo, ele se potencializará e mudará na infinitude.

Luiz Fernando Ramos Professor da ECA-USP


Ficha Técnica Texto Samuel Beckett Encenação Yoshi Oida Daniele Santos

Direção Yoshi Oida e Matteo Bonfitto Assistentes de Direção Milton de Andrade e Suia Legaspe

Yoshi Oida

Camila Jordão

Luiz Fernando Ramos

Telumi Hellen

Nicolau Spadoni

Lucas Reitano

Edinho Rodrigues

Julia Gomes

Diretor, elenco e os documentaristas Akiko Funatsu, Masayasu Eguchi e Toyomichi Kurita

Elenco Matteo Bonfitto (Hamm) Rodrigo Pocidônio (Clov) Milton de Andrade (Nagg) Suia Legaspe (Nell) Consultoria e Preparação Corporal Daniele Santos Cenografia e Figurino Telumi Hellen Cenotecnia Casa Malagueta Cenotécnico Alicio Silva Pintura de Arte Giorgia Messetani Ateliê de Costura Salete André Estilo Lia Couros Iluminação Camila Jordão Assistente de Iluminação Michelle Bezerra Documentaristas Akiko Funatsu, Masayasu Eguchi e Toyomichi Kurita Assessoria de Imprensa Frederico Paula (Nossa Senhora da Pauta) Fotos Nicolau Spadoni Relações Internacionais Julia Gomes Produtor Executivo Fabrício Síndice Direção de Produção Edinho Rodrigues (Brancalyone Produções) Agradecimentos Ana Maria da Silva, Andreia de Jesus, Akiko Funatsu, Carlos Colabone, Condomínio Cultural, Dayse Cerqueira, Debora Cardoso, Edite Ferreira, Edson Pocidônio, Géssica Arjona, Julia Gomes, Kako Guirado, Maria Francisco, Mariana Vieira, Masayasu Eguchi, Secretaria de Educaçāo de Franco da Rocha, SP Escola de Teatro, Oficina Oswald de Andrade, Tapa Sudana, Teatro Sérgio Cardoso, Toyomichi Kurita



20/9 a 20/10 Sextas e sábados, 21h Domingos, 18h Teatro | 14 anos R$ 30 inteira R$ 15 meia entrada R$ 9 credencial plena

Sesc Ipiranga Rua Bom Pastor, 822 CEP 04203-000 - São Paulo/SP Tel.: +55 11 3340 2000 /sescipiranga

sesc.org.br/ipiranga

Sessão 11/10 com tradução em libras


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