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Fazer política hoje

Paulo Roberto Curvelo Lopes*

A frase dita por D. João a seu filho, o príncipe regente, parece ter marcado a vida política no Brasil como um estigma: “Pedro, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum aventureiro”. Os diferentes grupos sociais, em distintos momentos de nossa história, têm atuado seguindo esta orientação. Com isso, a luta de classes, em nossa sociedade, tem características peculiares, dificultando a análise sobre seus desdobramentos.

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Sem querer entrar na discussão histórica que a frase suscita, pois isso é o trabalho dos historiadores, veremos adiante como a podemos usar em nossa realidade atual. Antes, vamos refletir sobre alguns aspectos que a frase indica. O primei

ro é a negação de outros atores na definição das situações, em especial, o ator popular; o segundo é a existência de uma situação limite, na qual a perda de controle é eminente; o terceiro aspecto indicado é o reforço do autoritarismo na definição de alternativas. Estes três aspectos se combinam de uma forma perversa, pois adiam o desfecho de uma crise, produzindo novas contradições, a partir do reforço de uma nova-velha composição de forças.

A frase de D. João é dita para resolver uma crise. E ele pretende resolver com uma solução doméstica, passando a coroa para o filho, pois este será capaz de respeitá-lo e, com isso, ele continua com o poder. Ao fazer isso, ele reforça a prática em curso de excluir a participação de distintos segmentos, em especial, os setores populares da sociedade. As grandes decisões estão nas mãos de uns poucos.

Mas a frase também expressa uma perda de controle da situação, caso contrário não se estaria passando a coroa. Ao mesmo tempo, há a suposição de que se poderia manter o controle, pela entrega do poder a alguém que está preso, por qualquer razão, aos seus interesses. Por outro lado, há a necessidade de se ocupar este espaço desta maneira, caso contrário, ele será ocupado por um outro que é aventureiro. Ou seja, a fraqueza diante da situação é transformada em força capaz de alterar os rumos dos acontecimentos.

Por fim, a frase redefine a situação de forma autoritária. Tudo está “resolvido” pela decisão e vontade de uma única pessoa e da forma que atenda a seus interesses. Nada é discutido e nenhuma consulta é feita, muito menos se busca uma alternativa que articule diferentes interesses, fortalecendo um pólo de poder e um campo de forças. O autoritarismo expõe toda a sua fraqueza pela necessidade que tem, para se manter, de fazer concessões a forças que estejam acima de seu raio de ação. Quanto mais ignora os que estão abaixo, mais se submete a quem está acima.

E o que a frase tem a ver com a nossa forma de fazer política, hoje? Por que foi dito acima que ela marcou a vida política brasileira como

um estigma? Porque estes três aspectos estão presentes nas estratégias que diferentes grupos, tanto de direita como de esquerda, estabelecem para sua ação política. Ou seja, estamos em nossa atuação política, com freqüência, excluindo os setores populares, quando muito reconhecemos outros grupos do espectro político; estamos querendo não reconhecer a perda de controle da situação, através da introdução de alternativas que nos mantêm no jogo; apontamos soluções autoritárias que excluem outras soluções e encaminhamentos e nos colocam à disposição de outras forças.

Poderíamos citar inúmeros exemplos de estratégias políticas, dos campos em disputa na sociedade brasileira, que são estabelecidas dentro destes três aspectos que a frase de D. João expressa. Mesmo que se identifique aquele que há de respeitar de forma radicalmente oposta, as estratégias não deixam de estar presas aos aspectos mencionados. Sempre haverá um que “me hás de respeitar” e, por isso, é o depositário de confiança, contra aventureiros. Só para ilustrar essa questão, pode ser citada, aqui, no campo da direita a transição via Tancredo, que depois deixa para o aventureiro Collor e retoma a confiança com o outro Fernando. No campo da esquerda, pode-se citar a mudança ocorrida no Partido dos Trabalhadores, para ter “chances” de ganhar as eleições presidenciais. O partido que nasceu sob o signo da luta de classes, com o slogan “trabalhador vota em trabalhador”, muda sua estratégia diante das derrotas eleitorais. Diante da perda, a busca de uma vitória alterando as bases de sustentação. Na verdade, o que o PT está dizendo é que antes seja para “a sociedade que ainda é conÉ preciso aprofundar a discussão sobre os campos em disputa, o que efetivamente se disputa e a real correlação de forças existentes. Para isso, torna-se fundamental ter clareza sobre as diferentes dimensões que compõem o espectro da vida social.

servadora” mas que irá respeitá-lo do que para um aventureiro. Os três aspectos mencionados acima estão presentes nesta estratégia eleitoral.

Ao pensar em fazer política na sociedade brasileira, em especial, para o campo de esquerda, é preciso superar esta marca que tem caracterizado a formulação de nossas estratégias. É preciso aprofundar a discussão sobre os campos em disputa, o que efetivamente se disputa e a real correlação de forças existentes. Para isso, torna-se fundamental ter clareza sobre as diferentes dimensões que compõem o espectro da vida social. Trataremos, aqui, da dimensão ideológica, por considerá-la de importância fundamental para definição do fazer política.

Dois grandes paradigmas, entre diversos, estão presentes na dimensão ideológica influenciando a definição de estratégias políticas. Tratase da proposta de Habermas e a de Gramsci. Vamos brevemente apontar alguns elementos destes dois pilares, tentando apontar os limites do primeiro e as potencialidades do segundo.

Habermas irá chamar a atenção para a questão da comunicação e identificar a ideologia como uma de suas formas que é sistematicamente distorcida pelo poder. Trata-se de um discurso que aparece como meio de dominação, ao mesmo tempo em que legitima relações de forças. A persistência dessa forma de comunicação deturpada faz com que fique difícil a sua crítica. Um sistema ideológico aprisiona todos dentro dele, de forma que se torna impossível pensar ou desejar fora dos termos do próprio sistema.

Habermas se coloca contra a idéia de um grupo como portador de uma ideologia revolucionária bem como a existência de uma metalinguagem que seja capaz de fazer a crítica desse sistema de comunicação a partir de fora. Ao contrário, ele acredita que é a partir da própria prática lingüística que se pode construir um modelo regulador para a apreciação crítica da comunicação deturpada.

Ele parte do princípio que todo a linguagem, inclusive a do tipo dominador, está orientada para a comunicação, o que implica o consenso. O falante, ao fazer o enunciado, está supondo que pode se comunicar, pois do contrário não teria sentido falar. É aí que reside uma espécie de racionalidade profunda, que vai ser a base, segundo Habermas, para uma crítica de nossas práticas verbais efetivas. Mas para chegarmos a essa racionalidade profunda embutida nas próprias estruturas de nossa linguagem será necessária a mudança na forma política de vida. Contra o sistema ideológico, composto pelos interesses que ameaçam nossas necessidades fundamentais como espécie, Habermas irá propor a crítica emancipatória, que será capaz de fornecer os elementos que desmontam esse sistema.

Se, por um lado, este paradigma rompe com o metadiscurso e com a superioridade de um grupo como seu portador, rompendo assim com

qualquer vestígio messiânico, por outro lado, o discurso construído a partir da crítica emancipatória escamoteia a luta de classes existente em nossas sociedades. É verdade que todo discurso está orientado para a comunicação e que todos os grupos sociais estão interessados no consenso. Mas é verdade também que a linguagem não é suficiente para impulsionar a busca de uma crítica que promova a emancipação humana. Como o próprio autor reconhece, é preciso romper a forma política de vida e a dimensão ideológica justamente irá expressar a ruptura ou a confirmação de uma determinada forma política de vida. Ela, portanto, é expressão e ao mesmo tempo expressa esta determinada forma política de vida. Assim, ela não pode ser vista em seu próprio movimento, como no fundo parece ser a proposta de Habermas, mas, sim, no movimento da luta que as classes sociais desenvolvem no interior de uma dada formação social, num dado contexto histórico.

Desta forma, para fazer política hoje continua sendo fundamental o conceito de luta de classes. Habermas tem razão em sua crítica à visão messiânica que este conceito encerra. Não existe uma classe predestinada a promover a emancipação da humanidade. Da mesma maneira que não existe um discurso capaz de explicar todos os outros discursos e anunciar a verdade eterna. Mas sua crítica perde força quando ele desloca a questão discurso para dentro do próprio discurso, deixando de lado o movimento produzido pelas relações existentes entre os diferentes interesses existentes entre os humanos. Relações estas que se expressam enquanto luta de contrários. É, neste movimento, que está contido no conceito de luta de classes, que teremos que buscar as formas necessárias de se fazer política. Neste sentido, parecenos oportuno retomar Gramsci que foi um intelectual que teve o grande mérito de buscar apreender este movimento em sua época.

O conceito de hegemonia em Gramsci, mais amplo que o de ideologia, é fundamental para a definição de uma estratégia política. Para ele, hegemonia se refere à maneira como um poder governante obtém consentimento. A hegemonia é transmitida em formas ideológicas, mas também, em formas culturais, políticas e econômicas. Ela nunca é um conquista de uma vez por todas, mas tem que ser continuamente renovada, recriada, defendida e modificada. Trata-se de uma noção relacional e isso significa que o poder governante tem que tomar combate com forças contra-hegemônicas. Conquistar a hegemonia é estabelecer uma liderança moral, política e intelectual na vida social através da difusão de uma “visão de mundo”, própria de um grupo, para todo o tecido social.

Gramsci valoriza o conceito de ideologia, que deve ser vista como forças ativamente organizadoras e psicologicamente válidas, que preparam o terreno onde os homens e

É preciso, por um lado, romper com um certo paternalismo para com a consciência popular, por outro lado, construir um novo senso comum, a partir de uma via de mão dupla entre a análise política e a experiência popular.

mulheres agem, lutam e se conscientizam. As ideologias são fundamentais em qualquer bloco histórico, pois elas funcionam como uma espécie de “forma” para o “conteúdo” oferecido pelas forças materiais. Nos grupos subalternizados das sociedades de classes, elas são, em geral, formadas por concepções de mundo conflitantes: uma fornecida pelos grupos dominantes e outra fruto da experiência prática que as pessoas dos grupos subalternizados têm da realidade social. Estes conflitos não devem ser vistos como uma simples auto-ilusão, mas como resultantes da própria luta existente na sociedade. É a partir destes conflitos que se pode ir construindo a visão de mundo das classes subalternizadas. Para isso, é preciso, por um lado, romper com um certo paternalismo para com a consciência popular, por outro lado, construir um novo senso comum, a partir de uma via de mão dupla entre a análise política e a experiência popular. Para Gramsci, toda hegemonia se realiza levando em conta os interesses e tendências dos grupos sobre os quais ela será exercida. É preciso que se forme certo equilíbrio de compromissos, sem que isso afete o essencial. Há duas dimensões inseparáveis da hegemonia que são: a ético-política e a econômica. Com isso, ela não pode deixar de se fundamentar na função básica que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica. A ação política não pode se movimentar apenas a partir dos sonhos e desejos de seus protagonistas. Ao contrário, ela precisa se fundamentar na realidade factual. Esta não é algo estático e imóvel, mas é precipuamente uma relação de forças em contínuo movimento e mudança de equilíbrio. Neste senti

do, ao atuar no terreno da realidade factual, se aplica à vontade na criação de um novo equilíbrio de forças realmente existentes e atuantes.

A intenção de apresentar alguns elementos formulados por estes dois autores em torno da dimensão ideológica é a de mostrar que o fazer política hoje pode estar norteado por duas perspectivas distintas: a concertação ou a construção do bloco histórico. A primeira aposta na inevitabilidade da convivência humana. Os seres humanos para continuarem a existir enquanto espécie necessitam encontrar formas de articularem seus interesses imediatos e mediatos. A segunda aposta na força dos setores subalternizados como condição necessária para alteração do contexto de dominação. A escolha não é fácil, embora seja fundamental para a definição de estratégias políticas.

Essa escolha tem que ser pensada a partir dos contextos históricos determinados. É verdade que a complexidade existente nas sociedades do século XXI exige um repensar da ação política. Entretanto, essa complexidade ainda não esgotou todas as possibilidades de realização do modo capitalista de produção ao mesmo tempo em que aponta a necessidade de sua superação. Como afirma Marx, na Introdução à Crítica da Economia Política, nenhuma sociedade se dissolve e pode ser substituída antes de desenvolver e completar todas as formas de vida implícitas nas suas relações. Por outro lado, ele diz também que nenhuma sociedade assume encargos para cuja solução ainda não existam as condições necessárias e suficientes, ou, pelo menos, não estejam em vias de aparecer e se desenvolver. Neste sentido, a necessidade da construção de um bloco histórico capaz de desenvolver uma luta contra-hegemônica continua na ordem do dia da construção de estratégias, no fazer política.

Se examinarmos a complexidade do tempo presente, veremos duas ordens de questões. A primeira diz respeito às forças autodestrutivas que o capital engendra na sua relação com o trabalho. A segunda ordem de questões refere-se às novas forças que emergem do campo do trabalho nesta mesma relação.

Pode-se dizer que, hoje, três forças são acionadas pela dinâmica do capital, sobre as quais este parece não saber como controlá-las: o capital especulativo, o terrorismo e o narcotráfico. Embora de naturezas distintas, estas três forças são geradas pelo capital, na sua espiral de acumulação e concentração. Essas três forças têm em comum a marca de apropriação-expropriação característica do capital. Por isso, são forças incontroláveis, que só podem ser barradas numa nova reacomodação da espiral. Em outras épocas, as sociedades capitalistas encontraram na guerra a saída para essa reacomodação. Mas, como pensar numa guerra nas condições atuais? A saída não parece ser vislumbrada no horizonte e estas forças continuam a se desenvolver espalhando o medo e a incerteza em tempos sombrios.

Mas as principais vítimas desta catástrofe anunciada são, sem dúvidas, os trabalhadores e os demais setores subalternizados de nossas sociedades. Quem mais sofre com as especulações financeiras? Quem paga os juros exorbitantes que os países periféricos são obrigados a entregar aos grandes especuladores? Quem estava nas torres do WCT, às nove horas da manhã, de uma terça feira? Se olharmos os interiores do Brasil, quem está morrendo pelo uso abusivo de narcóticos? Em qualquer cidadezinha do interior do Brasil, as drogas estão presentes, em especial, entre a população jovem e pobre. Diante deste quadro, como pensar em concertação? Como pensar em crítica emancipatória? Só uma luta sem tréguas às formas de dominação superará as condições do quadro atual.

Mas uma outra ordem de questões está posta à reflexão. Para a construção de uma contra-hegemonia, neste momento de crise do capital, provocada por suas forças autodestrutivas, torna-se necessário o fortalecimento da organização dos trabalhadores. Mas como se trata de uma relação, o campo do trabalho, principalmente sendo os trabalhadores a principal vítima da destruição, sofre profundas desarticulações. Três forças são também desencadeadas neste campo: a diminuição da massa empregada, com o alastramento do desemprego; a descrença no trabalho como valor; o individualismo exacerbado. Essas três forças estão presentes nos setores subalternizados de nossa sociedade, obstaculizando a construção de um bloco contra-hegemônico.

Desta forma, fazer política hoje é identificar no desenvolvimento da luta de classes na sociedade brasileira, as condições para a construção do bloco contra-hegemônico. Nesta construção, é preciso romper com o estigma presente em nossa forma de fazer política e avançar no estabelecimento e consolidação de uma força ideológica, entendida, no sentido gramsciano, como prática social vivida e costumeira.

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Paulo Roberto Curvelo Lopes é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora, doutor em Educação pela PUC/RJ, consultor do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae-SP.

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