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ANDES-SN Um sindicato de intelectuais. Ignez Pinto Navarro. ADUFMAT. Cuiabá-MT. 2001. Roberto Leher
ANDES-SN Um Sindicato de intelectuais
Ignez Pinto Navarro. ADUFMAT. Cuiabá-MT. 2001
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Por Roberto Leher
Os sujeitos que constroem a universidade como instituição pública, democrática, produtora de conhecimento novo e socialmente referenciado e, na condição de intelectuais, assumem a função de “organizadores” da hegemonia dos subalternos são o fio condutor desta obra magnífica. A construção hegemônica não nos é apresentada como um a priori da luta dos professores que se organizaram nas então Associações de Docentes, no final dos anos 1970, ou como uma característica imanente do novo sindicalismo - ele mesmo, anos m ais tarde, reconfigurado pelas políticas neoliberais como sindicalismo propositivo. Através de entrevistas e de minucioso trabalho documental, as vozes dos sujeitos adquirem a vibração da vida: os impasses da luta econômica, as tensões e divergências internas, as formas singulares de organização são cuidadosamente recuperadas e, com isso, a história da (então) Andes e da própria universidade brasileira - no período que compreende o outono da ditadura militar até o neoliberalismo da primeira metade da década de 1990 - vão sendo construídas.
A crítica aos estudos da sociologia do trabalho e da história da educação que se restringem aos “fatos”, apresentados como fenômenos da realidade, como quer a tradição empirista, é empreendida por uma consistente discussão teórica. Temos uma análise da “crise do trabalho” discutida como manifestação fenomênica da crise estrutural do capital, rejeitando o determinismo tecnológico, evocado, por importantes setores do sindicalismo, para justificar o abandono da perspectiva “classista” e a adesão ao propositivismo que leva a CUT a “negociar” os termos da implementação das políticas neoliberais, como se estas políticas fossem inevitáveis em razão das transformações tecnológicas e organizacionais do capitalismo de hoje. Uma fecunda discussão dos limites e potencialidades do sindicalismo classista, a partir de uma perspectiva gramsciana, desenvolvida com desvelo, ilumina a complexa questão da relação dos intelectuais com o poder e as classes sociais. Esta análise encontra-se no núcleo sólido desta obra, que defende, com rigor, a concepção de que os militantes e dirigentes do movimento docente são intelectuais orgânicos das classes subalternas.
Estes militantes são caracterizados como intelectuais orgânicos mediante a investigação do Andes-SN como sindicato de intelectuais, a partir do surgimento das Associações de Docentes, ocasião em que os próprios intelectuais assumiram, como “coletivo organizado, a identidade de trabalhadores assalariados sem abandonar as marcas distintivas da natureza do seu trabalho e da valorização social da sua profissão, que conferem especificidades à própria ação sindical que desenvolvem”. A defesa intransigente da autonomia e da democracia como princípios fundantes da Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior inseriu-a no grupo pioneiro de novo sindicalismo e criou condições excepcionais para a construção da identidade classista do futuro Sindicato Nacional.
A autora, ela mesma sujeito da história aqui discutida, não abandona sua condição de pesquisadora rigorosa, captando com precisão as tensões e disputas internas decorrentes da opção classista defendida por uns, mas não por outros. A investigação dos embates sobre a transformação ou não da Andes em Sindicato tem como resultado passagens de excepcional brilho, contribuindo para tornar pensáveis os momentos em que chapas se confrontaram nas eleições para a Direção Nacional da entidade.
O leitor tem em mãos não somente uma obra sobre a trajetória recente do sindicalismo brasileiro ou a propósito dos intelectuais em uma sociedade de classes, o que já não seria pouco, mas, além disso, uma história da política educacional nos anos 1980 e 1990. Ao examinar as especificidades do trabalho docente traduzidas na criação dos Grupos de Trabalho da entidade, em especial o de Política Educacional, a autora sustenta que o Andes-SN torna-se “intelectual coletivo”, lendo os acontecimentos políticos e educacionais do período e interferindo neles ativamente.
Os períodos conjunturais que foram decisivos para a construção e afirmação
da identidade do Andes-SN (1981-84 e 1985 -1988) e para o combate ao projeto neoliberal (1989-1994), em que a condição classista da entidade é obviamente desafiada, são finamente examinados, compondo um histórico de extraordinária riqueza.
Com efeito, os militantes empenhados na construção da Andes, ainda no ocaso da ditadura militar, são compelidos, muitos ainda na condição de estudantes, a agir contra as conseqüências destrutivas do governo militar, cujos ministros da educação, embora se autorepresentassem como esclarecidos e ilustrados, rigorosamente não rompiam com as práticas usuais dos “Donos do Poder” a que se referira Faoro em sua excepcional obra. Os acordos MECUSAID, a Reforma de 1968, o AI-5 que levou à cassação de brilhantes professores, o 477, utilizado para afastar estudantes “subversivos”, a privatização engendrada no Conselho Federal de Educação, a subordinação do aparato de fomento à C&T à “modernização conservadora”, atraindo nomes importantes da universidade para o projeto em curso, a impossibilidade de concursos públicos livres, gerando os “colaboradores”, a delação, perseguição e vigilância da “inteligência contra-revolucionária” a que se referira o mestre Florestan Fernandes em “A Questão da USP” são acontecimentos que ecoam no momento de fundação da Andes, e que continuarão a ecoar, conforme verificamos nesta obra, ao longo da “abertura lenta, gradual e segura”.
A autora empreende cuidadosa recuperação do período. Fala de derrotas, mas, ao mencioná-las, retira do silêncio e do esquecimento as memórias das lutas e dos sujeitos em luta. A investigação do contexto da criação da Andes nos ajuda a compreender os memoráveis embates da década de 1980, que impuseram grande atraso na implementação das políticas de ajuste estrutural no Brasil.
Com efeito, o surgimento da Andes faz parte do movimento que produziu 1968, as Greves de Osasco, o novo sindicalismo do ABC e os Congressos da SBPC. Desde a sua criação, horizontes mais amplos foram compartilhados na luta pela “anistia ampla, geral e irrestrita”, Diretas, já!, CUT, Constituinte Exclusiva e Soberana, Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, entre outros momentos marcantes.
Merece registro especial a relação da Andes com a Nova República. O leitor encontra aqui um extraordinário debate sobre o sentido da “transição democrática” no país, tanto quanto ricas discussões sobre a conjuntura e a natureza e caráter da coalizão que a sustenta. Deste modo, quando ocorre a primeira disputa eleitoral na entidade em 1986, opondo, de um lado, a “esquerda tradicional”, liderada então pelo PC do B e PCB, aliados dos governos da Nova República, e, de outro, a esquerda, ainda unificada, do PT - ou, em outros termos, opondo os que defendiam a participação da Andes nas negociações em torno do projeto educacional do governo Sarney (GERES) e os que defendiam o combate a este projeto -, assistimos aos germes dos embates que cindiriam o sindicalismo nos anos 1990, quando, novamente, se opuseram no Andes-SN as forças que, de uma parte, defenderam a negociação nos marcos da agenda neoliberal e os que, de outra, advogaram o combate às políticas de ajuste estrutural.
Entremeando o debate político, o leitor acompanha as reflexões produzidas pelo movimento docente sobre a universidade, a importância da indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a extensão, a avaliação “socialmente referenciada” e as condições para que a universidade brasileira lograsse um “- padrão unitário de qualidade”. Temos nessas passagens uma magnífica imagem a respeito da produção original de um projeto educacional do movimento docente para o país: o Projeto Andes para a Universidade Brasileira, a Plataforma do Movimento Docente para a Constituinte e o Projeto de Lei de Diretrizes e Bases do Andes-SN.
Em contraste com a construção de uma política educacional alternativa para o ensino público superior, a expansão do ensino superior privado aprofunda a mercantilização da educação impondo novos desafios à Andes. Corajosamente, a autora aponta as dificuldades e avaliações incorretas que acarretaram o encolhimento do setor das particulares no Sindicato. As reflexões sistematizadas por Navarro são de excepcional atualidade. O ensino superior particular foi o que mais cresceu na última década e o AndesSN terá de ampliar o debate sobre a atualidade da “política de transição”, para que a luta em defesa do padrão unitário possa ser elevada a um patamar superior, incluindo, objetivamente, as particulares.
Em suma, o leitor tem em suas mãos uma obra de referência sobre o sindicalismo, os intelectuais, a história recente da universidade e as conjunturas do período pós-ditadura militar. Ele verá como, no campo educacional, o ovo da serpente do neoliberalismo foi sendo aninhado na sociedade brasileira. Verá também como a entidade, na condição de intelectual coletivo, apreendeu o porvir e indicou alternativas corretas de enfrentamento. Todo esse patrimônio inspira as lutas de hoje e, por isso, precisa ser conhecido por aqueles que, corajosamente, perseveram na luta em defesa de uma “sociedade de outro tipo”, para lembrar uma expressão de Antonio Gramsci - voz que ecoa em toda a obra. A vitalidade desta história-memória seguirá pulsando no futuro também pelo conteúdo ético-político defendido pela autora: é uma bússola no meio da tempestade neoliberal.
A Seção Sindical dos Docentes da Universidade Federal do Mato Grosso, ao apoiar a edição desta obra, confirma o caráter singular do Andes-SN como sindicato de intelectuais e interlocutor qualificado das grandes questões da educação brasileira.
Roberto Leher é presidente do ANDESSN e professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro.