Teatro | Revista Dramaturgias - Edição 1

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UM EMARANHADO KOSOVSKI

Manoel Silvestre Friques

ATELIÊS DE ESCRITA CRIATIVA

Michelle Ferreira, Alexandre Dal Farra e Jé Oliveira

FRAGMENTOS MANIFESTAS EM CARTAS PARA O FUTURO

Carolina Bianchi, Claudia Schapira e Dione Carlos

O TEATRO DA FERIDA BRASILEIRA DO MUNDO

José Fernando

Peixoto de Azevedo



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EXTENSÕES DO TEMPO CÊNICO Danilo Santos de Miranda

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DRAMATURGIAS NO PLURAL Mariana Delfini

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ENTRE AS IDEIAS E O CORPO, A FALA E A ESCUTA Beth Néspoli

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ENTREVISTA COLETIVA DOS TEMPOS QUE CORREM Aimar Labaki

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O QUE EU TENHO PARA DIZER Emanuel Aragão

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ATELIÊS DE ESCRITA CRIATIVA Michelle Ferreira, Alexandre Dal Farra e Jé Oliveira

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Manuel Silvestre Friques 94

Carolina Bianchi, Claudia Schapira e Dione Carlos

Roberto Alvim

IMERSÕES DRAMATÚRGICAS:

104 O DRAMATURGO SE FAZ NA CENA

NOS AMPLOS MARES Gustavo Colombini e Mariana Delfini 60

ATELIÊS DE CONTATO: EM FRICÇÃO

FRAGMENTOS MANIFESTAS EM CARTAS PARA O FUTURO

APONTAMENTOS ACERCA DO ENSINO EM DRAMATURGIA

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UM EMARANHADO KOSOVSKI

Silvana Garcia 108 NO PRINCÍPIO, O VERBO

Kil Abreu 112

OS TEXTOS DE TEATRO PODEM TUDO

Paula Autran, Ave Terrena Alves e Jhonny Salaberg

Isabel Diegues 116

O LIVRO EM PERFORMANCE Lígia Souza Oliveira

122 O TEATRO DA FERIDA BRASILEIRA

DO MUNDO José Fernando Peixoto de Azevedo 129 INÉDITO: ANTES DOS DEUSES

Daniel Veiga 134 DRAMATIS PERSONAE 144 BRAVO!


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BASTIDORES


EXTENSÕES DO TEMPO CÊNICO O caráter efêmero da obra teatral, que se efetiva com a presença do público e dura os momentos em que a cena está viva diante da plateia, representa o traço distintivo dessa linguagem. Ao mesmo tempo, essa característica implica dificuldades: ao buscar os caminhos que os levariam às origens do teatro, historiadores e teóricos veem a trilha se perder. Se procuram olhar adiante, são as obras atualmente realizadas que podem servir de referência para vislumbrar as possíveis construções dramatúrgicas futuras. Vale lembrar que, semelhante a Dionísio, o deus a cujos ritos de adoração atribui-se o nascimento do teatro grego, a criação resiste, renasce e floresce nas condições mais adversas. O teatro, identificado fundamentalmente como a arte do “aqui e agora”, desdobra-se em outros trabalhos que buscam transcender o momento efêmero. É de tal esforço que surgem críticas, ensaios, investigações sobre os modos de fazer dos artistas e encenadores, assim como análises teóricas. A primeira edição de Dramaturgias surgiu com a intenção de embrenhar-se nesse assunto, incluindo a escrita das peças teatrais e outros elementos que, variando de autor para autor, constroem a base onde se apoiam direção, atuação, iluminação, sonorização etc. As ações abarcaram apresentações de espetáculos, oficinas, leituras, entrevistas com dramaturgos, produzindo e difundindo conhecimento. É este conhecimento que o caderno Dramaturgias 1 procura sistematizar. Para o Sesc, poder articular o fomento à produção, à difusão das obras e à sistematização dos saberes daí gerados permite oferecer aos públicos uma visão expandida do teatro brasileiro contemporâneo, reiterando o papel da arte como expressão criativa e como investigação do mundo. É da conjunção desses dois vetores que advém sua potência, que subsiste para além do tempo de cada encenação.

Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo


DRAMATURGIAS NO PLURAL —

MARIANA DELFINI

Como na ansiada estreia de um espetáculo, quando a excitação do público transborda em meio ao burburinho e aos cumprimentos na entrada do teatro, o lançamento das Dramaturgias reuniu, eufórica, a gente de teatro — artistas e público, críticos, teóricos, interessados — no Sesc Ipiranga no começo da noite de 8 de junho de 2018. Envolvidos pelos livros de uma feira de publicações, estavam todos engajados no acontecimento que se produzia ali, um espaço e um tempo privilegiados, de encontro, para discutir a dramaturgia brasileira contemporânea. Ainda como projeto, as Dramaturgias tinham sido preparadas por longo tempo pelo Sesc-SP; lançada sua pedra fundamental, naquela noite, elas percorreram dez dias de junho promovendo confluências e embates, surpresas, reflexões, nas atividades propostas e nos intervalos do café. A acolhida e a provocação da roda de abertura das Dramaturgias deram o tom das conversas que se desenrolaram nas mesmas poltronas e também nos variados ateliês que juntaram artistas em germe no prédio do Ipiranga. No teatro e no auditório, espetáculos e leituras cênicas davam a ver, no palco, o trabalho e a arte que se fomentavam ali. Foi simbólico o encerramento da programação, um plantio de textos para quem um dia vier a descobri-los. Atividades se sucederam por meses, dentro ainda do baú fervilhante das Dramatugias, trazendo do passado clássicos do nosso teatro — como a leitura de Querô, no Ciclo Histórico Plínio Marcos e as leituras-piqueniques de três textos do Arena, idealizadas por Cecilia Boal — e instigando artistas e espectadores do futuro, por exemplo na mostra de textos Insurgências que apresentou trabalhos de alunos do núcleo de dramaturgia da Escola Livre de Teatro (ELT) de Santo André, e na leitura de quatro peças inéditas para crianças. Mais outras iniciativas esboçaram um painel da farta produção dramatúrgica brasileira das últimas décadas, convidando artistas para compartilharem seus processos, temas e reflexões em torno da criação do texto para teatro. Podem-se delimitar grupos, traçar linhas de influência, desenhar um mapa; os parâmetros para cartografar esse extenso universo se revelam múltiplos, por serem tantas as questões em pauta. As Dramaturgias são plurais.

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BASTIDORES


Um ano depois da estreia excitante das Dramaturgias, o lançamento deste caderno se propõe a inventariar a programação de junho de 2018, para resgatar o burburinho dessa gente de teatro que se encontrou por dez dias e projetar seu eco em diferentes direções. Nesse sentido, destaco o artigo de Beth Néspoli reverberando discussões que tiveram lugar em junho e o ensaio de Aimar Labaki, que analisa o retrato que a Maratona de Entrevistas fez da produção contemporânea. José Fernando de Azevedo lança pensamentos sobre o que se chama de teatro negro, e Lígia Souza Oliveira nos aproxima da reflexão acadêmica ao discorrer sobre as possibilidades performativas do texto teatral enquanto livro. Os protagonistas da programação e desta publicação, derivada dela, são os dramaturgos. Eles se reúnem em combinações diversas no caderno, explorando os mais variados formatos. Roberto Alvim faz apontamentos a respeito do ensino de dramaturgia, e a imersão que ele conduziu é comentada por Gustavo Colombini em texto que assinamos juntos sobre as oficinas com Alvim, Claudia Schapira e Kiko Marques. Quanto aos ateliês que puseram dramaturgos em contato, Paula Autran narra seu encontro improvisado com Vinicius Calderoni; Ave Terrena Alves analisa textos de Newton Moreno e Rudinei Borges; e Jhonny Salaberg se junta a Maria Shu e Aldri Anunciação na espera absurda por um público que não aparece.

Pedimos que três dramaturgos que conduziram ateliês de escrita criativa registrassem sua experiência e apresentassem textos produzidos pelos participantes, quem sabe indicando uma novíssima geração em potência. A pulsação festiva de Michelle Ferreira contamina seus convidados, as investigações de Alexandre Dal Farra sobre o estranho fazem brotar aquilo que não é nosso, os estudos de Jé Oliveira inspiram palavras contundentes e poéticas. Convidamos também Manoel Friques para rever a trajetória de Pedro Kosovski e Carolina Bianchi, Claudia Schapira e Dione Carlos, para, diante do fogo, em festa, escreverem cartas para o futuro — que sabemos ser das mulheres. Também são elas as protagonistas de uma peça inédita de Daniel Veiga, da qual publicamos um trecho. Muitas outras gentes de teatro participam deste caderno, com textos ou como inspiração. Todos que estiveram juntos em junho foram retratados por Gal Oppido e estão espalhados por estas páginas. Uma ciranda de perguntas e respostas assinala as inquietações que pulularam nos encontros, revelando a urgência daqueles dias que, além de uma celebração, se revelaram um ponto de partida para novos debates, grupos de trabalho, alianças. Os meses decorridos desde então viram peças serem criadas, publicadas, encenadas, e testemunharam mudanças políticas que afetam o teatro em seus temas e modos de produção. Este caderno é também um registro deste tempo de desassossego e resistência.

AQUELES DIAS DE JUNHO, ALÉM DE UMA CELEBRAÇÃO, SE REVELARAM UM PONTO DE PARTIDA PARA NOVOS DEBATES, GRUPOS DE TRABALHO, ALIANÇAS 5

BASTIDORES


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ENSAIO


ENTRE AS IDEIAS E O CORPO, Para além de uma construção panorâmica da produção contemporânea, as Dramaturgias promoveram uma reunião que refletiu o processo em andamento da quebra de parâmetros na contemporaneidade

BETH NÉSPOLI

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A FALA E A ESCUTA ENSAIO


soar pretensiosa a aplicação do termo “brasileira” no texto de abertura no libreto de apresentação da agenda: “A partir de ações que estimulam a reflexão e a prática, Dramaturgias pretende criar um painel da produção dramatúrgica brasileira contemporânea”. Uma leitura mais atenta, porém, faz notar que a construção panorâmica se coloca como uma expectativa, meta a ser alcançada, e não como afirmação de efetiva abrangência no ponto de partida. Num país de dimensão continental como o Brasil, por mais que se colham variações para um desenho em mosaico (são 47 autores e autoras diretamente envolvidos), as lacunas estarão sempre presentes na composição. Em termos geográficos, uma investigação rápida já apontaria para a ausência de criadores de cidades como São Luís (MA) e Cuiabá (MT), apenas duas capitais onde há investigação vinculada à chamada produção dramatúrgica contemporânea. Porém, a aposta das Dramaturgias é a de que, mesmo que haja recorte, a reunião para refletir sobre a cena em tempo e espaço concentrados pode alcançar grandeza maior do que a soma das partes. Reduções de escala são necessárias à visão perspectiva, do contrário incorre-se no equívoco narrado no conto “O rigor da ciência”, do argentino Jorge Luis Borges, no qual os geógrafos de um antigo império elaboraram um mapa tão perfeito que tinha o mesmo tamanho do território mapeado e coincidia com ele ponto por ponto. Diante do necessário corte, os termos da equação ganham relevância. Tal princípio parece ter movido a elaboração de um eixo transversal “no cerne da programação”, no qual estariam “os temas urgentes de que a dramaturgia contemporânea tem se ocupado a fim de existir como ação provocadora e reveladora do nosso tempo”, afirmação destacada do já citado texto. E eis aí o (bom) problema armado. Problema que, no contexto da arte, pode levar não a respostas, porém a outras e mais complexas indagações. Afinal, era possível apostar, se os participantes fossem previamente inquiridos sobre quais seriam essas temáticas, provavelmente não haveria consenso. A começar por um possível questionamento sobre a existência de tais urgências por parte daqueles que consideram atributo da arte o descolamento do campo da cultura e a consequente desvinculação do presente histórico. Não é casual, portanto, o investimento em entrevistas e rodas de conversa como parte privilegiada — e não mero apêndice — da programação. A percepção da curadoria sobre a existência de tópicos inescapáveis e a convicção de que atravessariam quase todas as ações provocou ainda a abertura de espaços para abordagens das questões étnico-raciais e de gênero que vêm ganhando centralidade nas poéticas de diversos criadores, do litoral ao Brasil profundo. Quando as chamadas minorias, sejam mulheres, indígenas, negros ou transgêneros, passam a disputar o que o filósofo Jacques Rancière chama de partilha do sensível — referência às elaborações simbólicas e práticas artísticas que constituem o imaginário coletivo —, o efeito não é de soma apenas, mas de subtração. Fruto das interpelações dos estudos culturais iniciados na década de 1960, são movimentos que vêm alcançando a força necessária para remover duros sedimentos do campo da cultura, elementos há muito naturalizados nas relações sociais e na própria atividade artística.

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“Armar o problema é quase tudo; a resposta se torna interessante”

N

OSWALDO TRUZZI1

a gênese do projeto Dramaturgias, a compreensão da multiplicidade de vertentes formais e temáticas existentes nos numerosos espaços de criação da cena em território nacional está explicitada desde o “s” do título. Pode

1 Sociólogo, professor titular da Universidade Federal de São Carlos, em palestra intitulada Bom Retiro: Convívio e conflitos interétnicos, ministrada na sede do Teatro da Vertigem, em São Paulo, em 24 de maio de 2010.

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Nesse sentido, vale relembrar a polêmica provocada pelo cancelamento da apresentação da peça A mulher do trem, da companhia Os Fofos Encenam, em 2015, devido aos protestos contra o blackface — pintura facial usada por um ator ou atriz brancos para caracterizar um negro. À época, o ato de interdição causou perplexidade mesmo entre artistas de indubitável consciência crítica no que se refere à histórica desigualdade social no país. Entre eles, os dramaturgos e diretores Newton Moreno e Fernando Neves, fundadores de Os Fofos, criadores com trajetória que em nada autorizava a acusação de racismo. Tendo realizado diversas temporadas sem qualquer incidente, a montagem, que estreara em 2003, era a mais premiada do grupo. Atualmente, porém, transcorridos apenas três anos daquele imbróglio, o blackface como procedimento farsesco, uma tradição que remete ao século 19, passou a ser amplamente entendido como anacronismo inaceitável. A partir das pesquisas em arte vinculadas aos movimentos étnico-raciais e de gênero, atuantes em todas as áreas e em diferentes vertentes, até mesmo contraditórias, cânones moldados ao longo de séculos por vozes hegemônicas vêm sendo postos em crise, um processo em pleno andamento e com implicação ainda não mensurável. Algum grau de alteração na historiografia teatral, em boa parte construída sobre viés eurocêntrico, já vem ocorrendo com base em estudos acadêmicos relativos ao teatro. É o caso do palhaço negro Benjamim de Oliveira (1870-1954), que, com verve de comediante, recriou o romance O Guarani, de José de Alencar, encarnando no picadeiro, com o distanciamento crítico característico dos clowns, o índio Peri. A rede de saberes envolvida na formação dele e de seus parceiros de circo-teatro é objeto da tese de doutorado da historiadora Ermínia Silva, “Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil”, publicada em 2007 pela editora Altana. Rigorosa nas

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fontes e ampla na análise, a pesquisa tem potencial para alterar a escala que sempre relegou a teatralidade do picadeiro a um patamar rebaixado na historiografia do teatro nacional. A quebra de parâmetros na contemporaneidade foi a tônica da conversa na roda de abertura do projeto Dramaturgias mediada pelo curador Sérgio Luís Oliveira, que reuniu Luís Alberto de Abreu e Marcio Abreu, dois artistas diversos na longevidade de suas trajetórias, porém, afinados no que diz respeito à experimentação na escrita de textos junto a coletivos teatrais. “Estamos imersos, pela primeira vez na história, numa quebra de paradigmas de enorme extensão; até o paradigma do humano caiu. No passado, a gente pensava: tem de valorizar o humano. Agora a gente se pergunta: que humano? A defesa da vida é só para o humano? [Por esse valor] Os animais podem ser exterminados? Ou, como pensam os indígenas, os animais e árvores também são humanos.2 Tudo está sendo questionado, e as dificuldades impostas à criação são imensas. Mas este é também um momento precioso”, argumentou Luís Alberto de Abreu. A ascensão ao espaço público de vozes antes emudecidas e os efeitos sobre as dramaturgias tornam incontornável a indagação sobre o poder de interferência dessa artesania que é a arte presencial do teatro sobre a imaginação pública em tempos de saturação tecnológica e midiática. Pode o teatro provocar algum grau de desestabilização no repertório cultural de homens e mulheres urbanos expostos aos múltiplos estímulos da chamada “sociedade excitada”, como

2 Na cosmogonia Yanomami, ancestrais humanos se transformaram em animais de caça e os espíritos (xapiris) habitam a floresta, que tem sua própria sabedoria, como narra o líder indígena Davi Kopenawa em A queda do céu (São Paulo: Companhia das Letras, 2010. Ver p. 195).

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define Christoph Türcke?3 Para esse filósofo alemão, os estímulos cotidianos tornaram-se de menos para serem percebidos enquanto a torrente de excitação midiática é demais para ser absorvida, o que estaria levando a humanidade a uma espécie de anestesiamento da sensibilidade, termo usado aqui com o sentido de percepção que articula significação, memória e afetos. Sem dúvida, a milenar arte teatral enfrenta neste início de século adversidades inéditas. “Existe uma encruzilhada. Pode ser a nossa morte iminente, pode ser propulsora de novos caminhos. Então a pergunta é: daqui para onde e para quem? Quais são os corpos que vão para a cena, para vibrar como, o quê e para quem?”, ponderou na mesma ocasião Marcio Abreu. E concordou com Luís Alberto de Abreu, parceiro na conversa inaugural das Dramaturgias, no que diz respeito à percepção de atravessamento de um tempo privilegiado — privilegiado, porém, do seu ponto de vista, porque conduz ao investimento na escuta do campo social e à necessidade de aberturas nos ambientes de criação. No já citado Sociedade excitada, Türcke analisa o sentimento contemporâneo de que não basta ser para existir, é preciso “emitir” presença, o que provoca a saturação de emissões individuais no espaço coletivo. Talvez isso explique a multiplicação de cursos de artes cênicas na mesma proporção em que se reduz o número de espectadores não endógenos, ou seja, aqueles não envolvidos de alguma forma com a criação cênica. Como o teatro pode ressoar não apenas junto aos artistas da área, mas também ao público mais amplo, sem ceder ao mercantilismo e ao entretenimento que tudo abarcam? Como, não o sendo, atrair e, mais ainda, interferir sobre as subjetividades de

3 Christoph Türcke, Sociedade excitada: Filosofia da sensação. Trad. Antonio A.S.Zuin, Fabio A. Durão, Francisco C. Fontanella e Mario Frungillo. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

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quem vive imerso no consumo dos produtos da indústria cultural? “As linguagens artísticas são extremamente eficientes para forjar e disseminar valores. O momento é de reflexão, mas não só. Nosso discurso é a linguagem, tem de colocar na forma um desafio que não se restringe ao mundo da arte, mas se vincula à cidadania e ao futuro do país”, argumenta Luís Alberto de Abreu. O teatro é um acontecimento que se dá na tensão entre a transcendência e a imanência das ideias, defende o filósofo e dramaturgo Alain Badiou. A ideia, para ele, é mais poderosa do que nós mesmos e constitui a medida do que a humanidade é capaz: nesse sentido, ela é transcendente; mas só existe quando é ativada ou encarnada em um corpo: então é também imanente.4 Ao unir debates a práticas criativas, Dramaturgias buscou abrir uma espécie de campo magnético capaz de colocar em fricção diferentes modos de criar poéticas da cena. O propósito deste texto é compartilhar centelhas surgidas das fricções entre pensamentos, corpos e afetos reunidos nessa ação.

4 Alain Badiou e Nicolas Truong, Elogio ao teatro. Trad. Marcelo Mori. São Paulo: Martins Fontes, 2015, p. 57.

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Marcio Abreu


ENTREVISTA COLETIVA Os dramaturgos que integraram a programação de junho das Dramaturgias constroem uma ciranda de perguntas e respostas em torno de seu ofício 12

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marcio abreu

Grace, por que, ainda, o teatro?

grace passô Não sei mesmo. Às vezes me cansa defender o teatro e sempre é preciso defendê-lo nesse mundo. O que posso dizer é que o teatro me chama muita atenção porque ele me faz esquecer das máquinas. Eu procuro uma palavra melhor que esta, mas não encontro: ritual. Ele é uma experiência entre corpos. É uma festa da vida e da morte. Para mim ele parece o Carnaval. E, por que, ainda, o Carnaval? E o danado ainda cria a radicalização da convivência. Danadinho. grace passô Você consegue perceber como sua escrita tem se conectado com as crises e revoluções brasileiras dos últimos anos? jô bilac Meu primeiro texto, Os mamutes, surgiu da tentativa de elaborar os meandros sociais atravessados pelas crises e revoluções brasileiras. Eu tinha dezoito anos e foi intuitivo, um grito juvenil, radical, acolhido pela anarquia teatral. Quinze anos depois, o engajamento deu lugar à transgressão. A intuição se articulando malandramente com a potência do ofício do escritor, reconhecendo lugar de fala e poder de afeto com o público. Vejo o teatro como uma assembleia. Quero pontes com o público, não quero fronteiras.

jô bilac

“Escrever com a alma”: como você se conecta nesse mistério invisível? Cada dia mais acredito que escrever é escutar. Escutar os outros, escutar a mim mesmo, escutar o outro que mora em mim e o eu que mora nos outros. E escrever é um mistério, porque escutar é um mistério. Mas acho que, quando a gente escuta de verdade, isso se reflete na escrita numa sensação de completude, de que o que precisava ser dito, está dito. Sinto que uma escrita que decorre da escuta é meu jeito de escrever com a alma.

vinicius calderoni

Você consegue identificar em sua escrita algumas obsessões temáticas, temas recorrentes? Isso é algo de que você se ressente e quer se afastar ou algo de que se orgulha e cultiva com zelo?

vinicius calderoni

michelle ferreira Eu quero acreditar que eu escrevo através das minhas obsessões e não sobre elas. Elas não são tema. Elas são matéria. Elas são linguagem. Eu não sei até que ponto eu as controlo, mas elas estão sempre dançando soltas nos universos que invento. No entanto, minhas peças não são sobre isso. Não são sobre a minha expressão, meus assuntos, minha vida. Não. O que eu sinto é pouco. Eu me divido em mil para escrever um texto de teatro. Eu me parto porque quero me juntar a toda a humanidade. Sou uma romântica idiota. Sou minha obsessão. michelle ferreira Que tipo de história o teatro deve contar no Brasil de hoje? O teatro ainda é o lugar da ficção? pedro kosovski Sim, a ficção do real; a ficção da presença; a ficção de um encontro coletivo, corpo a corpo, entre pessoas desconhecidas que cruzam uma cidade movidas por alguma ordem do desejo, partilham uma experiência em comum e formam, provisoriamente, uma comunidade de muitos possíveis. Sinto dificuldade de narrar sem criar perspectivas que tensionem a percepção

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de hoje. Por isso, uso em meus trabalhos materiais e acontecimentos de nossa memória coletiva e, desse modo, talvez, quanto mais distante a memória, mais aguçada a percepção de hoje. pedro kosovski Com a radicalização política da vida cultural brasileira, os incrementos dos “lugares de fala” e as “disputas de narrativas”, me parece que a arte também está sob pressão — a sensação é de que sou convocado a cada instante. Como sua interpretação da atual conjuntura política brasileira e seu trabalho artístico se afetam? francisco carlos Desde o começo, meu trabalho esteve invadido por realidades e culturas que me envolvem, com muita poesia. Poéticas-políticas, desde sempre. Novos e velhos colonialismos, fricção interétnica entre povos indígenas e sociedade ocidental, alteridades etc. são temas que perduram há séculos; num certo sentido, meus temas são clássicos, anacrônicos até. Procuro estruturar formas e conteúdos que deem conta desses temas no corpo do teatro que pratico. Conteúdos que me interessam arregimentam formas que me fascinam, e tudo se encaixa magicamente, como numa cópula. francisco carlos Como você procede na arregimentação dos conteúdos (temas) para a composição de seus textos? Realidades que a envolvem contam ou você trabalha com a ideia de des-historicização? dione carlos Realizo muita pesquisa antes de escrever meus textos, inclusive já recebi consultoria de historiadores em alguns processos. Venho trabalhando em parceria com várias companhias e o tema, na maior parte das vezes, é trazido por elas, mas a realidade na qual estou inserida, e isso começa pelo próprio território do meu corpo, atua diretamente no que produzo. Acho que há uma fricção entre pesquisa, vivência e experiência. Além desses pontos, acredito que os textos nos escolhem para que os escrevamos. dione carlos Relacionando suas próprias referências com o fato de você ser, agora, também uma referência, como seria a descrição desta linhagem artística? ave terrena alves Ao tentar descrever uma linhagem artística, a primeira coisa

que me vem à cabeça é: “São tantas maneiras”. Minhas referências vêm do teatro e da literatura, e também de outros campos do conhecimento, e não sei pontuar uma que se sobrepõe às outras. Sei que faço parte de um fio contínuo de gente que não se cala diante da violência que se abate sobre os corpos e práticas desviantes da norma burguesa branca binária e cisgênera. Um fio que entrelaça minha vida à resiliência das transcestrais e ao engajamento dos grupos de teatro paulistanos. ave terrena alves

Suas vulnerabilidades te fortalecem? Como? É possível?

angela ribeiro Solidão, ser mulher, a maternidade, ser estrangeira em São Paulo, a overdose de trabalho, não dar conta de ajudar tanta gente miserável, as exigências do mundo com relação ao meu corpo, às minhas escolhas... toda inquietude, tudo aquilo que às vezes me faz sentir impotente diante de algumas portas, me impulsiona a cavoucar a alma e o coração. Quanto mais sensível estou ao mundo, mais porosa e diversa se torna a minha escrita.

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“AS MULHERES SEMPRE ESCREVERAM, MAS O ESQUEMA DOMINANTE TRABALHA PELO APAGAMENTO DESSAS VOZES, MUITAS DELAS ESQUECIDAS NO ASFALTO DOS SÉCULOS” SILVIA GOMEZ

Parece que, quanto mais fundo mergulho em mim, mais potente se torna aquilo que produzo. É a minha forma de reagir. angela ribeiro Como você, um dramaturgo, transforma a sua obra em ação no mundo? luís alberto de abreu Acredito que a obra de um dramaturgo é ação. É seu pensamento, seu trabalho de reflexão, sua voz muitas vezes indignada, muitas vezes carinhosa. Sua ação é debruçar-se sobre os acontecimentos e do curso deles tentar estabelecer valores e estimular outros a construir paralelos entre o real e o desejo, entre o mundo que é e o mundo que todos desejamos. Afora isso, resta ao dramaturgo, como cidadão, ser coerente com seu discurso poético e buscar ações sociais que corroborem os valores expressos em sua poética. luís alberto de abreu Muitas mulheres estão escrevendo e dirigindo para o teatro. Podemos falar de um novo olhar, uma visão de mundo feminina entrando no jogo teatral e alterando sua forma e seus conteúdos? silvia gomez As mulheres sempre escreveram, mas o esquema dominante trabalha pelo apagamento dessas vozes, muitas delas esquecidas no asfalto dos séculos. Não sei se gosto da ideia de uma linguagem dita feminina, mas não posso negar que toda voz nasce de um corpo. A experiência desse corpo deseja falar das questões que lhe são urgentes e expressar as formas exigidas por tais questões. O que vivemos agora, felizmente, é um momento em que essas vozes voltam a se reunir com mais força, encontro já visto em outros momentos e que precisamos honrar. silvia gomez De que modo costuma nascer uma peça sua — como nascem seus temas e personagens? emanuel aragão Isso já variou muito. Das primeiras peças, mais espontâneas, àquelas encomendadas. Neste caso, tento dar um jeito de dobrar o tema até ele caber para mim, ou em mim. Ao te ouvir falar, me pareceu que tudo que era seu vinha muito de “dentro”. Acho que, para mim, acaba sendo meio dividido. E sobre as personagens, sou péssimo nisso. Sempre tenho dificuldade com essa

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noção. Só consigo escrever sobre mim — por mais tosco que isso possa soar — e, quando tento criar esse rebatimento, sempre me soa um pouco falso. emanuel aragão

Como é que você está dando conta?

pedro bricio Contando um conto.

Como você se relaciona com a nossa língua — e suas potencialidades específicas — na escolha de palavras, ritmos, melodias, dissonâncias, harmonias, significados etc.? Isso é uma questão para você? pedro bricio

roberto alvim Em teatro, não se trata de utilizar a palavra como ferramenta

comunicacional, mas de transmutá-la em poesia. Dilacerar o corpo ordenado do pensamento, perpetrar o aborto do verbo comunicacional em prol da instauração da palavra como criadora de tempos, espaços, subjetividades, sensações inomináveis... Através de manipulações inusuais da linguagem, proporcionar a imersão em experiências estéticas indizíveis. Alçar a linguagem a instâncias polissêmicas, dotadas de potência criadora, é ponto central em meu trabalho. Que mudanças, tanto no campo da forma quanto nos interesses temáticos, vêm ocorrendo em seu trabalho ao longo de sua trajetória? roberto alvim

samir yazbek Minhas peças mais recentes indicam uma abertura maior para um realismo dissociado do drama de origem aristotélica, investigando personagens envoltas em ambiguidades e interessadas na manutenção do status quo. Isso já anuncia um diferencial em relação à maioria de meus textos anteriores, inspirados em histórias arquetípicas, embora também distantes do drama de origem aristotélica, num hibridismo entre o épico e o lírico. samir yazbek Qual

seria a mais apropriada política pública para o teatro brasileiro?

daniela pereira de carvalho A revisão da Lei Rouanet é tão importante quanto a

sua manutenção. O investimento em pesquisa acadêmica e de linguagem é uma função que o Estado não deveria deixar de cumprir, não só no Ensino Superior mas também no Fundamental e Médio, que formam a recepção e deveriam ter projetos pedagógicos de artes. O enfrentamento é estrutural. Uma política que, além da produção, viabilizasse a circulação nacional dos espetáculos, seria uma mudança fundamental. Uma rede que interligasse o país culturalmente seria transformadora. As palavras, na dramaturgia, são literatura e cena. Há uma especificidade em torno desse enfrentamento/ conciliação, dispositivos que você elaborou para lidar com esse campo de intercessão? daniela pereira de carvalho

A palavra tem uma missão diferente na dramaturgia e na literatura, mas eu a laboro e a manejo no mesmo lugar. Gosto de criar uma dramaturgia híbrida, que traz elementos — ou até mesmo excertos — de obras da literatura brasileira ou mundial. Lanço mão dessa intercessão para criar ritmos diferentes na peça, para ampliar a polissemia, para ressignificar a metáfora que proponho em cada texto. Para mim, uma nova peça surge quando a relação de semelhança entre a literatura e a cena se faz presente. maria shu

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maria shu Há cobranças externas para que você escreva peças que contemplem temas étnico-raciais?

Sim! Para o filósofo camaronês Achille Mbembe, o negro/a acumulou significados virtuosos a partir da colonialidade. O mundo capital ainda agregou valores redimensionados que esconderam (escondem) ricas subjetividades. De modo que, na contemporaneidade, a exigência de uma narrativa restrita às questões identitárias é muito recorrente. Porém, os de melanina acentuada (negros e negras) possuem questões também existenciais; sobretudo os da diáspora que vivem numa legítima encruzilhada referencial. aldri anunciação

aldri anunciação

Qual o efeito, na dramaturga Paula, da estreia no palco de uma peça sua?

paula autran A estreia no palco tem o efeito de potencializar as ideias que existiam quando escrevi. Há também o processo de ensaio; se fiz parte dele, ele aprofunda esse conhecimento. A peça nasce para ser levada ao palco, mas tem uma dimensão literária (pelo menos como escrevo) que a faz ter vida também sendo publicada. Mas, quando o texto é levado ao palco de uma maneira consequente, dá uma alegria só vivenciada por quem escreve teatro. Uma sensação tão intensa e única que faz com que valha a pena a caminhada. paula autran Qual o segredo, em um “mercado” tão fluido como o da dramaturgia, em que dramaturgos aparecem e desaparecem tão rapidamente, para você se manter atuante e com textos em cena por quinze anos? sérgio roveri Às vezes acho que tem a ver com dedicação, outras vezes, com persistência, mas na maioria das vezes acredito mesmo que seja por teimosia. O principal segredo talvez seja produzir sempre, como se cada trabalho fosse o primeiro, e tentar se entregar a ele como se também fosse o último. Nestes anos, trabalhei em roteiros de longas e seriados, pratiquei o jornalismo, me arrisquei a escrever uma ou outra biografia. Até o momento, só o teatro tem permitido que eu me comunicasse comigo mesmo. Talvez seja essa particularidade que faz toda a diferença. sérgio roveri Como

antigos?

você se relaciona, nos dias de hoje, com seus textos um pouco mais

rudinei borges Um dos meus textos mais antigos em dramaturgia é a peça Dentro é lugar longe (2013), encenada até hoje. Eu a revisito para reencontrar ali as histórias orais de vida e o alento metafórico que motivaram a tessitura daquele itinerário errante. Celebro as minhas malfadadas linhas, lapido, recuso e recomponho. Escrever para o teatro é o ofício de oferecer sentido às coisas mais ínfimas: a morte, a sexualidade, a fé e as opressões. Todavia, por vezes, a melhor escrita é o silêncio. rudinei borges Martin Luther King afirmava que “a discriminação dos negros está presente em cada momento de suas vidas para recordar-lhes que a inferioridade é uma mentira só aceita como verdade pela sociedade que os domina”. Como a condição social do negro aparece em sua dramaturgia?

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jé oliveira Cabe um “s” no negro da questão. Esse “s” talvez seja a maior busca da minha obra: trazer complexidade e pluralizar nossa existência! Tento concretizar alguma possibilidade de entendimento e acalanto acerca de um pouco das nossas dores históricas, como uma espécie de colo onde fosse possível só estar, em silêncio ou chorando, e existir por alguns instantes efêmeros. Busco também, em paralelo, materializar, adensar e poetizar ainda mais as nossas invenções, música, poesia, teatro: belezas seculares que inventamos para continuar existindo. jé oliveira Quais são suas referências para a criação e como se relaciona com uma cena negra já estabelecida e mais antiga na cidade? jhonny salaberg Minhas referências são o fio de continuidade dos meus, da minha essência, da minha ancestralidade. Me inspiro na minha própria família e nos acontecimentos ao meu redor para criar, bem como em personalidades importantes que me enchem os olhos de esperança: Carolina Maria de Jesus, Bispo do Rosário, Estamira, Rosangela Salaberg, Marieta Damasceno, Mãe Sylvia de Oxalá, Picita, entre outros. Me deixa feliz a possibilidade de aprender com uma galera mais velha e com mais tempo na área, que agarra com unhas e dentes a ideia de uma cena representativa e ampla no teatro.

É possível, em 2018, uma dramaturgia que não fale necessariamente das questões urgentes a se revolver?

jhonny salaberg

claudia schapira Em todos as épocas existem questões urgentes, e a dramaturgia, como outras expressões artísticas, é filha do seu tempo. Ela expurga gangrenas sociais que supuram no momento presente e que gritam por serem expostas, dissecadas, para por fim evocar aspirações futuras. A dramaturgia tem que ser perigosa, irreverente, corrosiva, sem deixar de lançar mão da poesia. Tem que engripar a máquina e insuflar um outro mundo possível. Eu escrevo sobre o que me tira o sono. É um constante punho erguido escrever.

claudia schapira

Existe uma relação com a encenação implícita na sua escrita?

Como também atuo como diretor, sempre “escorrega” alguma sinalização que sugere um direcionamento cênico. Essas indicações são pistas para tentar evidenciar meu pensamento sobre a obra, mas eu as entendo como uma primeira provocação. Elas representam minha vontade de estar na sala de ensaio, onde novas respostas surgem e a dinâmica se reinstaura, o texto cênico vai sendo construído. O que me deixa mais confortável é a possibilidade de conviver com a sala de ensaio e redescobrir a peça com todos. newton moreno

newton moreno Que textos teatrais mais te inspiram e por quê? Que qualidades, formais ou de conteúdo, você admira nestas obras? kiko marques

• O pagador de promessas, de Dias Gomes. Primeira peça a que assisti, que me tornou devoto do palco e das histórias;

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“O ENFRENTAMENTO É ESTRUTURAL. UMA POLÍTICA QUE VIABILIZASSE A CIRCULAÇÃO NACIONAL DOS ESPETÁCULOS SERIA UMA MUDANÇA FUNDAMENTAL.” DANIELA PEREIRA DE CARVALHO

• Esperando Godot e os textos curtos de Beckett, por terem mudado a forma das histórias; • Os gigantes da montanha, de Pirandello. Enigma que incluiu o imponderável no meu trabalho; • O beijo no asfalto e as tragédias cariocas de Nelson Rodrigues, que me apresentaram ao patético e à liberdade de esculpir diálogos; • Navalha na carne e todo o Plínio, por nos tornar irremediavelmente irmãos; • O Tchekhov inteiro, pela humanidade despudorada dos personagens e pela dor de estar vivo. Quanto do que acredita ser você existe dentro de uma obra sua? Em que proporção você se despersonaliza ou se coloca? kiko marques

alexandre dal farra Houve alguns trabalhos em que eu me aproximei um pouco de um teatro que pretende colocar o autor de alguma forma em cena, de maneira mais ou menos imediata. Isso, no entanto, me levou até um limite que me pareceu intransponível, e algo claustrofóbico. Em Refúgio, volto a um lugar da ficção como caminho para a abertura de canais submersos e desconhecidos, para mim mesmo, de mim. Porque acredito que isso, que eu sou sem saber, é também onde encontro estruturas mais profundas que nos fundam, e não são individuais apenas.

Me parece que a sua obra sempre fala também de si mesma, você concorda? Do que você quer falar? Em outras palavras, o que é que te interessa?

alexandre dal farra

marcio abreu O que sobra depois do incêndio de um museu? Amanhã, quando alguém se perguntar sobre este tempo nosso, buscar algum vestígio, um traço de memória, vai encontrar o quê? Eu me interesso por testemunhar o agora. Ser matéria do agora feita de camadas de memórias que miram e criam um porvir ainda não desvendado, um lugar outro. Em geral busco não falar sobre nenhum assunto. Me interessa que a coisa fale, em sua maravilhosa materialidade. Fico atento também para que não falem por mim. Para que eu não fale por ninguém. Para me afastar do querer dizer. Para ir na direção do dizer. Simplesmente.

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DOS TEMPOS

A Maratona de Entrevistas reuniu autores irredutíveis a uma fórmula, gênero ou opção estética. Os depoimentos exemplares de Alexandre Dal Farra e Grace Passô possibilitam uma ponte com questões centrais

AIMAR LABAKI

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QUE CORREM ENSAIO


1

Como todo dramaturgo desmamado na pós-modernidade, os presentes à Maratona de Entrevistas ocorrida durante o evento Dramaturgias são todos muito orgulhosos de sua inclassificabilidade. E no entanto, no caso das produções mais consistentes, suas raízes aparecem com muita clareza, quer seja em seus discursos, quer em sua obra. Por isso mesmo, esta é uma oportunidade única para tentar entender o que nos diz essa fotografia do momento atual da dramaturgia feita e vista no eixo Rio-São Paulo (ainda que Minas, Pernambuco e Pará estejam muito bem representados), no que tange a seus interlocutores na tradição e a suas projeções no futuro mais imediato.1 Dione Carlos, Pedro Kosovski, Grace Passô, Newton Moreno e Alexandre Dal Farra, mais que avessos a rótulos, soaram genuinamente engajados em uma busca que, sem deixar de ser pessoal, entendem como coletiva. Roberto Alvim, Michelle Ferreira, Francisco Carlos, Emanuel Aragão, Pedro Brício e Silvia Gomez se voltam para um processo que é mais individual, sem deixar de compreender o lugar do coletivo em qualquer obra teatral. Em ambos os casos, os autores se revelaram irredutíveis a uma fórmula, gênero ou mesmo opção estética.2 Isabel Diegues, José Fernando Azevedo e Kil Abreu, classificados como provocadores em folheto distribuído aos entrevistados com antecedência e aos espectadores no momento das entrevistas, elaboraram cinco questões para nortear os encontros. Seus títulos as definem, mas

1 As conversas da Maratona de Entrevistas,

realizadas nas tardes de 9 e 10 de junho no teatro do Sesc Ipiranga, foram publicadas pela editora Cobogó e pela editora do Sesc e viraram um podcast, disponível no site do Sesc. 2 Jô Bilac, que participaria da Maratona no dia 9, foi entrevistado em outro dia.

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não dão conta da complexidade e sofisticação de sua formulação: “Das formas”, “Da experiência”, “Das condições de produção”, “Que tradição seu trabalho inventa?” e “Do público”. A regra que interditava ao público a participação direta, ainda que frustrante para o próprio, permitiu maiores foco e aprofundamento no diálogo entre autores e provocadores. Essa, talvez sua maior qualidade: as condições para aprofundar o diálogo nos termos do entrevistado, ainda que levando-o a abordar os temas levantados. As limitações de espaço me levam a me deter apenas em dois dos depoimentos, não apenas por serem exemplares, mas por possibilitarem uma ponte com questões e produções centrais dos tempos que correm.

2

Alexandre Dal Farra, em sua colocação inicial, levanta questões que, por si, já seriam suficientes para mais uma rodada de conversas. Citando dois dos encenadores e pensadores mais potentes da atualidade, contrapõe Roberto Alvim a Marcio Abreu. De Alvim citou a frase: “A Arte busca o Desconhecido”. De Abreu, uma intervenção ali mesmo no Sesc Ipiranga, no dia anterior: “Cuidado com o fetiche do desconhecido”. Para dialogar com as citações, Dal Farra volta a Freud e seu conceito de “estranho familiar”, espaço/ tempo psíquico no qual não há lugar para o fetiche. Na mesma chave, ele dialoga com a pergunta de Sérgio Roveri formulada na noite anterior, durante a abertura do evento: “Como ensinar se é desconhecido?”. A que retruca: ensinando a reconhecer esse lugar de “estranho familiar”, segundo ele o ideal para uma criação que não seja apenas fetiche. Para aprofundar a discussão, Dal Farra saca de Lacan a imagem de Robinson Crusoé que, ao deparar com uma pegada que não reconhece como sua, inicia um processo de dúvida

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sistemática. Para o autor da Trilogia Abnegação, “na escrita, muito do trabalho é tirar do caminho aquilo que você sabe reconhecer que é seu”. José Fernando de Azevedo enquadra o recorte ao remetê-lo à poesia de Bertolt Brecht, “Apague as pegadas”.3 Pois é de Brecht que se trata. É no diálogo com o “caráter destrutivo” da arte que Dal Farra vem construindo uma trajetória ímpar de diálogo com nossa realidade política mais imediata, sem abrir mão da experiência formal. Se, por um lado, se arrisca a análises e teorias sobre a ascensão e queda do primeiro partido de esquerda de massas do Brasil, não se furta a fazê-lo buscando nas linhas de forças menos verificáveis cientificamente (isto é, nas relações humanas) parte de sua explicação. Em sua obra mais importante até o momento, a trilogia Abnegação, construiu uma resposta direta para a crise da esquerda, que é ao mesmo tempo uma desconstrução metódica das certezas que cercam o discurso do lulopetismo: a suposta superioridade moral, a possibilidade de unir a análise marxista a uma prática política tradicional (para usar um eufemismo), a luta de classes como única chave para a leitura da realidade. Já em Refúgio, estreada depois do evento sobre o qual aqui se fala, trabalha a partir da constatação (ou autocrítica) de que “estamos entendendo demais”. E parte para a emulação da angústia causada pela ineficácia dos discursos já estabelecidos para explicar a crise atual. Dal Farra se refere ao “mundo que acabou em 2016” com o impeachment/ golpe/ traição shakespeariana, mas também a um mundo pós-pacto social democrata europeu da segunda metade do século 20, no qual não se percebe mais “esse capitalismo que parecia viável, essa crença de que as coisas podiam ir melhorando, ia dar meio tudo certo... mais ou menos, nós íamos levando”. Em Refúgio e na fala de Dal Farra, essas crises políticas são contrapostas à crise de um certo teatro dialético, que desde os anos 1990 vem lendo a realidade brasileira tendo por balizas Brecht, Schwartz, Paulo Arantes et al, e no momento se esforça para encontrar recursos estéticos que deem conta de sua perplexidade com a debacle do projeto lulopetista. Como sempre, a Cia. do Latão sai na frente, com maior capacidade de reflexão e reflexo na cena. Refúgio e seu desespero diante da impotência de ação, reflexão e representação evoca o corajoso desastre que era Pegando fogo... lá fora, texto com que Gianfrancesco Guarnieri enfrentava com rara coragem moral e

3 “Apague as pegadas/ Separe-se de seus amigos na estação/ De manhã vá à cidade

com o casaco abotoado/ Procure alojamento, e quando seu camarada bater:/ Não, oh, não abra a porta./ Mas sim/ Apague as pegadas!// Se encontrar seus pais na cidade de Hamburgo ou em outro lugar/ Passe por eles como um estranho, vire a esquina, não os reconheça/ Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles lhe deram/ Não, oh, não mostre seu rosto/ Mas sim/ Apague as pegadas!// Coma a carne que aí está. Não poupe./ Entre em qualquer casa quando chover, sente em qualquer cadeira/ Mas não permaneça sentado. E não esqueça seu chapéu./Estou lhe dizendo:/ Apague as pegadas!// O que você disse não diga duas vezes./ Encontrando o seu pensamento em outra pessoa: negue-o./ Quem não escreveu sua assinatura, quem não deixou retrato/ Quem não estava presente, quem nada falou/ Como poderão apanhá-lo?/ Apague as pegadas!// Cuide, quando pensar em morrer/ Para que não haja sepultura revelando onde jaz/ Com uma clara inscrição a lhe denunciar/ E o ano de sua morte a lhe entregar/ Mais uma vez:/ Apague as pegadas!” Bertolt Brecht, “Apague as pegadas”. Poemas 1913-1956. Org. e trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Ed. 34, 2000, pp. 57-58

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intelectual a perplexidade de uma esquerda que mantinha suas crenças e modus operandi diante de uma realidade onde elas já não eram eficazes. Isso em 1988, numa premonição da ressaca ainda maior que se seguiria à Queda do Muro em 1989! Parte da crítica viu em Refúgio uma defesa do irracionalismo. Talvez seja apenas uma representação dos limites da razão. Em seu depoimento, Dal Farra afirma acreditar que o repúdio aos questionamentos ideológicos que faz oblitera a discussão de suas opções estéticas. O tempo dirá o quanto sua produção feita em diálogo com a realidade mais imediata sobreviverá esteticamente ou, como o texto de Guarnieri, ficará como testemunho importante, ainda que esteticamente malograda e aquém do talento de seu autor. O depoimento de Dal Farra nos abre uma rara oportunidade de tentar compreender o ponto de inflexão por que passa não só a produção cultural que, concordando com seu raciocínio, nasceu e cresceu sob a égide do lulopetismo em sua versão 2002–2016, como os caminhos para os quais aponta sua mutação. Seja lá qual for o teatro político que se faça nos anos 2020, ele será obrigado a dialogar com a obra de Dal Farra.

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Poucos artistas na cena brasileira viram sua obra reverberar com tal potência nos últimos anos como Grace Passô. De bola da vez, quando descoberta com o grupo Espanca, passou a ocupar um espaço de difícil definição, como atriz, diretora, dramaturga e pensadora do teatro. Seu depoimento nesse evento tem as mesmas características de instabilidade, coragem e presença do corpo. É no corpo que nasce e se expande sua dramaturgia. Seu trabalho, como o de

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Michelle Ferreira e Pedro Kosovski, nasce de seu trabalho no palco. Mas, diferente deles, é do corpo que ela fala, antes de falar em imaginário, coletivo ou criação. É de seu corpo duplo — real, no espaço, e imaginário, uma “construção social de alguns estereótipos” contra a qual é preciso se rebelar. Ou melhor, contrapor a potência do próprio corpo real e sua inteligência cênica. E social. Pois a prática da criação teatral não é, segundo ela, desvinculada de sua militância, lato sensu. “É muito interessante entender o quanto sou resultado de muitas militâncias. Estou vendo aqui e estou lembrando o tanto que já conversei com o Kil, e Zé também, e Bel. Tenho consciência disso hoje. Nasce também do lugar onde nunca me colocaram e que tive que criar para ele existir.” Em contraponto à obra de Silvia Gomez ou da metade “solo” da dramaturgia de Newton Moreno, sua escrita não existe desvinculada da encenação. Em seu caso, não a encenação no sentido de projeto racional, mas no de criação de um espaço de atuação em que a relação ator-plateia é o mínimo denominador comum. “Por exemplo, são menos falas a serem escritas em um tempo e lugar, o que é um pouco o princípio do texto teatral. Sinto que, de alguma forma, com o tempo, a minha escrita tem caminhado paralelamente à minha noção de atuação enquanto performance. Isso tudo não vem como resultado, sendo bem sincera, de uma racionalização do que faço. Isso vem de uma experiência do meu corpo vivo na cena. [...] Isso é uma tentativa de radicalizar a minha relação em cena, em vida, com o presente.” Por distante que seja, enquanto projeto e resultado, sua fala remete à fase atual dos Satyros de Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral, e mesmo ao Oficina de Zé Celso. Com a grande diferença de que Grace, mesmo quando trabalha com coletivos — ultimamente, a Cia Brasileira de Teatro, de Marcio Abreu, talvez o mais importante projeto cênico em curso —, mantém sua trajetória pessoal. Ela também não sofre as dores e as delícias

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OS AUTORES SÃO MUITO ORGULHOSOS DE SUA INCLASSIFICABILIDADE, NO ENTANTO SUAS RAÍZES APARECEM COM CLAREZA EM SEUS DISCURSOS OU OBRA da opção que os Satyros e o Oficina fazem por trabalhar com elencos numerosíssimos e muito heterogêneos. Respondendo à questão colocada por um dos provocadores, Passô afirma que sua dramaturgia é “cada vez mais negra”. E não vê isso apenas como uma questão de militância, de urgência. Ainda que afirme que também o é. Afinal, “o teatro brasileiro é muito elitizado, e como é elitizado, ele é racista. Como é racista, se você é uma pessoa negra, obviamente vai encontrar na sua vida estratégias para ser aceita nesse lugar. [...] A Leda Maria [Martins] fala isso, que, quando você é uma pessoa negra, você é poliglota, nasce poliglota porque você nasce com a dimensão do outro. Você tem a dimensão do outro”. Sua reflexão vai mais além. Identifica nos temas e procedimentos do teatro negro coincidências com o dito teatro brasileiro contemporâneo — aquele feito em salas de teatro burguesas, em horários tradicionais, cobrando ingresso etc. Em primeiro lugar, o questionamento do espaço cênico: “Quebrar essa relação entre nós, conversando sobre como molhar o teatro contemporâneo com um chão ancestral. Ao mesmo tempo, como entender a diáspora no teatro, esse corpo no teatro? São as questões que o teatro contemporâneo tem conversado há muito tempo. Estão conversando sobre o teatro brasileiro”. Em suma, ela não fala apenas do teatro negro e sua especificidade — que vai além dos temas e dos artistas envolvidos —, mas principalmente da busca de um outro público, que dialogue diretamente com a produção, por partilhar de lutas e estratégias de sobrevivência e que também reinvindique um espaço no teatro contemporâneo burguês “branco”. O que se delineia em seu depoimento é a crença de que, no teatro militante negro, há caminhos necessários para o próprio teatro contemporâneo brasileiro. Assim, a performatividade como caminho para construção de uma cena contemporânea mais eficaz em seu diálogo com um público não especializado (ou viciado), do ponto de vista da cena e do percurso com o público, é o que o teatro de Grace Passô nos oferece. Isso sem deixar de se colocar como expressão pessoal e intransferível de um corpo de mulher, negra e vinda de “fora do eixo” que, ao expandir suas próprias possibilidades reais e imaginárias, cria também uma dramaturgia, enquanto escrita a ser partilhada e eventualmente revisitada. E nos obriga a todos a nos repensarmos.

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O QUE PARA DIZER 26

EU TENHO —

EMANUEL ARAGÃO

DRAMA


P

oltrona 15 A. O voo sai de Brasília e segue para o Rio. Meu corpo está encostado na coluna do avião e eu tento escrever um texto sobre como escrever um texto. Eu comecei a escrever textos aos quinze anos de idade. E eles eram escritos para leitores imaginários. Poemas, de modo geral, dedicados a alguém que nunca os leria. Mas eu imaginava o momento dessa leitura acontecendo. E o que ela provocaria nesse interlocutor. E como ele passaria a me perceber de outro modo a partir daquele momento. Nunca escrevi por uma necessidade profunda de elaboração de um conceito ou de uma questão. Ao contrário, desde cedo, me parecia que a possibilidade de elaboração de uma ideia ou conceito se desenrolava melhor em diálogos do que na escrita, solitária. E não estou falando de diálogos no sentido dramatúrgico, e sim de diálogos concretos, que se dão no mundo. Sempre escrevi para tentar ser visto de outra forma pelos outros, por algum outro. Sempre foi uma escrita em performance, nesse sentido. O que eu estava fazendo ali era construir a imagem de um sujeito que eu gostaria de ser e esse sujeito seria lido por alguém que eu gostaria que me conhecesse. De modo geral, eu sempre elaborei minha existência a partir do olhar do outro. E a escrita surgiu como uma maneira de conferir algum valor mais intenso e profundo a essa imagem possível. Nesse sentido, ao mesmo tempo, a escrita também, para mim, sempre esteve conectada a uma certa farsa construída ali. Nunca foi algo totalmente genuíno. Se é que existe algo totalmente genuíno. Mas nunca foi. Não vim ao mundo povoado por palavras e pela necessidade de expressá-las, por assim dizer. Nunca foi esse o meu caso. Eu escrevia para ser visto, para existir. E, num primeiro momento, o que eu gostaria que vissem em mim era inteligência, cultura e apuro estético. Assim, eu gostaria de ser capaz de escrever poemas com rigor técnico. Entretanto, logo que encostei a caneta no papel pautado do meu primeiro caderno entendi que isso não seria possível. A cultura e o apuro estético não eram meu forte, o que não ajudava em nada na imagem da inteligência. Eu descobri então que conseguia representar uma certa imagem de sensibilidade em relação à minha experiência no mundo. Isso eu era capaz de fazer: organizar o meu olhar sobre a vida para que ele fosse capaz de perceber pequenos detalhes e, posteriormente, transformar esses detalhes em escrita. Eu poderia ser este “tipo” de escritor.

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DRAMA


E eu tentei ser por algum tempo. Mas a obrigação do olhar sensível sobre o mundo a todo instante rapidamente me cansou. Durante o segundo grau, resolvi ser o escritor romântico. Mas me sentia profundamente farsante. Durante a faculdade, fiz um esforço enorme para ser o escritor irônico. Mas na verdade, nem eu mesmo achava graça no que eu conseguia produzir a partir dessa premissa. Depois descobri o teatro e passei a escrever peças. E a escrita das peças de teatro me pareceu um passo evolutivo na relação com esse suposto olhar do outro debruçado sobre mim. Pela primeira vez eu escrevia textos que de fato seriam vistos/ ouvidos. E, assim, a imagem do leitor/ espectador ideal ou possível passou a ser ainda mais presente na minha escrita: eu escrevia para ele. E, muito rapidamente, talvez não na primeira peça, mas já logo em seguida, esse procedimento de relação e de apreensão passou a ser a questão para mim. Os textos eram, em função disso, um diálogo imaginário com esse suposto espectador sobre a minha própria imagem e a minha possível escrita. E, assim, eles eram basicamente estruturas metalinguísticas. Pelo menos era assim que eu os via: grandes comentários sobre aquele momento no qual a relação estava a se estabelecer. Algumas peças depois, esse desejo de organizar o diálogo com um espectador possível e, mais que isso, de dominar o olhar que era debruçado sobre mim, passou aos poucos a se diluir. Mas, em função de alguma trajetória que eu tinha conseguido inventar, eu me mantive escrevendo as mesmas peças que eu já tinha escrito. Pelo menos era assim que eu sentia. Eu tinha conseguido, afinal, inventar um sujeito para o qual o olhar dos outros poderia se direcionar. Mas, é claro, eu não estava exatamente em consonância com esse sujeito inventado. É claro também que o problema não era “este” sujeito específico, e nem o fato de que ele havia sido maquinado, construído. Para mim,

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toda subjetividade passa por um campo de invenção. O problema era que a necessidade da invenção de um self para o olhar dos outros estava aos poucos se diluindo em mim. Mas, se não sobrasse isso, sobrava o quê? Neste exato momento, pouco mais de vinte anos depois dos primeiros textos que eu considerei textos, sentado na poltrona 15A, a caminho do Rio de Janeiro, com o céu nublado do lado de fora, pela primeira vez eu escrevo fazendo um enorme esforço para não construir o meu leitor imaginário ou o espectador ideal. Escrevo tentando dizer o que eu tento dizer. Tentando explicar o que se passa. Tentando entender o que eu sinto e por que faço o que faço da maneira que faço. Depois de tanto tempo, parece que eu finalmente entendi, e este entendimento está longe de ser uma regra geral, trata-se apenas de um processo específico de um sujeito específico, que, enquanto eu tentar projetar o meu leitor imaginário e o amor que ele poderia sentir por mim, não é possível que eu seja ninguém além do objeto do amor deste mesmo leitor imaginário, que não existe e nunca existiu. Eu mesmo, o objeto de uma virtualidade sem nenhum propósito, a não ser uma espécie de garantia tosca da minha própria existência. Parece que eu afinal entendi, e isso está longe de ser uma regra geral, que eu tenho que tentar dizer o que se passa. E que talvez isso que se passa possa ser lido por alguém. Mas quanto a isso não há garantia. Nenhuma. Mas é só isso que me cabe tentar dominar. O caso é que, enquanto eu me esforçar para construir meu interlocutor ideal, o diálogo se mantém impossível, inviável. Só o que eu posso fazer é me esforçar para dizer o que eu preciso dizer. Por mais tosco que isso possa ser, e que tantas vezes é. É só o que eu posso fazer: tentar dizer o que eu preciso tentar dizer. Que tantas vezes é absolutamente nada. E por isso, há algum tempo, a escrita de peças de teatro perdeu tanto o sentido para mim: sempre me parece inviável escrever uma peça sem imaginar o seu espectador. E isso eu já não quero mais fazer. Já não me é mais possível controlar o olhar do outro.

DRAMA


EU ME ESFORÇO PARA TENTAR SER TÃO PRECÁRIO QUANTO DE FATO SOU. EU ME ESFORÇO PARA SER TÃO DESINTERESSANTE QUANTO DE FATO SOU. EU ME ESFORÇO PARA SER TÃO ENFADONHO E REPETITIVO QUANTO DE FATO SOU Só o que eu posso tentar fazer é dizer o que eu tenho para dizer. Que muitas vezes está mais próximo de um silêncio qualquer. Não o silêncio existencial total, o silêncio do resto é o silêncio, o silêncio do que não se pode falar é melhor calar. Não, um silêncio qualquer. Como um tempo que passa. Sem poesia mesmo. Só uma pausa. Uma respiração breve. Uma distração qualquer. E depois voltar a tentar dizer. Qualquer coisa que seja. E se existir algum leitor, algum interlocutor, ele que trate de se construir como bem entender, porque eu já não posso mais cumprir essa função. Ou pelo menos não quero mais. Para algum diálogo possível, desses nos quais as questões, por mais bobas que sejam, podem ser realmente elaboradas, só o que eu posso tentar fazer é dizer o que eu tenho para dizer e esperar em silêncio a réplica do outro, sem a minha tréplica pronta de antemão, como em geral eu fazia. E se a réplica não vier, sobra um silêncio qualquer. Ou se inicia um próximo diálogo. Enquanto eu me esforçar para dominar o diálogo, ele me parece impossível. Eu me esforço agora para tentar dizer o que eu não diria, já que estava empenhado no projeto de impressionar aquele outro inventado. Eu me esforço para tentar dizer. Neste momento, enquanto são iniciados os procedimentos de descida da aeronave, eu me esforço para não tentar ser alguma outra coisa. Eu me esforço para tentar ser tão precário quanto de fato sou. Eu me esforço para ser tão desinteressante quanto de fato sou. Eu me esforço para ser tão enfadonho e repetitivo quanto de fato sou. Ou pelo menos como sinto que sou. Afinal, eu não sou o escritor que termina o texto durante sua viagem de avião, romanticamente. Sou só o passageiro da 15A. E, se isso tiver servido para alguém, que bom que seja. Até porque a identificação é o primeiro mecanismo necessário para que a narrativa aconteça. Mas eu não tenho nenhum domínio sobre a identificação. No fundo, não tenho domínio sobre nada. Só o que eu posso fazer é tentar dizer o que eu tenho que tentar dizer.

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DRAMA


APONTAMENTOS DO O dramaturgo e diretor Roberto Alvim lança alguns pensamentos em torno dos estímulos para a escrita para teatro

ROBERTO ALVIM

DRAMATURGIA 50

APARTE


ACERCA ENSINO 51

EM APARTE


1

Em uma oficina de dramaturgia, o que realmente importa é desencadear processos criativos nos autores-participantes. Nesse sentido, a análise das estratégias de construção empregadas por mestres clássicos e contemporâneos serve como exemplo (de que é possível, sim, a invenção de novas/outras técnicas que traduzam e ampliem a visão de mundo singular de cada artista) —, e jamais como a proposição de modelos a serem reproduzidos.

2

A informação destrói o seu próprio conteúdo; para o professor, é uma luta permanente fazer com que suas palavras não se tornem matéria morta/ digerida, mas sementes rizomáticas capazes de germinar no espaço sensível de cada aprendiz, conferindolhes potência poética.

3

O mestre tem que ter, diante do trabalho dos estudantes, o mesmo olhar dos grandes críticos diante de obras de arte: é crucial ver os trabalhos a partir de suas proposições singulares, e jamais a partir de um quadro de referências estabelecido

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previamente. Para tanto, é fundamental nortear-se pela ideia de arte-como-invenção: entender a obra como um sistema complexo de relações formais, construído em diálogo com sistemas anteriores, capaz de proporcionar experiências estéticas até então desconhecidas.

4

Toda técnica está ligada a uma determinada visão de mundo. Uma questão estética é sempre uma questão existencial... Empregar uma técnica preexistente significa compactuar com (e subordinar-se a) uma visão específica acerca do que seja a condição humana. Novas visões de mundo pressupõem, inevitavelmente, a invenção de novas técnicas. Todas as obras que hoje consideramos clássicas surgiram como ruptura em seus períodos. Em uma oficina de dramaturgia, é crucial apresentar um olhar panorâmico da história do teatro, objetivando demonstrar aos alunos que sua missão, hoje, é realizar a mesma tarefa que já foi de Ésquilo, Shakespeare, Ibsen, Tchekhov, Strindberg, Beckett, Pinter, Nelson Rodrigues...

5

Escrever uma personagem é desenhar um testemunho acerca do modo como você compreende sua humanidade.

6

Em uma peça de teatro, é a situação dramática que gera pensamento (e não o autor que filosofa através da boca de suas personagens...). Portanto, escrever uma peça não é “dizer” algo, mas criar um campo complexo de vetores contraditórios que, ao ser experienciado sensivelmente por cada espectador, será capaz de catapultar múltiplas e autônomas reflexões. Dramaturgia não pode se reduzir a dirigismos ideológicos ou didatismos intelectuais. Agir assim significa perder a possibilidade maior da obra de arte: emancipar cada membro da plateia por meio da imersão em vivências poéticas polissêmicas e revolucionárias, capazes de transfigurar todos os sentidos normatizados.

7

Nenhuma arte se alimenta de si mesma. Nas aulas, é preciso expor os participantes não apenas ao trabalho de dramaturgos, mas também ao de filósofos, psicanalistas, linguistas, poetas, pintores, romancistas, músicos, cientistas... Caso contrário, continuaremos lidando com as mesmas ideias e expectativas acerca do que seja uma obra de arte, porque continuaremos lidando com as mesmas ideias e expectativas acerca do que sejam os conceitos de signo,

APARTE


narrativa, conflito, sujeito, linguagem — conceitos esses que foram revolucionados há tempos em outras áreas de produção de conhecimento.

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Formar funcionários que dominam meia dúzia de técnicas da moda; que lidam com a condição humana sem levar em conta as ressignificações brutais ocorridas em outros campos do saber; adestrar artistas em potencial para que realizem a peça-bem-feita — ora, agir assim significa perpetrar um assassinato neurótico da sensibilidade e da potência dos aprendizes, que poderiam e podem e devem (!) florescer em direções insuspeitadas.

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Uma arte só sobrevive na medida em que se reinventa; sempre foi assim na história do teatro, que se apresenta como a trajetória de eclosão de singularidades. Em cada época, autores surgiram (de modo imprevisível) e construíram (em suas obras) contribuições que ressignificaram completamente a dramaturgia (e, por conseguinte, nossas ideias acerca do que seja a humanidade). Não se trata de reproduzir o passado, mas de inventar o futuro — ecoando o impulso criador dos mestres de outrora.

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de desenhar uma jornada de condução da percepção e de disparo de sensações/ pensamentos por meio das palavras do texto (sementes lançadas no solo fértil do imaginário do espectador).

Coordenar uma oficina de dramaturgia implica em acreditar na liberdade artística radical (condição imprescindível para a criação) e em entender o trabalho do mestre como o de um parteiro: não se trata de definir como será a criança, mas de forçar seu nascimento, empregando para tanto todo e qualquer meio. Forçar os autores a fazer aquilo que têm de fazer — inventar suas obras, isto é: descobrir suas vozes como artistas, criando planetas estéticos e habitando-os com formas de vida fundantes. Impulsionar os aprendizes em direção à instauração de suas poéticas: seus próprios jogos de linguagem, que funcionam segundo regras por eles estabelecidas. Estimular febrilmente a conquista, por cada um dos estudantes, de visões de mundo singulares, descoladas de formas e discursos hegemônicos — e então ajudá-los a encontrar os meios de expressar essas visões em seus trabalhos, visando ampliar as possibilidades da vida humana em direções incatalogáveis.

Ao principiar a escritura de uma peça, em vez de partir de O que eu quero fazer com essa obra, perguntar-se O que esta obra fará comigo? Se, após terminar um texto, o dramaturgo não se tornou (por força da escritura) alguém diferente de quem era ao começar, então seu trabalho foi absoluta perda de tempo...

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Para um autor, escrever uma peça é oferecer um convite, destinado a cada membro da plateia, para que trilhem, juntos, veredas estéticas desconhecidas. Trata-se

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Para o autor, é imperioso colocar-se, no ato da escrita, no mesmo lugar existencial em que se localiza o Gênesis bíblico — a princípio não há nada, até que o verbo é proferido, e por meio do verbo, graças a sua força criadora, tempos, espaços e sujeitos se tornam carne.

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A finalidade da composição de textos teatrais é desvelar a complexidade da condição humana — e, ao fazê-lo, por gravitação inevitável, dignificar toda a vida.

APARTE


EM

BOA COMPANHIA 30

DRAMA


P

ara além de seus textos, dramaturgos criam universos inteiros povoados de seus interesses, pesquisas, reflexões – peculiaridades suas, que despontam na obra e que também se podem entrever em um ateliê de escrita. Em tal situação, seu universo particular acolhe outros artistas para provocá-los, instigá-los, atuando então como propulsores para novas formas de pensar, criar, escrever. À sua maneira, em uma narrativa, um ensaio e um relato, três dramaturgos apresentam a seguir os ateliês que conduziram em junho, no Sesc Ipiranga, e alguns dos textos que foram produzidos a partir de seus variados estímulos e estilos. Michelle Ferreira abandonou o caminho conhecido dos workshops e propôs uma performance para o primeiro dia: levou bolo, bexigas e chapéu de aniversário para criar um ambiente lúdico. “Quero lambuzar a racionalidade com chantilly. Quero instaurar um clima de afeto. Quero assoprar, além de velinhas, falsas certezas.” Sua narrativa da festa-ateliê incorpora pensamentos sobre a escrita e o teatro, seus métodos de criação e as interações com os convidados-participantes, em um manifesto apaixonado que transmite as experimentações que alimentaram a escrita. Investigar o desconhecido e o estranho, como conceitos, objetivos e métodos da arte, é o que propõe Alexandre Dal Farra em um ensaio que esclarece as questões de fundo do ateliê que conduziu. “Esse estranho, que não temos como produzir intencionalmente e que só podemos encontrar sem querer, é como se fosse mesmo uma ‘pegada que não sabemos se é só nossa’”, ele explica, propondo uma acepção para o termo. Ele esclarece que, para trazer isso à tona, o texto deve funcionar como uma forma de caminhar, um passeio despreocupado que permitirá que se entre em contato com o que “não é só nosso”. Um texto produzido no ateliê concretiza, em uma cena, o estranho coletivo que busca o dramaturgo. Análise de canções, estudo de textos teóricos e debate sobre conceitos presentes em obras contemporâneas se combinaram no ateliê de Jé Oliveira, que tomou como mote a perda material, física ou simbólica. Suas preocupações artísticas em torno da palavra falada e cantada e das questões raciais e suas implicações sociais nortearam as trocas de experiências entre os participantes, “para podermos ampliar e fortalecer nossos repertórios e condições de criação, relembrando e trazendo mais uma vez para o centro da cena a palavra falada e escrita como urgência e potência de vida”, explica o dramaturgo. Os artistas responderam às questões levantadas com alguns textos que podem ser lidos na sequência.

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ANARCO DRAMATURGIA— A PALAVRA-BOMBA E OUTROS 32

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MICHELLE FERREIRA

ATENTADOS 33

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F

oi em 2006 que eu falei em público pela primeira vez sobre dramaturgia, a convite do Sesc Piracicaba. Desde então, palestras e workshops têm sido uma rotina prazerosa/ caótica/ angustiante. Cada vez que falo sobre o que eu faço e como faço, sou obrigada a me implodir. Eis mais uma descrição/ atentado.

É dia 8 de junho, meu aniversário. Em vez de ir por um caminho já conhecido, decido fazer uma performance. Compro um bolo. Estou excitada. Estou nervosa. Quero criar um ambiente lúdico para a escrita de textos. Quero lambuzar a racionalidade com chantilly. Quero instaurar um clima de afeto. Quero assoprar, além de velinhas, falsas certezas. Me arrisco: dou um chapéu colorido para cada um e digo que naquela sala tem uma festa. Eles topam. Começamos a encher as bexigas. A dramaturgia não serve apenas para expor ideias e conceitos. Por isso a minha relutância em ministrar um ateliê de escrita expondo ideias e conceitos. Preciso irradiar minha paixão, vivendo-a no momento presente. Escrever para teatro deve nos preparar para a morte. Sou uma criança inconformada com o fim. Acredito na diversão como ética, na comédia como estética, na relação como revolução. Ninguém se conhece. Precisamos nos apresentar. Não quero que eles me digam quem são. Quero que eles participem da minha festa-ateliê, me dando um presente. Eu leio um trecho de um livro que meu namorado achou numa caçamba, A linguagem secreta dos aniversários,

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que descreve a personalidade de todos os seres humanos que habitam este planetaplanetinha. Ressalto que o equilíbrio mental das pessoas nascidas no dia 8 de junho pode ser precário, segundo o livro do lixo. Eles entram na brincadeira. Sou essencialmente dramática. E eles precisam saber que é desse lugar que estou partindo. Falo da contradição. Falo da importância do autoconhecimento para o reconhecimento das contradições. Está na hora de parar de falar e começar a escrever. Aí está um dos mimos que ganhei: Michelle, Talvez você estranhe, mas não consegui pensar em outra coisa. Essa airfryer mudou minha vida e o melhor presente que eu poderia te dar seria a experiência de comer fritura sem óleo e que fica pronta em pouco tempo. Talvez fique um pouco mais estranho agora, mas acho que esse presente tem tudo a ver contigo. Depois me conta se descobriu por quê! Espero que você aproveite e que o ar quente que se avizinha mude sua vida (estou falando da airfryer, mas vale para seu novo ano também). Seja feliz. A carne fica ótima. (Diego Cardoso)

Seguimos em frente. Exercício: escrever uma cena de uma festa de aniversário. Eu sou a cobaia/ personagem/ atriz. Eles também são personagens, eles que lerão a si mesmos. É preciso ter essa experiência. Escrever de pé, escrever falando, orando, correndo, escrever com o corpo, ouvir a própria voz, ler o próprio texto. “Mas eu não sou ator.” Não é um problema. Um dramaturgo alienado do corpo padecerá. O que não está alienado padecerá também, mas pela minha experiência, com raras exceções, quem entende o óbvio sobre o ofício, que a palavra no teatro é corpo e ação, terá mais recursos para superar os desafios. Insisto que teatro é o som da palavra que vibra no ar, e não uma projeção mental. Escrever em quatro dimensões. Cinco, dez, infinitas. Sair do papel e ir para a cena. Como preparar a palavra-bomba? Que eventos psíquicos causam essas sílabas em conjunto? Que explosão se quer causar?

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Michelle e Letícia estão frente a frente. Michelle, atrás da mesa colorida de aniversário cheia de docinhos, confetes, bolo, bexigas, bichinhos fofos, bandeirinhas e florzinhas. Ela come lentamente brigadeiros enquanto fuma um cigarro. Letícia está do outro lado da mesa, quase imóvel. Sua respiração é ofegante, como se tivesse corrido muito até chegar lá. As duas se olham. letícia michelle letícia

Oi. Parabéns! Oi. Senti saudade.

Silêncio letícia michelle letícia michelle letícia

Há quanto tempo está aqui? Toda uma vida. Hoje é meu último dia. Último dia do quê? Da minha vida.

Michelle gargalha alto e para subitamente. Joga a bituca de cigarro no chão e acende outro. Ela não para de comer brigadeiros. michelle letícia michelle

letícia michelle letícia

A humanidade tem que morrer. É necessário renovar, transformar, diversificar. Senti saudade. Por isso eu vim. Hoje é seu último dia e completo 36 anos. Aniversário é uma coisa dramática. Se eu pudesse escolher, morreria no dia do meu aniversário. Com um brigadeiro entalado na minha garganta. Sozinha. Tive vontade de te matar. Eu também. Nosso filho nasceu. Pari faz três meses.

Silêncio profundo. letícia michelle

letícia michelle letícia michelle

Quero que você fique com ele. Cuide dele. O tempo de ter um filho já passou. Meu tempo agora é outro. Ontem o céu tava azul, azul. Hoje tá preto. Você olhou pro céu hoje? Eu te amo. Quero que você fique com ele. Cuide dele. Não gosto de criança. Sempre gostou. Não gosto mais.

Silêncio. michelle letícia

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Vai morrer de quê? Morte súbita. Assim espero. É assim que eu quero. Já planejei tudo.

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Letícia caminha até a mesa colorida, pega um brigadeiro. Come lentamente enquanto olha para Michelle. Vira-se para sair. letícia

Volto à noite, com ele. Vocês vão se dar bem! Tenho certeza. Hoje o céu tá azul, azul.

Letícia sai. Michelle ri, gargalha e fuma. Música alta começa a tocar. Michelle dança descontroladamente. (Letícia Bassit)

Ouvir o texto do outro. A escuta no teatro. A escuta na vida. A atenção. A doação. A generosidade. Cito Goethe: “Tão difícil como escrever um bom romance é ler um bom romance”. Cito Antunes: “Como você sabe que uma peça é boa? Você não sabe. Só começa a ter algum critério depois que leu/ assistiu, no mínimo, cem”. Estamos todos engajados. As cenas nos atravessam. Os comentários são ricos. Os autores começam a refletir sobre suas construções. Algo acontece. O filme é O cidadão ilustre, de Mariano Cohn e Gastón Duprat. A primeira cena do filme é o discurso bombástico do escritor argentino Daniel Mantovani ao receber o prêmio Nobel de literatura. É inspirador. Eu peço para que eles trabalhem nas cenas que escreveram in loco. Mais importante que escrever é reescrever. Peço também que inventem um prêmio inusitado. Inventar. Criar. Brincar. Como já disse, sou uma criança. Cantamos parabéns e comemos o bolo. O ateliê-performance acaba. Eu estou feliz. Eles também. O bolo é bom. Eu me sinto amada. O teatro pra mim é o lugar de dar e receber amor. No dia seguinte, os prêmios são incríveis. Inusitados. Originais. Gargalhamos. Estamos criativos. Que clima bom para escrever! Colocamos os prêmios em cima da mesa. Cada um escolhe um deles, só não pode ser de sua autoria. O exercício é: crie um personagem para receber esse prêmio. Descreva-o ao seu modo, mas tente enxergá-lo andando, falando, transando, comendo.

O SER HUMANO É UM CAMPO DE BATALHA. NOSSAS ESCOLHAS E PREFERÊNCIAS NÃO SÃO RACIONAIS, SÃO RESULTADO DE UM JOGO DE FORÇAS QUE FOGEM AO NOSSO CONTROLE 36

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Prêmio: Quem se importa Júnior, 31 anos. Nascido de cesárea. Começou interrompendo o sonho de sua mãe de parir ao lado de doulas numa banheira cheia de água. Nasceu chorando irritantemente. Cresceu jogando bola com meninos e meninas. Fez muitos gols, mas ganhou mais porradas do que gols. 1,70 metro de altura. Sem barba, usa 2 pomadas para o cabelo, 3 para as mãos e 1 brilho labial, porque de vez em quando tem rachaduras na boca. É formado em administração, psicologia e teatro. Fez 3 MBAs. O seu assunto de preferência são as pomadas para o cabelo, diz que o motivo de falar tanto disso é porque ele é o único que consegue achar essa pomada a preço de banana. É moreno, pardo, pardo. Nascido em São Paulo, no bairro da Mooca. Coleciona fios de cabelos brancos das mulheres com que trepa, quando trepa. Seu programa preferido é o Faustão, aquele da Rede Globo. Tem um pôster dele no quarto e diz que Faustão foi como um pai na sua vida, ensinando tudo de mais importante pelas telinhas e entrevistas pesquisadas pela internet. Fez cirurgia bariátrica aos 26 anos de idade. Teve uma namorada, foi trocado pela Sabina. Essa história, a de ser trocado, é seu terceiro assunto de preferência. Sempre conta essa história iniciando com a seguinte frase: “Quem aqui já foi trocado por uma sapatão?”. Sempre aos berros. Júnior é bonito, tem uma teoria que publicou no seu blogspot: toda vez que você chupar buceta por mais de 5 minutos você terá cárie nos dentes. Depois dessa teoria finalmente arrumou alguns seguidores no seu blogspot. Tem um carro preto, usa cueca samba-canção e joga videogame valendo dinheiro. (Bárbara Cristina Souza Barbosa)

A tarefa é fazer o personagem discursar. Esse discurso precisa conter uma insolúvel contradição. O ser humano é um campo de batalha. Dentro dele diversos impulsos lutam para se manifestar. O moral, o social, o histórico, o familiar, nada está solto, e ao mesmo tempo as fronteiras estão sempre borradas. Categorias e distinções servem para a análise de uma obra (ou nem isso!), não para a sua criação. Nossas escolhas e nossas preferências não são racionais, mas são resultados de jogos de forças, que muitas vezes fogem ao nosso controle. Escrever e perder o controle. Escrever e achar o controle. Digo que eles irão “performar” o que eles escreveram. Para a minha surpresa, isso é motivo de excitação. Eles apresentam. Damos um salto quântico no que diz respeito à contradição. Com o “personagem encarnado” conseguimos de fato enxergar que consciência e razão estão longe de ser a essência da nossa espécie. Elas são apenas instrumentos de um animal que é frágil e quer continuar vivo através de sua presença no mundo, através de seu discurso e/ ou ação. Eu proponho a leitura de minha mais nova peça, 4 da espécie – a história do corpo coisa nenhuma. Eles topam tudo, são disponíveis, empolgados, curiosos. Consigo dividir com eles o meu processo, falamos de nossas angústias, nossos temas de interesse. Saio com a certeza de que provocamos juntos uma combustão. Palavra lança-chamas. Caos. Criar uma nova forma para revelar o que apenas o teatro pode revelar. Anarcodramaturgia.

Mais um exercício. Me sinto num parque de diversões. Colocamos os personagens sobre a mesa. Cada um escolhe um.

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A DRAMATURGIA —

ALEXANDRE DAL FARRA

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DO ESTRANHO DRAMA


N

a abertura das Dramaturgias, com Luis Alberto de Abreu, Marcio Abreu e Silvio Luis Oliveira, Silvio colocou uma questão a certa altura do debate. Ele citou Roberto Alvim, que teria colocado a necessidade de a arte buscar o desconhecido. A resposta de Marcio Abreu me provocou certa curiosidade. Em termos gerais, até onde entendi, ele questionou o valor per se de uma busca pelo dito desconhecido e defendeu a possibilidade de que a arte também expresse questões conhecidas, quer dizer, de que a arte possa trazer à tona também questões compreensíveis e, de alguma forma, explícitas. Foi como compreendi sua fala. Ao que parece, ele procurava relativizar o valor do tal desconhecido, questionando-o, como se ele tivesse se tornado uma espécie de fetiche. Tal necessidade de relativização me pareceu extremamente razoável e compreensível, no entanto, algo nela me incomodava, talvez um incômodo de natureza lógica, em alguma medida. Ora, se tal relativização se coloca como um questionamento do caráter absoluto da busca pelo desconhecido mas, ao mesmo tempo, defende a convivência entre o desconhecido e o conhecido na cena, ela não está justamente pensando o desconhecido como uma espécie de estilo, ou opção de linguagem, que, portanto, poderia perfeitamente ser permeado e alternado com aspectos mais conhecidos? Ou seja, ao relativizar o valor do desconhecido e defender a sua convivência com o conhecido, ele não estaria justamente transformando o desconhecido, de uma busca radical e necessária, em justamente um fetiche que ele critica?

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Em outras palavras, se o desconhecido não é necessário, como ele pode continuar fazendo algum sentido dentro de uma obra? Ou, seguindo adiante, se temos coisas muito claras para dizer nas nossas obras, por que não simplesmente dizê-las? Nesse caso, parece, o desconhecido corre mesmo o risco de tornar-se apenas uma roupagem, um fetiche, uma espécie de marca. A partir desses pensamentos, me perguntei, com muita atenção, ao que se devia na minha própria obra a existência disso que eu também poderia denominar de desconhecido. E me perguntei sobre as razões para que eu o busque. Por que a maioria das minhas obras não se coloca com uma posição clara? Por que o desconhecido está presente nelas? Ele é realmente um desconhecido necessário, ou apenas um estilo para apresentar de forma mais contemporânea questões que são, no fundo, totalmente conhecidas? Inicialmente, não consegui encontrar respostas para essas perguntas, depois percebi que talvez a própria formulação da pergunta estivesse me jogando em um território de discussão infrutífero. Pensando sobre o meu trabalho, por conta da necessidade de me preparar para a Maratona de Entrevistas que ocorreria dali a dois dias, na programação das Dramaturgias, me ocorreu que talvez tudo se alterasse se eu trocasse a ideia de desconhecido pela de estranho. Isso evidentemente abriria um diálogo com o texto de Freud e todos os desdobramentos que essa relação envolve. Pareceu-me um caminho mais interessante para lidar com a questão, talvez importante para todos nós. Coloquei-me o desafio de pensar sobre um dos aspectos da escrita que talvez seja o que mais me interessa. Esse aspecto não diz respeito à técnica da escrita, de forma abstrata. Também não se trata do estudo de algum aspecto específico da dramaturgia contemporânea, seu caráter performativo ou pós-moderno. Tampouco me concentrei nos aspectos políticos que escrever hoje implica. Todos esses temas me interessam e creio que sejam fundamentais para pensar sobre dramaturgia hoje. No entanto, o que me

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propus a trabalhar nesse encontro, que para mim foi fundamental, e a oficina que ministrei se voltou para isso de maneira bastante direta, foi a questão do estranho. Se fôssemos pensar a partir de Freud, que é o que tenho em mente, poderíamos falar do estranho familiar (unheimlich). Mais precisamente, procurei pesquisar a ideia da dramaturgia como um instrumento de contato com o estranho familiar. Em Freud, a ideia do estranho familiar é comumente associada a uma conceituação sobre o retorno do recalcado. Para Freud, o recalcado, as pulsões que são reprimidas portanto, geram um tipo de resíduo, que fica como que escondido, ou recalcado, sob a superfície do consciente, da vida cotidiana. É a partir de uma análise da palavra unheimlich que Freud vai apontar que, embora literalmente em princípio ela pudesse ser traduzida por “não familiar”, na sua própria raiz (heimlich = familiar) há certa ambiguidade reveladora. Freud vai demonstrar, com vários dicionários, que, ao passo que heimlich é usado no sentido de “familiar”, ele também é usado, ainda que mais raramente, em um sentido que se aproxima de unheimlich, ou seja, no sentido de algo que é feito de forma escondida, secreta (uma reunião heimlich seria uma reunião privada, escondida); e até mesmo, às vezes, heimlich (familiar) chega a ser usado no sentido do seu contrário, unheimlich (estranho). Assim, Freud chega a uma definição, talvez a mais clara de todas, do que seria o estranho (unheimlich) para ele, a formulação de Schelling, segundo a qual unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. Ou seja, o estranho, ao contrário do desconhecido, é sempre, de algum modo, reconhecível. Daí a sua estranheza. Não se trata, pois, do novo, e sim daquilo que à primeira vista pode parecer novo, mas é sempre algo antigo que fora recalcado e que agora encontra caminhos de vir à tona. Seguindo nessa rota, fui de encontro a uma ideia, que me apareceu por acaso, retirada de Lacan. Robinson Crusoé estava vivendo solitário, na Ilha. Certo dia, em meio às suas caminhadas, ele vai de encontro a uma pegada na areia da ilha, que ele não tem certeza se é dele. Ele fica muito curioso em relação à pegada e tenta tramar um modo de descobrir de quem ela é. O caminho que ele encontra para isso é apagar todas as suas pegadas a partir desse momento, de forma que, quando encontrar uma, ela certamente não será só dele. Essa imagem, que alterei sutilmente, me pareceu perfeita para pensar na escrita e no modo como trabalho em dramaturgia. De fato, esse estranho, que não temos como produzir intencionalmente e que só podemos encontrar como que sem querer, é como se fosse mesmo uma “pegada que não sabemos se é só nossa”. O estranho, com efeito, o recalcado, nunca é algo individual. O recalque é um dispositivo social e, embora se dê nos indivíduos, sempre é resultado de uma ordem que é mais do que individual. Quando encontramos com o estranho, dessa forma, na escrita, estamos encontrando simultaneamente com aquilo que não sabemos mais se é só nosso. É esse estranho que me interessa, é ele que tem me interessado ao longo do tempo, em todo o meu trabalho. E é na busca por esse tipo de encontro que eu tenho desenvolvido a forma de escrever que procuro dividir com os alunos com que tenho contato. Abrir espaço para o contato com o estranho. Com efeito, para que Robinson Crusoé pudesse ter visto a pegada que não reconheceu totalmente como sua, ele não poderia estar, por exemplo, caminhando com muita pressa, com muita fome, para ter tempo de avistar o chão. Por outro

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lado, não poderia estar tão absorto ou deprimido que não chegasse nem mesmo a ver o lado de fora. É preciso, assim, encontrar uma forma de “caminhar” que nos propicie esse tipo de contato com aspectos nossos que não são só nossos, com aqueles lados nossos que estão reprimidos, e recalcados, mas que ainda estão lá, vivos, e não são só nossos, mas parte constitutiva da nossa sociedade. Não há garantias de que essas forças que encontraremos serão “boas” ou “ruins”, mas há grandes chances de que sejam forças reais. Acredito muito no papel da arte como um espaço onde possamos entrar em contato com isso. Com tudo o que nos forma e que queremos negar. Para que isso ocorra no palco, e não na vida real. Porque o recalcado que não é elaborado retorna em forma de outras coisas. Falar em cena do que acreditamos, do que achamos belo, do que queremos, é apenas uma forma de recalcar ainda mais aquilo que nos forma e que não queremos. Não me interessa o palco como um espaço de defesa dos nossos ideais, e sim o palco como espaço de olhar para nós mesmos, de elaboração de aspectos nossos que não podem e não devem ter espaço no mundo real. Esta é, pois, a dramaturgia do estranho, que venho defendendo e que tenho tentado construir junto aos meus alunos. Mas como fazer isso? O que mais importa em uma oficina que queira trazer isso à tona é não tratar de estilo, de técnica dramatúrgica, nem mesmo de leitura de textos. O ponto aqui é que o texto, a escrita, vai precisar funcionar para os participantes como uma forma de caminhar, de deixar-se levar, para, durante esse caminho, ir de encontro àquilo que estamos procurando. O paradoxo, evidentemente, é que estamos procurando justo aquilo que não podemos “achar”, aquilo que não temos como buscar pela via consciente, então a escrita se torna um

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tipo de “passeio”, algo despreocupado, por lugares, por pensamentos, por situações, não importa, mas ela deve ser livre o bastante para se perder em nossas imagens, pensamentos, e ao mesmo tempo atenta o bastante para não deixar passarem os momentos em que se entra em contato com algo que não é só nosso. Nem sempre isso vai ocorrer, mas muitas vezes ocorre e, quando isso ocorre, na leitura do texto em sala fica invariavelmente claro para todos os presentes que algo veio à tona ali. A partir de então, a escrita torna-se um trabalho de compreender que algo é esse e transformar o texto como um todo no texto que faz esse algo brotar. Ou seja, trata-se de seguir para o momento em que Robinson Crusoé passa a apagar as suas próprias pegadas, para trazer à tona apenas as pegadas que não são só dele. Isso tem gerado muitos textos que encontram os seus próprios meios para irem de encontro aos seus próprios “estranhos” – que não são só deles. Exemplifico aqui com um trecho de um dos textos realizados no ateliê que ministrei nas Dramaturgias mas não vou analisá-lo. Creio que, a partir do que apresentei acima, o leitor poderá tirar as suas próprias conclusões sobre o texto, tendo em vista que tudo na oficina se voltava para a produção de uma espécie de “passeio”, como o passeio de Robinson Crusoé, que nos pusesse em contato com aspectos nossos de que não temos total conhecimento. Trata-se de um trecho extenso para que se possa perceber o movimento com que o autor transita por um determinado universo até que esse universo começa a se mostrar. Atente-se à rubrica final, quando se aponta que uma das personagens terá o ator que a interpreta substituído por outro, apontando algo também sobre a lógica que está aos poucos vindo à tona no texto e que, em trabalho posterior, tratar-se-ia de trazer ainda mais à tona, fazer brotar, ou vir à luz – nas palavras de Schelling.

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vânio

Era Tobb? O cachorro de vocês era o Tobb? É. cindi Era o Tobb. vânio Ele morreu? glaucio É, pode-se dizer que sim. marlo Oi, vô. cindi Filho, dá um beijo no seu avô. marlo Não enche, mãe. vânio Deixa o menino. glaucio Você não pode falar assim com sua mãe. vânio Deixa o menino. É a idade. marlo É xinxim de galinha? glaucio É, é xinxim de galinha. cindi Ele adora xinxim de galinha, pai. Ele chega a lamber o prato, você precisa de ver. glaucio Não fale assim com sua mãe nunca mais, coração. marlo Cala boca, pai. vânio Você estava no computador? É muito bom isso de computador. Saber de computador. É importante. Para o futuro. Você estava namorando no computador? cindi Ele estava jogando, pai. Você estava jogando, né, coração? Conversa com seu avô, coração. marlo Eu vou pro meu quarto. glaucio Nós temos regras quando temos visita em casa, coração. Você sabe que temos regras, coração. Você sabe que não pode ir para o seu quarto. marlo Pai, não viaja. vânio Então você não estava namorando? marlo Não, eu fico jogando, eu jogo muito, eu jogo pra caralho, para mim é muito difícil parar de jogar. Eu não consigo olhar pros meus sentimentos, então eu fico jogando. vânio Você não tem namorada, filho? marlo [...] glaucio Ele gosta mais de… você sabe, ver uma coisa quente no computador. Ele faz tudo pelo computador, ele prefere o computador. Você sabe. Ele prefere descabelar o palhaço. cindi Não fale assim, coração. É muito feio falar assim. Não fala assim na frente do meu pai, coração. marlo Eu vou pro meu quarto. vânio E o Tobb? Do que o Tobb morreu? cindi Foi morte natural. De velhice. glaucio Nós matamos ele. cindi Ele latia muito, pai. glaucio Ele latia muito à noite. Ninguém conseguia dormir direito. Eu tinha que trabalhar no outro dia cedo, eu não estava aguentando mais. cindi O Glaucio tinha que trabalhar cedo, pai. marlo Eu sinto falta dele. Eu vou pro meu quarto. vânio Ele parece abatido. O menino está abatido. Façam uma gemada para ele. cindi Ah, mas ele tá bem, ele é assim mesmo. glaucio

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glaucio marlo

cindi

glaucio

cindi marlo glaucio

É, ele é assim mesmo. Eu nunca fico triste. Eu fico puto. Eu fico bem puto. Puto, mesmo. Eu fico putão. Lidem com isso. Eu gosto da zoeira, eu sou bem zoeirão com meus amigos. Nós gostamos de mitar, nós somos lacradores na internet. Thug life. Lidem com isso. Eu tenho raiva. Eu tenho raiva de você, pai. Você nunca bateu em mim. Bate em mim, porra. Eu já pedi várias vezes pra você bater em mim, pai. Porra. Isso filho, vai brincar com seus colegas no quarto e qualquer coisa você chama a mamãe. Olha como ele fala bonito, pai. Não é uma graça? Ele me lembra você, pai. Ele costuma ficar por horas no banho. Ele chora muito no banho. É coisa da idade. Hormônios à flor da pele. Ele chora e descabela o palhaço. MARLO, VEM LAMBER ESSA PANELA COM XINXIM. Eu estou aqui, mãe. Não precisa gritar. Eu vou pro meu quarto. Ele está em fase de crescimento. Ele precisa se alimentar bem. Na minha época não tinha toda essa fartura, eu quero dar tudo pra ele. Tudo. Não quero que falte nada pra ele. Eu quero entuchar comida nele.

[...] vânio glaucio cindi glaucio cindi

E como vocês mataram o Tobb? Veneno de rato. É, veneno de rato. Não é tão apropriado, mas era o que tinha. Nós empalhamos ele. Está no meu quarto. Eu vou pegar o Tobb, pai.

Cindi vai até o quarto. Vânio vai até a geladeira. Abre a porta. Há um zunido que provém da geladeira. Vânio fica parado olhando para a geladeira aberta. Cindi retorna com o Tobb empalhado. Cindi o põe sobre a mesa. Glaucio o pega em seu colo e o acaricia. Marlo retorna à cena (em algum momento anterior ele havia saído de cena sem que ninguém percebesse). No entanto, agora, depois do retorno, um ator diferente interpreta Marlo. Mesmo figurino, porém o ator é diferente. Vânio retorna à mesa, deixando a porta da geladeira aberta. O ruído permanece em cena. Todos sentam-se para comer. (Murilo Franco)

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NOTA

Demorei muito para conseguir escrever esse texto, um tanto absorto que fiquei com os acontecimentos recentes da política brasileira. Assistir a tudo isso vindo à tona, na realidade, só me fez fortalecer ainda mais a minha crença na função da arte, que é justamente evitar que isso apareça na vida real. A cada fala que aponta na direção de que a arte deve ajudar a esconder esse tipo de impulso, esse tipo de impulso ganha mais força na realidade. A patrulha que pretende que a arte seja limpa, correta e esteja do “lado certo” só ajuda a fingir que essas forças não estão aí. Essa arte limpa, que fala as coisas certas, é um pouco como o nosso mundo de Facebook. As coisas são como queremos que elas sejam. E aí, é um grande susto, uma sensação de desespero quando brota na nossa cara tudo aquilo que achávamos que tínhamos superado, e que ajudamos tanto a superar com a nossa arte. Aquilo já estava lá e todo o nosso esforço para esquecer daquilo não o fez desaparecer, antes, fez com que ganhasse mais e mais força nos subsolos, nos grupos de Whatsapp, nas suas outras bolhas, onde não entrávamos, porque estávamos preocupados demais em manter-nos limpos. Mas nós não somos o que queremos ser apenas. Esse mundo aí também é nosso. O país que está elegendo o Bolsonaro também é o nosso país. Não estou dizendo que o Bolsonaro é culpa da esquerda. Eu não acho isso. Mas acho que a barbárie que ainda funda a sociedade brasileira precisa ser reconhecida como nossa também. Não há como ser livre em um país que não é livre. Não há como não ser autoritário em um país que o é, em todos os seus mínimos vínculos sociais. É preciso lidar com os nossos próprios fantasmas, porque senão eles ficam assustadores demais, quando aparecem do lado de fora. Existe uma ideia que Walter Benjamin já utilizou, que as energias sociais de que o nazismo se utiliza são as mesmas que poderiam ser utilizadas para a esquerda. Como também diz Freud, o que é recalcado não é necessariamente, em si mesmo, na sua origem, ruim. No entanto, quando retornam, aqueles impulsos se tornam violentos. Cabe à arte não o papel de recalcar ainda mais, e sim de abrir espaço para que os impulsos apareçam, se movam, se desloquem – para que não explodam depois, aí sim, de forma necessariamente violenta.

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PALAVRAS FALADAS, E COMPARTILHADAS URGÊNCIA —

JÉ OLIVEIRA

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OUVIDAS COMO 45

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A

tendendo ao convite do Sesc, desenvolvi com uma turma de 15 pessoas, em sua maioria mulheres negras, estudantes de teatro, uma oficina de escrita, escuta e reflexão acerca, sobretudo, da potência e lugar da palavra falada e cantada em experiências recentes do nosso passado teatral brasileiro: desde as empenhadas pelo CPC da UNE entre 1962 e 1964, o Show Opinião (1964), Arena conta Zumbi (1965), Calabar (1973) e Gota d’água (1976), até obras contemporâneas de grupos e artistas que estão tentando responder as questões políticas de agora, mesmo que a grande maioria delas ainda sejam as mesmas, por assim dizer e parafraseando Roberto Schwarz: “Nosso passado que não passa”. Na intenção de compreender e identificar recursos utilizados nessas produções, ouvimos trechos dos textos e canções das obras, que ganharam vida e força próprias para além das peças onde foram concebidas. Seguem alguns exemplos do material analisado: “Carcará”, do Show Opinião, na voz de Nara Leão: nos debruçamos sobre a letra e o modo como foi cantada em diálogo com o arranjo; é possível identificar, sobretudo no ápice da canção, uma urgência e uma visceralidade condizentes com o contexto político repressivo da ditadura civil-militar e a tentativa e materialização de um revide cênico. Já em “Upa, Neguinho”, do repertório do Arena conta Zumbi, e em “Tatuagem”, de Calabar, é a delicadeza que toma o centro da ação como suporte da metáfora da resistência feita pelo Teatro de Arena e na exposição dialética, reflexão e celebração da trajetória do protagonista

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ausente nesta obra de Chico Buarque em parceria com Ruy Guerra. Em Gota d’água, de Paulo Pontes e Chico, ouvimos e analisamos a canção homônima e trechos do texto da peça na voz de Bibi Ferreira, de modo que identificamos, pela maneira como as palavras são pronunciadas e pelo contexto de resistência evocado na obra, o quanto essa canção, especificamente, e a peça, de modo geral, concretizam metaforicamente, por meio de uma traição conjugal, a situação precária e limite em que se encontra o povo brasileiro. Daí o que se segue, com os versos: “Qualquer desatenção, faça não, pode ser a gota d’água”. Em paralelo, na intenção de reforçar o entendimento e provocar reflexão com base nos modos e utilização das palavras faladas e cantadas, lemos a primeira parte, sobre teoria dos gêneros, de O teatro épico, de Anatol Rosenfeld, e o “Narrador”, de Walter Benjamin. Neste último, nos interessava também, para além da reflexão acerca da narrativa, a relação estabelecida pelo narrador com a morte: na parte 11 do texto, o autor diz que “a morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias remetem à história natural”. Com base nessa informação, tracei um paralelo com duas versões de uma mesma canção de Gilberto Gil, “Não tenho medo da morte”. A primeira versão é de 2007, do disco Banda larga cordel, e a outra é de 2015, do disco Dois amigos, um século de música (ao vivo). Chamei a atenção para o modo como são cantadas e o diálogo com o arranjo em cada uma das versões, atentando para a diferença e adensamento da dramaturgia musical na relação com a morte e sua autoridade, nos termos benjaminianos, percebida na versão mais recente, e elocubramos acerca de possíveis motivos pessoais que levaram o autor a modificar radicalmente a dramaturgia musical de uma versão para outra, como os problemas de saúde enfrentados por Gil ao longo do ano antes da gravação da última versão, toda a simbologia real configurando também o adensamento do material artístico e sua dramaturgia musical.

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NÃO É MAIS POSSÍVEL PARA UMA CRIAÇÃO ARTÍSTICA NÃO SE DEBRUÇAR SOBRE DEMANDAS SOCIAIS, MESMO QUE ESSAS NÃO ESTEJAM NO PRIMEIRO PLANO DA CRIAÇÃO Fizemos o mesmo tipo de análise com as canções “Homem na estrada” (1994), do álbum Raio X do Brasil, e “Diário de um detento” (1997), do disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, onde é possível encontrar inúmeras características identificadas por Benjamin como presentes nos grandes narradores, a saber: a característica utilitária das boas narrativas e a capacidade de dar conselhos, “aí moleque me diz, então cê quer o quê? A vaga tá esperando você”, encontrada em “Diário de um detento”, e “Quero que meu filho nem se lembre daqui, tenha uma vida segura, não quero que ele cresça com um oitão na cintura e uma PT na cabeça”, de “Homem na estrada”, para citar como exemplo de inúmeras outras passagens. Vale chamar a atenção ainda, em se tratando da obra dos Racionais, para a potência artística da criação poética, o modo como se narra e a relação cênica criada da junção com os arranjos e seu desenvolvimento. Com esse horizonte, tiramos um mote para as nossas criações: desenvolver a relação com a perda material, física ou simbólica. Uma vez que sou autoditada na escrita, em vez de dar uma aula me propus a compartilhar com as/os artistas da oficina preocupações artísticas que nos últimos dez anos estão me norteando e sendo por mim perseguidas na criação, com especial atenção para o trato com a palavra falada e cantada e as questões raciais e suas implicações sociais, bem como para as

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traduções e/ou ausências desse debate nas artes cênicas, o racismo e possíveis modos de tratar disso em cena por meio de dramaturgias, dramaturgias musicais, poesia, canções e cenas. Em paralelo, discutimos e tratamos de alguns conceitos sociológicos presentes nas criações contemporâneas, a saber: raça, gênero, etnia, discriminação, racismo, machismo, feminismo etc. A turma que frequentou os encontros proporcionou debates bastante ricos acerca dessas questões e reflexões, uma vez que a maioria já possuía pesquisas e conteúdos assimilados sobre alguns aspectos dessas problemáticas sociais. Alguns dos textos criados com as provocações da oficina revelam um pouco dessa potência e podem ser lidos a seguir. Me parece certo afirmar que não seja mais possível para uma criação artística não se debruçar minimamente e de modo responsável sobre tais demandas sociais, mesmo que essas não estejam no primeiro plano da criação. Em outras palavras, nos é solicitado também, pelo tempo presente, para a criação artística teatral, sobretudo a dramatúrgica, outros comprometimentos e conhecimentos, e para além das sistematizações aristotélicas ou brechtianas, se quisermos entender e modificar o nosso tempo presente. Como resumo e conclusão parcial, vale ressaltar que os encontros se debruçaram sobre as seguintes questões e tentaram, mesmo que com respostas temporárias,

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enfrentá-las: quais dispositivos podem ser fomentados para a criação de uma dramaturgia musical? (Veja, uso o termo “dramaturgia musical” e não “Music Hall”, ou o termo abrasileirado “musical”, que vem ganhando uma fatia de mercado cada vez maior, com direito a curso específico de qualificação de mão de obra para o gênero e seus enlatados norte-americanos.) Do que é possível se alimentar subjetivamente para criar? Por que a palavra falada e cantada, após o fim do golpe civil-militar de 1968, voltou para a cena mais frágil, mais fraca? Retornou mesmo mais anêmica? Qual o percurso interrompido? Onde poderia ter chegado? Existe retomada, reconfiguração? A MPB ainda nos serve, como serviu a Arena conta Zumbi, Calabar ou Gota d’água? O rap é MPB? O que o rap dos Racionais MCs tem a nos ensinar sobre Brecht ou Benjamin, dramaturgia ou teatro? Essas foram algumas das provocações em que me empenhei para que debatêssemos em sala de criação, para podermos ampliar e fortalecer nossos repertórios e condições de criação, relembrando e trazendo mais uma vez para o centro da cena a palavra falada e escrita como urgência e potência de vida!

NOTA #3 Maíra do Nascimento

[SEM TÍTULO] Luisa Caetano A quantidade de urubus que sobrevoam essa cidade e do que se alimentam, se é da espera. – São Paulo é uma cidade [...] suicida, Uma cidade que vive todo dia pronta, preparando sua morte; nunca mais perto de. Verve. A escritura de vertigem, essa não encontra altura no Plano [Piloto], que permite e pede – por ser sempre – pausa. O que tem nesse ar parado que seca as toalhas e os tesões? Pausa Pouso. Senhores passageiros, o que é decolagem?

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tinha uma mulher aqui e ela era negra mas ela desapareceu tinha uma mulher aqui bem aqui mas ela desapareceu tinha eu juro uma mulher bem aqui era negra estava aqui bem aqui mas ela desapareceu tinha uma mulher era qual mulher? tinha uma mas era qualquer mulher? de que cor era a mulher tinha uma negra aqui e era mulher mas uma mulher tinha qualquer negra uma mulher é uma mulher? tinha sim uma mulher uma negra uma de nós quem matou?

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A VOZ — OLHAR SOBRE A MORTE, DA MENINA NETA Roberta Ninin Eu vi. A morte estampada na cara dele. E ele, que vivo não mais via, parecia, agora, ver. Olhos fechados. Pela última vez, arrumado para dormir. Estava sorrindo? “Mo – na – li – sa – mente” Indistinta expressão aos olhos dos vivos. “Acorda, não o quero morrido”, ela disse. Mais triste seria se não fosse, ela, doce. A voz. Inalada pelas margaridas coroadas. Tão viva quanto a vontade de sair correndo. A voz. Velhos e novos, murmurinhos: “Qué mais cafezim? Como estão... Num mexe aí, menino!” Foi tarde. Amanhecido pelas recordações. De quando festivo nos recebia em seus braços. Acostumados a arrancar; Desde o mato a suspiros assustados, Com o facão a galope na garupa de lampião. Menino-moço, que de valente, Trouxe a filha do patrão Pra morar com ele mais três irmãos Num mesmo terreno, cada um na sua toca. Cova. “É pra ali que ele vai?” A voz. ...

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PÓS TETAS Erika Mader A fonte secou. Cabou. Nem um pinguinho. A divina dona, agora, sem tetas. Topless de macho. Yes she can. E a gente aí, cobrindo o biquinho. Vaca sem leite, nem lágrima. Nem um pinguinho. Nem de um, nem de outro. Lado A, lado B. Caíram na faca. Na foice. Foi-se. Foram-se. Nocaute. No chão. Os dois. Dois corpos. Dois peitos olhos me olhando. É, filha, bye, bye. Cabou colinho. Se vira, caçula. Cai não. Levanta, que agora é no chão. Segue o baile. Vai na tua. Ó o mundão que te espera. Abre o olho. Cai não. Levanta. Ó o mundão te encarando. Abre, acorda. E toma sal debaixo da língua. Acorda, levanta. Ó o mundão te encarando. Tá vendo? Ó o mundão te odiando. Ó o mundão te amando. Ó o mundão te encarando. Ó, tá vendo? Abre o olho. Fecha não. Ó, tá aí. Não queria? Tá tudo aí. Tudo. O mundo todo. Desmaia não. Acorda. Olha. Tem tudo. Vomita não. Olha. Acorda. Olha. Ó o bando de vaca te encarando, o bando de corno, de punk. De Paris, Nova York, Barcelona e Bahia. Tá tudo aí. Tudo aí, ó, que mundão. Ó, tem Picasso. E pica pra tudo que é gosto. Quer pica? Tá cheio de pica. Grossa, fina, grande, escrota. Levanta, menina. Chora não. Aguenta. Aguenta a pica. Aguenta o mundo, que é pica grande. Chora não. Acorda. Levanta. Quer tapa na cara? Toma tapa na cara. Ei, abre o olho. Levanta. Se cair, leva outro. Acorda. Ei, menina. Tá tudo bem? Ei. Ó a vida aí, garota. Tropeça não. Toda a vida aí, ó, na tua frente. Tudinho: mundo, pica, vida. Desmaia não. Ei, olha pra frente. Pra frente. Tá olhando pra onde? Ei, pirralha. Acorda. Olha pra frente, garota. Tá ouvindo, não? Acorda. Filha, acorda. Tá tudo bem? Cadê você? Filha? Abre o olho. Fala comigo! Mãe?

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EM FRICÇÃO 60

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A

imponderabilidade do encontro era o risco a ser assumido nos três ateliês de contato propostos na programação de junho das Dramaturgias. Durante três horas, dois dramaturgos receberiam os inscritos na atividade para a criação de um texto teatral em conjunto, diante dos olhos e com intervenção do público. Um terceiro dramaturgo, observador-participante, foi designado para produzir um relato sobre cada ateliê. Vinicius Calderoni e Jô Bilac prepararam uma provocação para os participantes: a dramaturgia está em todos os cantos? Paula Autran, também dramaturga e relatora desse encontro, foi quem se viu desafiada pelas circunstâncias: Jô não conseguiu chegar a São Paulo e ela assumiu o posto de titular, o que reconfigurou o ateliê. “Eu não sabia ao certo o que faria, mas quem é da escrita é do improviso, e lá fui eu”, conta Paula. Seu olhar sensível para a experiência do contato, do encontro em público de dois artistas que não se conhecem, não deixa de notar a “ausência potente e criativa de Jô Bilac”. A partilha de materiais de pesquisa e de processos criativos das peças Agreste e Aroeira norteou o ateliê que reuniu Newton Moreno e Rudinei Borges, cujos trabalhos já eram conhecidos por parte dos inscritos. Os pontos temáticos e formais que aproximam os dois textos geraram discussões em que a presença da dramaturga Ave Terrena Alves, relatora do ateliê, se revelou fundamental. “Conversamos sobre como a linguagem é um jeito de desmontar e reinventar nossas existências pro mundo. [...] Também situei a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, pra garantir que todes estivessem caminhando juntes no debate. Tem muitos mundos diferentes reunidos numa mesma sala”, ela escreve. O seu relato abandona o tom de registro para analisar, de modo informado e refinado, a construção das peças de Moreno e Borges e seus pontos de contato, apontando para a violência que brota como reação à exposição de corpos e afetividades fora da norma. Uma intervenção extraordinária dos participantes do terceiro ateliê foi definidora para a dinâmica estabelecida entre Aldri Anunciação e Maria Shu: nenhum dos três inscritos compareceu ao encontro. Tal situação de exceção movimentou os dramaturgos na direção de uma narrativa absurda sobre esperas e desencontros, que reverbera questionamentos em torno do que seria o comum, o padrão. Jhonny Salaberg, convidado a relatar o encontro, soma-se aos colegas na escrita do texto e aqui, em seu registro do ateliê, acrescenta mais uma dobra de dramaturgia revelando a espera primeira, em uma sexta-feira de junho. “Nós, três dramaturgxs negrxs dentro de uma sala, propondo uma atividade dinâmica sobre a escrita, que hoje parece que será recebida pelas paredes e pelos pincéis.”

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TÚNEL —

PAULA AUTRAN

BATALHA 62

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E

como tantas histórias, esta começa com um telefonema inesperado, em cima da hora. Eu me preparava para participar de uma forma um tanto à margem, um tanto off, da programação das Dramaturgias: eu seria a relatora de um ateliê que colocaria em contato dois dramaturgos-sensação da nova geração, Vinicius Calderoni e Jô Bilac. Eu deveria nada falar, mas observar e depois registrar o que se passaria por lá. O telefonema em questão me chamava para tomar o protagonismo da cena. Um contratempo prendera um dos dramaturgos em sua cidade natal e ele não conseguiria vir. Eu não sabia ao certo o que faria, mas quem é da escrita é do improviso, e lá fui eu. Encontrei Vinicius e brevemente conversamos. Nos víamos pela primeira vez, ali, na cafeteria, que naquele momento se assemelhava a uma espécie de “ilha da fantasia” dos dramaturgos nacionais. Sem muito tempo, ele me olhou, não sei se me viu. Já tinha conversado com Jô, tinham tido ideias, e ele as trouxera consigo. Eu segui a seu lado. Os inscritos chegam — entre eles, minha querida professora Silvana Garcia. Mais responsabilidade, e um certo nervosismo. Vinicius começa a falar, como combinado: “Então, acho que seria bacana começarmos com uma frase: ‘Toda batalha está perdida’ . Tenho medo do formato tradicional das peças teatrais, com seus balaústres e descrições de espaços, tipo certo de descrever os personagens, suas idades, suas características.” Eu escuto, eu tento tatear o que fazer ali. Percebo, tateante, que só posso começar dizendo o oposto daquilo dito por Vinicius. “Começo a falar como o outro, ou, de fato, a outra. Desse lugar do outro (da outra), digo que, opostamente, tenho medo do avesso do que você descreveu: a impossibilidade de o texto ser visto como um gênero literário — que de fato é —, a impossibilidade de se pensar esse lugar que ele ocupa, a impossibilidade de que o texto seja algo a partir do qual a peça explode, nasce, se choca com o mundo.” Seus grandes olhos azuis me olharam com mais vagar pela primeira vez. Ele me viu ali. Agora, sim, começamos a tatear um contato. Ele, inteligente, clareia mais sua ideia inicial. Diz que é um autor que preza a escrita, o texto e seus meandros, mas que gosta de pensar em proposições iniciais livres, sem ter que se ater a certas regras preestabelecidas. Apenas isso. Estabelecemos um contato mais horizontal. Como podem tatear um contato em público duas pessoas que nunca se viram, e que escrevem? Pensamos o óbvio: escrevendo. Vinicius propõe que pensemos em algumas premissas para escrevermos cenas e vermos de que modo aquilo prossegue. Fazemos isso. Ele começa, eu continuo, alguns dos presentes colaboram. A ideia inicial fica assim:

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PREMISSAS LOCAL Campo de batalha em São Paulo, capital 1 Um comandante olhando para as “baixas” dentro de um campo de batalha. Uma “baixa” olhando o comandante. 2 Um arrastão dentro do túnel. Um dos meninos que promoveram o arrastão. No meio do túnel. Do arrastão. No meio. Do túnel.

O pessoal que veio participar do ateliê se anima e dá algumas ideias de premissas também: igor

Uma das “baixas” é um dos meninos envolvidos no arrastão. eline Há uma mãe que está com um bebê recém-nascido dentro de um carro. (Ela não consegue tirá-lo da cadeirinha) erickson Uma gaiola destrancada. A fera está do lado de fora.

A partir dessas premissas, Vinicius leva suas ideias para a mesa onde havia um computador e começa uma cena. Eu fiquei a conversar com os presentes sobre minhas ideias acerca do texto teatral, buriladas nos últimos quinze anos em pesquisa e prática da dramaturgia, em aulas, na escrita. Ele escreve, eu converso com o pessoal atento que ali está. Falamos sobre como “nascem” os textos. Para mim não existe uma forma certa ou mais apropriada de iniciar um texto teatral, há quem faça um canovaccio (espécie de “mapa” prévio do que se vai escrever) e há quem, como eu, deixe vir o que for: uma imagem, uma ideia, uma palavra. Vinicius, com certa dificuldade de dividir algo que acabou de escrever, levanta, e juntos lemos a parte que escreveu: Começar pelo fim: terra arrasada depois da batalha. Contar os mortos é um gesto humano feito por pessoas vivas.

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Os números se sucedem, numa sequência tediosa. Trinta e dois… Trinta e três… Trinta e… ESSE TÁ COM PULSO! MACA! Trinta e quatro… Trinta e cinco… Trinta e cinco: Joel Couto. Vinte e três anos. O pai tinha um antiquário. Gostava de sorvete de baunilha. Tinha uma perna ligeiramente mais comprida que a outra. Arroz por baixo, feijão por cima. No bolso, uma carta de amor recebida de um colega de batalhão. Um projétil no peito, um no pescoço, um na perna esquerda. Trinta e seis… Trinta e sete…

Aquilo nos instiga. Conversamos sobre personagens: como nascem, como desenvolver suas características, suas marcas únicas no mundo. E então sou eu que sento para escrever. Ele conversa, eu escrevo. (Ação que, ali, se torna uma outra forma de conversar). Penso no que ficou para mim do que foi escrito por Vinicius. Os números pulam à minha frente, prossigo por aí. Começo de onde ele parou, 37. E continuo. Levanto, com certa dificuldade em dividir algo que acabei de escrever. Vamos lá. Lemos o que eu escrevi: 38. 17:38. (A hora exata marcada no relógio do carro de Márcia, que olha para o esmalte que acaba de ser riscado no contato com o metal da cadeirinha onde sua filha dorme tranquilamente.) Tinha hora na manicure. Como posso pensar nisso agora? Aurora… a cor do esmalte, fúcsia, que eu tanto gosto… Aurora, Aurora (Fala cada vez mais alto, as lágrimas misturadas à voz abafada cada vez mais pelo buzinaço cujo volume aumenta a cada segundo.) Aurora, acorda, filha, acorda… Melhor pensar no esmalte, nessa cor de nome estrambótico: fúcsia... do que tentar abrir essa droga de trava de segurança dessa cadeirinha absurda. Culpa sua, idiota, a mais cara, a mais segura. Segura para quem? Aurora, acorda, filha…

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39. 17:39. (A hora exata marcada no celular de Marcinho, quando esse mesmo celular é estilhaçado por uma bala.) Não acredito. Pelo menos não pegou na minha mão. Que merda é essa? (Marcinho vira a sua mão e vê o sangue que escorre com o plástico negro, estilhaços do que já não era seu celular.) Que merda é essa? (Sente a dor lancinante, vê o sangue que escorre por todo o seu corpo, rosto, suas mãos, seu cabelo... Cai o celular, em seguida cai a arma que levava em sua mão esquerda. Canhoto. Caem ao mesmo tempo, Marcinho, sua arma e, ao final, seu celular.) 40. 17:40. Os sinos da praça da Sé batem antecipadamente.

Conversamos sobre o que escrevi. A questão do cenário, como o local no qual a cena se passa determina a ação. O ritmo, a respiração dos personagens. Então ele senta, escreve. Eu continuo a conversar. Pensamos na questão das imagens e como essa cena é imagética e remete os participantes ao cinema. Falo de como estamos habituados a pensar imagens como sendo “presas” do audiovisual, mas que o teatro é uma arte eminentemente imagética. Ele levanta. Lemos o que ele escreveu: Que porra de sino é essa? Por acaso isso virou a porra de uma igreja? Quarenta e um… quarenta e… nestor (Com a voz frágil) São… São Jorge... contador MACA! MAIS UM COM PULSO! (Para Nestor) Não se mexe, eles tão vindo te buscar… nestor O escudo e a espada de São Jorge… contador Não se mexe, guarda sua energia! MACA AQUI, PORRA! nestor ... fecha meu corpo e me guarda de todo mal… Porque toda bala que tentar te atingir não vai achar morada no teu corpo. De cada bomba que estourar, você vai escapar ileso. Olha pra mim, meu filho. Escuta tua mãe. Leva essa medalha e São Jorge vai estar contigo, e São Jorge vai estar em ti. contador Não tá falando coisa com coisa, dá morfina. nestor … Espadas e lanças não alcançarão meu corpo… 42. (O carro blindado deveria ser uma garantia de tranquilidade e placidez em horas de desespero, mas a oração vem, e quem é capaz de explicar isso?) ... Porque tu estás comigo, meu São Jorge. Porque tu estás em mim e eu sou portador de seu escudo. E eu sou… CARALHO! CALMA! NÃO, NÃO DÁ PRA SAIR, É BLINDADO!

Ele fica, e conversamos sobre a estrutura do texto dramatúrgico no papel. Sobre as rubricas. Querem saber como utilizamos a rubrica. Pensamos juntos, não há mal algum em usar rubricas, mas elas não dão conta do que o texto também não dá. Eu sento, escrevo, levanto. Lemos o que escrevi: 43. ele

Foram 43 anos me dedicando a esse projeto. Toda a porra da minha vida. E agora essa merda toda me impede de chegar lá a tempo. ela Exagerado…

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ele

Mesmo aqui, mesmo assim, você consegue me atacar… Eu não tô te atacando. Pelo contrário, nós é que estamos sendo atacados. ele Não. Sou eu que estou sendo atacado. E—U. MEU carro, meu tempo. EU! ela (Ri) ele Qual a graça agora? ela Sim, claro. Uma merda de um ataque em uma merda de um túnel na maior cidade da América Latina e tudo isso foi feito só para atrapalhar você de levar seu projeto a tempo… Típico isso. ele Típico? Aqui não tem nada de típico. Na—da. E essa merda de celular, caro que nem o olho da puta da minha cara, e não funciona. ela Claro, os caras iam fazer um apocalipse na cidade e deixar o sinal funcionando só para você não se atrasar, claro… ela

(Silêncio) ela

Você é um filho da puta de um escroto autorreferente, mas eu te amo, fazer o quê… Sabia que esse é um dos primeiros momentos em meses que ficamos só nós dois, sem celular, sem sinal, sem ninguém? ele Exagerada… ela Vem cá, vem, vamos aproveitar, já que não tem outra solução e essa porra de vidro é o mais blindado, o mais escuro, o mais seguro do mercado...

E assim terminamos esse texto fragmentário. O ator Victor Mendes entra na sala para cumprimentar Vinicius e é laçado para que leia a minha cena. Ele lê. Riem da cena. Ele se despede e sai. Eu adoro quando riem de um texto escrito por mim. É algo arrebatador. Conversamos sobre isso, o que proporciona o riso em uma cena, o que ele desloca. Como o inesperado nos dá razão para o riso. As três horas escorreram por nossos dedos, pelas teclas do computador, pelos cantos da sala. O tempo e as palavras, um encontro inesperado que gera um contato entre personagens que não se conheciam, e os vãos entre tudo isso. Os mesmos ingredientes de que é feita uma peça e (sim, sim) a vida, é claro. Nos despedimos, nos olhamos, nos reconhecemos; nossas palavras entrelaçadas, o contato feito, enfim. A ausência de Jô Bilac entre nós. (Não o conhecia, agora o conheço em sua ausência, e sim, mesmo ela é potente e cria palavras, teatro, contato, ação.) O título, é importante dizer, pusemos ao final, como tantas vezes acontece. Túnel de batalha. E, é necessário que eu diga, as palavras de Vinicius que aqui comento são aproximações daquilo que me lembro do que vivemos então. A memória é um tanto traiçoeira, mas as lembranças são também campos abertos ao diálogo. Que venham mais encontros sem que o acaso precise agir de maneira tão efetiva. Que tateemos mais a dramaturgia e suas infinitas possibilidades, até essa aqui feita de palavras e papel e, mesmo assim, não menos feita de sangue, carne e do que de fato importa: contato. E, não se esqueçam, propositalmente (ou não) deixamos a fera destrancada. Do lado de fora da gaiola, tic, tac, tic, tac...

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Pisando devagarinho pra não chegar com o pé na porta

AVE TERRENA ALVES

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aturas do real se sobrepondo à romantização e cristalização dos temas e das formas. A escrita de dramaturgia pode vir de uma indignação, do desejo de não morrer, da esperança. Ela pode ser um tipo de cura. Transformação. Nós trabalhamos com a corporificação das histórias, o mais difícil é escolher a perspectiva a partir da qual o texto se cria e se organiza. Escrita não é exílio, é fundamento de teatro: o chão onde se pisa. Em tempo de repressão, que já dura muito tempo, como se apoderar da língua pra subverter a tradição, desabreviar as existências, desvelar as narrativas ocultas da história oficial? Luís Alberto de Abreu abriu as Dramaturgias dizendo que, apesar de no século 20 dramaturgxs terem acreditado que eram escritorxs comuns, que podiam viver em suas torres escrevendo livros para diretores ou editoras, apesar disso não conseguimos deixar de ser os bichos e bixas de cena, vivendo no trabalho a coletividade do som e também a do silêncio, trocando afetos, críticas, risos e algumas tragédias. Neste momento de transformação acelerada das artes, seja qual for a forma, seja qual for o close, o fato é que a dramaturgia autoral não recuperou sua força por se isolar e por centralizar egoisticamente os procedimentos de criação e meios de produção do teatro; ao contrário, é porque estamos presentes no coro, no cotidiano da equipe, que nossas palavras se concretizam em força de vida, e não só num amontado de sons e sentidos. E é também por estarmos presentes que surgem conflitos e atritos etc. Mas sobre eles podemos falar depois. Uma proposta de exercício: imaginar uma mulher trans nua, correndo na caatinga. De onde ela vem, pra onde ela vai? A caatinga está seca? É dia ou noite? Ela está sozinha? Como é o corpo dessa mulher? Ela tem pelos? Onde? Tem peitos? Tem pau ou buceta? Vamos ter que ficar pra sempre falando sobre isso? Não dá pra fugir desse assunto? Precisa fugir desse assunto? Qual o limite entre a corporificação de uma história e a objetificação, fetichização, exotificação de uma narrativa, própria ou alheia? Daí pode vir uma peça, uma cena, uma atividade de sociologia? Idas e vindas do pensamento, hesitações, mil e uma barreiras que vamos nos impondo durante o processo criativo de expressão da escrita e também do gênero, caminhos veredas descaminhos labaredas que viram incêndio. As homoafetividades, as transgeneridades, elas têm quantas formas possíveis na dramaturgia? Todas as que existem e todas as que ainda der pra inventar.

Encontrei os dramaturgos Newton Moreno e Rudinei Borges em um sábado nublado de junho, com muita alegria mas também de coração na boca e fogo de cena, porque era dia de sessão dupla das 3 Uiaras de SP City e também haveria

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apresentações de dois textos do Rudinei em lugares diferentes da cidade, e do Newton também. Ou seja, estamos a pleno vapor. Coube a mim, nesse encontro, o papel de relatora. O papel e a deixa da paixão, que agora pouso aqui. Nos apresentamos ao público participante, e eles a nós. Algumas pessoas já conheciam o trabalho dos dois dramaturgos de outros tempos e também de outros estados do Brasil. Memórias compartilhadas, carinho pelos trabalhos. Algumas questões iniciais: como escrever uma peça sobre fist fucking? E sobre afeto entre pai e filho? Qual a diferença entre mulher trans e travesti (clássica)? Alguém diz que a travesti é quem recusa o próprio órgão genital. Sou obrigada a contextualizar um pouco o que é a disforia de gênero e como ela é imensamente variável em cada corpo, independente da genitália. A negação do próprio corpo não é uma regra e não nos define enquanto pessoas trans. Conversamos sobre quem ditou o entendimento de transgeneridade oficialmente até hoje — a medicina cisgênera — e também sobre como a linguagem é um jeito de desmontar e reinventar nossas existências pro mundo. Por isso nos autodenominamos transvestigêners. Também precisei situar rapidamente a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual, pra garantir que todes estivessem caminhando juntes no debate. Tem muitos mundos diferentes reunidos numa mesma sala. Retomamos enfim o assunto dos caminhos da criação teatral, e também o dos deslocamentos geográficos, migrações pelas diferentes regiões da cultura e do Brasil. A imensa diferença entre escrever um texto a convite de um grupo ou diretor que já tem uma pesquisa cênica própria e conceber esse projeto desde o início, vencendo as dúvidas poéticas e a falta de recursos financeiros. A diferença entre o grupo ter um espaço, fazer a temporada lá, ficar conversando com o público, comendo e bebendo depois da sessão, e vender a peça para uma instituição que tem seus modos próprios de funcionamento. Os vários graus de envolvimento que um

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dramaturgo ou dramaturga pode ter com a montagem de um texto seu. As várias faces do radicalismo, que se modifica de acordo com a época. As inquietações íntimas que motivam a escrita: como desenvolver a escuta de si mesmo? Quais ferramentas de escrita temos à disposição? Como entender quando é o momento de trazer alguma dessas inquietações a público? E daí pra mais, foram muitas as questões levantadas. Escolhemos dois textos pra ler alguns trechos, esmiuçar e, assim, aprofundar o entendimento do público sobre a pesquisa estética de cada dramaturgo: Agreste, de Newton Moreno, e Aroeira, de Rudinei Borges. Ambos são narrativas sobre afetividade e suas implicações sociais no espaço do sertão nordestino. As faturas do real na caatinga, região de seca. Não abreviar uma experiência humana à rudeza é o princípio dessas dramaturgias — sendo que ambas relatam um caso de violência extrema contra corpos e afetividades desviantes da norma. Agreste versa sobre um casamento de vinte e dois anos entre um homem trans e uma mulher cisgênera, e Aroeira, sobre a relação afetiva entre um vaqueiro e seu filho, no Rio Grande do Norte. Levantaram-se muitas questões sobre as características de cada texto e, como relatora, fiz um comentário sobre a leitura comparada das duas peças. Isso ocupou uma parte do encontro criativo entre Newton e Rudinei, do encontro deles comigo e do de nós três com o público. Para ser uma relatora fiel ao ocorrido, peço então a licença de vocês para fazer a linha “travesti estudiosa de teoria literária e literatura comparada”.

Descrevi Agreste como uma peça sobre um casamento, mas foi pra não chegar já com o pé na porta. Na prática, a narrativa trata de um atentado coletivo da população de um arraial, no sertão nordestino, contra uma viúva, que é trancada dentro da própria casa com o cadáver do marido e queimada viva. O motivo para tanto, e também a grande

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menos se tivesse me chamado antes, nós virada na ação da peça, é que, quando teríamos feito de outro jeito. Ninguém as vizinhas despem o corpo do marido, tomaria conhecimento, minha filha. descobrem que ele não tem um pênis e que Já enterrei gente que nem você e ela... os seios são tetas. Da maneira como a peça Etevaldo. Gente que morreu fazendo está escrita, não dá pra saber precisamente menos barulho”. Daí se compreende que se Etevaldo é um homem intersexo, a sociedade é assumidamente hipócrita e de genitália ambígua, ou se é um homem que a norma é uma ficção insustentável, que transgênero, que nasceu com buceta e por isso mesmo precisa ser constantemente viveu a vida inteira sem que a sociedade reafirmada. O problema é fazer barulho. duvidasse de sua identidade masculina. A fala da Velhinha no texto é: “Menino, O problema é sair da invisibilidade, reivindicar a própria humanidade e o direito isso parece uma quirica”. de viver dignamente e morrer como qualquer De um jeito ou de outro, é uma pessoa que outra pessoa. Em Agreste, o caso nem existiu socialmente como homem “da mais sequer é de uma reivindicação consciente, alta estima”, “pareia de anjo”, “elegante politizada, mas ainda assim, entendendo como Jesus”, “íntegro como uma rocha” — conforme o chamam as personagens — e que, a perda e mais nada, a viúva assume o partido da humanidade de Etevaldo, frente no momento do enterro, tem sua história à convulsão assassina do arraial onde inteira deslegitimada por não apresentar a vivia havia mais de vinte anos, corajosa e genitália que se esperava, segundo o padrão tragicamente resistindo até sua morte. binário normativo hegemônico. A partir daí ele vira o “belzebu”, “sem Ela recebe a notícia de que o coronel da vergonha”, “mulesta da peste”, “herege”. região proibiu que Etevaldo fosse sepultado E sua companheira de vida é quem paga a em suas terras, devendo-se carregá-lo pro conta do ódio, sozinha. A viúva, local onde se enterravam as prostitutas. segundo o texto da peça, não consegue O delegado ameaça a viúva de ser estuprada entender muito bem o que acontece, pelos “machos de verdade” na cadeia, no porque nunca tinha visto o corpo do dia seguinte ao enterro, quando fosse marido despido, já que eles transavam só presa. Diante da concretude daquele corpo de luz apagada. Ela não sabia o que era dissidente, diante da memória viva que corpo de homem e corpo de mulher para a significava a viúva para o arraial, as pessoas norma, mas, dentro da sua casa, conhecia desenterram a pior parte de si, enterram intimamente o homem que era Etevaldo, a viúva dentro da própria casa, pra depois independente do órgão genital. Até o final, atear fogo e destruir a possibilidade de ela segue respeitando sua identidade de existência dessa história, como se ela fosse gênero, brigando com quem o chama de uma ameaça pra sociedade. “fêmea” ou o trata no feminino. Ela segue afirmando o seu amor e respeito à memória do ser humano com quem foi casada, e parece que é isso que mais incita A narratividade de Agreste se assenta a multidão ao extermínio. Agreste deixa numa caracterização bem definida: uma sensação de tragédia no final, uma “Um exercício de narrativa para um mistura de terror e piedade, mesmo, que é ator-contador (atriz)”, sendo que o o que muitas vezes a cisgeneridade parece narrador é um “velho(a) contador(a) de sentir pelas pessoas trans. histórias, daqueles que reúnem um grupo ao redor de uma fogueira ou embaixo O padre diz para a viúva que a desgraça de uma árvore com uma viola/   sanfona podia ter sido evitada, se ela tivesse avisado [...] É o grande condutor da cena”. Esse antes. Pelo seu alerta, pode-se entender narrador pode assumir as personagens que o caso de Etevaldo não era o primeiro da história (padre, delegado, viúva) ou e que os demais ficaram invisíveis: “Pelo

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CORPOS E AFETIVIDADES FORA DA NORMA GERAM REFLEXÕES E CONFLITOS NA SOCIEDADE, PROVOCANDO, NESSAS DUAS PEÇAS, MANIFESTAÇÕES DE ÓDIO QUE LEVAM À MORTE dispor de outros atores para criar partituras físicas. As rubricas indicam que o espetáculo será feito da união de duas linguagens: a oralidade e a dança-teatro. Há momentos em que a música domina a cena e a dramaturgia registra as sinalizações de movimento: “Música. Os atores que representam o casal estudam o buraco, cada um a seu lado. Tempo”. É o início da peça, quando o estigma da transexualidade não é uma questão posta; o começo do texto traz cenas líricas, que tratam do amor e da sobrevivência na aridez do sertão. O tom de ódio só se explicita quando entram os personagens de fora da convivência do casal e começam os diálogos. Uma das grandes diferenças entre Agreste e Aroeira é a presença ou ausência de diálogos marcados e personagens definidas.

Rudinei Borges indica, no prólogo de Aroeira, que o narrador é um vaqueiro de Carapebas, no Rio Grande do Norte, e que toda a narrativa é pontuada por aboios. O narrador não se define unicamente nem como voz narrativa do pai vaqueiro, nem do filho, firmando-se com alto grau de lirismo, repetições de imagens poéticas, frases, palavras, tempos verbais e também dos aboios. As repetições, ainda segundo o prólogo são uma espécie de acalanto, ou ladainha, ou mantra, que acalma os fantasmas do narrador e reaviva sua força na trajetória. O narrador dessa poesia narrativa é diferente do de Agreste, pois os padrões do ser masculino no sertão constituem intrinsecamente a forma literária do texto, que é meticulosamente trabalhado na repetição de frases curtas em ordem direta. Uma sintaxe cortante que traduz o impedimento de manifestar afeto, característica do machismo que demarca o comportamento de muitos homens na cultura brasileira. Numa das passagens, o narrador desvela um dos conflitos internos do menino: enquanto o pai deseja que ele se encaminhe para os estudos, sua vontade é ir com os outros vaqueiros buscar as cabras e o gado, cavalgar nos cafundós de Carapebas. Ele pensa: “toda sabedoria de livro é pouca. [...] toda aritmética é miúda [...] toda ciência é cisco”. A verdade estaria na materialidade

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da sobrevivência na seca. O sustento do almoço e da janta é a carne-seca, sendo que a qualidade da secura também é associada à carne do corpo do menino, e também aos seus afetos: “... e das mãos do pai vinha o alimento sobre a mesa. o almoço e a janta: a carne seca que punha em pé o menino”. Esse tipo de formulação metafórica e sintaxe ambígua é característica da voz narrativa de Aroeira. As imagens do corpo e do ambiente são valorizadas no lugar dos saberes racionais clássicos da gramática, aritmética, ciência. Essa voz narrativa percorre lembranças da história entre pai e filho, numa busca de sentido para a morte violenta que finaliza a peça. Identificando-se com animais e árvores da caatinga, a consciência do filho é trazida à cena pela associação entre o florescimento da aroeira na época de chuva e o ciclo das suas emoções e esperanças: “era um contentamento passageiro. Depois vinha a seca e a tristeza de sempre”. O desejo pelo afeto e carinho do pai — e também pelo contato com o seu corpo nu — culmina na cena final, em que o filho, bêbado, cuida do pai, também bêbado, tira suas roupas, coloca ele pra dormir, beija ele no rosto, e eles enfim dormem abraçados. Acordado a golpes de facão do pai, que o mata, a última coisa que o filho vê são as folhas verdes da caatinga. Morre no instante passageiro de contentamento.

Assim como Agreste, o texto de Aroeira tem um desfecho de agressividade extrema, encerrando uma trajetória de ruptura do silenciamento. Corpos e afetividades fora da norma geram reflexões e conflitos na sociedade, provocando, no caso dessas duas peças de teatro, manifestações de ódio que levam personagens à morte. A violência da sociedade, executada por indivíduos de convivência próxima das vítimas, acaba se sobrepondo ao vislumbre passageiro de concretude do desejo e do reconhecimento do próprio corpo.

Ao analisar essas peças junto com o público do ateliê, estabelecemos um canal de diálogo pra refletir coletivamente sobre aspectos técnicos de escrita que se destacam em cada uma delas e também pra debater sobre corpos e afetividades dissidentes. Trazendo a interseccionalidade para o âmbito da prática, e chamando atenção pra importância da representatividade trans no atual momento histórico, destacaram-se as interlocuções entre homoafetividades, transgeneridades e regionalismos na cultura do nosso país. Não conseguiremos tomar de volta as narrativas espoliadas da nossa história se não fortalecermos os locais de diálogo, intersecção e vínculo entre nossas subalternidades. Nessa estrada, precisamos também saber quem nos antecedeu e valorizar as ações artísticas que abriram precedente pra que assumíssemos o direito de fala.

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OS —

JHONNY SALABERG

INCOMUNS 74

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J

ou talvez adaptar algumas que já existem. Existem títulos ótimos. jhonny

á nos primeiros minutos de conversa, a troca de olhares estava estabelecida. Troca de livros e presentes. Sorrisos que só. Parece até festa de Natal quando as tias do interior decidem vir para a capital, visto que isso acontece uma vez na vida e outra na morte. Sorrisos e presentes: “Mas e aí, como é que anda?”. Bem! Até demais. E foi assim até que os minutos começaram a ser confundidos com horas e talvez dias, em uma sala com balcões de madeira, jornais e pincéis coloridos. Aldri disse que tinha trazido o computador para mostrar alguns vídeos, pediu televisão e tudo. Minutos passam. Maria Shu e seus olhos vazantes não paravam de testemunhar cada canto da sala como se fossem uma câmera dessas bem pequenas, que em época de chuva desfoca. Muita água nos olhos, ela disse. Minutos passam. Fico observando e tentando entender por que os minutos nessa sala parecem horas. Minutos passam. Cadernos abertos, apresentações rápidas e espontâneas. Jhonny Salaberg, Maria Shu e Aldri Anunciação. Guaianases, extremo leste de São Paulo; Pico do Jaraguá, extremo noroeste de São Paulo; Salvador, Bahia. maria jhonny

Será que não vem ninguém? Acho que não.

Minutos passam, passam, passam... Aldri pede folhas brancas. maria aldri maria

É sulfite que você quer? Isso, folhas brancas! A4! Sulfite, ele quer sulfite!

Histórias. Discursos. Processo de observação em situações incomuns. O que é ser incomum? Parece que essa situação é incomum. Poderíamos escrever uma peça sobre isso

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Aquele seu texto, Maria, “Peça para quem não veio”, é ideal para este momento.

Maria concorda e diz que “peça” tem dois significados: peça de teatro e peça do verbo “pedir”. Sorri com os olhos vazantes. Aldri diz que poderíamos chamar o texto de “Os Incomuns”. E nisso foram os minutos, as horas, os segundos, os olhares, as canetas e as folhas brancas. A4! Sulfite, ele quer sulfite! Nós, três dramaturgxs negrxs dentro de uma sala, propondo uma atividade sobre a escrita, que hoje parece que será recebida pelas paredes e pelos pincéis. maria

Qual é o nome deles? aldri Deles quem? maria As pessoas que viriam? aldri Tá aqui na ficha: Ueliton, Camila e Daniel. maria Ueliton... Conheço esse nome, escrito assim desse jeito. aldri Incomum até no nome. Acho que é um bom nome, “Os Incomuns”. jhonny Poderíamos chamar também de “Três dramaturgos à espera de três personagens”.

Minutos passam. maria aldri

Mas, espera aí, essa é a dramaturgia, não é? Sim, estamos aqui esperando pessoas que não sabemos se existem, como existem, como são. A única coisa que sabemos são supostos nomes. Não sabemos se gostam de pincéis sujos e de folhas brancas, ou de A4 e sulfite, como se sentam, se na ponta ou no meio da mesa, se são artistas ou não. Estamos aqui, essa é a dramaturgia. Vamos tirar suco.

Minutos passam. As mãos começam a dançar valsa com as canetas em cima das folhas de papel. Depois passam para o samba e, por último, um forrozinho agarradinho.

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OS INCOMUNS Aldri Anunciação, Jhonny Salaberg e Maria Shu (Texto em construção)

ATO 1 Camila, Daniel e Ueliton, sozinhos e confinados em uma sala-ateliê-depósito. Estão aflitos.

ueliton

Daniel começa a revistar Ueliton no modo policial, mexendo nos bolsos e todos os tipos de pocket de seu figurino. Daniel encontra um pequeno objeto encapsulado. Olha pra Camila. Camila diz que não com a cabeça. Daniel coloca o objeto encapsulado no bolso e volta a revistar Ueliton, que continua de costas. ueliton

Ueliton parece mais solitário, ao fundo da sala, em cima de um pequeno banco que lhe permite olhar por uma pequena janela no alto.

daniel ueliton daniel

camila daniel camila

Ei! Oi? Nada, não!

camila

Ueliton continua olhando através da pequena janela. daniel ueliton daniel ueliton camila ueliton

Eu não conheço! Oi? Eu não conheço!!! Quem você não conhece? Eles não vieram!

Eu não encaro… eu continuo de costas!

ueliton camila

Você não vai encontrar nada! Eu sei! Então por que continua procurando? Procedimento… Protocolo! Talvez isso explique a ausência deles! (para si mesma) Por que eles não vieram? Insisto que talvez seja melhor olhar o contrato… A Taís já nos advertiu sobre esse assunto. Não era sobre isso que a Taís estava falando. Ela achou melhor aguardarmos um pouco mais. Talvez devamos começar… Penso que a gente basta! Não nos bastamos! Precisamos deles!

Camila e Daniel entreolham-se. camila

Mas você convidou alguém?

Ueliton se desespera e vira-se, irritado, para Camila e Daniel. ueliton

Ueliton finalmente desce do banquinho. mas ainda continua de costas para Camila e Daniel.

camila

ueliton Não!

Camila olha pra Daniel como que revelando estar dissimulando. Ueliton se acalma com a resposta.

daniel ueliton

Oi? Eu nunca convido ninguém! Mas eles sempre vêm, sempre!

Camila olha para o relógio. camila

daniel

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Parece que dessa vez não foi assim. Talvez devêssemos pegar o contrato, dar uma olhada… sei lá. Não! Contrato agora, não! (para Ueliton) Como você encara isso?

daniel

Eles não vêm!!! Calma! Eles vão chegar!

(para Ueliton) Você me acha comum?

Pausa. ueliton camila ueliton camila ueliton

Claro que sim! Sério? Sim, sério! Por que pergunta? Por um momento cheguei a pensar que Daniel fosse incomum. Não estaríamos aqui com ele se

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daniel

ueliton

camila ueliton daniel

ele fosse incomum… Ele se utilizou do desconto para maiores de sessenta anos… mesmo sem ter essa idade. O desconto foi por ser estudante. Mas fico aliviado… Eu sou comum. Pelo menos é o que acreditamos! O que eu não entendo… é por que eles não vieram! Estava escrito que eles já estariam aqui! Essa situação não é comum. Nunca foi assim! Isto não é comum… mas o Daniel é! Espero!

Ueliton abraça carinhosamente Daniel. daniel camila

Que idade vocês acham que tenho? (indignada) Que pergunta é essa? Isso não vale! Essa pergunta é desviante… não é comum!

Todos desconsideram a reação de Camila. ueliton

camila

daniel ueliton

daniel camila ueliton daniel camila ueliton daniel camila daniel

Sei lá… Talvez idade suficiente pra ter vivido a época do bip… o teletrim! Enquanto os incomuns não chegarem, não podemos avançar em perguntas fora do padrão! Mas eles estão ausentes. Camila tem razão… Eles estão ausentes, mas vão chegar! E eu não sei como isso vai ficar. Eles são tão… incomuns! Incomuns. In—co—muns!!! O que é a ausência? O que é o comum? Conseguimos fazer nada? Se faz o nada? O que viemos fazer? O que a gente espera? O que é o incomum?

Ueliton sobe rapidamente no banquinho e volta a olhar através da pequena janela. ueliton

O que interessa a este lugar? O que interessa a eles?

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ATO 2 Três dramaturgos (1, 2 e 3) numa sala/  depósito.

1 2 3

Eles virão. Que horas são? Papel A4. Preciso de papel A4. Eu gosto de papel. De rascunho, da tinta inaugurando a ideia. 1 Quando eles chegarem, seguiremos o roteiro. É importante, respeitoso seguir com a proposta. Eles esperam isso de nós. Eles podem cobrar, foi feito um acordo. Acho mesmo que a gente tem que seguir com o roteiro, vocês não acham? 2 Eles podem se sentar aqui. Ou melhor. Metade aqui, outra ali. Sei lá. Talvez tenhamos que deixá-los à vontade pelo espaço. 3 Os papéis estão na mesa. As canetas. Trouxe notebook também. Eu gosto de internet. Da pesquisa. Da informação à disposição… caso precisemos. 1 Não informamos quem vai começar. Eu começo ou você? 2 O tempo foi dividido em três partes. Que horas são? Você disse que devíamos seguir com a proposta. Daqui a pouco, estaremos atrasados. 3 Temos tempo ainda. 1 E se começássemos sem eles? 2 Eu poderia começar. 3 Se começarmos agora, teremos de repetir tudo assim que eles chegarem. 2 Tem razão. 3 Tem razão. 1 Você os conhece? 2 Um deles. 1 Poderíamos pesquisar numa rede social o nome deles. Para adiantar. Quando eles chegarem, já saberemos um pouco sobre cada um. Eles ficarão surpresos, quem sabe lisonjeados com esse cuidado que tivemos. As idades, a formação acadêmica,

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2

3

2 3

se assistiram ao seriado mais comentado do momento da Netflix, se o último check-in foi numa lanchonete ou num hospital... Água. Uma garrafa de água e copo descartável. É provável que eles venham correndo, venham direto para cá. São Paulo é essa imensidão. Fecha a porta. Deixa aberta. Quando eles chegarem, a gente mantém fechada. Pra ninguém atrapalhar. É tanto barulho que... O que você está fazendo? Cuspi algumas coisas, enquanto eles não chegam!

dia em que os olhos terceirizarão a imaginação E talvez as pessoas acreditem menos na gente Fomos condenados ao menor amor. Ninguém no Facebook! Ninguém entrando na sala! Ninguém gastando o tempo de uma sextafeira fria sentado numa mesa de madeira cuspindo palavras. O tempo e seus mecanismos mais estreitos, sem linearidade e redes de proteção. Ação de mudar o rumo de um encontro incomum! Incomum? Incomum! Jamais visto! Hei… você tem folhas como estas? É sulfite! A4!

ATO 3 O que é a espera? Quem espera segura o tempo? Quanto tempo o tempo tem? Há quanto tempo você espera? Esperar é passar ou permanecer no tempo? O tempo perguntou para o tempo quanto tempo que o tempo tem? O tempo respondeu ao tempo que não tem tempo de dizer ao tempo que o tempo do tempo é o tempo que o tempo tem. As folhas brancas sobre a mesa preta. Pretos! A lágrima doce que vaza do mar negro. O Rincon Sapiência que berra alto e em bom tom! A porta que não fecha. A transparência do encontro e do vidro. Será que hoje tem jogo? Ninguém tem Facebook! Mesa preta com caneta… mãos e ideias pretas… isso é incomum! Isso é incomum! Mas como pode começar? O que falta? Como podem as ideias substituir os sonhos? Como pode a cabeça carregar vento e pincéis sujos? Mas, não nos enganemos, chegará um

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Quanto tempo é preciso para que a espera seja considerada espera? Poxa, gente, ainda não chegou ninguém, né? Vou trazer os contratos! Só um pouquinho! Lágrimas doces que vazam do mar negro. Ah… se as lágrimas tivessem reticências, o mar jamais secaria! Ah… se a gente encontrasse os pontos finais com amor e tranquilidade para que assim pudessem soltar suas asas e se transformar em reticências, ainda seria mais longa, teria a continuidade que precisa ter. Incomum! Incomum? Incomum! Pretos! Pretos? Pretos!

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NOS AMPLOS —

MARIANA DELFINI E GUSTAVO COLOMBINI

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MARES DRAMA


P

ara se lançar nas imersões dramatúrgicas conduzidas por Claudia Schapira, Roberto Alvim e Kiko Marques, convidamos o também dramaturgo e diretor Gustavo Colombini, que faria um mergulho crítico no método e na experiência compartilhada com os participantes das atividades em tardes inteiras de meados de junho. Nos encontramos do lado de fora da sala que acolheria a primeira oficina. Havia um problema, da ordem do gênero: a imersão de Claudia convocava à criação de textos a partir de depoimentos pessoais que focassem o abuso, físico ou moral, infligido historicamente às mulheres. Eu não posso entrar nessa sala, sabia o Gustavo. Eu entrei, e poderia descrever o encontro com conceitos e termos vulgarizados pelos debates contemporâneos propostos pelos feminismos — sororidade, lugar de fala, abuso —, todos eles palpáveis na oficina sem que fosse preciso mencioná-los; ou poderia, quem sabe, transpor o círculo de mulheres — tão diferentes umas das outras, todas desconhecidas entre si — para qualquer outro tempo e espaço: para uma reunião ordinária de uma seita herege da Baixa Idade Média europeia, ferozmente perseguida pela Igreja Católica, em uma narrativa permeada de fé e escassez; para a véspera da primeira convenção sobre os direitos da mulher nos Estados Unidos, em 1848, em Seneca Falls, com cenas engajadas e revolucionárias; para um grupo de mães de WhatsApp que se revela um espaço de encontro, caso a história seja mais afetiva; para uma comissão acadêmica que registra, em sua burocrática ata, medidas de repúdio e punição a abusos cometidos contra estudantes, se se quiser um tom mais institucionalizado. Todas essas histórias caberiam nesta, cujo norte é a criação. Criação de textos, sim, e de novos imaginários, novos paradigmas, novos mitos, que abarquem os vários femininos que irromperam na sala a partir de estímulos de Claudia: ilhas com objetos, imagens e textos, além de respostas a nossas perguntas sobre escrita, teatro, depoimento. Numa sala de parede de vidro decorada com foguetes, entre bancadas de trabalho expondo ferramentas, o clã se viu engolfado por histórias próprias ancestrais, um coletivo pulsante que, se não era inesperado — não havia ingenuidade nem ignorância ali —, era surpreendente em sua força. Claudia agradecia a disponibilidade, seguíamos. A voz deu corpo aos conflitos. Os textos das participantes, sobre aniquilamentos e expectativas do feminino, foram conhecidos através de Luaa Gabanini, artista que integra o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos com Claudia, e que os recriou a partir de leitura das próprias autoras, escutando-os em um fone. “O texto como manifesto”, propunha Claudia,

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no chamado à imersão; para além das declarações realizadas então, construíram-se mundos inegáveis, que não podem ser contestados em sua natureza ou existência, impossíveis de serem ocultados ou dissimulados, como ensina o dicionário: manifestos. Há o momento de reconvocar os homens. Gustavo participou da imersão de Roberto Alvim, atravessou ondas intensas de um chamado violento que ele escutou, colocando-se perguntas sobre sua própria participação na renovação da dramaturgia nacional.

Por puro exercício linguístico, creio que uma imersão dramatúrgica postula, por si só, um convite à reinvenção. A ideia de mergulho ou submersão em dramaturgia, com o perdão da metáfora, existe com a violência de nos jogarmos no meio de um oceano para que, de dentro dele, possamos aprender a nadar. E mesmo que já saibamos nadar, não há método suficiente que sobreviva à metáfora. Ela vai acabar com a humanidade. E essa não é uma má notícia. Naquela tarde, a imersão dramatúrgica de Roberto Alvim começou, para além das seis horas restantes, como um chamado violento. Não é de hoje a intensidade com que Alvim convoca o pensamento de quem compartilha seu tempo. Há certa responsabilidade artística nisso, tanto quanto há urgência no pensamento de criação da nossa dramaturgia contemporânea brasileira. É ainda novidade o pressuposto de que, como nunca anteriormente, o texto dramatúrgico está se renovando e, mais, ganhando ênfase, relevo, relevância, escolas, mostras e olhares atentos. É um momento único, de percepções radicais e, portanto, construtoras. Eu, como dramaturgo, tomo parte dessa pequena revolução contemporânea de revalorização gradual dos textos teatrais. Nesse caso, a figura da dramaturga e do dramaturgo tem a responsabilidade inata de se renovar sob vigência do seu contexto, como se estivesse infiltrada em seu próprio tempo, vestida como acidente de um percurso histórico-social. Os acidentes sempre nos freiam e nos fazem pensar sobre nós mesmos. “Uma imagem não vale mais do que mil palavras”, diz Alvim, antes de ressaltar o poder do verbo. E nisso está a reinvenção da palavra, penso eu. A imagem significa por semelhança. A palavra significa por diferença. Ver a imagem de uma árvore é algo bastante distinto do que ouvir a palavra “árvore” de olhos fechados. Nesse caso, a palavra é uma semente lançada no campo mental sensível que cresce de forma independente em cada um. E, por isso, ao povoar o imaginário, a palavra não só amplia nossa humanidade como também cria universos autônomos, livres — até de nós mesmos. A imersão, não à toa, durante suas duas ou três primeiras horas, propõe um breve panorama da história do teatro ocidental: dos primeiros jogos de linguagem hegemônicos aos nossos primeiros rompimentos narrativos. Carregando seu humor ácido com a veemência de um competidor nato, Alvim acentua a artificialidade da escrita e da obra de arte. Essa volta ao passado e a consciência do artificial não só reviram nossa habitação existencial como também fazem gritar nossa mortalidade. Afinal, escrevemos com o corpo inteiro, não só com as mãos ou a cabeça. Cada palavra escrita nos mata mais. E essa também não é uma má notícia.

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Kiko Marques


Em pouco tempo, a imersão dramatúrgica de Alvim escreve com clareza sua ambição de expandir pensamentos e inventar mundos; libertar-nos de nós mesmos e habitar outros lugares existenciais possíveis e impossíveis. Alvim deixa claro, então, que a dramaturgia, como obra de arte, não deve dar espaço às suas afetações circunstanciais, suas sectarizações, seus assuntos de momento. É papel do artista habitar vozes insuspeitas, corpos diversificados, mundos inimaginados. Creio, sem dúvida, que há sociedades que ainda não foram inventadas, mas diante da elaboração artística também me surpreende outro nível de possibilidade: é concebível reinventar essa mesma sociedade que ainda estamos reconstruindo?

Nos reencontramos na sala dos foguetes e ferramentas para a imersão de Kiko Marques, que propôs a criação a partir da pessoalidade compartilhada, como Gustavo comenta a seguir. Nos reencontramos na troca e no compartilhamento de nossas experiências anteriores, particulares em suas radicalidades.

A voz mansa e contida de Kiko Marques nos convida, antes de qualquer coisa, a esvaziarmos nossas presenças diante das mesas e a construirmos uma roda de cadeiras no centro do espaço. Esse movimento dá o tom da imersão. O fio da nossa conversa acaba dialogando formalmente com a nossa posição perante os outros participantes: agora posso vê-los de corpo inteiro e não perco mais nenhum dos olhares. Marques, então, propõe que, para ele, o processo de uma dramaturgia passa essencialmente por uma ideia de partilha e comunhão. Há, nesse movimento, um passeio externo da criação dramatúrgica até que, posteriormente, ela volte ao autor. Da pessoalização completa à necessidade do processamento a partir dos encontros (com atores, diretores, artistas), há uma manipulação do trabalho dramatúrgico que retorna ao artista-escritor de maneira diferente — mas agora intransferível. Nesse propósito, Kiko Marques aborda duas fontes principais do seu ideário de criação: a autoficção e o processo antropofágico. Na autoficção, a combinação paradoxal de dois estilos contraditórios toca numa relação de extrema subjetivação do mundo e da criação dramatúrgica. Combinar a autobiografia e a ficção parece, então, com o perdão dos semióticos, seguir a contrariedade: tudo é verdade, portanto, nada é verdade. A exposição de si mesmo e o prévio embaralhamento de si mesmo convivem na harmonia das apropriações. Quanto mais você dá, mais você tem. É como se, no início, houvesse o processamento de um conteúdo pessoal, “medicinal”, de acordo com as próprias palavras de Marques. Há primeiramente um sistema autoral interno sendo resolvido a partir da criação dramatúrgica. Nesse caso, um processo antropofágico, em contraposição a um processo colaborativo, mantém as distinções da criação dramatúrgica pessoal, mas abre mão do seu processo interno de reelaborações. “O processo criativo é um processo de roubo lícito”, diz Marques pra arrancar um riso nervoso de qualquer um que se confronta

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“A IDEIA DE MERGULHO OU SUBMERSÃO EM DRAMATURGIA, COM O PERDÃO DA METÁFORA, EXISTE COM A VIOLÊNCIA DE NOS JOGARMOS NUM OCEANO PARA APRENDER A NADAR. E MESMO QUE JÁ SAIBAMOS NADAR, NÃO HÁ MÉTODO SUFICIENTE QUE SOBREVIVA À METÁFORA” GUSTAVO COLOMBINI

com a originalidade em pleno século 21. Trocar o novo pelo pessoal. O universal pela aldeia. Acentuar a diferença é falar mais alto. Ao propor um exercício prático (pensar em um projeto pessoal — uma cena, uma dramaturgia completa, um esquema cênico, um roteiro), estamos diante de um pacto duplo: confiança e domínio público. O pacto de confiança puxa nossa responsabilidade ao se confrontar com o material do outro; o pacto de domínio público prevê a apropriação, a assimilação irrestrita de uma ideia alheia. O saldo da soma desses dois pactos vem sob a forma de perguntas: na apresentação dos projetos individuais devemos anotar as imagens que nos são suscitadas e, posteriormente, enxertar, sugerir, oferecer perguntas para o projeto alheio. Esse deslocamento da originalidade, pra mim, parece ser a base procedimental da imersão de Kiko Marques. Ela me faz seguir o caminho de volta pra casa pensando na inutilidade das ideias aprisionadas. “Quando um conteúdo pessoal é trancado em mim, ele é infértil”, diz Marques. Se as palavras fossem realmente sementes, penso eu, elas teriam destino óbvio. Já que elas não são, não teriam elas, então, o mesmo destino dos seres humanos?

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FRAGMENTOS MANIFESTAS EM CARTAS PARA O FUTURO As dramaturgas Carolina Bianchi, Claudia Schapira e Dione Carlos se reuniram para a elaboração de um manifesto, que resultou nas seguintes cartas

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PARA DIONE E CAROL, E A QUEM ESBARRAR PORVENTURA NESTAS LETRAS Inverno, confraria espontânea.

Por que nós ? Por que não nós? Pensamos juntas na intimidade de uma carta! Esse formato — quase obsoleto —, se não fosse extemporâneo escrevermos umas para as outras na tentativa do encontro. Esta carta é um desabafo, misto de desagravo, um pequeno descompasso com o tempo onde o que desconheço se engendra, sempre, no limiar de um tempo que gera um tempo novo que substitui o velho, e assim caminhamos caminhantes subvertendo eras... Escrevo na calada do dia, acometida de uma fome que tira o sono. Uma fome incômoda, desconfortável, inédita, indigesta, subversiva, ingênua e crua, como uma alma no início. Assim a escrita que brota pra elas. Escrevo movida por tudo que escavamos a cada encontro; escrevo para as minhas iguais, irmãs de uma quadrilha de há muito subjugada mas que agora não mais... (juro que essa rima não foi proposital!) Perigosas! Perigosas na justeza da palavra perigo, que no meu próprio dicionário se arvora de ser explosiva o bastante para dar conta de se contrapor e ser combativa empunhando palavras feito um fuzil! (sigamos, Bandoleiras, e que nossos corações não esmoreçam jamais!) Escrevo com vontade de reverter escritas. Escrevo porque escrever me arremessa a antigas rodas e percebo que vocês também já estiveram lá... Escrevo porque escrever me adianta futuros. Escrevo com a imensa necessidade de borrar fronteiras entre eu e elas, entre eu e vocês, de cartografar um lugar NÓS, capaz de construir uma guarda compartilhada deste tempo que nos tocou habitar. uma espécie de antropologia do encontro uma dança de ossos uma dança dos olhos uma dança da carne um abraço sem plágio uma trepada sem tela uma humanidade sem tanta gangrena capaz de tolerar diferenças munidas e unidas por uma consciência de que a paz a liberdade a justiça a harmonia a igualdade a riqueza as coisasmundo e tudo a mais que for possível imaginar só é bom se for bom pra todos! Falamos — vontade de fogo — como se estivéssemos aos pés de uma fogueira, entre uma mensagem e cafés, sobre as palavras. Sobre o desgaste das palavras, mas também da insubordinação dos conceitos que elas alinhavam e que se desdobram, expandindo horizontes, alargando territórios. Que surja o novo então, sussurro baixinho diante da folha em branco, quase prece:

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“ESCREVO NA CALADA DO DIA, ACOMETIDA DE UMA FOME QUE TIRA O SONO. UMA FOME INCÔMODA, INÉDITA, INDIGESTA, INGÊNUA E CRUA, COMO UMA ALMA NO INÍCIO” CLAUDIA SCHAPIRA

que possamos ser inteiras que possamos ser o que somos que possamos ser Que Lilith volte do exílio! Que ela sofreu muito ao ser banida como demônio rejeitada banida estrangeira, assim se sentem as vermelhas que sangram! Selvagerizam em cavalariças do mundo seus relinchos premonitórios neste mundo onde nada é o que parece e o que é, é distorcido da sua verdade em meio a plenárias, a céu aberto em meio a patriarcais reações que renegam as suas fêmeas… Será??? Um medievo tardio se esgueira arrombando cômodos. Elas não deixarão! Pode esperar que elas vêm pra cima com suas cobras agarradas na cintura… Selvagens, essas cavalas são e serão livres! Jorrei! Do que falávamos mesmo? Ah, sim, de escrever experiências para serem encenadas, presentificadas e tantos outros nomes utilizados para descrever essa capacidade humana de dissecar a si mesmo e traduzir-se em línguas inventadas. De buscar uma escrita que fala, que grita, que gesticula, que esculpe, que se cala e finalmente dança no vazio com letras de sangue, letras de água, letrastripas de carne e sanha. (respiramos fundos silêncios a cada encontro. Em meio a escombros e sementes)

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Escrevo pra elas, inspirada por elas, pela potência dos olhos delas... Escrevo como quem recita, escrevo como quem marca encontro com o avesso das próprias vísceras... Escrevo o que se deixou roçar pelas mãos incendiárias da poesia que vem delas, da fricção erótica do que nos une, com a mesma licença que se concede ao amor. O que me rasga o peito é palavra na voz de um pássaro que mesmo sem asas se aventura ao abismo. Me entrego às palavras como quem veste um manto de cacos de vidro. Fragmentos, partes, recortes. Gotas no oceano de imensidão! Por fim subverter palavras, como uma criança decreta mundos e inverte estradas: — Uma vez e dharma mais! — Eu dharmaria o mundo por um instante potente de utopia! — Momento chegou de arregaçar as mangas e dharmas as mãos! Inverno, 2018, CS

P.S.: Ciente do rasgo que retalhou a carne que me cobre — séculos de patriarcal peste espalhada —, possa eu vencer a navalha, restaurar o efeito das batalhas, arrematando os remedos dessa alma que por dias acorda ainda descosturada.

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9.7.2018 CARTA ABERTA PARA CAROL, CLÁUDIA, ELAS, NÓS Queimo e deixo arder. Escrevo com cinzas. Acordei nublada hoje, mas o sol continua lá fora. O sol me convoca a escrever. Preciso nascer e renascer, como um sol. A estranha de dentro, cada vez mais dentro, cada vez mais estranha no meio de tudo, com mãos invisíveis sobre os ombros, aliviando o peso de transpor muralhas e abrir portões. É preciso vencer a primeira impressão, confrontar estereótipos, destruí-los, reinventar a própria imagem e mostrar como recrio também a realidade, escapar dos atestados de mundo. Todo dia. Todo dia. Sorrir é quase uma vingança, é resistir também. Não participo das narrativas que me foram ensinadas. Escrevo de ouvido, coberta de terra, como quem levanta da própria cova, com raízes brotando na cabeça, ramificando pelo corpo novo, sem corrente, sem laço de caçador de gente, sem chicote, sem ferro em brasa, sem cinto de castidade, sem mordaça. Um corpo novo que se inscreve quando escreve. Eu sei dobrar bem os meus joelhos, mas cerro os dentes e não rezo mais em latim. Sou poliglota entre irmãs. Ando com a loba, dou as mãos para uma feiticeira, acompanho bandos, visito clãs. Caminhamos, com linhagens inteiras nas costas, perguntando: Por que nós? Por que não nós? Acolhemos a missão porque nos acolhemos antes. Começamos: Queimar. Purificar. Manifestar. Invocar as palavras de dentro para fora. Convocar as palavras de fora para dentro. Materializar as palavras diante do fogo. Com ardor. Com amor. O sangue nos olhos transformado em brilho. O brilho dos olhos compartilhado entre muitas. Enxerguemos juntas, sendo diferentes. Quero poder sair de mim e passear por vocês, conhecer seus países, recebê-las no meu. No meu país, o Iroko é uma árvore que fala, enquanto eu escuto. Eu coloco um pano branco ao redor do seu

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tronco, o abraço e seus galhos-braços estão sempre abertos. Na ponta dos meus dedos tem carvão, sangue e sumo. Escrevo com imagens. No meu coração, tem um pássaro com duas cabeças. Uma olha para frente, a outra busca o que perdeu no passado. Uma avança no futuro, de posse do que a outra recuperou no passado. Talvez a minha neta esteja aqui, escrevendo esta cartamanifesta comigo. Talvez seja eu mesma, ainda criança. Quem sabe a minha bisavó esteja presente. Este corpo, de quem se esperam narrativas de dor, está em festa, na frente do fogo. Está de pé e pronto para produzir festas, construir encruzilhadas, existir em um tempo espiralado com poesia. Quero dar as mãos ao redor do fogo, olhar dentro das chamas, ouvi-las, pegar as cinzas e escrever manifesta, como quem abre o portão de uma muralha e já não precisa nem deseja mais invadi-lo. Como quem retorna para a floresta e diz: Venham todas para cá. Assinada: Dione Carlos.

INGREDIENTES DE SOBREVIVÊNCIA • Ame e desobedeça. • Abrace a sua intuição. • Alguns não entendem, nem querem entender. É uma escolha. Deixe-os. • A mensagem é menos importante que o portador. Observe de onde vem cada mensagem. • Pensar finitude é um gesto de saúde consigo mesma. • Troque perfeição por honestidade. • Bom humor não cura, mas alivia a dor. • Multiplique o que aprender, partilhe. • Erga um altar para o que você já sabe, destrua-o ao escrever, renove-o. • Crie os seus próprios conselhos, mas não despreze os que lhe derem. • Crie e seja o seu próprio manifesto, na prática, todos os dias.

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CARTA PARA DUAS DRAMATURGAS CARTA SOBRE A MINHA RELAÇÃO COM A ESCRITA CARTA PARA UM CROCODILO QUE ME ABRAÇA POR TRÁS São Paulo, pântano lodoso, milênios, anos, meses e julho de 2018

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Eu escrevo aqui como escrevo para o meu amante. Eu escrevo como quem endereça todo o ar ao diabo. Eu escrevo sem língua. Sem zona específica. Eu nem sei dizer a vocês qual é a língua que eu falo. Eu escrevo na língua do diabo. Compartilho aqui nesta carta sensações específicas que me causa a escrita. Entre o espanto absoluto e o deleite. Não vou falar de sexo. Sim, vou falar do sexo. Sem temas. Sem selas. Chega de selas. Vamos deixar o cavalo no pelo.

A escrita, a que me refiro aqui, é a organização de uma palavra atrás da outra e também a escritura de uma possível dança drástica. Um plano-sequência de séculos e séculos em carne e osso. Solidão cavada no coração. Você não está sozinho. Você não está sozinho. Você está um bocado sozinho. Queria que esta carta fosse um sistema de sinais.

“A ESCRITA É UM CROCODILO ANTIGO QUE INSISTE EM DEITAR SEU CORPO SOBRE O MEU. EU SINTO HORROR E FICO MOLHADA. ENTRELAÇO OS PÉS” CAROLINA BIANCHI

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Não sei se esta carta será lida até o final, não sei se as cartas ainda são lidas até o final. Mas mesmo assim, deixo ela montar no meu lombo e me cavalgar. Ontem à noite mostrei a um amigo escritor uma foto em que havia uma mulher que abraçava um crocodilo gigantesco. Na imagem, ela está embaixo do corpo do animal, que está de barriga pra cima, sendo abraçado por ela. Um detalhe: Os pés da mulher estão entrelaçados sobre o corpo do crocodilo. Aí meu amigo pergunta: Você sabe algum detalhe dessa foto que te move violentamente? Eu: os pés entrelaçados. Os pés entrelaçados me indicam que ela está apaixonada pelo animal. Eu estou contando isso porque acredito que minha construção de escrita mais funda seja o gesto. E quando escrevo fico tentando alucinadamente encontrar as palavras. Qual a palavra para a explosão de um gesto? A escrita é um crocodilo antigo que insiste em deitar seu corpo sobre o meu, minha respiração encontra um outro ritmo. Eu sinto horror e fico molhada. Entrelaço os pés. Sem saída. Eu sou uma égua prenha e antiga. E quando escrevo, é o cavalo novo nascendo de dentro. Violentíssimo, quase de pé, quase correndo, cai e levanta e desliza na placenta, até começar a próxima canção. A imaginação é fogo. Eu quero que você venha. Eu não quero que você venha. Eu nem saberia por onde começar com você. Não tem fim com você. Eu tentei escrever o que vem antes da palavra. Eu tentei escrever um rosto que é maior que o resto do corpo. Não quero esquecer o rosto do soldado. O rosto da Cassandra olhando o futuro no fundo do pote de danone. Não quero esquecer a pintura do Caravaggio com as facas. Não quero esquecer o monstro. Eu escrevo pelo e para o monstro. Ele não tem sexo. O monstro é a memória física do que ainda não tem linguagem definida. E o futuro é beijar a boca do crocodilo de barriga pra cima na fotografia, e dizer perto da sua mandíbula: “We had a good time, didn’t we?”

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Eu escrevia uma peça sobre uma fera eu escrevia uma peça sobre um assassinato brutal um tiro uma rua os primeiros seis meses de amor um apocalipse dos cristais eu escrevia sobre vidro sobre vinho sobre ceia sobre sexta sobre as medidas dos paus dos outros sobre o quadro mais triste do mundo sobre nada eu escrevo molhada eu escrevo febril eu escrevo toda

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errada, lanhada, cheia de lama. Eu não escrevo nada eu fico sentada. Yo soy un embuste. Eu quero eu realmente quero que minha buceta não seja uma questão eu quero eu realmente quero falar de tripa, de acidentes, eu queria ser Bram Stoker eu queria ser Mary Shelley mijando de rir eu queria ser o fogo aquele fogo vocês sabem bem eu queria ser o triângulo das bermudas, quem me dera ser um peixe.

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Espero que quando essa carta chegar aí eu já esteja bem.

É porque tudo isso que eu sinto é causado por uma estranha pressão: Eu estou escrevendo. Vocês sabem essa sensação. Escrevo porque minha imaginação é furiosa comigo. Escrevo na tentativa do equilíbrio que é impossível. Escrevo meio funâmbula (Claudia me lembrou desse texto do Genet!) e meio búfala — que só existe pela continuidade. Eu escrevo pela continuidade e eu estou enfeitiçada. E que alívio, em algum momento eu consigo lamber a própria ferida. Escrita. Minha relação com ela não é fácil. Está sempre a ponto de explodir uma guerra, catarse, muito pouco higiênica. Queria que fosse mais tranquila. Mas não é. Escrever me desequilibra, faz tudo ter outra densidade aqui dentro/ aqui fora. Mas aí, uma coisa acontece. Uma coisa acontece. E nessa hora é quando vamos soltos por aí na companhia de um cavalo veloz, nadamos dentro de Heavy Seas of Love e ainda bem, sonhamos mil vezes o mesmo sonho e nesse sonho está você. As fagulhas soltam-se do fogo e dançam conosco, o poeta diz “Verás amor/ Verás que/ o coração/ não morre/ que tanta comoção/ atrás dele/ corre”. E nós suamos de alegria. Tudo isso sai um pouco confuso. Nada confuso. Triste e alegre ao mesmo tempo. Um touro vagando sozinho de noite no meio de uma estrada.

Carolina Bianchi

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UM EMARANHADO 80

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Ator, diretor e dramaturgo, o carioca Pedro Kosovski entrelaça hereditariedade e experimentação em sua premiada trajetória pelo teatro

MANOEL SILVESTRE FRIQUES

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m um dos momentos mais impactantes do espetáculo Tripas (2017), o diretor Pedro Kosovski entra em cena e beija longamente o performer do solo, Ricardo Kosovski, até que não haja mais espectadores na sala. Por si só, o beijo entre dois homens já levanta um sem-número de questões associadas às contradições de nosso tempo, pautado pelo significativo e auspicioso aumento da visibilidade LGBTQIA+ no mesmo compasso que os alarmantes índices de violência contra esses indivíduos. O beijo entre Ricardo e Pedro nos coloca diante do tabu da homossexualidade, que, sugere Judith Butler, precederia até mesmo o tabu heterossexual do incesto. Mas Ricardo e Pedro são pai e filho. O tabu da homossexualidade, assim, reveste-se também do tabu do incesto. Para muitos antropólogos (e até mesmo no mito freudiano de Totem e tabu), a proibição do incesto define as duas coordenadas clássicas de nossa organização social: o eixo vertical das filiações e o eixo horizontal das alianças. Ao se beijarem, Pedro e Ricardo operam um deslocamento de sua relação, da verticalidade à horizontalidade. O curto-circuito resultante aumenta exponencialmente o conjunto das questões, embaralhando as relações de filiação e de aliança que geralmente regem nossos costumes e hábitos sociais de parentesco. Como um pai pode beijar a boca de um filho? Como um filho pode beijar a boca de um pai? Que prazer pode advir do roçar das bocas de Ricardo e de Pedro? Um beijo de amizade? Um beijo voluptuoso? Teria esse beijo contornos civis e/ou eróticos? Ele representaria um desejo de incorporação

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do pai pelo filho e vice-versa? Ou haveria nessa união instável o desejo de uma monstruosidade extra ou pré-social? Será que temos que recorrer a certas tipologias e histórias do beijo para compreender o ato entre os dois Kosovski? Se elejo este beijo como ponto de partida, o faço não para realizar um exercício classificatório, mas para mergulhar na teia de relações de Pedro Kosovski, dentre filiações e alianças, suscitada pelo ato. Por meio do beijo, passeio por alguns fios desse emaranhado, buscando oferecer feixes de relações biográficas, artísticas e estéticas da trajetória do jovem diretor, dramaturgo e ator carioca.

“SÓ O AMOR VALE A PENA”

Ricardo Kosovski lembra que a gestação do filho ocorreu em meio à temporada de Leonce e Lena (1838), texto de Georg Büchner traduzido, adaptado e dirigido em 1982 por Luís Antônio Martinez Corrêa no palco d’O Tablado. Na montagem, enquanto Cacá Mourthé — sobrinha de Maria Clara Machado e então grávida de Pedro — interpretaria a princesa Lena, caberia a Ricardo o papel de Valério, uma espécie de arlequim, ou bobo da corte (dadas suas astúcia, ironia e inteligência), do príncipe Leonce. Sugestivamente, há aqui uma abordagem tanto cômica quanto inelutável da aliança: prometidos um ao outro, Leonce, do reino Popo, e Lena, do reino Pipi, decidem fugir do tédio de seus futuros arranjados. O livre-arbítrio entrelaça-se, contudo, ao destino planejado no momento em que os dois fugitivos se encontram e, sem se reconhecerem, se apaixonam. A solução desse quid pro quo ocorre bem teatralmente quando os dois personagens se casam, incorporando autômatos que representam, por sua vez, o príncipe e a princesa desaparecidos. Protagonizado por seus pais, esse tratamento cômico da inevitabilidade de uma aliança anunciada parece ressoar na filiação indubitável de Pedro Kosovski ao Tablado. Todavia, é sua estreia no teatro

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que anuncia, por assim dizer, o ethos que governaria sua atuação profissional algumas décadas mais tarde. Aos três anos de idade, Pedro participa do espetáculo Mil histórias sem fim, a partir dos contos árabes de Malba Tahan adaptados por seu pai. Na ocasião, Pedro entra em cena pelado, vestindo asas, peruca cacheada branca e arco e flecha, e diz: “Só o amor vale a pena”. Aplaudida em cena aberta, aquela criança alada não representaria nada mais, nada menos que o próprio agente e instrumento das alianças amorosas: o Cupido. Desde então, o nosso personagem deambula pelos palcos brasileiros flechando suas próprias alianças.

AO ENCONTRO DO CAVALINHO AZUL

Este deve ser o primeiro texto em que o vínculo de Pedro Kosovski com o Tablado seja tematizado sem reservas. O silêncio em torno da óbvia conexão talvez se justifique pela necessidade que o próprio Pedro teve (tem), ao longo de sua trajetória artística, de construir espaços próprios de experimentação teatral, sem, é claro, renegar sua hereditariedade artística. Uma evidência dessa relação ambígua com a filiação é sua formação universitária. Em um primeiro momento, a escolha de uma possível carreira de psicólogo o situaria em um campo que tangencia o domínio artístico. Pois, se as relações humanas e as capacidades simbólicas e imaginárias são o foco de ambas as profissões — a do psicólogo e a do fazedor de teatro —, elas, contudo, se traduzem de maneiras bem distintas. Para concluir seus estudos, Pedro retoma no entanto sua filiação, ao realizar um estudo sobre o texto O cavalinho azul, escrito por Maria Clara Machado em 1960. Em sua análise, que se pauta pelo olhar sobre a trajetória, Pedro considera o cavalinho azul uma espécie de prolongamento imaginário de Vicente, o protagonista da peça. Estruturalmente, um terceiro elemento dramatúrgico se faz necessário: a figura do velho narrador, João de Deus. Vicente-Cavalinho e João de Deus, narrador e personagem, constituem um dinamismo complementar, em que “o velho guarda em si a consciência de sua trajetória, e o menino, alheio a seu futuro, é puro devir”.1 Os lados dessa trajetória se embaralham em Tripas: o velho Kosovski, senhor da cena, é puro devir, enquanto o jovem Kosovski, diretor de cena, é a consciência do percurso. Concordo com Ricardo Kosovski quando vê em Pedro o menino Vicente. A aventura do personagem Brasil afora em busca de seu cavalinho azul simboliza, por assim dizer, a própria necessidade de Pedro de construir seu caminho. O cavalinho azul manifesta-se por meio de outras agências. Logo de partida, na fundação de um grupo teatral, Aquela Cia., em 2006, ao lado de Marco André Nunes, Walter Daguerre, Laura Araújo e deste autor. Associada a isso, a experimentação de funções teatrais distintas: tendo iniciado no grupo como ator, Pedro, a partir da experiência de criação colaborativa de Projeto K (2006) e Sub:Werther (2007), passa, com Lobo n° 1 [A estepe] (2008), a assumir a dramaturgia do grupo, saindo (temporariamente) de cena.

1 Pedro Kosovski, “Ao encontro do Cavalinho Azul: um ensaio”. Cadernos de Teatro, n. 175, abr., maio e jun. 2006. Disponível em: <http://otablado.com.br/wp-content/uploads/ notebooks-theater/929fc45cefb0f6b50eeb1685c7872761.PDF>. O artigo, publicado na revista do Tablado, é resultado do trabalho de conclusão de curso do autor.

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O desvio pela psicologia só fomentou o fazer teatral de Pedro. No âmbito da Trilogia Alemã — nome dado ao conjunto dos três espetáculos mencionados acima —, ele pôde novamente estabelecer laços entre a sua formação e o ambiente teatral. Lembro-me, por exemplo, das primeiras improvisações para Projeto K, onde os amigos do personagem K indagam o que é a lei. Enquanto meu personagem abordava a questão do ponto de vista jurídico, o de Pedro trazia à discussão a lei do Pai. Por sua vez, Lobo n° 1 [A estepe] pode ser considerada um experimento teatral psicanalítico, dado o desejo de fazer com que o personagem de Harry Haller se expanda do corpo do ator para todo o dispositivo teatral, em uma espécie de encenação do inconsciente. Além disso, em Edypop (2014), ao buscar conjugar a narrativa mítica de Édipo com o mito pop de John Lennon, o dramaturgo e o diretor recorrem a um cômico Freud que canta “Jealous Guy”.

DO CAVALINHO AZUL AO CARA DE CAVALO

Ricardo Kosovski, em Tripas

Durante os anos de produção da Trilogia Alemã e também dos espetáculos Outside, um Musical Noir (2011) e Edypop, o encontro com o cavalinho azul se dava sobretudo por meio de um questionamento das filiações. Não à toa, esses cinco espetáculos partiram de narrativas, músicos, autores e pretextos euroamericanos, em sua grande maioria: Kafka, Goethe, Herman Hesse, John Lennon, Freud, Clement Greenberg, David Bowie, Adorno etc. Outro sintoma dessa desconfiança encontra-se no subtítulo suprimido de Edypop, tomado de empréstimo de uma famosa música dos Titãs: “Contra o que for hereditário”. O ponto de inflexão ocorre sobretudo em Cara de Cavalo (2012), a meu ver. Antes de tudo, pelo deslocamento do interesse de Marco André Nunes e Pedro Kosovski de autores europeus para brasileiros. Aqui, o foco recai sobre a história do “bandido” Manoel Moreira — mais conhecido como Cara de Cavalo — e de seu principal algoz, Milton Le Cocq. Conta a história que, por ter assassinado Le Cocq, Cara de Cavalo foi alçado à condição de marginal mais procurado do Estado da Guanabara, de modo que, após uma perseguição cinematográfica, seu corpo foi encontrado cravejado com mais de cinquenta tiros. Por mais que essa narrativa seja, por si só, um ótimo pretexto teatral, não é apenas com ela que o espetáculo Cara de Cavalo dialoga intensamente, mas também com obras criadas por dois importantes artistas brasileiros: Hélio Oiticica e Nelson Rodrigues. Cara de Cavalo era amigo de Hélio Oiticica. Diante da imagem desse corpo marginal, negro e morto estampado na primeira página dos grandes jornais, o artista resolve lhe prestar uma última homenagem, criando, no mínimo, três obras: o B33 Bólide-caixa 18 “Homenagem a Cara de Cavalo”- caixapoema 2 (1966), o B56 Bólide-caixa 24 “Caracara de Cara de Cavalo” (1968) e a Bandeira-poema [Seja Marginal, Seja Herói] (1968). Produzidos a partir de 1963, os bólides são recipientes contendo pigmentos cromáticos. A cor contida nas caixas não se detém nelas, todavia, expandindo-se ao seu entorno mais imediato por meio de modulações e fulgurações. Eis os bólides: núcleos de energia que envolvem e contaminam cromaticamente o espaço circundante. No caso de B33 Bólide-caixa 18 “Homenagem a Cara de Cavalo”- caixa-poema 2, além de se apropriar de elementos e materiais encontrados no cotidiano carioca (em especial, as latas de fogo), Oiticica dispõe sobre as paredes

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Pedro Kosovski


internas da caixa a imagem de Cara de Cavalo difundida em todos os veículos jornalísticos, revelando, por meio dela, uma atitude individual inconformada diante de qualquer tipo de condicionamento social. Nota-se, portanto, que a partir dessa obra Oiticica entrelaça suas investigações estéticas (a cor, em especial) ao que o próprio artista chama de “momento ético”. No espetáculo Cara de Cavalo, os elementos estruturais do B33 Bólide-caixa 18 estão todos presentes: terra, caixas, cores, ficções jornalísticas etc. Além da ressonância material, nota-se fundamentalmente o empréstimo, pela Aquela Cia., da “posição ética” de Oiticica. Ou melhor, neste espetáculo, ética e estética se implicam mutuamente a partir do interesse de seus autores pelas relações entre arte e violência. Não que Cara de Cavalo seja o marco inaugural dessa preocupação: enquanto a trama de Sub:Werther gira em torno de uma mesa de dissecação do corpo do jovem Werther, Outside tem como ponto de partida a história encontrada no álbum homônimo de David Bowie: um diário de um detetive contando a última performance da jovem Baby Grace Blue, o seu próprio desaparecimento. No limite, a performance art seria uma crime art? A mutilação e o assassinato poderiam ter revogadas suas implicações éticas em proveito de uma contemplação puramente estética? A investigação a respeito das fronteiras e interseções entre os domínios ético e estético, surgida principalmente a partir da obra musical de David Bowie, aprofunda-se vertiginosamente nos espetáculos posteriores a Outside, em especial naqueles depois de Cara de Cavalo. Assim, as reflexões teatrais d’Aquela Cia. em torno das relações entre arte e violência, ética e estética, ganham novos contornos quando o elemento musical assume protagonismo na cena, desempenhando funções narrativas. Para isso, foi preciso também investir no diálogo com a produção musical brasileira contemporânea, em especial o manguebeat da Nação Zumbi (cujo último álbum, Radiola NZ Vol. 1, revela a influência de David Bowie, entre outros músicos) e sua transfiguração simbólica da violência socioeconômica estrutural em nosso país. Em Caranguejo overdrive (2016), Guanabara canibal (2017) ou Cara de Cavalo, a música expressa a violência das questões em um palco compreendido como cena de um crime histórico: a própria constituição do Brasil. Cara de Cavalo se revela, assim, um ponto de inflexão por apresentar definitivamente cores locais. É válido aqui recorrer à outra matriz do espetáculo: Nelson Rodrigues e sua encenação do dirigismo jornalístico em O beijo no asfalto. Ao se apropriar estruturalmente da primeira cena deste texto, Pedro Kosovski e Marco André Nunes encenam uma vez mais o processo de construção de realidades, tendo os jornalistas como autores privilegiados. E não é qualquer jornalista, mas Amado Ribeiro, um dos principais narradores da saga de Cara de Cavalo no jornal Última Hora, transformado, em O beijo no asfalto, em um dos principais deflagradores da perseguição homofóbica a Arandir, depois que este personagem, movido à compaixão, satisfaz ao último desejo de um homem moribundo: um beijo na boca. Note-se a presença estruturante do tabu da homossexualidade entrelaçado àquele do incesto, caso se considere o desfecho da trama. No mesmo compasso dessa (re)descoberta do Brasil por Pedro Kosovski, ocorre então um significativo encontro com o cavalinho azul por meio de Cara de Cavalo. Aqui, o encontro se manifesta em um diálogo dramatúrgico também com Maria Clara Machado. Resulta daí uma das cenas mais interessantes de Cara de Cavalo, a da construção de seu retrato falado. Com ritmo cadenciado,

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a descrição vai ganhando ares surrealistas (seria esta uma presença do surrealismo periférico de Aníbal Machado?),2 até que o bandido seja retratado como um cavalo — em uma contaminação de espécies também presente em Caranguejo overdrive e Guanabara canibal:

galo galo apontador galo apontador galo apontador

galo

apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador galo apontador

Se esforça mais! Ou teu medo pode me fazer imaginar as piores coisas. Vamos mais uma vez. Sim. Os olhos. Ele tem os olhos grandes? Sim. São grandes. E os dentes? Também grandões? Sim, sim. As orelhas, pontudas? Pontudas. E o nariz? Como é que é a fuça? A fuça? Uma fuça longa, comprida? Isso! É comprida. E o cabelo? O cabelo? É grosso! Grosso como uma crina? Como uma crina. Tem uma queixada? Uma queixada! Ele relincha? Sim.

2 O escritor Aníbal Machado é pai de Maria Clara Machado. A essa explícita filiação de Pedro somam-se outras transmissões estéticas — em especial, o surrealismo de Aníbal, que o faz integrar a segunda geração de modernistas brasileiros, buscando uma espécie de síntese entre o real e o imaginário, o visível e o invisível, a realidade e o sonho. O mergulho de Pedro na psicologia o vincula, portanto, a Aníbal. Outra vereda possível diz respeito às implicações entre ética e estética. Por ocasião do encerramento da 1ª Exposição Coletiva de Arte Social, em 1935, o escritor profere uma conferência onde defende uma síntese entre os artistas e o povo, sendo a produção artística um poderoso instrumento para a tomada de consciência revolucionária da população. Essas duas sínteses de Aníbal são dissecadas criticamente por Pedro, não havendo aí, portanto, uma transmissão passiva.

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Ele trota?

apontador Trota.

galo apontador

A pele é um couro? Um couro. E os cascos? Usa ferradura? Usa! Ele é violento? Dá coice. Cavalo! Na cabeça.

Se essa cena presta homenagem ao jogo de espécies presente nas peças infantis de Maria Clara Machado, Pedro Kosovski decide então, após uma bem-sucedida temporada de prêmios e críticas favoráveis, encarar o desafio de criar um espetáculo infantil no Tablado. Não que ele tivesse pouco contato com esse universo, muito pelo contrário. Além de seu estudo sobre O Cavalinho Azul, Pedro atuara em diversas peças, tais como O Gato de Botas (1997), duas montagens de O boi e o burro no caminho de Belém (1992 e 2001), A bruxinha que era boa (1999), Camaleão na Lua (2002), O alfaiate do rei (2005) e Pluft, o fantasminha (2013). Desta vez, o papel seria o de dramaturgo do primeiro espetáculo infantil não assinado por Maria Clara Machado. Daí nasceu Tãotão, espetáculo que revela, uma vez mais, um conjunto de alianças e filiações, dentre as quais destaco o vínculo tanto com a psicologia quanto com Lobo n° 1 [A estepe]. Pois, Lobo n° 1 [A estepe] é uma encenação do inconsciente tanto quanto Tãotão é uma encenação da fase do espelho lacaniana. Além disso, o nome desse espetáculo toma de empréstimo o apelido de seu filho, Antonio, revelando, com isso, Pedro como pai.

LAIO E CRÍSIPO = RICARDO E PEDRO

Se Pedro Kosovski começa no palco com o pai, Ricardo Kosovski de certo modo retorna ao palco com o filho. Não é a primeira vez que o dramaturgo Pedro escreve para o ator Ricardo, tendo este fato já ocorrido em Sub:Werther e Cara de

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Ravel Andrade e Erom Cordeiro em cena de Laio e CrĂ­sipo


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Elisa Mendes

Fellipe Marques em cena de Caranguejo overdrive


EM “CARANGUEJO OVERDRIVE”, “GUANABARA CANIBAL” OU “CARA DE CAVALO”, A MÚSICA EXPRESSA A VIOLÊNCIA EM UM PALCO COMPREENDIDO COMO CENA DE UM CRIME HISTÓRICO: A PRÓPRIA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL Cavalo. O que torna Tripas especial é, sem dúvida alguma, o seu ponto de partida: o risco real de desaparecimento de Ricardo Kosovski, quando acometido por problemas sérios de saúde. Diante dessa ameaça do imponderável, Pedro resolve confirmar sua filiação propondo uma aliança ao pai, o espetáculo Tripas. A aliança não apenas confirma a filiação, mas a desdobra. Pois Pedro é filho e pai, assim como seu pai. Desse modo, ao esquema binário pai-filho inicial sobrepõem-se outros, fazendo com que ambos se coloquem, conforme Ricardo pontua, como “apenas dois homens artistas que vêm do mesmo lugar e se confrontam constantemente com ideias autônomas e independentes entre si”3. É a partir desse confronto que podemos, por fim, compreender o beijo de Pedro e Ricardo como uma imagem de Laio e Crísipo (2015). Pois, ao desdobrarem a relação entre pai e filho no devir homossexual, Ricardo e Pedro atuam na mesma direção proposta por esse espetáculo. Como se sabe, a intimidade

� Renata Magalhães, “Ricardo Kosovski e o filho Pedro conversam sobre a peça ‘Tripas’”. Veja Rio, 18 out. 2017. Disponível em: <https://vejario.abril. com.br/blog/teatroderevista/ricardo-kosovski-e-ofilho-pedro-conversam-sobre-a-peca-tripas/>.

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entre os homens gregos, estreitamente vinculada à formação de novas gerações por meio da transmissão direta dos ensinamentos por parte de seus tutores, era uma prática presente inclusive nas narrativas míticas. Assim, uma das origens possíveis para o mito de Édipo, cristalizado na tragédia de Sófocles, é justamente a relação que Laio, preceptor exilado de Tebas, manteve com Crísipo, herdeiro de Frígia. São algumas as versões dessa relação, mas todas atestam uma certa desmedida apaixonada que faz com que Crísipo desapareça (por suicídio ou assassinato) e que os descendentes de Laio, em especial Édipo, sejam amaldiçoados. Mas, curiosamente, a relação homoafetiva entre Laio e Crísipo pouco é lembrada, atestando, uma vez mais, o tabu da homossexualidade. Se Laio e Crísipo propõe desenterrar esse mito vernacular, Tripas, por sua vez, atua no sentido de revelar uma relação entre pai e filho não mais submetida apenas a uma condição hierárquica de poder, mas sobretudo às fragilidades eróticas desse agenciamento. Se assim é, o beijo entre Ricardo e Pedro expõe o desejo de um pelo outro, desejo esse que é de incorporação, de conciliação e, por que não, de filiação a ser sempre (dis)pensada e (re)construída.

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João Julio Mello

Cena do espetáculo Cara de Cavalo, dirigido por Marco André Nunes


O DRAMATURGO SE FAZ NA CENA Uma nova geração se forma no vaivém entre cena e laboratório de texto, no equilíbrio difícil entre autoria e respeito ao processo de criação coletiva

SILVANA GARCIA

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uando, em 1976, o encenador francês Antoine Vitez formulou que era possível “fazer teatro de tudo”, ele condensou em uma sentença aquilo que, com o passar dos anos, se tornaria mais e mais evidente: a abertura da cena para a transcriação em dramaturgia de todos os materiais textuais viáveis (ou mesmo “impossíveis”). Além de significar uma quebra dos paradigmas do teatro dramático, sua frase também denunciava a mudança no entendimento do que poderíamos chamar propriamente de dramaturgia. A ideia de que até mesmo abstrações ou imagens constituam narrativas ou ações cênicas só se instala naturalmente quando o teatro passa a comportar processos de encenação que abarcam a noção de escritura cênica como sinônimo ampliado de dramaturgia. Sem deixar de ser produzida em gabinete por autores motivados, a dramaturgia também passou a ser armada na cena, forjada diretamente em processos coletivos de criação. A necessidade de conceber uma dramaturgia que atendesse a propósitos específicos, afinada ideologicamente e conformada por princípios artísticos próprios, deu impulso a toda uma produção de dramaturgia pelos grupos de teatro: foi assim, historicamente, nos anos 1960 e 1970, e ganhou fôlego novamente a partir dos anos 1990. É comum, hoje, a figura do dramaturgo que concilia a escrita solitária de obras ao exercício, nem sempre fácil, de dar forma final a dramaturgias criadas em processos improvisacionais nos quais os atores ganham status de coautores. E os processos coletivos não preveem um único modo de criação: são

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muitas as maneiras de produzir materiais — textuais ou não —, e cada processo é único na combinação de elementos estruturais, temáticos e associativos de outras linguagens. Citando outro mestre do pensamento sobre teatro, Denis Bablet, com a introdução dos procedimentos de colagem e montagem na constituição da obra, o artista se distanciou da figura de um “sonhador inspirado” e se aproximou da do construtor, do arquiteto que projeta seu edifício em consonância com aqueles que o habitarão.

UM QUERER COLETIVO

O exercício de escrita coletiva, então, exige a busca de um equilíbrio entre autoria e respeito ao processo — lugar de difícil chegada, que pode deixar um e outros insatisfeitos. Muitas vezes, essas experiências acabam por levar o escritor — em especial aquele que se formou exclusivamente nessa prática — a buscar um desenvolvimento de sua escrita, movido pela necessidade de firmar um espaço próprio, não compartilhado, de criação. Em boa parte, a demanda por uma expansão dos horizontes da escrita tem favorecido a abertura de muitos locais voltados à formação de dramaturgos — tanto no âmbito de cursos regulares como no de modelos variados de laboratórios de escrita. A dramaturgia parece estar voltando ao primeiro plano. Na mesma onda, verifica-se a presença cada vez mais notável de atores e atrizes buscando se entender com os ofícios da escrita. A desierarquização dos patamares criativos, inerente aos processos coletivizados, também autorizou o deslocamento dos criadores de seus postos exclusivos de origem e, consequentemente, aproximou as esferas da criação, criando agentes duplos, às vezes triplos, na produção da obra artística. No âmbito dos grupos, os papéis de diretor, dramaturgo e ator às vezes são exercidos em rodízio por seus integrantes. E isso ocorre também entre grupos — o ator de uma companhia pode ser dramaturgo ou diretor na produção da companhia amiga.

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Nesses vaivéns de aprendizagem, entre a cena e o laboratório de texto, está se formando uma nova geração de dramaturgos. É interessante ressaltar a fertilização mútua entre essas instâncias, que contribui para o amadurecimento da escrita: a aproximação do palco lhe injeta vitalidade e o trabalho sobre o texto, pelo apuro técnico e ponderação crítica, lhe dá refinamento. Em suma, a dramaturgia não se faz mais apenas no papel. O texto cru é apenas uma das partes do projeto cênico que determina a dramaturgia que se realiza na cena, na rede de interações que entretece os diversos textos e as diversas vozes, na articulação entre os diversos elementos cênicos, atores e espectadores. É esse o lugar que se abre cada vez mais para a presença do novo dramaturgo, aquele que participa de um querer coletivo.

DRAMATURGOS PRESENTES E ENGAJADOS

No presente, entre nós, a renovação se dá em especial pela emergência de novas dramaturgias movidas por segmentos militantes da negritude e do composto LGBTQ+. O protagonismo recente de grupos negros de teatro e a inclusão cada vez mais desejada de travestis e transexuais na cena geram, em primeira instância, uma dramaturgia sustentada nos depoimentos dos performers, a partir de suas próprias memórias. Pela necessidade de compartilhamento, saindo desse patamar inicial, essa escrita já dá mostras de se ampliar na exploração de novos conteúdos associados aos respectivos projetos artísticos. A educação desse dramaturgo presente e engajado — e já vemos isso ocorrer — dá-se, então, no trânsito entre muitas esferas, até mesmo na escola formal, mas principalmente no confronto com dramaturgistas, atores e atrizes, diretores e críticos — iconoclastas ou gentis —, e nas experiências compartilhadas, vivências e residências artísticas, pesquisas livrescas e explorações de campo. Tirar dos ombros do dramaturgo o peso da herança de Shakespeare ou de Machado de Assis certamente promove uma liberdade maior de criação e não deve significar necessariamente platitudes e inacabamentos. Finalmente, isso depende do talento cultivado de cada um. Para não deixar dúvidas: talento minimamente entendido como imaginação, sensibilidade, habilidade no trato das palavras e muita disposição para o trabalho.

O TEXTO CRU É APENAS UMA DAS PARTES DO PROJETO QUE DETERMINA A DRAMATURGIA REALIZADA NA CENA, NA ARTICULAÇÃO ENTRE OS DIVERSOS ELEMENTOS CÊNICOS, ATORES E ESPECTADORES 107

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NO PRINCÍPIO, Dentre os editais de fomento ao teatro na cidade de São Paulo, a Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, do Centro Cultural São Paulo, se norteia pela ideia tradicional da dramaturgia como texto

KIL ABREU

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O VERBO APARTE


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ão são poucas as frentes abertas e os nós conceituais a serem desatados quando se lança a possibilidade de fomento à dramaturgia – desde a tentativa de definição do que seja, hoje, a experiência própria desta escrita maior que o texto até os contornos históricos da questão na cena brasileira. A pergunta que se apresenta de imediato diante de uma época de grande experimentação, de apagamento das fronteiras entre gêneros ou mesmo da não incidência da noção de gênero na escrita para o teatro: o que seria, afinal, a escritura que serve ao teatro? Fruto que hoje pode ser colhido em muitas árvores, inclusive naquelas não enraizadas no texto escrito, a dramaturgia inventa-se atualmente em processos múltiplos, que incluem o trabalho do autor de gabinete e os formatos dos quais derivam a “peça de teatro”, mas não só. Também é dramaturgia aquilo que resulta da pena de um autor ou autores já deslocado(s) para dentro da sala de ensaios, em criação colaborativa com os outros artistas. Pode ser também, nessa linha e em perspectiva mais radicalizada, a própria cena enquanto coisa espetacular, que dispensa o texto como suporte. No limite, trata-se de uma narrativa única, cujo roteiro não está totalmente dado e só se cumpre na misen-scène ou no evento performativo, no encontro efetivo com a plateia e no que se pode constituir como narrativa a partir de um dado contexto, sempre renovado. Quando anunciamos “fomento à dramaturgia”, sobre quais dessas experiências estamos falando? A tomar

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pelos projetos de incentivo à escrita para o teatro e pelos inúmeros centros de formação em uma cidade como São Paulo, não há dúvida de que, apesar da ampliação do conceito, o entendimento mais comum ainda é o de dramaturgia como sinônimo de texto para o teatro. Já não necessariamente no padrão da forma dramática ou enquadrado pelas noções de gênero, mas, ainda assim, uma escrita que via de regra antecede a representação. Instituições como SP Escola de Teatro e Escola Livre de Teatro de Santo André, bem como cursos importantes como o Núcleo de Dramaturgia do Sesi-British Council, movem-se nessas bases, salvo engano, ainda que, nas escolas, o contato entre aprendizes dos diversos cursos seja parte do plano pedagógico. Esse quadro nos mostra, então, que é necessário estabelecer ponto de vista para que o projeto de fomento venha a ser. É preciso anunciar o recorte, sob o risco de reduzir o entendimento daquele campo ampliado a uma experiência que, embora hegemônica, já não dá conta de todas as práticas recorrentes.

UM RECORTE: A MOSTRA CCSP

O Centro Cultural São Paulo, do qual sou curador de teatro, parte também desse princípio relativamente tradicional, o de dramaturgia como texto para o teatro, que antecede a cena, para criar um edital dedicado aos autores e autoras de teatro. A Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, que começou em 2015, foi disparada com uma pergunta: diante dos meios de produção existentes na cidade de São Paulo, o que poderia ser útil, que não repetisse modelos de fomento já dados? Verificamos que os editais de montagem são descolados da autoria dramatúrgica. A dramaturgia original é um acidente, pode estar como não estar, dependendo do projeto. Daí a ideia de um concurso público que começa pelos autores e autoras, começa pelo texto. E toda a sequência da cadeia produtiva/ criativa se dá a partir dele.

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A DRAMATURGIA ORIGINAL É UM ACIDENTE, PODE ESTAR COMO PODE NÃO ESTAR, DEPENDENDO DO PROJETO. DAÍ A IDEIA DE UM CONCURSO PÚBLICO QUE COMEÇA PELO TEXTO Diferente dos concursos de textos, que publicam as obras mantendo-as no lugar da literatura dramática, o edital oportuniza o processo criativo inteiro, fomentando a montagem e terminando na temporada, no encontro com a plateia, quando o texto já será então espetáculo. Em paralelo, a dramaturgia é impressa em brochuras e distribuída ao público. É uma tentativa de tornar mais íntima e, quem sabe, um pouco mais duradoura a experiência fugidia do espectador frente ao fenômeno teatral, em uma época na qual o texto de teatro ainda é pouco publicado e é dos nichos menos representativos no mercado editorial. A ideia de pequenos formatos não é novidade. Nas artes visuais há mostras e salões de pequenos formatos. No cinema, os chamados filmes de baixo orçamento. Nessas duas áreas, a expectativa é a de que o “pequeno” não seja indicador de obras artísticas de má qualidade; ao contrário, são condições a partir das quais a própria linguagem se articula. O pequeno formato já não será uma contingência, e sim um campo de provocações, de fomento criativo. O edital, que neste momento vai para a 5ª Mostra, recebe cerca de 250 textos candidatos por edição. Destes, três são escolhidos por ano para montagem. Nas duas primeiras edições, ao menos um dos três espetáculos nascidos do edital esteve entre os mais premiados do ano, e o próprio CCSP foi indicado ao prêmio Shell de Teatro, na categoria Inovação, “pelo estímulo à experimentação de novas formas cênicas, dramatúrgicas e de produção”. Autores e autoras em geral jovens, como Silvia Gomez, Vinicius Calderoni, Carla Kinzo, René Piazentini, Jhonny Salaberg, Ave Terrena Alves, Marcos Barbosa, entre outros e outras, estiveram entre os premiados e premiadas. Suas narrativas dão conta de um desenho generoso das questões relacionadas às subjetividades contemporâneas. São formas inquietas de contar a vida, em geral já não tributárias de gêneros específicos, que estão colocando sobre as tábuas uma parte dos impasses mais urgentes da sociabilidade brasileira atual. O fomento à dramaturgia configura-se, então, como o fomento à criação e difusão de imaginários estéticos e políticos da maior importância e como possibilidade de nos reunirmos em torno deles para fruir a vida, para vermos em chave nova as realidades – que são várias –, para nos mobilizarmos e nos comovermos com elas.

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DE

OS TEXTOS A publicação de uma literatura tão singular movimenta reflexões em torno do próprio texto e de suas potencialidades

ISABEL DIEGUES

TUDO 112

TEATRO PODEM APARTE


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S

para entender o quanto a performatividade das palavras (e das ideias escritas) contida no texto é impulso para a encenação, se o texto precisa da encenação ou se prescinde do corpo vivo para alcançar determinados sentidos e imagens.

ÚNICA EXIGÊNCIA: PROVOCAR

ou editora de livros. E sou editora porque a escrita, em suas mais diversas formas, me interessa como experiência de linguagem. Me encanto com os caminhos que um autor encontra para criar ideias, imagens, narrativas. E, mais ainda, com a apropriação que o leitor faz do texto no ato da leitura. Se essa potência é inerente a qualquer texto e sua leitura, no caso do texto dramático ela é o leitmotiv da escrita. O texto dramático é feito para ser apropriado pelos leitores que o tornarão encenação. Ele tem a vocação de se tornar algo para além de sua escritura. O que faz do texto uma dramaturgia não é sua forma, sua estrutura, a presença de eventuais rubricas ou diálogos — o que faz do texto uma dramaturgia é a sua impermanência. É ser um intermediário para se chegar à expressão viva que se fará dele. Não que o texto dramático não tenha vida própria. Muitos são fascinantes de (apenas) ler, e a potência de performance presente em todo texto, seja ele dramático ou não, está ali, latente. A palavra, ao ser lida, encarna um corpo próprio (produzido pelo leitor), e sua performatividade independe de seu compartilhamento. É a leitura feita por cada sujeito que faz emergir o germe da performatividade que toda combinação de palavras guarda em si. Por isso, e muito mais, meu especial interesse em pensar e publicar o texto escrito para o teatro. Para refletir a respeito do que faz um texto ser dramaturgia, para pensar sobre o que de cada texto é encenável ou não, para descobrir se o arrebatamento depende de sua encenação,

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Os textos de teatro podem ser escritos de muitos modos. Podem ter estrutura mais clássica, com rubricas e diálogos, podem ter indicações apenas conceituais, podem descrever cenário e luz, ensinar sobre os personagens ou nem indicar o que é dito por quem. Os textos de teatro podem tudo. Escritos, a princípio, para serem encenados, os textos de dramaturgia são a base de uma peça, são o seu começo. Ainda que, por vezes, eles ganhem forma final somente no processo de ensaios ou até depois da estreia. Mas é a partir das palavras que surgem os primeiros conceitos quando uma ideia para o teatro começa a ser germinada. Bem, não necessariamente: uma peça pode surgir de um gesto, um cenário, um personagem, de uma chuva. O que seria então o texto de uma peça? Um roteiro da encenação? Um guia para atores e diretores? Uma bíblia a ser respeitada à risca na montagem? Os textos de teatro podem ser tudo isso, podem não ser nada disso e podem ser muitas outras coisas. Nas pesquisas para as primeiras publicações da Coleção Dramaturgia, na editora Cobogó, em 2013, fui apresentada a muitos livros, muitas peças. Numa delas, na página em que se esperava ler a lista de personagens, um espanto: “Este texto pode ser encenado por um ou mais atores”. Ali se esclarecia finalmente, para mim, o papel do texto dramático. Ele seria o repositório — escrito — de ideias, conceitos, formas, elementos, objetos, personagens, conversas, ritmos, luzes, silêncios, espaços e ações que deveriam ser elaborados para que um texto virasse encenação. Poderia indicar, ordenar ou, ainda, não dizer. Para que pudesse ser de fato um texto dramático, a única exigência

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O QUE FAZ DO TEXTO UMA DRAMATURGIA É A SUA IMPERMANÊNCIA. É SER UM INTERMEDIÁRIO PARA SE CHEGAR À EXPRESSÃO VIVA QUE SE FARÁ DELE. era: ele deveria invariavelmente provocar. Provocar reflexões, provocar sons ou silêncios, provocar atores, provocar cenários, provocar movimentos. E, àqueles a quem fosse dada a tarefa de encenar, era entregue a batuta para orquestrar os dados do texto e torná-los encenação. Torná-los teatro. Esse lugar tão vago e tão instigante, indefinível e da maior clareza, faz do texto dramático uma literatura muito singular. Sim, literatura, por isso o publicamos. Publicamos para pensar a forma do texto, sua natureza, seu papel na encenação. Esse desejo de reflexão levou a Coleção Dramaturgia a crescer, alargar o espaço que ocupa nas prateleiras das livrarias, nas mesas nas portas dos teatros, nas estantes das casas; a expandir, assim, o alcance de um tipo de leitura com a qual se tinha pouca intimidade no Brasil.

EDIÇÃO, DIFUSÃO, REFLEXÃO

Nosso trabalho com o texto não se encerra na impressão do livro, ele segue com a distribuição nas livrarias, os debates e leituras, os encontros nos festivais e em tantos outros palcos. Para além de promover o hábito de ler teatro, queremos pensar a dramaturgia com autores, diretores, atores, produtores, toda a gente do teatro, e também curiosos e apreciadores. Muitos dos editores que heroicamente publicam textos de teatro no Brasil o fazem de forma independente, tanto na realização do livro quanto na promoção de sua circulação entre os leitores. Em junho, nas Dramaturgias, pudemos nos encontrar em torno da ideia da publicação e ampliação da leitura de peças de teatro, em uma feira de livros de dramaturgia, organizada por mim, que reuniu mais de trinta editores. Seguindo o caminho de discussão e difusão da dramaturgia, idealizamos para as Dramaturgias, eu e Antonio Martinelli, gerente do Sesc Ipiranga, a Maratona de Entrevistas, que reuniu doze dramaturgos em dois dias de conversas, provocados por Kil Abreu e José Fernando Azevedo e por mim. Maratona de dramaturgia, livro que a Cobogó e as Edições Sesc lançam agora, reúne essas conversas no sentido de ampliar nossos conhecimentos a respeito dos processos da escrita e como um desdobramento de nossas reflexões sobre as maneiras com que a dramaturgia pode ser elaborada, seus caminhos e leituras, e sobre a potência de um texto que já nasce para ser encenado.

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DA

TEATRO

FERIDA BRASILEIRA DO MUNDO —

JOSÉ FERNANDO DE AZEVEDO

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os últimos anos, vimos a radicalização de práticas que dão forma a combates travados por vidas que se movem “entre o gatilho e a tempestade”. Sobrevivendo às transições canceladas que definem a trajetória do teatro brasileiro, o teatro negro tem se configurado como evocação de muitos teatros. Uma catadora de papel elabora na forma de um diário um diagnóstico do país; uma voz procura corpos, encarna-os, os produz; um homem reconstitui a trajetória que forjou sua afetividade como forma de restituição de corpos e falas; haitianos esfumaçam em kreol a fronteira entre documento e ficção, impondo a imaginação como força produtiva; a fala de uma criança instaura as temporalidades que conformam o estado de sobrevivência; Brecht confronta-se com o spoken word; são negros os corpos que relembram a Revolução Cubana?; jovens reencenam sua revolta, reivindicando o direito à cidade... No trânsito entre o texto e a cena, fazendo e vendo amigos fazerem cena, no plano dos temas e das formas, entre tantas perguntas que me tomam de assalto, três mobilizam neste momento minha imaginação em chave de urgência.

“Em minha casa eu já mandei retirar os espelhos. Espelhos têm a mania de se meter em assuntos alheios”

NÁSTIO MOSQUITO

O FUTURO EXISTE? No Brasil, o corpo negro é um corpo da exceção, marcado segundo práticas de apagamento e violências que emergem de um inconsciente escravocrata a determinar formas de vida. O “país do futuro” antecipa quais futuros? Neste momento, o Brasil é um laboratório de práticas de exceção que apontam para formas ainda insuspeitadas de supressão de corpos e sujeitos. A violência sobre os corpos é concreta, e o assassinato é sua expressão mais imediata. Mas sujeitos se formam na medida em que corpos resistem, e resistência aqui, além de não morrer, quer também dizer o trabalho de produção de outros vínculos, de outra sociabilidade, de outras maneiras de inscrição social. Nesse processo, o “desmanche” institucional tornou-se uma lógica de gestão a reagir a toda forma de insurgência e ressurgência nesse campo de lutas que se chamou “A Nova República” e o seu simulacro de democracia. Daí a pergunta: O que acontece quando o movimento das margens ameaça o Estado e sua coreopolícia?1 Quais corpos e imagens a cena ainda produz neste paísfronteira chamado Brasil? O Brasil sempre foi o “país do futuro”. Ao menos essa foi a imagem autoconstruída que nos definiu durante muito tempo. É um bordão que já

1 André Lepecki, “Coreopolítica, coreopolícia”, ILHA, v. 13, n. 1, jan./jun. (2011) 2012, pp. 41-60.

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marcou regimes de governo. O livro de 1941 do escritor austríaco exilado no Brasil, Stefan Zweig, trazia esse título e uma perspectiva entusiástica acerca daquilo que o Brasil mostrava como paisagem em contraste com a desolação da guerra. Já o general De Gaulle, ao usar a frase, teria ironizado a incapacidade dos brasileiros para usar a riqueza natural em benefício próprio, acrescentando ao bordão o comentário: “e [o Brasil] sempre será o país do futuro”. A ironia evidentemente estava naquele “sempre”, que nos caiu como uma condenação. Já em nosso hino nacional tudo aparece como uma grande expectativa. O Brasil seria um “gigante pela própria natureza”, adormecido, “deitado em berço esplêndido”, que um dia acordaria para o seu destino. Recentemente, a compreensão nada metafórica sobre quem é o gigante adormecido se deu com levantes de zumbis fantasiados de verde e amarelo nas ruas pedindo a volta da ditadura, gritando bordões raivosos, numa intensidade que acabou por eleger um presidente. O gigante adormecido acordou, e compreendemos que não era bom, nem bonito, seu sonho noturno. Em geral, a expressão aparecia como uma promessa — para os otimistas; ou como manifestação de algo que nunca se realizava — para os mais críticos. Em geral, “país do futuro” trazia guardada a esperança de que um dia chegaríamos lá. E “lá” era um horizonte de desenvolvimento e progresso que se confundia com uma ideia de primeiro mundo. Todavia, uma surpreendente reversão parece ter acontecido. Um pouco do assim chamado desmanche do Estado, da fragilização dos direitos, um pouco do racismo à brasileira e suas consequências, um pouco da violência contra os pobres, de um espírito reacionário e protofascista, uma certa xenofobia risonha, tudo isso que define tão bem uma sociedade como a “nossa” e sua herança escravocrata parece estar se tornando uma regra — uma regra mundial. Como uma doença que se vai aos poucos alastrando. Alguns sociólogos como o

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alemão Ulrich Beck chegaram a cunhar, ainda no século passado, uma espécie de noção: a brasilianização do mundo.2 O mundo estaria se tornando cada vez mais brasileiro, de modo que somos, sim, o país do futuro. Mas não porque um dia chegaremos lá — e sim porque um dia todos estarão aqui onde sempre estivemos.3 Esse é o futuro. Essa temporalidade da exceção naturalizada é a ferida brasileira. Talvez a ferida brasileira do mundo.

O QUE SIGNIFICA SOBREVIVER? ... o sobrevivente é aquele que, tendo percorrido o caminho da morte, sabendo dos extermínios e permanecendo entre os que caíram, ainda está vivo. Ou, mais precisamente, o sobrevivente é aquele que após lutar contra muitos inimigos, conseguiu não só escapar com vida, como também matar seus agressores. Por isso, em grande medida, o grau mais baixo da sobrevivência é matar. Canetti assinala que na lógica da sobrevivência, “cada homem é inimigo de todos os outros”. Mais radicalmente, o horror experimentado sob a visão da morte se transforma em satisfação quando ela ocorre com o outro. É a morte do outro, sua presença física como um cadáver, que faz o sobrevivente se sentir único. E cada inimigo morto faz aumentar o sentimento de segurança do sobrevivente. Achille Mbembe4

No teatro, quando negros assumem a cena e, a partir do que são e vivem, pretendem

2 Ulrich Beck, O que é globalização? Equívocos do

globalismo: respostas à globalização. Trad. André Carone. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 3 Paulo Eduardo Arantes. “A fratura brasileira do mundo”, in Zero à esquerda. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. 4 Achille Mbembe. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção. Trad. Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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falar do todo, chamamos esse teatro de teatro negro. O jovem Martin Luther King, lendo Hegel, anotava em seu diário: a verdade é o todo. Da perspectiva de um negro, o contrário da verdade pode não ser a mentira. Nesse caso, a mentira é o adiamento, a suspensão, muitas vezes a destituição da verdade. Dessa perspectiva, o contrário da verdade é a dor. E todos nós sabemos: a dor é a verdade do sistema. O sistema promete algo que não pode cumprir, e o não cumprimento, ou suas mentiras, produzem espoliação, dor. O torturador sabe disso; o policial, na rua, talvez não saiba, mas intui e leva às últimas consequências a sua intuição. Quando um torturador ou um policial tortura em nome da verdade, ele sabe que tudo o que produz é... dor. Aquilo que o torturado pode vir a falar para cessar a sua dor não é necessariamente a verdade, mas ainda assim, se for verdadeiro, isso apenas evidencia o fato de que a fala de um torturado, quando ele fala, quer fazer cessar a dor. Dor aqui é todo um sistema.

Na novela Retrato calado, publicada pela primeira vez em 1988, a certa altura, numa nota de 1970, o filósofo e professor do Departamento de Filosofia da USP, um dos fundadores do Teatro Oficina, Luiz Roberto Salinas Fortes, refletindo sobre o que viu nos porões da prisão no Dops, escreve, sentindo ainda as dores da sessão de tortura: ... Pensar o pau-de-arara não seria, então, a mesma coisa que investigar a origem das línguas? [...] Não teria havido, a partir de determinado momento, a “esquadronização” geral, uma institucionalização nacional daqueles métodos que apenas começavam a ser utilizados, agora, também para os que ousavam erguer-se contra o regime? [...] E, entre a contestação propriamente política e a rebelião individual primitiva, haveria a partir de então intercâmbio, enriquecimento e mimeses contínua. Não deveríamos também fazer datar desses anos a ruptura com os padrões políticos vigentes, a passagem para um novo estágio, o abandono daqueles tempos idílicos em que a violência do poder convivera com a bucólica paz das ideologias dominantes?5

Esquadronização geral: no porão do Dops, Salinas viu generalizar sobre os corpos da classe média rebelde aquilo que até então estava reservado aos corpos negros supostamente pacificados. E pressentia: aquele laboratório do inferno ensaiava uma generalização sem precedentes, resultado de uma naturalização que, como toda naturalização, é violenta: o culpado deve pagar, e essa culpa é a criminalização da diferença. O contrário da verdade é a dor.

— 5 Luiz Roberto Salinas Fortes. Retrato calado. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

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O TEATRO É AINDA UM CAMPO DE LUTA. SE É ASSIM, PARA OS CORPOS AOS QUAIS ATÉ ENTÃO FORA NEGADO O EXISTIR PLENAMENTE, OCUPAR A CENA É MAIS DO QUE RECLAMAR UM DIREITO, É UMA AFIRMAÇÃO DA PRÓPRIA EXISTÊNCIA Se a escravidão moderna está na origem desse sistema, essa foi antes de mais nada uma tecnologia, base de um processo que sustentou a configuração do capitalismo desde sua origem mercantil, garantindo a expansão europeia. Do ponto de vista da colônia, a escravidão não é um arcaísmo, mas a expressão máxima da modernidade — a sua verdade. Sem escravidão na colônia, não haveria liberdade e autorrealização na metrópole. Mas a escravidão foi oficialmente abolida, também no Brasil, e abolir quer dizer ainda apagar. Nas periferias de São Paulo, quando alguém é morto, diz-se que o apagaram. Na contramão das deflagrações de um inconsciente escravocrata cifrado nas armas do Estado, presença também quer dizer um corpo que resistiu ao apagamento. Um corpo que não morre, que resiste, é mais que um corpo, é um sujeito. Na cena desse teatro negro, o negro não é apenas objeto de representação ou figura. Nessa cena, o negro é também presença, presença sendo produzida, na medida em que um corpo vivo ainda vive em cena.6

6 Cf. José Fernando Peixoto de Azevedo.

Eu, um crioulo. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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Corpos que resistem à redução alegórica sabem, no entanto, que a fisionomia da morte abarca tudo. Fugindo à paralisação do medo, há esse momento em que o corpo produz imagem. Esse corpo, que olha de viés no olho da morte, converte-se, na cena, em emblema. Neste caso, o emblema captura o momento-chave de embates históricos e permite ver que tais embates, suspensos na simultaneidade de presença e imagem, permanecem inconclusos. Olhando para a imagem, vemos nela algo que já aconteceu, algo que não cessa de acontecer, algo que precisa ser interrompido. Essa presença a produzir imagens, por tudo isso de que é portadora, torna-se um emblema, uma arma num combate sem fim. Há, portanto, os que sobrevivem produzindo cadáveres — o grau mais baixo da sobrevivência –; e há os que sobrevivem evitando o cadáver. Como escreveu Mbembe: Não há continuidade entre a terra e o céu... o ser humano tem de estar plenamente vivo no momento de morrer. O teatro é ainda um campo de luta. Se é assim, para os corpos aos quais até então fora negado o existir plenamente, ocupar a cena é mais do que reclamar um direito, é uma afirmação da própria existência. Lembro de um momento do filme Eu não sou seu negro, do haitiano Raoul Peck, em

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que o cineasta retoma o projeto de livro do escritor negro estadunidense James Baldwin, um livro nunca realizado sobre a vida e a morte de três amigos seus, emblemas do movimento negro. “Branco é uma metáfora do poder”, escreveu Baldwin, ele que se compreende então como uma testemunha, aquele que sobreviveu aos amigos mais jovens, os três assassinados antes dos quarenta anos. E o ano de 2018 começou com essas lembranças: Medgar Evers foi assassinado em 12 de junho de 1963, aos 38 anos; Malcolm X foi assassinado em 21 de fevereiro de 1965, aos 39 anos de idade; Martin Luther King foi assassinado em 4 de abril de 1968, aos 38 anos de idade. No Brasil, Edson Luís foi assinado em 28 de março de 1968, aos dezoito anos. Lembranças e o fato de que Marielle Franco foi assassinada em 14 de março de 2018, aos 38 anos de idade.

COMO FAZER O PASSADO PASSAR? Da experiência ritual, talvez o transe seja o exemplo mais radical de uma convivência produtiva de temporalidades. Para quem observa, o transe opera entre a reiteração performativa e a demanda narrativa. Basta, então, essa observação para compreender o alcance da prática como um “modelo de ação”. Visto assim, o transe não redunda numa alienação de corpos, uma vez que não se reduz a uma mera possessão ou perda total de consciência, de domínio de si — antes, resulta daí uma negociação constante, ritualizada, uma partilha de/ entre consciências. Iniciado e reinventado, esse corpo em trânsito não se deixa ser exorcizado, porque as forças que o atravessam não lhe são estranhas. A ancestralidade não se confunde com um “passado que não passa”, ela é a permanência de um convívio elaborado e reconhecido. Aqui, o corpo passa a operar outras corporalidades, outras vozes, outras falas; são também outras temporalidades que o habitam, outras temporalidades são produzidas. Esse corpo presentifica demandas de um passado não resolvido,

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fazendo falar esse passado num presente em que algo permanece não resolvido, num trabalho que visa contudo desbloquear essa temporalidade, produzir outras possibilidades — fazer o passado passar. Ocorre assim, mediada pelo corpo presente, uma espécie de arqueologia de futuros. Eis aqui o esquema de uma cena que produz o convívio temporal das demandas. Essa cena despacha violências que, encarnadas no jogo, pedem por interrupção; nesse espaço-tempo que é o centro de uma encruzilhada7 imaginada e produzida, despachamos demandas históricas de cura e superação. E isso não porque a cena se pretenda à ritualização de tais demandas. Menos que isso, há mesmo em cena deslizamentos programáticos, denunciando os bordões que já não garantem liberação. Talvez se ensaie aqui algum efeito de desnaturalização, mas a linguagem permanece guardiã de encantamentos e a palavra se faz carne. Ao jogo cabe o trabalho de desincorporar os fantasmas e fazer ver que não esquecer a dor implica, menos do que vivê-la outra vez, verificar o que ela imobiliza e adia. Desbloquear o presente implica elaborar o passado, mas também esse bordão crítico exige reconhecer as práticas de destituição de fala e anulação do corpo que transformaram em ausência programada a figura do negro no teatro brasileiro. Da perspectiva do trabalho, isso ainda implica interrogar pelas distâncias entre produção e consumo, esse, talvez, ainda o núcleo problemático do trabalho teatral entre nós. Mas aqui, quem sabe, o ponto: fazer teatro não seria também um esforço de mobilização?

7 Cf. os trabalhos de Leda Maria Martins, entre eles: A cena em sombras (São Paulo: Perspectiva, 1995), “Performances da oralitura: corpo, lugar da memória” (Revista Letras, Universidade Federal de Santa Maria, n. 26, jun. 2003), “Performances do tempo e da memória: os congados” (O Percevejo, Unirio, v. 12, 2003).

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INÉDITO

Um tom de sonho ou delírio embala Antes dos deuses, dramaturgia inédita de Daniel Veiga estruturada em deslocamentos, repetições, condensações. No texto, Ana, Eva e Abel se veem em situações rotineiras que estão a todo tempo sob o risco de se desmancharem. Leia a seguir dois trechos da peça

DANIEL VEIGA

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O público é recepcionado por uma completa desordem. Bagunça de briga feia. Em algum lugar à vista de todos está um relógio gigante, desproporcional, sem ponteiros.

eva ana eva ana eva

[...]

ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva

ana eva ana eva

ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana

Que horas são? Já passa das duas. O meu café? Você acabou de tomar. Você pôs açúcar? Três colheres. Quatro? Três. (ainda no espelho) O filho da puta estragou meu cabelo. Quem? O cabeleireiro. Que cabeleireiro? O cabeleireiro. Do centro. Que estúpido. É inveja. Aquele viado queria ter o cabelo assim. Igual o meu. Mas foi nascer com aquele cabelo ralo. É aquele que é quase careca? O filho da puta fudeu com o meu cabelo. Aposto que foi de propósito. Ele não ia fazer isso de propósito. Perder uma cliente? Fudeu muito. De propósito. Até parece que você não sabe como são as pessoas. Me dá o nome daquele xampu. É um imbecil. O xampu? O cabeleireiro. Eu compro o xampu pra você. Xampu não vai resolver. O que tá cagado é o corte. O corte... ... ... Saca? Sei. Tá escutando o telefone? Oi? (assustada) Eu não vou atender. Não quero. Eu atendo então. Não! ... ... Pode ser o cabeleireiro. Por que o cabeleireiro te ligaria a uma hora dessas?

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eva

ana eva

ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva

ana eva ana eva ana

eva ana eva

ana

Você não ouviu nada do que eu falei. Você nunca ouve. Eu tenho tentado. Você não faz o mínimo esforço. Você me acha louca que eu sei. Senta um pouco. Que dia é hoje? Você não lembra? Não, eu não lembro. Por que eu não consigo lembrar que dia é hoje? Isso não é normal. Não lembrar o dia em que a gente tá não é... Que merda! Minha cabeça tá latejando. Vamos embora daqui. Não. Eu não vou. Eu não saio daqui enquanto eu não souber que dia é hoje. Se eu falar você vai ficar mais tranquila? Eu não sei o quê… Eu não sei. Hoje é outubro. Outubro? Hoje é outubro. Mas por que tá tão frio assim? Porque a gente tá no inverno, ué. No inv…? Não. Isso tá errado. Outubro é primavera. Mas é inverno. Não é, não. Desde que eu era criança, outubro é primavera. Outono, no máximo outono, dependendo do lugar. Aqui é inverno ainda. Ainda? Vamos embora. O que me aconteceu? Por que você quer me tirar daqui? No inverno essa casa fica muito fria. A gente já tentou deixar ela aquecida, mas não deu certo. Lembra? Os aquecedores. As placas nas paredes, em todos os cômodos. Os cobertores. A lareira. Os incensos. Os cães. Eu odeio incenso, você sabe disso. Isso é bom. É muito bom você se lembrar disso. É claro que eu me lembro disso. Eu odeio incenso. Como alguém pode esquecer que odeia tanto uma coisa? Essa casa fica ainda mais fria no

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eva ana eva

ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana eva ana

eva

inverno. É insuportável. Você tá sempre gelada. O que você disse? Você tá sempre gelada. É insuportável. Mesmo quando a gente divide a cama, seu corpo não dá conta de me aquecer. Pelo contrário, eu fico ainda com mais frio. Como pode isso? Eu já me acostumei com a tua reclamação. Por isso uso meias. Não adianta usar meias. Você quer que eu durma em outra cama, então? Não. Eu posso deitar no chão. O chão é gelado. Tudo aqui é gelado. Por isso eu quero que a gente saia daqui. Pra algum lugar mais quente. Perto do cabeleireiro. O cabeleireiro? Lá era quente. (brava) Esquece isso. Comentário idiota. Mas lá era quente. (muito brava) Era quente, mas te machucava. Olha pra você, sua estúpida! Olha o estado em que você tá. Tudo por causa dessa ideia idiota de cortar o cabelo. Então a gente fica aqui e morre de frio já que você não presta nem pra me aquecer.

abel eva ana abel ana

abel

eva ana eva

Ana sorri desconcertante. Os três voltam ao breve silêncio desconfortável. abel

[...] ana

Os três começam a ajeitar a sala com muita agilidade, como se fosse um jogo entre eles. Tudo ajeitado: se posicionam como três bons amigos num ambiente íntimo.

abel ana eva

ana eva ana eva ana

(para Eva) Você não me disse que era casada com um intelectual. É assim que vocês chamam os nerds agora? (para Abel) Aposto que ela tem orgulho de você. Dá pro gasto, né, amor? Que isso! Você deixa ela falar assim?

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É daí pra pior. (beijando-o) Bobagem tua. Que fofos! E ele te ajuda com a tua escrita? Eu não poderia. Eu mais atrapalho do que ajudo. Eu duvido. Vocês parecem tão unidos. Aposto que sai alguma coisa aí desse meio. A Eva é do tipo solitária. De gabinete? É assim que vocês chamam? Que exagero! E quando você vai me deixar ler alguma coisa tua? Jamais! A escritora da sala é você. Eu só brinco com algumas palavras. São ideias bobas que aparecem no meio da noite acompanhando a insônia. Eu jamais conseguiria me manter só escrevendo. Não como você. Olha essa casa! Esses prêmios todos. O respeito que você tem. Ainda mais num país como o nosso. E eu não tô tentando fazer a modesta, não, tá? É uma constatação mesmo. Eu jamais faria você perder seu tempo comigo.

ana abel eva abel eva abel eva

(para Eva) Você precisa ver a coleção dela, amor. É incrível. Que nada! Conheço um cara que gastou uma puta grana e quase todo o tempo dele correndo atrás de selo. Selo! Vocês acreditam nisso? O tal cabeleireiro? Ele mesmo. Você conheceu ele? Claro. E o Abel também. Uma vez, numa recepção. Eu tava junto? Não me lembro. Faz tanto tempo. É que você já falou dele. Falei, é? Mais de uma vez até. Eu acho. O Abel anda meio esquecido.

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abel eva ana abel ana eva abel

eva ana

abel ana

eva ana abel ana eva ana eva abel ana eva abel ana

abel ana

Muita coisa pra fazer no trabalho. E qual é a sua coleção? É uma bobagem. Fala que eu quero ver a cara dela. Deixa pra lá, gente. Fala. Vísceras. Você acredita nisso, amor? A Ana coleciona vísceras! Não é incrível?! Vísceras? (orgulhosa) E bolas. Desde a adolescência. Testículos, intestinos, fígados, rins, pâncreas... Inclusive humanos. Inclusive humanos. Eu tenho também de bovinos, de ovinos, de gatos e os meus preferidos: de cachorros. Que diferente! Menos do que você imagina. Vocês bebem alguma coisa? Cerveja, se tiver. Trincando. Cerveja pra você também? Eu não tô bebendo. Nem uma taça de vinho? Eu tenho um Pinot Noir simplesmente divino. Melhor não. Você não pode abrir uma exceção? Pela noite especial. Seria uma ótima desculpa pra eu abrir a garrafa. Tá bem. Pode ser. Que coleção bacana, Ana. Deve dar muito trabalho pra manter. Um pouco. Mas eu não sou tão aficcionada assim. Então não invisto tanto da minha grana nem do meu tempo. Na verdade, eu tenho um camarada que cuida da parte mais difícil. Sabe como é? Eu imagino. Bom, eu já volto com as bebidas. Fiquem à vontade.

Ana sai e Eva assume uma postura agressiva. eva abel eva abel eva abel eva abel eva abel eva abel eva

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abel eva abel eva abel eva abel eva

abel

eva

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Você não faz o mínimo esforço. Ah, não, já vai começar? Olha o jeito que você me trata perto dela. O jeito que eu te trato? Você me acha louca que eu sei. Senta um pouco. Lê pra mim. Agora? O seu poema. Eu gosto tanto dele. Depois. Que dia é hoje? Você não lembra? Não, eu não lembro. Por que eu não consigo lembrar que dia é hoje? Isso não é normal. Não lembrar o dia em que a gente tá... Que merda! Minha cabeça tá latejando. É melhor a gente ir embora daqui. Não. Eu não vou. Ela tá sendo muito gentil. Por que tá tão frio aqui dentro? Hoje é outubro. Outubro? Hoje é outubro. Mas, então, por que tá tão frio assim? Porque a gente tá no inverno, ué. No inv…? Não. Isso tá errado. Outubro é primavera. Mas é inverno. Não é, não. Desde que eu era criança, outubro é primavera. Outono, no máximo outono, dependendo do lugar. Bom, aqui é inverno ainda. Vamos embora. A gente não devia ter vindo. No inverno essa casa fica muito fria. Ela já tentou deixar isso aqui aquecido, mas não deu certo. Lembra, Abel? Os aquecedores. As placas nas paredes, em todos os cômodos. Os cobertores. A lareira. Os cães. Os incensos. Eu odeio incenso. Aqui tá muito frio mesmo. Você tá sempre gelado.

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abel eva

abel eva abel eva abel eva abel eva abel eva abel eva abel eva

O que você disse? Você tá sempre gelado. É insuportável. Mesmo quando a gente tá deitado embaixo do edredom, seu corpo não dá conta de me aquecer. Pelo contrário, eu fico ainda com mais frio. Como pode isso? Eu já me acostumei com a sua reclamação. Por isso eu uso meias. Não adianta usar meias. Você quer que eu durma em outra cama? Não. Eu posso deitar no chão. O chão é gelado. Tudo é gelado. Por isso eu quero que a gente saia daqui. Pra onde? Pra algum lugar mais quente. Perto do cabeleireiro. Que cabeleireiro? Lá era quente. Do que você tá falando, Eva? Então a gente fica aqui e morre de frio, já que você não presta nem pra me aquecer.

Ana volta com as bebidas. Os três bebem tudo e param. Estão se encarando tensos, soam sete badaladas do relógio sem ponteiros. Subitamente Abel volta a bagunçar o espaço, enquanto Ana volta a enfaixar a cabeça de Eva.

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DRAMA


O LIVRO Em oposição ao caráter imutável dos livros, a publicação de dramaturgia revela as transformações e lacunas do texto para teatro e, ao evidenciar sua falta constituinte, potencializa a performatividade que ele traz em si através da leitura

EM

LÍGIA SOUZA OLIVEIRA

PERFORMANCE 116

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E

m 24 de novembro de 1963, Samuel Beckett escreveu uma carta para seu editor na qual constava o seguinte trecho: “Eu percebo que não posso estabelecer o texto definitivo de Play sem um certo número de ensaios. Estes devem começar com [o diretor] Serreau no próximo mês. O texto de Alan certamente necessitará de correções, não nos diálogos, mas nas instruções dadas nas rubricas”.1 Depois dessa correspondência, Beckett atrasou em mais de um ano a publicação da peça devido às diversas transformações que realizaria a partir do acompanhamento dos ensaios. Beckett iniciaria anos depois a empreitada de encenar seus textos. A revisão das escrituras tornou-se ainda mais intensa, de acordo com as descobertas trazidas pelo palco, e o trabalho com os editores, ainda mais conturbado, devido a atrasos e a constantes modificações. O teórico e editor Stanley Gontarsky relata que versões da mesma peça se proliferaram e inúmeras variantes textuais circulavam entre produtores, diretores e editores. As transformações eram tamanhas que podemos encontrar diferentes versões das obras de Beckett até em edições na mesma língua, como nas inglesas e norte-americanas. A relação com o livro de dramaturgia estava condicionada sempre à sua materialidade cênica, suas constantes transformações e à sua condição efêmera, em contraposição ao caráter imutável dos livros. Outra perspectiva da relação entre palco e papel se apresenta na proposição de Valère Novarina. Nas suas publicações, o dramaturgo francês constrói materiais brutos para a edificação da cena, mas também totalmente potentes para a leitura. Ele publica volumes do que chama de teatro utópico, caracterizado por seu aspecto de romance subdialogado ou de poesia em ato,2 que geralmente contêm um número grande de páginas. Ele encena, então, vários espetáculos a partir de recortes desta primeira publicação. Por fim republica as obras, agora em versões para a cena, com outros títulos e modificações diversas, que vão de transformações de palavras pontuais até trechos inteiros que são

1 Stanley Gontarsky, “Revisando a si mesmo: O espetáculo como texto no teatro de Samuel Beckett”, Revista Sala Preta, n. 8, pp. 261-280. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2238-3867.v8i0p261-280>. Em seu artigo, Gontarsky apresenta várias passagens da relação entre encenação e publicação na obra de Beckett. 2 Esses livros já possuem em seu cerne uma essência teatral, de jogo entre corpos falantes; Novarina o classifica dessa maneira, porém, para diferenciar os fluxos de escrita. O teatro utópico se apresenta como um teatro para ser lido, um teatro que, da forma como está no livro, tem sua fruição mais potente no ato da leitura. Um exemplo disso é Le Drame de la Vie [O drama da vida], que possui 2587 personagens e só pode ser encenado integralmente na leitura.

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retirados ou inseridos no texto. Um exemplo desta composição é o livro La Chair de l’homme [A carne do homem], que deu origem a cinco dramaturgias: La Loterie Pierrot [A loteria Pierrot], Le Repas [A refeição], L’Avant dernière des hommes [O penúltimo dos homens], Le Jardin de reconnaissance [O jardim do reconhecimento] e L’Équilibre de la croix [O equilíbrio da cruz]. O processo de passagem do drama burguês para o chamado drama moderno3 no final do século 19 trouxe uma grande transformação para a utilização do texto na cena teatral, quando o reinado do textocentrismo deu lugar a experimentações que explorassem outros formatos para além do drama. Esse período foi o estopim para a emancipação da cena e para o desenvolvimento do papel do encenador e de construções cênicas autônomas. Desde então, a publicação dos textos acabou por também revelar essa outra configuração teatral, fora do primado do texto. Tanto as dramaturgias que são publicadas anteriormente à encenação quanto aquelas que dela resultam encontram no livro uma potência para demonstrar a complexidade da escrita teatral frente às mil contradições de sua relação com a cena.

OBJETO LIVRO

As artes visuais parecem já haver desenvolvido mais a condição do livro como obra de arte. Para além da discussão da publicação como objeto material que possa ser concebido como uma escultura, as reflexões dos chamados livros de artista originam do catálogo das exposições, que deixa de atuar como mero registro do acontecimento artístico que se dá nas galerias e museus. O livro de artista, livro-objeto, livro-poema ou livro-obra passa a ser reconhecido como uma obra estética em si, que conjuga forma a conteúdo. Para a pesquisadora Edith Derdyk, “pensar livro de artista significaria considerar o próprio livro como pré-texto poético, isto é, considerar todos os ingredientes construtivos do livro, poderíamos sugerir que forma e conteúdo, significante e significado, aqui, tornam-se aliados inseparáveis e indissociáveis”.4 Uma experiência radical é French Fries (Visual Studies Workshop, 1984), dos dramaturgos americanos Dennis Bernstein e Warren Lehrer, cuja dramaturgia propõe total independência do teatro, construindo uma encenação na própria página. Nas páginas do livro percebemos a cenografia da peça se constituir a partir de ícones, placas e peças gráficas vinculadas geralmente às lanchonetes fast-food. A região da folha onde se concentram certos textos corresponde à posição do ator em cena, e cada personagem possui uma fonte e uma cor diferente. Amir Cadôr considera: “French Fries é uma peça impossível de ser encenada nos palcos e, por isso, existe apenas no livro”.5 French Fries aponta para o nosso entendimento de que as publicações de teatro devem possibilitar uma fruição da obra pela leitura tão potente quanto aquela proporcionada pela encenação. O livro como uma obra de arte

3 Em Teoria do drama moderno (1880-1950) [São Paulo: Cosac Naify, 2011], Peter Szondi elenca e analisa uma série de textos teatrais que explodem o formato do drama e caminham para o que ele chama de uma epicização do teatro. Alguns dramaturgos mencionados por ele são Tchekhov, Pirandello, Maeterlinck e Brecht. 4 Edith Derdyk, Entre ser um e ser mil: O objeto livro e suas poéticas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2013, p. 14. 5 Amir Cadôr, Ainda: o livro como performance. Belo Horizonte: Museu de Arte da Pampulha, 2014, p. 36.

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autônoma. Não se trata de publicar a obra de teatro para atender às condições da literatura tradicional; pelo contrário, o livro de dramaturgia deve evidenciar em si uma falta. Para Novarina, a fruição do leitor deve se aproximar da operação de um ator: empresta-se o seu sopro às palavras no papel. Essa é a falta permanente que a dramaturgia no papel revela e assume: o corpo está carimbado nas palavras ao mesmo tempo que se mostra um desejo constante. É nessa falta que o livro de dramaturgia se compõe. Mas não se trata de uma falta simples, da cena. Jean Pierre Ryngaert já nos alertava que essa ilusão acaba por diminuir as potencialidades do texto escrito, no “equívoco da representação em socorro do texto”.6 Essa falta não é o palco, e sim o próprio leitor, com a fisicalidade e o sopro que lhe é próprio. Acreditamos que a publicação do texto teatral expande a condição da Estética da Recepção, que evidencia o trabalho de criação do leitor conjuntamente com a obra. Umberto Eco, em Lector in Fabula, lança a provocação de que “o texto é uma máquina preguiçosa que exige do leitor um renhido trabalho cooperativo”.7 Já Ryngaert afirma que “o nosso corpus [dramaturgia contemporânea] reúne os mais preguiçosos de todos”,8 por considerar que o texto teatral exige do leitor uma capacidade ainda maior de criação, a materialização do livro pelo sopro, tal qual o ator. Reforçando a condição autônoma do texto no papel, não estamos querendo igualar a condição performativa do teatro à do livro. São meios diferentes, que possuem suas singularidades. Paul Zumthor, em Performance Recepção Leitura, considera que a performatividade contida no teatro não é do mesmo nível que a performatividade do livro. Para ele, para que o acontecimento

6 Jean-Pierre Ryngaert, Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes,1996, p. 19. 7 Umberto Eco, Lector in Fabula. São Paulo: Perspectiva,1986, p. 11. 8 Jean-Pierre Ryngaert, Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 3.

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estético aconteça em sua potência performativa, é necessário que o momento de transmissão seja o mesmo da recepção, o que não acontece na leitura de um livro. Mas Zumthor não acredita que a performatividade é inexistente neste caso. Segundo o teórico, há no livro uma “presença invisível” que mobiliza o leitor e o leva a performatizar o texto.9 O público adentra o teatro, vê uma série de objetos, uma disposição cenográfica, mas os atores ainda não estão presentes e o espetáculo ainda não começou. “Pode-se dizer que aí existe teatralidade?”, indaga a pesquisadora francesa Josette Féral. Afirmar que sim, ela diz, é perceber que o trabalho do público já reconhece a performatividade daquele espaço; “a disposição teatral do lugar cênico traz em si certa teatralidade”.10 O público, assim, é o agente responsável por reconhecer o espaço como portador de teatralidade, pois já houve ali algumas construções, alguma espetacularidade anterior. É nesse sentido que podemos pensar a publicação de dramaturgia: o objeto livro é a cenografia que constrói uma teatralidade, permitindo que o leitor elabore uma encenação mental ao ler a dramaturgia; sabe-se que é necessário partir da materialidade da cena e da voz para que o jogo estabelecido pelas palavras no papel seja colocado em sua maior potência. Assim, o próprio texto teatral é portador de teatralidade. Mas Henri Meschonnic vai ainda mais longe. Contrapondo-se a Zumthor, ele acredita que a oralidade, essa construção advinda do corpo, pode ser a base para a criação, tanto da palavra falada quanto da palavra escrita. Para ele, há oralidade onde há elaboração da linguagem a partir de uma condição corporal, quando a construção da frase passa por aspectos tanto semânticos

9 Paul Zumthor, Performance Recepção Leitura. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 68. 10 Josette Féral, Além dos limites: Teoria e prática do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2015, p. 84.

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quanto semióticos. Dessa forma, o oral está composto tanto em aspectos gráficos, que sinalizam pausas, por exemplo, como na escolha das palavras que produzem sonoridades que ressaltam o ritmo como composição corporal. Para Meschonnic, há na teoria do ritmo uma forma do sentido. Portanto, poderíamos pensar a oralidade tanto no escrito quanto no falado. Com isso, a ideia de que o texto teatral necessita da complementaridade da cena acaba sendo despontada. Há na publicação de dramaturgia uma autonomia tão corpórea e performativa quanto na cena, que advém do ritmo e da materialidade que evoca na leitura. A oralidade de Meschonnic nos convida a pensar o texto teatral como potência independente e inventiva.

O TEATRO NO INTERIOR DO TEXTO

No Brasil, algumas experiências recentes de publicação de dramaturgia evidenciam a condição performativa do livro, extrapolam a ideia de registro da cena e exploram outras possibilidades da performatividade da página. O jardim, de Leonardo Moreira (Sesi-SP, 2012), se organiza a partir da construção cênica na qual o público, dividido em três, acompanha três cenas que acontecem em espaços diferentes que são invadidos pelos ecos sonoros das outras cenas. Essa superposição de palavras e sonoridades é reconstruída em outra mídia, a página, e se revela essencial na composição do texto. No livro, o texto de uma cena encontra o eco de outra na justaposição das palavras no papel. A cena que toma o primeiro plano auditivo no espetáculo é impressa em cor mais forte, e a outra cena, da qual se escutam somente resquícios, é registrada no papel em tom mais claro. Nessa experiência de leitura, encontramos um livro autônomo, que propõe uma fruição múltipla, fora das condições enrijecidas dos enredos do drama tradicional. Ao ler O jardim, ouvimos o eco da construção cênica e percebemos que a publicação é posterior à encenação. Também

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percebemos, porém, que o autor escreve na versão livresca um material pulsante e passível de possibilidades diversas de leitura. Já no caso de alguns livros que compõem a coleção Dramáticas do Transumano, editada pela 7Letras e por Roberto Alvim, encontramos alguns exemplos de textos que investigam a chamada pictocoreografia e desbravam a página como um quadro em branco. As palavras exploram o espaçamento, a fonte, o tamanho e a disposição na página, para sugerir ou instigar uma encenação futura a partir de outras proposições que fogem da estrutura fala-rubrica. Angélica Kauffmann, em Happycinio, e Martina Fischer, na dramaturgia Aqui (publicadas no mesmo volume, em 2012), influenciadas também pelas construções concretistas de Haroldo de Campos, desenvolvem outras edificações sonoras a partir da imagem da palavra impressa. Desde a publicação de seu primeiro texto, Por Elise (Cobogó, 2012), a atriz, performer, diretora e dramaturga Grace Passô já concebe a publicação de dramaturgia para além do registro cênico, do caráter de preservação da efêmera linguagem teatral. As rubricas deste texto muitas vezes não descrevem objetivamente as ações cênicas, elas compõem imagens poéticas que instigam o leitor a expandir as possibilidades de leitura. De forma ainda mais elaborada, a publicação de Vaga carne (Javali, 2018) extrapola o livro como memória teatral. No espetáculo, uma voz que passeia entre objetos, habitando-os temporariamente, se encontra no corpo de uma mulher, discutindo, além de tudo, o quanto aquela carne feminina modifica completamente a condição da voz. O mesmo acontece no livro. A voz, ali, reside em suas páginas e se coloca não somente enquanto palavras do papel, mas também como habitação sensorial do objeto. O silêncio sugerido pela autora é transposto em várias páginas em branco, que convidam o leitor não só a perceber a ausência das palavras, mas, ainda mais potente, a habitar o silêncio que o objeto livro propõe. A voz que compunha o livro se apropria de

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O OBJETO LIVRO É A CENOGRAFIA QUE CONSTRÓI UMA TEATRALIDADE E PERMITE QUE O LEITOR ELABORE UMA ENCENAÇÃO MENTAL AO LER A DRAMATURGIA seu formato, de sua materialidade, para construir a experiência estética. Mais uma vez, forma e conteúdo se conjugam. Um livro que denuncia as transformações que o texto teatral sofre a partir do trânsito entre as linguagens do teatro, da literatura e da performance é Insetos, de Jô Bilac (Cobogó, 2018). Na publicação, o autor decide integrar ao livro a versão adaptada pelo diretor Rodrigo Portella e pela Cia. dos Atores. A publicação apresenta, dessa forma, a versão do autor do lado esquerdo e a versão cênica adaptada na página à direita. Conforme o leitor percorre as páginas, pode comparálas. As cenas são nomeadas com diversas espécies de insetos: formiga, mariposa, besouro, barata etc., e na rubrica inicial encontramos a seguinte indicação: “[o leitor] notará que uns ficam parados, outros voam para longe, e outros ainda, pousam logo ali, algumas páginas adiante”.11 De acordo com a composição, original ou adaptação, encontra-se uma diferente configuração desses insetos. Por exemplo, depara-se com o título da cena na página da direita: “mariposa/borboleta pousaram na adaptação da cena 8”,12 seguido de uma série de desenhos que ilustra o voo desses insetos em direção à outra página. Em outro momento, agora na página da esquerda, lê-se “uma nova barata veio

11 Jô Bilac, Insetos. Rio de Janeiro: Cobogó, 2018, p. 15. 12 Ibid., p. 55.

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ao mundo na adaptação”,13 seguido por laudas e laudas da esquerda somente com ilustrações de baratas. A composição das duas versões, não só no mesmo livro, mas nos espaços contínuos da página, convida o leitor a percorrer o mesmo percurso: trânsitos infinitos da palavra entre instâncias da literatura e do teatro. É claro que o trabalho de publicação de dramaturgias não deve ser pensado somente a partir de construções tipográficas. Roland Barthes já nos advertia sobre a possibilidade de perceber a própria linguagem literária como uma encenação.14 No entanto, o que esses novos formatos deflagram é justamente que a estrutura convencional da dramaturgia não dá mais conta de evidenciar a diversidade das produções escritas para o teatro. O livro de dramaturgia começa a desdobrar as suas possibilidades de fruição, deixando de ser considerado somente na construção de informações sobre a cena para ser uma experiência autônoma e extremamente potente. Como já dizia Novarina, há um teatro no interior de cada texto, e é o olhar, a voz, o pensamento do leitor que poderá construir esse acontecimento.

13 Ibid., p. 70. 14 No livro Aula [Cultrix, 1981], Barthes explica que a literatura encena as palavras em vez de somente utilizá-las. Ele afirma que há um sabor para além do saber, que há uma criação para além da lógica da realidade que só é possível perceber na forma como a linguagem é articulada pela literatura.

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DRAMATIS PERSONAE

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DRAMATIS PERSONAE


de escrita cinematográfica com André Colazzi, além de atuar no cinema e na televisão.

Aimar Labaki (São Paulo – SP, 1960) Dramaturgo, diretor, tradutor e ensaísta, formou-se em direito na Universidade de São Paulo e é autor de 23 peças e colaborador em roteiros de telenovela. Parte de sua dramaturgia foi reunida no volume O teatro de Aimar Labaki, publicado em 2002 pela Imprensa Oficial na Coleção Aplauso; a Boitempo lançou A boa em 1998, e a Giostri, Pirata na linha e MotoRboy, em 2010, e Marlene Dietrich – As pernas do século, em 2012.

Aldri Anunciação (Salvador – BA, 1978) Doutorando em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), o ator e dramaturgo já escreveu nove peças, entre elas, A mulher do fundo do mar: versão syria (2016), O campo de batalha: A fantástica história de uma guerra bem-sucedida (2014) e Namíbia, não! (2012). Esta última recebeu os prêmios Fapex (2010) e Braskem de Melhor Espetáculo e Melhor Texto (2012), além do prêmio Jabuti de 2013, na categoria Juvenil, por sua edição publicada pela Edufba.

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Alexandre Dal Farra (São Paulo – SP, 1981) O dramaturgo, diretor e escritor assina os textos dos espetáculos do Tablado de Arruar e colabora com diversas outras companhias, como Vertigem, Coletivo Bruto e Grupo XIX de Teatro. Com Mateus, 10 (2012), venceu o prêmio Shell de Melhor Autor. Dentre as dezenove peças de sua autoria, Trilogia Abnegação (2014-16) foi publicada em 2017 pela Javali e Abnegação 1 saiu no mesmo ano pela editora francesa Les Solitaires Intempestifs. É doutorando em artes cênicas na Universidade de São Paulo (ECAUSP) e em 2013 publicou o romance Manual da destruição pela Hedra.

Angela Ribeiro (Belém – PA, 1975) Publicitária, atriz e dramaturga, frequentou o Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council, em São Paulo, onde mora desde 1999. Venceu o prêmio Shell de 2018 com o texto Refluxo, publicado pela editora do Sesi. Integra a Cia. Bruta de Arte e outros coletivos, como o Grupo de Pesquisa de Cinema AP43, o núcleo de escrita do Eco Teatral e o grupo de estudos

Ave Terrena Alves (São Paulo – SP, 1991) Dramaturga e poeta, é integrante do grupo de teatro Laboratório de Técnica Dramática. Seu texto mais recente, As 3 uiaras de SP City (2018), foi selecionado para a IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, do Centro Cultural São Paulo, e publicado pela mesma instituição. As peças O amor canibal (2014) e O corpo que o rio levou (2017) saíram pelas editoras Sesi e Giostri, respectivamente, e o livro de poemas Segunda queda foi editado pela Kazuá em 2018. Cursa letras na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e integrou o Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council em 2014.

Beth Néspoli (Cachoeiro do Itapemirim – ES, 1958) Repórter e crítica de teatro do jornal O Estado de S.Paulo entre 1995 e 2010 e integrante da equipe do Teatrojornal – Leituras de Cena, site de crítica criado em 2010, possui doutorado

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em artes pela Universidade de São Paulo. Entre seus artigos , destaca-se “Teatro da Vertigem: uma cena na Ágora”, publicado em O ato do espectador, pela Hucitec, em 2017.

Carolina Bianchi (Porto Alegre – RS, 1984) Diretora, performer e dramaturga, é formada pela Escola de Arte Dramática (EAD-USP) e autora de sete peças, entre elas Mata-me de prazer (2016), Quiero hacer el amor (2017) e Lobo (2018). Colaborou na criação de Revolta Lilith (2018), da diretora Martha Kiss Perrone, espetáculo em que também atua. Vive em São Paulo desde 2005.

Claudia Schapira (Buenos Aires – Argentina, 1964) Atriz, dramaturga, diretora e figurinista, vive no Brasil desde 1976. Formou-se na Escola de Arte Dramática (EAD-USP) e é uma das fundadoras do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Autora de quinze peças, entre elas Bartolomeu, que será que nele deu? (2000) e Cindi-Hip Hop, pequena ópera-rap (2008), que lhe rendeu o prêmio Cooperativa Paulista de Teatro na categoria Dramaturgia. Desde 2012 trabalha como roteirista

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no coletivo audiovisual Manifesto Impromptu e prepara o lançamento de Vermelhas que sangram – dramaturgia em fluxo, com três peças sobre questões do feminino.

Daniel Veiga (São Paulo – SP, 1981) Ator e dramaturgo formado pela SP Escola de Teatro, é autor de cinco peças, entre elas, Angela boneca (2016) e Da mais bela que tive (2014), cuja dramaturgia ganhou Menção Honrosa no prêmio Cidade de Belo Horizonte. Em 2018 estreou Antes dos deuses com o grupo Teatro da Desordem, que acaba de fundar.

Daniela Pereira de Carvalho (Teresópolis – RJ, 1977) A dramaturga, mestranda em artes cênicas na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), iniciou sua trajetória em 2002 na companhia carioca Os Dezequilibrados. Autora de 21 peças, entre elas Renato Russo – O musical (2006) e As próximas horas serão definitivas (2011), recebeu o prêmio da Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR) de Melhor Autor por Não existem níveis seguros para o consumo destas substâncias (2006). Em 2012, seu

texto Nem um dia se passa sem notícias suas foi publicado pela Cobogó.

Dione Carlos (Rio de Janeiro – RJ, 1977) Dramaturga formada pela SP Escola de Teatro, estreou como autora em 2011 com Sete, dirigida por Juliana Galdino na Cia. Club Noir. A peça foi publicada, com Bonita (2015) e Kaim (2017), no volume Dramaturgias do Front pela editora Primata. Autora de onze peças – entre elas, Oriki (2013), Sereias (2014) e Revoltar (2018) –, trabalha em parceria com diferentes companhias e atualmente atua como orientadora do Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT).

Emanuel Aragão (Brasília – DF, 1982) Ator, roteirista e dramaturgo, se formou em filosofia pela Universidade de Brasília (UnB) antes de se mudar para o Rio de Janeiro em 2005. Escreveu sua primeira peça, Um homem e três janelas, em 2007, ano em que fundou a companhia Cia das Inutilezas, já extinta. Assinou cerca de vinte dramaturgias e publicou o romance Reflexão a respeito do vaso, em 2011, pela editora

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Confraria do Vento. Nada (2012) e Hamlet – Processo de revelação (2015), na qual também atua, foram desenvolvidas em parceria com o coletivo Irmãos Guimarães.

Grace Passô (Belo Horizonte – MG, 1980) Diretora, dramaturga e atriz, trabalha em parceria com artistas e companhias e em projetos autorais. Em 2004 fundou o Espanca!, onde permaneceu por dez anos e assinou a dramaturgia de espetáculos como Marcha para Zenturo (2010) e Amores Surdos (2006). Com o grupo, também dirigiu Por Elise (2005) e Congresso Internacional do Medo (2008), ambas de sua autoria. Dentre os trabalhos que escreveu e dirigiu estão Carne moída (2014), com formandos da Escola de Arte Dramática (EAD-USP), e Vaga carne (2016), em que também atua.

Universidade de São Paulo (ECAUSP). Entre seus principais trabalhos teatrais estão Colônia (2018) e O silêncio depois da chuva (2011), indicadas aos prêmios APCA e Shell, respectivamente, e publicadas pela Glac e pelo Sesi. É responsável, ao lado do dramaturgo João Turchi, pelo grupo cinza, atuante em intervenções urbanas, literatura, artes visuais e dramaturgia.

Isabel Diegues (Paris – França, 1970) A editora, escritora e cineasta se dedicou à produção, direção e assistência de direção de curtas e longas-metragens, entre eles Madame Satã (2002), de Karim Aïnouz, que produziu, e Marina (2004), que dirigiu. Formada em letras, é diretora editorial da Cobogó, onde organizou títulos como os seis volumes de entrevistas com Hans-Ulrich Obrist (20102014) e a Coleção Dramaturgia, com mais de cinquenta livros de textos de teatro contemporâneo.

Tiago Luz

Fernanda Capobianco (São Paulo – SP, 1975) Formada em psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e como atriz pelo Teatro Escola Macunaíma, é curadora e diretora artística do Instituto Capobianco há dezenove anos, onde criou, em 2010, o primeiro projeto de residência artística da instituição, com a francesa Lea Dant. Desde então, recebeu Kiko Marques e Rafael Gomes para processos de criação e apresentação de seus espetáculos. Realizou mostras, núcleos de leitura e dramaturgia e oficinas com moradores do Anhangabaú, entre outras ações.

óperas, vídeos e performances. Dentre seus trabalhos recentes encenados em São Paulo estão Namorados da catedral bêbada (2009), Românticos da Idade Mídia (2009), Banana mecânica (2010), a tetralogia Jaguar cibernético (“work in progress”, montada em 2011) e São Paulo Chicago (2013).

Francisco Carlos (Itacoatiara – AM, 1956) Formado em filosofia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), radicado em São Paulo desde 2004, o dramaturgo e encenador escreveu mais de trinta peças, além de shows,

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Gustavo Colombini (São Paulo – SP, 1990) Dramaturgo e diretor, formado em artes cênicas pela

Jé Oliveira (Mauá – SP, 1983) Escritor, poeta e dramaturgo, formou-se na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT)

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e cursa ciências sociais na Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Em 2008 fundou o Coletivo Negro, para o qual escreveu Movimento número 1: O silêncio de depois... (2011), {ENTRE} (2014) e Farinha com açúcar ou sobre a sustança de meninos e homens (2016), peça contemplada em 2017 com o prêmio Questão de Crítica e publicada pela editora Javali em 2018. Autor de seis peças, em seu trabalho mais recente, Gota D’Água {PRETA}, atua e dirige.

Jhonny Salaberg (São Paulo – SP, 1995) Fundador e integrante dos coletivos Carcaça de Poéticas Negras e O Bonde, o ator e dramaturgo se formou na Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). Com Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã (2018), foi um dos premiados na IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, do Centro Cultural São Paulo. A peça, sua segunda a ser encenada, foi publicada pela Cobogó.

Jô Bilac (Rio de Janeiro – RJ, 1985) Dramaturgo formado pela Escola

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de Teatro Martins Pena, recebeu o prêmio Shell em 2010 e 2013 pelos textos de Savana glacial e Conselho de classe; esta peça também conquistou o Prêmio Cesgranrio de Teatro e o da Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR) na categoria de dramaturgia. Das 29 peças que escreveu, Insetos (2018), Infância, tiros e plumas (2015), Os mamutes (2012) e Alguém acaba de morrer lá fora (2011) foram publicadas pela Cobogó. Seus textos foram traduzidos na Suécia, Itália, França, Estados Unidos e Colômbia.

José Fernando de Azevedo (São Paulo – SP, 1974) Graduado e doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), é diretor, dramaturgo, pesquisador e professor da Escola de Arte Dramática (EAD -USP). Fundou em 1997 o Teatro dos Narradores, com quem realizou Cidade vodu (2016) e Cidade fim, cidade coro, cidade reverso (2011), entre outros espetáculos, e colabora com grupos como Os Crespos. Dentre suas publicações, destacam-se Próximo ato: teatro de grupo, lançado pelo Itaú Cultural em 2011, que organizou ao lado de Antônio Araújo e Maria Tendlau, e Eu, um crioulo, na coleção Pandemia da editora n-1, lançado em 2018.

Kiko Marques (Rio de Janeiro – RJ, 1965) Dramaturgo, ator e diretor, fundou em 2003 a Velha Companhia, com a qual encenou Sínthia (2016) e Cais ou indiferença das embarcações (2012), que venceu os prêmios Shell, Aplauso Brasil e APCA na categoria Melhor Autor. Formado como ator pela Escola de Teatro Martins Pena, atuou em diversas peças, em longas-metragens e na televisão. Transferiu-se em 1993 para São Paulo e dá aulas de expressão vocal e montagem no INDAC – Escola de Atores.

Kil Abreu (Belém – PA, 1968) O crítico e pesquisador de teatro é curador da área no Centro Cultural São Paulo. Graduado em jornalismo e mestre em artes pela Universidade de São Paulo (USP), já colaborou com a Folha de S.Paulo e com a revista Bravo!, foi curador dos principais festivais de teatro do país , professor e coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT) por dez anos e jurado do prêmio Shell por oito. Atualmente, é membro da Associação Internacional

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de Críticos de Teatro e crítico colaborador do Teatrojornal.

Larissa de Oliveira Neves (Campinas – SP, 1978) Professora do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona a disciplina Laboratório de Dramaturgia, na qual orienta os alunos a redigirem suas primeiras peças. Suas pesquisas de mestrado e doutorado, realizadas no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp), deram origem à organização dos livros O theatro: crônicas de Arthur Azevedo (Unicamp, 2009), O mambembe (Martins Fontes, 2010) e A pele do lobo e outras peças (Hedra, 2009).

Leda Maria Martins (Rio de Janeiro – RJ, 1955) Poeta e ensaísta com mestrado em artes pela Indiana University, doutorado em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pós-doutorado pela New York University. Lecionou nos cursos de letras e teatro da UFMG até 2018, quando se aposentou. É autora de diversos

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livros, dentre os quais se destacam A cena em sombras (1995) e Afrografias da Memória (1997), ambos lançados pela Perspectiva. Foi homenageada na primeira edição do prêmio Leda Maria Martins de Artes Cênicas Negras de Belo Horizonte, em 2018.

Lígia Cortez (São Paulo – SP, 1960) Atriz, diretora e educadora, é doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e dirige o Célia Helena Centro de Artes e Educação desde 1985. Integrou por cinco anos o Grupo de Teatro Macunaíma, sob direção de Antunes Filho, nos espetáculos Macunaíma (1980), Nelson Rodrigues, o Eterno Retorno (1981) e Romeu e Julieta (1984). Atuou em Cacilda! (1998), de José Celso Martinez Corrêa, A entrevista (2004), sob a direção de Marcelo Lazzaratto, e A dama do mar (2013) e Garrincha (2016), de Robert Wilson. Entre os espetáculos que dirigiu, estão Um céu de estrelas (1996) e Mulheres que bebem vodka (2010).

Lígia Souza Oliveira (Paranavaí – PR, 1987) Mestre em literatura pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutora em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (ECA-USP), a dramaturga, pesquisadora e professora é coordenadora e curadora do Núcleo de Dramaturgia do SESI Paraná. Das oito peças que já escreveu, teve suas encontros diários (2014) e para ler aos trinta (2017) encenadas. Idealizadora do blog de críticas de livros de dramaturgia Habitando o Papel, lançou em 2014 o livro personne pela editora Sesi-SP e em 2019, outros sons, pela Fundação Cultural de Curitiba.

Luís Alberto de Abreu (São Bernardo do Campo – SP, 1952) Dramaturgo, roteirista, consultor de dramaturgia e roteiro e professor, organizou o Núcleo de Formação em Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT) no Sesc nos anos 1980. Desde então, já recebeu diferentes prêmios, como APCA, Mambembe e Shell, e colaborou com diversos grupos e artistas. Dentre as mais

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de setenta peças de sua autoria, destacam-se Bella Ciao (1982), O livro de Jó (1995) e Um dia ouvi a lua (2010). Luís Alberto de Abreu: Um teatro de pesquisa, organizado por Adélia Nicolete e publicado pela Perspectiva em 2011, reúne catorze de seus textos.

Manoel Silvestre Friques (Rio de Janeiro – RJ, 1982) Professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e da Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi dramaturgista na criação de espetáculos como Laio & Crísipo (2015) e Outside (2011), dirigidos por Marco André Nunes, e em peças como Cine Gaivota (2012) e Lobo n.1: A Estepe (2008). Foi pesquisador-visitante da Columbia University (20152016) e da Université ParisNanterre (2019) e, dentre outros projetos, realizou a curadoria da aba Curto-Circuito na III Mostra Hífen de Pesquisa-Cena.

Marcio Abreu (Rio de Janeiro – RJ, 1970) Dramaturgo, diretor e ator,

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trabalha com diferentes artistas e grupos e em 2000 fundou a Companhia Brasileira de Teatro, com sede em Curitiba. Autor de quinze peças, recebeu prêmios de direção e melhor espetáculo como o prêmio Questão de Crítica, por Isso te interessa? (2011) e PROJETO bRASIL (2015), Cesgranrio, por Krum (2015), e Shell, por Esta criança (2012), entre outros. Pela Cobogó, publicou Nômades (2014), Maré (2015), PROJETO bRASIL e Preto (2017), este em coautoria com Grace Passô e Nadja Naira, e em 2018 a Javali lançou Nós (2016), peça do Grupo Galpão que escreveu com Eduardo Moreira e dirigiu.

Marcio Aquiles (Bocaina – SP, 1979) Bacharel em estudos literários e mestre em divulgação científica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o escritor, crítico e pesquisador coordena projetos internacionais na SP Escola de Teatro. Crítico da Folha de S.Paulo entre 2013 e 2014, já publicou O eclipse da melancolia, lançado pela Patuá em 2018, O amor e outras figuras de linguagem, na Giostri, em 2017, e Delírios metapoéticos neodadaístas, na 7 Letras, em 2012, entre outros.

Maria Shu (Guanambi – BA, 1976) Formada em letras e pós-graduada em língua portuguesa pela PUC-SP, em dramaturgia pela SP Escola de Teatro e em roteiro pela Academia Internacional de Cinema, a dramaturga e roteirista ganhou o primeiro lugar no concurso Feminina Dramaturgia em 2014 com a peça Ar rarefeito. Das dez peças que já escreveu, destacam-se Cabaret Stravaganza (2011), Giz (2013) e Epifania (2016) e Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus (2019). É uma das roteiristas da série Onisciente (Netflix), criação de Pedro Aguilera, e teve textos lidos e encenados na Suécia, Portugal, Cabo Verde e França.

Marici Salomão (São Paulo – SP, 1963) Dramaturga e jornalista, é coordenadora do Núcleo de Dramaturgia SESI-British Council e do curso de Dramaturgia da SP Escola de Teatro. Colaborou por anos com O Estado de S. Paulo e a revista Bravo! e formou-se dramaturga sob orientação de Luis Alberto de Abreu e Antunes Filho. Foi premiada em 1994 no concurso estadual do Teatro Popular do

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SESI com O retiro dos sonhos. Entre suas peças encenadas, estão Maria Quitéria (1997), Bilhete (2001) e Atos de violência (2005). A Imprensa Oficial publicou seus trabalhos em 2010 no volume O teatro de Marici Salomão.

Michelle Ferreira (São Paulo – SP, 1982) Atriz, dramaturga, roteirista e diretora, estudou teatro na Escola de Arte Dramática (EAD-USP) e é também graduada em ciências sociais e audiovisual. Integrou por oito anos o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), com coordenação de Antunes Filho. É autora de treze peças, doze delas encenadas, dentre elas: Os adultos estão na sala (2014), que também dirigiu; Reality (Final) (2009), montada pela sua A Má Companhia Provoca; e Tem alguém que nos odeia (2014), montada em 2016 na Escócia. Publicou Os médios (2016), pelo Centro Cultural São Paulo, e 4 da espécie – A história do corpo coisa nenhuma (2018), pela Patuá.

Newton Moreno (Recife – PE, 1968) O diretor, dramaturgo e roteirista é bacharel em artes

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cênicas pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre e doutor pela USP na mesma disciplina. Desde os anos 1990 vive em São Paulo, onde fundou, em 2001, a companhia Os Fofos Encenam; com o grupo, escreveu e dirigiu espetáculos premiados – dentre outros, recebeu o Shell e o CPT pela direção de Memória da Cana (2009). É autor de 22 peças já encenadas, das quais foram publicadas Agreste (2004), Refeição (2007) e Body Art (2004), em um volume da Imprensa Oficial, e em outra edição, pela Terceiro Nome, As centenárias (2006) e Maria do Caritó (2010).

Paula Autran (São Paulo – SP, 1974) Mestre e doutora em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), é autora de livros de poemas e infantis e de dez peças, além de ter editado, por cinco anos, o site Dramaturgia Contemporânea. Frequentou o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado por Antunes Filho. Suas peças Nos países de nomes impronunciáveis (2015) e O menino que não sabia chorar (2016) foram publicadas pela editora Patuá; a Dobra Editorial lançou sua Teoria e prática do seminário de dramaturgia em 2015.

Pedro Brício (Rio de Janeiro – RJ, 1972) Bacharel em cinema pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestre em teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), o dramaturgo, diretor e ator escreveu peças como A incrível confeitaria do sr. Pellica (2005), pela qual venceu o prêmio Shell de autor, e Breu (2011), eleito melhor espetáculo pela premiação da revista Questão de Crítica. Tem duas das dezoito peças que escreveu publicadas: Trabalhos de amores quase perdidos (2011) e As palavras e as coisas (2016), pela Cobogó.

Pedro Kosovski (Rio de Janeiro – RJ, 1983) Dramaturgo, diretor teatral e professor de artes cênicas da PUC-Rio e do Teatro O Tablado. Fundou em 2005, ao lado de Marco André Nunes, a Aquela Cia. de Teatro, onde concebe, realiza e escreve peças teatrais, tais como Laio & Crísipo (2015) e Caranguejo Overdrive (2015), vencedor dos prêmios Shell, Cesgranrio e APTR de melhor autor. Dentre as mais de quinze peças encenadas, sua

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Trilogia da Cidade — Guanabara canibal (2017), Cara de cavalo (2012) e Caranguejo overdrive — foi publicada pela Cobogó. Com Tripas (2017), recebeu o Shell na categoria inovação.

Roberto Alvim (Rio de Janeiro – RJ, 1973) O diretor, dramaturgo e professor se formou em artes cênicas na Casa das Artes de Laranjeiras (CAL) e em cinema na Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 2006 se instalou em São Paulo e fundou a companhia Club Noir, para a qual dirige e escreve espetáculos. É autor de cerca de quarenta peças, entre elas Anátema (2007), H.A.M.L.E.T (2011) e Pinokio (2011) – publicada pela 7 Letras, junto ao ensaio Dramáticas do transumano. Já lecionou dramaturgia e direção em diversas instituições brasileiras e em países como México, Alemanha e Bélgica.

Rudinei Borges dos Santos (Itaituba – PA, 1983) Formado em filosofia, mestre e doutorando em educação na Universidade de São Paulo (USP), o dramaturgo, poeta

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e ficcionista integrou o Núcleo de Dramaturgia da Escola Livre de Teatro de Santo André (ELT). É autor de mais de dez peças encenadas no Brasil e em Angola, entre elas Dezuó, breviário das águas (2016), Dentro é lugar longe (2013) – publicada pela Cooperativa Paulista de Teatro – e Epístola.40, carta (des)armada aos atiradores (2016) – publicada pela Lamparina Luminosa. É autor de livros de poemas e do ensaio Teatro no ônibus, publicado pela Cooperativa Paulista de Teatro. Vive em São Paulo desde 2003.

Samir Yazbek (São Paulo – SP, 1967) Dramaturgo e diretor teatral, é autor de dezessete peças, dentre as quais O fingidor (1999), premiada com o Shell, e As folhas do cedro (2010), que recebeu o prêmio APCA. Mestre em letras pela Universidade de São Paulo (USP), frequentou por oito anos o Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado por Antunes Filho, e é professor da Escola Superior de Artes Célia Helena. O teatro de Samir Yazbek, publicado pela Imprensa Oficial em 2006, reúne O fingidor, A entrevista (2004) e A terra prometida (2001); As folhas do cedro saiu pela Terceiro Nome e Os gerentes (2009), pela Unicamp; também foi publicado em países como México e Inglaterra.

Sérgio Roveri (Jundiaí – SP, 1960) Dramaturgo, formado em jornalismo pela PUC-SP, é autor de 25 peças, entre elas Abre as asas sobre nós (2007) – prêmio Shell de melhor autor –, A coleira de Bóris (2009) e Os que vêm com a maré (2014). Atua também como roteirista de longas-metragens e seriados de televisão. A Imprensa Oficial publicou dois volumes com sua obra, que incluem Abre as asas sobre nós (2007), Andaime (2005) e Ensaio para um adeus inesperado (2009), entre outros textos; Medeia foi publicada pela Giostri em 2014.

Silvana Garcia (São Paulo – SP, 1951) Mestre e doutora pela Universidade de São Paulo (ECAUSP), é diretora, pesquisadora e professora da Escola de Arte Dramática (EAD -USP). Por Não vejo Moscou da janela do meu quarto (2014), que realizou com seu grupo Lasnoias & Cia, recebeu o prêmio Shell de direção. É autora de Teatro da militância, publicado pela Perspectiva em 1990 e reeditado em 2004, As trombetas de Jericó, que saiu

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pela Fapesp/Hucitec em 1997, e Territórios e paisagens, lançado pela Giostri em 2017.

Silvia Gomez (Belo Horizonte – MG, 1977) Dramaturga e jornalista formada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), integrou por nove anos o Círculo de Dramaturgia do Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado por Antunes Filho, onde hoje leciona. Tem seis peças encenadas, dentre elas O amor e outros estranhos rumores (2010) e Mantenha fora do alcance do bebê (2015), com a qual venceu o prêmio APCA na categoria melhor dramaturgia. Seu texto de estreia, O céu cinco minutos antes da tempestade (2008), foi publicado pelo Sesc e traduzido para o espanhol, francês, sueco, alemão, inglês, italiano e mandarim.

Livre de Teatro de Santo André (ELT) e atualmente é orientadora de dramaturgia dos projetos Fábricas de Cultura e Ademar Guerra. Como dramaturgista, colaborou com coletivos como Cia. do Miolo e Cia. Paulicea, e desde 2010 escreve e dirige espetáculos no grupo Teatro da Conspiração de Santo André, entre os quais se destaca a adaptação de A princesa e a costureira (2016).

Vinicius Calderoni (São Paulo – SP, 1985) Formado em cinema pela FAAP, o dramaturgo, diretor e ator fundou em 2010, ao lado de Rafael Gomes, a companhia Empório de Teatro Sortido. Das sete peças que escreveu, também assinou a direção de Chorume (2017), Não nem nada (2014) e Ãrrã (2015), com a qual venceu o prêmio Shell na categoria melhor autor. Os três textos foram publicados pela Cobogó, que também lançou Os arqueólogos (2016).

Solange Dias (Santo André – SP, 1965) Mestre em artes pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é atriz, diretora, dramaturga e educadora. Entre 2014 e 2017, coordenou o Núcleo de Dramaturgia da Escola

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BRAVO!

Leitura cênica de Expedição dos amantes da máquina, de Francisco Carlos. No ciclo dedicado ao dramaturgo e encenador amazonense, o palco recebeu uma instalação que podia ser visitada pelo público.

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BLACKOUT


SESC – SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO administração regional no estado de são paulo presidente do conselho regional

Abram Szajman

diretor do departamento regional

Danilo Santos de Miranda superintendentes técnico-social

Joel Naimayer Padula comunicação Ivan Giannini administração Luiz Deoclécio Massaro Galina assessoria técnica e de planejamento Sérgio José Battistelli social

gerentes

Rosana Paulo da Cunha estudos Marta Raquel Colabone artes gráficas Hélcio Magalhães sesc ipiranga Antonio Carlos Martinelli Jr. ação cultural

e desenvolvimento

DRAMATURGIAS 1 equipe sesc

Affonso de Vergueiro Lobo Neto, Amanda Cristina de Souza, Érica Dias, Fabiana Regina de Freitas, Getúlio Vargas Pizani, José Cláudio Moia Sevieri, Karina Musumeci, Luciana Itapema, Rogério Ianelli, Salete dos Anjos, Sérgio Luis Venit Oliveira, Tatiane Vieira de Almeida, Thaís Heinish, Tommy Ferrari Della Pietra, Vanusa Soares Souza, William Moraes Alves. Mariana Delfini Tereza Bettinardi fotografia Gal Oppido redação Nina Rahe revisão Elídia Novaes coordenação editorial

identidade visual e projeto gráfico

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

D79

Dramaturgias 1 Serviço Social do Comércio. Administração Regional no Estado de São Paulo. São Paulo, SP: Sesc São Paulo, 2019. 145 p. il.: Fotografias.

ISBN 978-85-7995-232-6 1. Arte Dramática. 2. Teatro. 3. Teatro Brasileiro. 4. Dramaturgia Brasileira Contemporânea. 5. Texto Teatral. I. Título. II. Serviço Social do Comércio. III. Sesc. IV. Sesc Ipiranga. CDD:869.3

SESC IPIRANGA R. Bom Pastor, 822 Tel.: (11) 3340-2000 sescipiranga sescsp.org.br/ipiranga


ISBN 978-85-7995-232-6


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