A Paixão que Veio do Frio

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A Paixão que Veio do Frio

José Guerra



A PAIXテグ

QUE VEIO DO

FRIO


FICHA TÉCNICA Edição: José Manuel Boinho Guerra Título: A Paixão que veio do Frio Autor: José Guerra Paginação: Paulo Silva Resende Capa: Gonçalo Mateus de Almeida Imagem da capa: José Guerra 1.ª edição LISBOA, Outubro 2011 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-989-20-2664-0 Depósito Legal: 333652/11 © JOSÉ GUERRA Publicação e Comercialização Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


“Se te pedirem amor, se te pedirem que contes a velha história da nau que partiu e se perdeu, não contes, amor, não contes que o mar és tu e a nau sou eu” Fernando Namora



Agradecimentos Quero agradecer aos meus familiares e a todas as minhas amigas e amigos e aos estimados leitores, o apoio e o incentivo dado nesta minha primeira aventura por mares nunca antes navegados. O autor JosĂŠ Guerra



Prefácio Quando o amor nasce na doença, de uma relação quase impossível, podemos pensar que o mesmo esteja condenado ao fracasso. Mas quando esse amor é tão forte, capaz de alguém dar a vida por outra ou de se morrer pelo facto dessa vida já não fazer sentido na ausência desse grande amor, vimos que deixa de haver impossíveis. Ainda que a história que se segue seja apenas uma história, com personagens fictícias, esta está carregada de significado e envolvência, imbuída dos valores sociais, históricos e culturais que marcaram uma época tão rica e densa. Esta história como tantas outras apela ao ima-


ginário do leitor. Por ser tão real nos seus contornos, fi-la para que o leitor pudesse sonhar e entrar no livro e ser o(a) personagem da história, que podia ser a sua história. Apenas um apontamento, que me parece essencial. A época em que se desenrola este romance, finais do Sec. XVIII, princípios do Séc. XIX, não foi escolhida, nem pensada ao acaso. É apenas a consciência de que o amor se viveu nessa altura de uma forma especial. Talvez muitos de nós tenhamos lá vivido em vidas passadas. Nesta história iremos lá voltar, nem que seja para sonharmos que o impossível possa ser possível… basta acreditar!! O autor José Guerra


A Paixão que veio do Frio

Capítulo I O sol hoje acordou gélido e seco, dobrado pelo frio da madrugada agreste e opaca, vento cortante que beija a face dos incautos, enrugados nas parcas vestes que o rigor do Inverno ignora. Madrugada submersa na neblina densa, húmida, silenciosa, quase discreta, não fosse o gotejar que teimava em cair na laje cinzenta e rude do alpendre. Estávamos em Sintra, no mês de Dezembro, corria então o ano de 1794, onde o neoclássico dava lugar à expressividade do romantismo, substituindo o traço pela cor. O Natal aproximava-se e a azáfama dos prepa-

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rativos criava um frenesim e um burburinho junto da cozinha onde as iguarias exalavam o cheiro característico do festim que se aproximava. Este ano mais contido, porque João estava enfermo, uma febre tinha-o atirado para o leito da sua cama. João era filho de Alberto, Conde de Alude e da Duquesa de Sintra, Manuela Constança, neto do Rei Duarte de Alcainça, popular entre os aristocratas. Reinou com mestria, tendo deixado uma fortuna apreciável em terras e gado. Naquela época morria-se de uma simples gripe, poucos conhecimentos havia sobre as doenças que fatalmente levavam os mais fracos. João estava assim, prostrado, sem forças, com fortes ataques de tosse e febril. O resguardo e a boa alimentação eram fundamentais, mas era o calor humano do seu povo que João mais falta sentia. O quarto onde convalescia era enorme, mas acolhedor, nobre como não podia deixar


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de ser, ornamentado com tons dourados e vermelhos aveludados, rendilhados por corda fina e pinturas vivas celestiais, bem ao estilo Barroco que conferia ao quarto um silêncio único, quase angelical. Lá fora, reinavam os ciprestes interrompidos por um riacho que corria suave, mas denso, engrossado no caudal pelas chuvas dos últimos dias. João vivia num palacete com uma localização privilegiada e vistas deslumbrantes para a Serra de Sintra e para a emblemática Praia das Maçãs, a que se deve o nome devido a um rio que atravessava pomares e neste caiam maçãs que eram levadas pela corrente, acumulando-se na praia junto ás rochas. Esta propriedade contava no total com mais de 206.000 varas quadradas*. Uma palavra para as árvores seculares tais como carvalhos e sobreiros entre outras que *

Medida de superfície usada na época, equivale a cerca de 250.000 m2

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permaneciam de pé de há séculos! Um pomar e uma zona de horta adjacentes davam os seus frutos junto à linha de água principal. Esta área, distribuída entre árvores de fruto, eucaliptal, cultura arvense, mato e uma parte edificada que era composta pela casa real cuja área total era de cerca de 1411 varas quadradas* a qual possuía magníficos terraços, tendo ainda a casa dos caseiros, as cavalariças onde permaneciam dois robustos cavalos e uma charrete preta estofada em tons claros, bordada com as insígnias reais e o brasão da casa estampada nas portas laterais. Eram visíveis duas lanternas laterais com as quais se fazia anunciar sempre que o breu se instalava e as incursões nocturnas eram necessárias. O palacete possuía ainda arrecadações, casa de matanças para os festins reais, e ainda um picadeiro. * Medida de superfície usada na época, equivale a cerca de 1708 m2


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A abundante água proveniente da serra de Sintra e armazenamento da mesma para rega dos campos e bebedouros dos animais através de minas e canais até aos inúmeros tanques e charcos existentes na propriedade, tudo era aproveitado para a criação de gado que por ali circulava sem restrições. Nas imediações do palacete, existia ainda uma capela toda forrada a pedra no seu exterior e por dentro todo o tecto forrado a madeira, conferindo-lhe a harmonia perfeita para pequenos retiros espirituais. Salas luxuosas de grande área, lareiras sumptuosas, biblioteca, quartos com suite de grandes áreas, uma ala generosa para recepção dos convidados e uma enorme cozinha onde se preparavam os mais belos dos manjares compunham este Palacete do Século XVII, construído em 1635 de estilo marcadamente Barroco, de contrastes fortes na sua aparência, tendo no seu interior uma maior dramaticidade, exuberância e re-

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alismo e uma tendência ao decorativo, além de manifestar uma tensão entre o gosto pela materialidade opulenta e as demandas de uma vida espiritual e religiosa. João tinha mais duas irmãs, era o mais velho, contava já com 41 anos. Havia duas cozinheiras, 4 ajudantes de cozinha e um mordomo. Uma das ajudantes chamava-se Isabel, tinha pouco mais de 20 anos, morena, esguia e altiva, simples no seu modo, olhar meigo e doce, rebelde no feitio, forte na personalidade, era filha de Maria, uma das cozinheiras, oriunda de famílias humildes e discretas. Maria, há muito que servia na casa real e era uma das melhores cozinheiras. Sabia preparar pratos de veado melhor que ninguém, veados que o ilustre Conde Alberto trazia aquando das suas caçadas pela tapada real. A enorme cozinha do palacete era testemunha de inúmeros repastos que por ali se faziam. O cobre dos


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tachos e panelas refundiam as nobres iguarias, para saciar os comensais da realeza que ali se juntavam faustosamente. Isabel estava na casa real há cerca de duas semanas, tinha vindo substituir uma das ajudantes que entretanto adoecera. Com medo que pudessem adoecer, ninguém se aproximava do leito onde João agonizava em febre e suores frios, por vezes no delírio e na inquietude que o mal-estar lhe provocava. Isabel era uma mulher decidida e destemida. Achou que podia ser mais útil que o trabalho de cozinha e prontificou-se a prestar os cuidados necessários ao restabelecimento de João, ainda que dessa proximidade pudesse resultar perigo para si. A medicina era nessa altura pouco evoluída e muitas das vezes as prescrições pouco mais eram do que efeito placebo. O médico já estivera por diversas vezes junto de João e da última vez, não augu-

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rava boas notícias, limitando-se a receitar algumas infusões de ervas, recomendando-lhe repouso absoluto. João, outrora robusto e encorpado, tinha perdido imenso peso. Estava assim há mais de um mês, quando se começou a sentir mal. João era diferente do pai, tinha um espírito altruísta, preocupava-se com o povo, era um inconformista nato e por isso tinha conflitos com a família. O berço de ouro onde nascera nada lhe dizia e sempre que podia, ajudava quem mais necessitava. Já era noite, João tinha descansado um pouco, pedia apenas água, estava sem grande apetite. Isabel havia-lhe trazido uma infusão de camomila e um caldo de perdiz para lhe recompor o estômago. – Tome, que lhe vai fazer bem senhor! – disse Isabel. – Não estou com fome, quero pôr-me um pouco melhor e sair daqui, estou há demasiado


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tempo neste quarto – disse João com a voz um pouco arrastada. – A menina quem é? – Perguntou João um pouco surpreso! – Sou Isabel, senhor, filha de Maria, estou cá há pouco tempo – retorquiu! – Sim, na realidade não me lembro de a ver por cá, – disse João franzindo um pouco o sobrolho. – O Sr. tem de comer alguma coisa, senão não fica bom – disse Isabel um pouco aflita, faço-o pelo povo que precisa de si e da sua ajuda. – Isabel, vejo que sois uma boa moça e tendes bom fundo – disse João. – Faço o que o que o meu coração me dita Senhor, não gosto de ver pessoas doentes e já tinha ouvido falar no senhor como bom samaritano! Entretanto Maria, mãe de Isabel, estranhando a

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demora, chama-a. – Isabel, disse-te para levares o que te pedi ao filho do Sr. Conde, não era para ficares na conversa, até porque tu és uma criada e o menino João, futuro conde! Maria entretanto despede-se de João: – Não comeu tudo meu senhor, tem de comer mais, amanhã volto novamente para lhe trazer mais alguma coisa se mo permitir. – A minha fome é pelo mundo menina Isabel e por ajudar os pobres e indefesos. É com certeza maior do que aquilo que preciso para viver! Por favor, volte com novidades do meu povo – disse João. – Irei saber novidades senhor, trarei missivas a vossa alteza, entretanto descanse, que bem precisa. Entretanto lá fora, uma chuva miudinha abatia-


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-se sobre os ciprestes e empapava as terras saturadas e lamacentas. Na cozinha preparavam-se os doces conventuais típicos da época de fazer crescer água na boca. A sericaia e o doce de ovos estavam entre as iguarias mais apreciadas da família real. Enquanto a lenha crepitava húmida no forno para a cozedura do pão, a fumaça saía baixa e espessa da longa e altiva chaminé adensando ainda mais o opaco que a noite trouxera. O Natal na vila preparava-se com agitação no meio do tropel dos cavalos, dos pregões dos comerciantes e do forte cheiro a fermento que vinha da cerveja e dos vinhos, misturado com os queijos e enchidos que por ali pululavam. Nas terras trabalhava-se no duro de sol a sol. Famílias inteiras famintas, amanhavam as terras dos latifundiários a troco de meia dúzia de soldos e de um pedaço de pão. Naquele tempo ou se aprendia um oficio ou era na terra que se ganhava o

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pão, com o suor do verão ou com o frio do inverno. João madrugou com fortes ataques de tosse. A braseira colocada aos seus pés estava moribunda pelo frio da manhã que entretanto conseguira penetrar na penumbra do quarto. Isabel ouvira João. Apressara-se a mudar a braseira e a colocar mais algum carvão para avivar o calor e tornar mais confortável o ambiente, acalmando assim a tosse de João. Entretanto da horta, Isabel tinha trazido um braçado de laranjas frescas com as quais fez um delicioso sumo, adoçado por mel puro, tendo João bebido sequioso. – Tome senhor, vai acalmar a sua tosse. Como se sente hoje? – perguntou Isabel preocupada. – Melhor não estarei com certeza, apenas me preocupa todos aqueles que de mim precisam! – Diz-me menina Isabel, como nasceu hoje o sol, tendes visto os mais pequenos pelas ruas


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a mendigarem? – indagou João visivelmente preocupado. – Continua muito frio senhor, o nevoeiro continua a fechar o tempo. Estive na vila e os albergues continuam cheios de gente com fome e doentes. Os mais velhos perguntam por vossa senhoria! – respondeu Isabel emocionada. Isabel queria manter-se forte e distante, mas o seu coração já simpatizava com tamanho altruísmo de João e na sua preocupação constante pelos necessitados. Ao fim ao cabo também era um sonho de criança que Isabel acalentava, ser missionária ou cuidar dos enfermos, ajudar apenas por ajudar. Era isso que a movia, já em criança gostava de dar e repartir com os seus irmãos e amigos de infância nos parcos haveres que tinha. Ainda que não tivesse passado fome, Isabel não teve uma infância fácil. A pobreza

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e as necessidades foram sempre uma constante na sua vida. O pai morrera cedo e Maria, sua mãe viu-se obrigada a trabalhar no duro para pôr o pão na mesa com que alimentava os filhos. Por seu turno, João viveu sempre num ambiente farto e cheio. A sua infância foi pautada por luxo e quando mais velho pela frequência da alta-roda da sociedade e pelas festas nos palacetes, onde a abundância e a opulência marcavam presença. Tudo isso foi criando uma revolta em João, afastando-se progressivamente de tais ambientes e ideologia aristocrática que pura e simplesmente abominava. João sentia que não pertencia ali. Muitas das vezes e secretamente levou alimentos aos aldeões e aos marginalizados do tempo. Chegou a dormir nos pastos e nos albergues frios e húmidos, que era onde se sentia feliz, perto do povo e da sua genuinidade pura e simples, onde os valores e sentimentos, tais como a amizade, amor e


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solidariedade eram mais verdadeiros que tudo e mais ricos e nobres que o mais nobre dos nobres. João adormecera novamente, exausto pela madrugada que não o deixara descansar. Isabel colocara-lhe então um pano húmido na testa para lhe limpar o rosto e acalmar a febre. Debaixo da almofada, deixando vislumbrar uma ponta, encontrava-se um lenço, ensanguentado que João tentara esconder. Isabel ficara aflita e preocupada com tal descoberta. Por momentos ficou sem saber o que fazer. Permaneceu sentada junto de João afagando-lhe o rosto, murmurando palavras sentidas de quem se começava a afeiçoar por tão ilustre, mas simples e bondosa pessoa. A noite de Natal entretanto chegara. Os convidados da família real não tardaram a chegar. A opulência fazia-se anunciar pelo tropel dos cavalos no fusco que a bruma ainda deixava antever. A aristocracia

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trajava as melhores vestes para a ocasião. Corpetes ornamentados com folhos trabalhados em rosa cetim misturavam-se com o cheiro floral do perfume que as donzelas traziam na pele. Este ano menos convidados que no ano anterior, mas nem por isso o glamour e a petulância deixavam de marcar presença no olhar altivo de quem nunca havia trajado de serapilheira suja e gasta, ou passara noites ao relento, sentado à espera que o sol da madrugada aquecesse as mãos trémulas e enregeladas que haviam de segurar um pedaço de pão que a sorte se lembrasse de trazer. Na cozinha ultimavam-se os preparativos. Na mesa os mais belos talheres de prata maciça deixavam reflectir a palidez dos rostos que falavam em surdina e olhavam de soslaio para quem se ia sentando. Uma longa toalha branca cobria a mesa, deixando pendente longos e trabalhados bordados a condizer com


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a sala, onde as sombras se alternavam com as velas deixadas a queimar nos pesados candelabros suspensos nos altos tectos fumados pelos ecos das gargalhadas que por ali se perdiam. Entretanto, o jantar fora servido. Na entrada vários tipos de queijos e enchidos degustados com cidra e vinho das uvas castas que provinham da quinta. Seguira-se a carne de boi, o faisão recheado e o peru assado numa mesa farta e repleta que findara com o pudim de ovos e as castanhas em molho de canela. Isabel mal tinha comido no frenesim da cozinha. Teve ainda tempo de trinchar um pouco de peru e guardar umas castanhas em canela para levar a João. – Tome meu amo, pelo menos coma as castanhas neste molho de canela, vai acalmar-lhe a tosse – disse Isabel. – Deixe ficar menina Isabel, se tiver apetite eu como, disse João com a voz debilitada.

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Só de pensar no que ali se comeu dentro e o meu povo faminto – disse João cabisbaixo e triste. – Não se preocupe senhor, tentarei levar algumas sobras aos albergues da vila – disse Isabel de imediato. – Diga-me menina Isabel, como foi a noite? – Lá fora gélida e húmida senhor, apenas se ouviam as corujas e os mochos que cedo recolheram! Cá dentro a arrogância do costume, parece que nunca estão satisfeitos com nada! – disse Isabel num tom assertivo! – Descanse senhor, disse Isabel pegando-lhe na mão, afagando-lhe o longo e farto cabelo, húmido, encharcado no suor que a febre da noite lhe tinha provocado. Já a noite ia alta, no palacete ainda se ouvia tocar cravo e alaúde para delícia dos presentes. O som


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propagava-se pelas abobadas ecoadas pela acústica do vazio, delimitada pelos tectos altos que retornava a melodia única, num tom inspirador e renascentista. A luz dos candelabros deixava resplandecer três magníficos quadros de Rembrandt, deixando bem patente o realismo barroco que caracterizava o palacete e os costumes da época que se iam despojando aos poucos de um conservadorismo exacerbado, para dar lugar progressivamente a um estilo mais impressionista a ter lugar anos mais tarde. Na vila, o frio da noite atirava os transeuntes para perto das lareiras. Os albergues reconfortavam os despojados das famílias e os miseráveis, com um caldo quente que afagava o estômago dos famintos e reconfortava a alma dos sobreviventes. Sorviam com ânsia e mastigavam vorazmente o pão endurecido de três dias. As mantas grossas e negras acoitavam três e quatros pessoas numa tentativa de aquecerem os

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velhos e as crianças. Entretanto começara a chover copiosamente. Aqui e ali, o velho e cansado telhado do albergue ia cedendo à intempérie deixando entrar água que se ia acumulando nos cantos e escorria no chão gasto e compacto que absorvia com dificuldade a humidade que ia cansando as terras saturadas de um inverno particularmente rigoroso.


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Capítulo II No dia de natal o sol deu o ar da sua graça. Espreguiçou-se lentamente pela manhã por entre balsas e ciprestes. A chuva tinha dado uma trégua, para dar lugar ao frio que bafejava a vila, reduzindo a silhueta daqueles que se aventuravam na rua. Os comerciantes, os saltimbancos e os artistas de rua em breve começavam a chegar para darem vida à vila que ia acordando lentamente por entre a bruma que se ia dissipando. Entretanto, mais tarde, já o dia ia longo quando se começara a montar os artefactos para o espectá-

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culo de rua que ia dar luz à noite que estava próxima. O fogo era rei e usado num malabarismo que encantava as hostes que se iam juntando em magotes para ver tal magia acontecer. Tochas fumegantes emanavam labaredas gigantes que se iam alimentando da gordura animal, deixando no ar um cheiro característico e nauseabundo. Iam proliferando a cada esquina iluminando os guetos escuros que entretanto a noite ia escondendo. Todas as atenções estavam agora centradas no espectáculo de rua, nos jogos populares, nas animações dos joguetes, nos malabaristas e contorcionistas. Nessa noite alguns estômagos iriam ser mitigados pela oferta de algumas cabeças de gado que os senhorios das terras sacrificavam em troca do dia-a-dia duro e penoso com que exploravam os seus súbitos. João, queria estar presente, como aliás era seu apanágio todos os anos. A iniciativa das festas de


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rua tinha sido de João, pois via neste evento uma possibilidade de proporcionar às gentes da terra alguns momentos felizes e por um dia poderem esquecer os sacrifícios. João há muito que lutara pelos direitos e melhores condições de quem trabalhava a terra. Olhava pelos excluídos, pelos mais fracos e debilitados e sempre foi bastante popular entre as gentes da terra. Agora era ele quem precisava de ajuda para ultrapassar o seu problema. Ainda que tentasse erguer o seu corpo debilitado e entorpecido, a forças iam faltando a João. Mal comia. O que o mantinha era ainda a esperança de voltar a ver o seu povo. Para além das visitas escassas do médico que pouco mais podia fazer do que receitar infusões de linhaça e camomila para acalmar as dores e a tosse, Isabel era a única pessoa que se mantinha junto de João. Ia-lhe pegando na mão, reconfortando-o como podia. O seu olhar doce e meigo

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era bebido por João, como se telepaticamente pudessem comunicar sem nada dizerem um ao outro. – Sois os meus olhos e os meus ouvidos Isabel. Não sei quanto mais tempo irei pertencer ao mundo dos vivos. Seria uma traição ao meu povo abandoná-los, ainda que involuntariamente – disse João com desalento! – Não pense nisso senhor, pense só que vai melhorar! – disse Isabel aflita. – Aconteça o que acontecer o seu povo não será esquecido, estarei ao seu lado enquanto as forças mo permitirem – disse Isabel com convicção. João mal comera da ceia de Natal. “Ardia” em febre, pedia incessantemente água. Pairava um ar de mistério no Palacete. As conversas sucediam-se em surdina, e fazia-se silêncio à passagem dos membros da família real. O povo perguntava-se a si próprio


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como estaria João. Infelizmente, João padecia de uma pneumonia, possivelmente curável nos dias de hoje, com repouso, antibióticos e boa alimentação. Era uma doença da época que levava muita gente, principalmente velhos e crianças, assim como a peste negra que havia dizimado milhares pela Europa fora quatro séculos antes. Era uma questão de sorte chegar aos 50 ou 60 anos naqueles tempos. Não fosse o elevado número de filhos que se tinha na época, corria-se o risco de desertificação humana devido às doenças que levavam precocemente habitantes e transeuntes pelas aldeias e vilas. Era domingo à tarde. O silêncio ecoava no palacete. O pessoal da cozinha tinha sido dispensado e a família real aproveitara para dar um passeio na tapada. Ainda que corresse uma brisa fria, a aragem não impediu que todos saíssem aperaltados para

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aproveitarem o sol da tarde que entretanto se ia escondendo aos poucos, modificando a tela num jogo das sombras que iam pintando a paisagem de silêncio, apenas quebrado pelo trote que a charrete impunha. João ficara no quarto. Conseguira sentar-se recostado no travesseiro que segurava o seu magro e debilitado corpo. Apenas Isabel lhe fazia companhia. Poderia ter saído e aproveitado a tarde soalheira de domingo, mas preferiu ficar junto de João. Isabel tinha aberto os cortinados e as enormes janelas por onde os raios de sol entravam e iam aquecendo o quarto onde João se encontrava. – Como se sente hoje meu amo? – perguntou Isabel num tom doce. – Com dificuldade em respirar menina Isabel. Esta tosse tem sido matreira para mim. Sinto-me a definhar de dia para dia – disse João triste.


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– Então senhor, que é feito dessa coragem que sempre teve? – perguntou Isabel. – Nunca me senti assim Isabel, faltam-me as forças! – disse João com a voz embargada. Nesse momento caia uma lágrima do rosto de João que Isabel prontamente aparou com as suas delicadas mãos, mãos que se prontificaram a acariciar o rosto do seu amo, pálido, magro e triste. – Não o quero ver assim senhor, fico com o coração destroçado – pediu Isabel, fazendo um esforço para não se comover. Durante a tarde João pouco dissera, pois faltavam-lhe as forças para falar. Isabel acabara por adormecer com o seu rosto encostado a João. A noite aproxima-se a passos largos. A luz desvanecia-se nos ciprestes que iam crescendo nas sombras, misturando-se com o cair da noite. A família real apressara-se no recolher. O passeio tinha sido proveitoso. Tinham

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degustado um piquenique debaixo de um enorme castanheiro. As mulheres tinham ido apanhar flores enquanto o conde contemplava as suas terras do alto de um monte e pensava na próxima safra. Isabel acordara de sobressalto, aproxima-se a hora da família real voltar e seria comprometedor encontrá-la assim junto de João. Apressou-se a acender a braseira e a fechar os enormes portais que resguardavam as janelas. João adormecera, depois de ter comido um pouco de canja. Continuava febril e não tinha forças para se levantar da cama. A realeza pouco se importava com o estado de João. Apesar de ser o único filho homem, sempre se dera mal com a família, pois de aristocrata nada tinha, tendo chocado sempre com tal opulência. João tinha valores e princípios morais que o impediam de explorar fosse quem fosse. O altruísmo e o espírito missionário, fizeram de João desde cedo um rapaz e mais tarde um homem


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de convicções fortes que via na justiça e na igualdade dos direitos humanos um sentido de vida. Era uma forma de pensar arrojada para a época, por isso também mal vista e segregada da mesma forma como se cultivava o preconceito e o racismo, quer ao nível da cor da pele, quer nas posses que se ostentavam na época demarcando as classes sociais. João e Isabel nunca se conheceram. Mas desde cedo que muita coisa já tinham em comum. A rebeldia e o ímpeto de ajudar e defender os mais fracos, faziam deles dois seres que tanto despertavam ódios como paixões. João era um arrebatador de corações pela sua forma genuína de ser. Uma espécie de “robin dos bosques”. Chegara mesmo a tirar à barriga para que mitigasse, ainda que de forma efémera, a fome dos mais pequenos que deambulavam nas ruas, sujos, de olhar vazio e alma esquecida. Isabel foi sempre uma Maria rapaz, muito rebelde. Aprendeu a cres-

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cer rapidamente com as suas irmãs. De todas era a mais ousada e corajosa. Mas também de todas era a que tinha o coração mais generoso e um olhar doce e meigo como ninguém. Os dias sucediam-se a passos largos. A dobragem do ano estava próxima. O absolutismo imperava na altura sob a égide da casa real na figura de D. João VI, sucessor de D. Maria I que entretanto doente, se exilara no Brasil. O comércio português estava em expansão além fronteiras, com grandes influências no Brasil e no médio oriente nos mercados das especiarias e dos metais preciosos, impulsionada ainda na regência de D. Maria I. A Europa estava agitada. Um ano antes, Portugal aliara-se à Espanha no combate à revolução francesa que ameaçava toda a Monarquia. Eram já sinais de mudança que mais tarde, no ano de 1807, viriam a perpetrar-se e que culminariam no exílio de D. João VI e de toda a fa-


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mília real no Brasil. As noites continuavam frias e os dias encobertos sem que o tempo desse tréguas ou tivesse compaixão para com os enfermos. Isabel nos seus cuidados maternais, sempre que podia, estava junto de João. Trouxera-lhe um pequeno cachorro, uma cadela, cuja morte estava predestinada se não tivesse sido encontrada por Isabel numa das idas à vila. Dócil, de pequena estatura e ávida de afecto, latia e não cabia em si de contente. Isabel, apressou-se a dar-lhe um pouco de leite, ainda quente, trazido de uma vacaria que ficava de caminho. João ficou contente com tão ternurenta companhia e apressou-se a chamar-lhe de “esperança”, talvez pela fraca condição que o condenara àquela cama, de onde João não sabia se alguma vez iria sair. No palácio o cachorro era motivo de incómodo, gania e sujava onde podia. Um estorvo para a realeza que não via com bons olhos a vinda do

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pequeno animal, que cismava ser mais um pretexto para Isabel se encontrar com João do que outra coisa, cuja desconfiança há muito que pairava no ar. Isabel ignorava no entanto tais boatos, mantendo-se firme, com carisma. Isabel era elegante no andar, de olhar altivo e decidido, charmosa na maneira de ser e no trajar. Ainda que a indumentária que trajasse fosse a condizente com o seu estatuto, causava inveja na realeza pela beleza natural e charme que respirava a cada passada. Normalmente envergava um vestido comprido até aos pés de tons claros, de cintura apertada e bordado simples, com decote largo vislumbrando um pouco dos seus belos e voluptuosos seios, que era aliás motivo de falatório e de conversas em surdina por entre a realeza. Era o estilo de Isabel, que sem querer entrar no indecoro, não deixava de evidenciar a sua figura, uma força da natureza.


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Capitulo III Entretanto, o ano de 1795 chegava calmo e discreto, toldado de um cinzento frio, ameaçando chuva que teimava não largar Sintra, coberta por uma névoa densa e misteriosa, conhecida pelo seu micro clima que impregnava de humidade as mais secas das vestes e os mais seco dos pastos. O verde horizonte e a riqueza da flora presentes tinham o seu custo na elevada precipitação anual e no caprichoso tempo que mudava de “humor” com frequência, possuidor de um “temperamento ciclotímico”, mas mágico e único à beira mar plantado, a pouco mais de uma milha do

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mar com quem travava “batalhas” diárias nos ventos que castigavam a serra, assistindo o povo incólume às agruras do Inverno. O inicio do ano trouxe uma visita a Portugal que há muito estava anunciada. O sobrinho de Alberto, Manuel Constantino, primo de João, uma jovem promessa no negócio do café que exportava para Portugal. Estava no Brasil há dez anos. Um orgulho para a família pela forma como cuidava dos negócios da realeza além fronteiras. Manuel, tinha 35 anos, era baixo e franzino. Tinha um ar impetuoso e pedante. Um dos tiques que o caracterizava era estar sempre a enrolar o seu longo e farto bigode. Era um mulherengo inveterado. Nunca quis assentar, a boémia e o negócio do café ocupavam-lhe o tempo. Falava-se do seu envolvimento no comércio de escravos africanos para o Brasil. Conhecido pelas sevícias que infligia ás gentes de cor, era temido do


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outro lado do atlântico pelas histórias que de além mar vinham chegando. Teria tentado a trazer alguns escravos para Portugal, não fosse a escravatura ter sido abolida recentemente, no ano de 1761 pela mão do ilustre Marquês de Pombal, ainda sob a égide de D. José I. Manuel Constantino tinha sido convidado a passar uma temporada em Sintra para controlar de perto as operações da chegada do café e assegurar que o monopólio lhe pertencia. Manuel chegou de madrugada, a 23 de Janeiro, depois de quase três meses no Atlântico, num Bergatin imponente de três mastros, o “Imperador” cujas velas brancas se avistavam a milhas de distância na imensidão do verde- azul. Esperava-o a charrete real que o levaria a Sintra. Na sua bagagem de velcro, conhaque, papel de escrita e uma sátira de Moliére com meia dúzia de páginas lidas. Na imensidão do seu quarto, João dava os pri-

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meiros passos amparado por Isabel, ainda debilitado, mas dotado de uma força hercúlea e determinado a vencer a maldita pneumonia que teimava em ficar. – Tem sido incansável menina Isabel, se não fosseis vós, teria ficado no ano velho. – Não deixaria partir com facilidade essa garra senhor – retorquiu Isabel. – E eu, esses olhos cor da esperança e da paixão que me transmitem a confiança que preciso. Esses olhos têm algo que há muito procuro Isabel!! – Talvez encontre neles o que procura senhor, talvez estivessem guardados para vossa senhoria! Nesse momento os olhares cruzaram-se e por instantes fez-se silêncio. Os lábios de ambos tocaram-se com suavidade e os corpos entrelaçaram-se como se fossem um só. Simplesmente o tempo parou naquele


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final de tarde. Aquele beijo acabara de selar uma cumplicidade nunca vista, uma dedicação extrema e um altruísmo incomensurável que só um grande amor podia alimentar. – Senhor, acho que foi mais forte que eu, mas há muito que o desejava fazer – disse Isabel enquanto abraçava João. – Era inevitável menina Isabel, é simplesmente indescritível o que sinto… não tendes receio de ficar doente?… acho que talvez não o devêssemos ter feito. – É mágico meu amo, não se canse, não fale… não vos preocupais com nada… se o fiz foi de plena consciência!! – O silêncio foi nossa testemunha, afinal se tivesse que partir, partiria feliz!! – disse João comovido – Não diga isso senhor… mas se partisse, par-

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tiria consigo – disse Isabel, ao mesmo tempo que se soltava uma lágrima discreta no seu rosto. O sol entretanto despedia-se, calmo e suave, quase que num aceno perfeito, deixando cair o véu, preparando a bela vila de Sintra para mais uma longa noite. Manuel já se instalara entretanto num opulento quarto do palacete. As cadeiras eram forradas a vermelho do mesmo tecido da colcha que cobria a enorme e robusta cama. As paredes, todas elas altas revestidas de padrões verticais também eles vermelhos com entalhes em madeira dourados que sobressaiam em relevo. O tecto todo ele era trabalhado em gesso rendilhado. Ostentava um enorme candelabro em cobre, majestoso e imponente. Na parede, sobre a cabeceira da cama, um fabuloso quadro a óleo de D. João V, o “Magnânimo” cujo cognome era conhecido pelo luxo


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e opulência em que vivia. O dia 29 de Janeiro aproximava-se, data do aniversário da Duquesa de Sintra, Manuela Constança. Iria comemorar os seus 70 anos, adivinhando-se uma festa memorável entre a nobreza, desta feita contando com a presença do sobrinho que tanto apreciava. Os preparativos já haviam começado. Sintra iria ser testemunha de um dos maiores eventos. 29 de Janeiro iria ser feriado, tendo sido já decretado por D. Maria I. As ruas começavam a ser enfeitadas com bandeiras detentoras das insígnias reais e de cartas florais afixadas nas ruas a assinalar o real evento. De Espanha, viriam Filipe V e a família Borbon. Representando a Inquisição viria a sua eminência o Cardeal da Cunha, figura máxima da igreja e do poder eclesiástico na altura. A Inquisição continuava a ter um peso relevante

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na sociedade. A perseguição aos hereges, à homossexualidade e a tudo o que contrariava os princípios pelas quais se norteava a igreja era pura e simplesmente reprimido sob o pretexto da imoralidade. A aliança e o conluio com a nobreza eram por demais evidentes. Tentava-se criar um protótipo de sociedade que anos mais tarde em meados do Sec. XIX perderia a sua expressão, assim como o santo ofício e o terror perpetrado pela mão da inquisição. A fama de mulherengo que Manuel Constantino ostentava não era por acaso. Sempre que podia investia ousadamente, e num ímpeto manipulador prometia juras de amor eterno às pobres das incautas. Ainda que indesculpável e indecoroso, era a sua maneira de ser. Já o seu pai Ildefonso, irmão do seu tio, Alberto, despedaçara inúmeros corações e vira-se muitas vezes a braços com o santo ofício, acusado por algumas damas desonradas no seu pudor que o


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queriam ver na prisão. Esse facto nunca teria lugar, uma vez que Ildefonso viria a padecer de sífilis que entretanto contraíra na Índia e por lá ficara. Manuel Constantino levantara-se cedo para estabelecer alguns contactos comerciais para distribuição de café. Esperava-o em breve um galeão oriundo do Brasil, de onde viriam algumas centenas de sacas do mais aromático e puro café. Algum deste café iria para Espanha com quem Portugal mantinha relações comerciais. Antes, Manuel fora servido na sala de visitas do palacete por um sumptuoso pequeno-almoço, composto por leite fresco, fruta da época e pão acabado de cozer onde se derretia a manteiga e as compotas de fruta. Isabel tinha ido dar uma mão à cozinha. A sua silhueta não tinha passado despercebida a Manuel, que olhou para bela figura de alto a baixo, com um olhar de desejo e confiante de outras conquistas de outrora.

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– A menina, quem é? – indagou Manuel. – Sou Isabel Senhor, trabalho na cozinha, em que o posso servir mais? – Que belas mãos eu vejo, é uma pena que se estejam a estragar na cozinha! Merece melhor, assim como o vestido que trás! – Gosto do que faço e vossa senhoria não se preocupe com as minhas mãos! – disse Isabel prontamente. – Temos mulher! – exclamou Manuel! Gosto das que dão luta! Havemos de voltar a falar menina, vou ter que sair e cuidar dos meus negócios – disse Manuel. Isabel achou despropositada a abordagem de Manuel e ainda que a sua posição social não lhe permitisse grandes veleidades, achou que a inconveniência do momento fosse de evitar em situações futuras. Na sua determinação em vencer qualquer obstá-


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culo, João dava os primeiros passos sozinho e atrevia-se de quando em vez a sair do quarto. Sentia-se agora mais confiante, mais forte. Sabia que tinha uma missão a cumprir. Isabel ajudara-o física e psicologicamente. Tinha agora alguém que o acompanhasse na sua cruzada. O tédio de estar tantos dias forçado no seu leito tinha-se apoderado de João. Estava na hora de recuperar o tempo perdido. João enganara as previsões do médico e contra tudo e contra todos parecia estar a vencer mais uma batalha pela sobrevivência. O chamamento dos mais fracos e os marginalizados da sociedade falavam mais alto. Estava um final de tarde agradável. João atrevera-se a sair um pouco para passear no jardim. Queria ir sozinho apesar da opinião contrária do médico. Apenas com o olhar, disse a Isabel que gostaria de se encontrar com ela mais tarde, ainda sem o dizer. Isabel percebera de imediato, era quase telepático

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e mediúnico. Sem saber, João na sua caminhada à volta do palacete era vigiado de perto por Isabel, preocupada com o seu novo amor e com a possibilidade deste ser acometido por algo menos agradável que o deixasse prostrado. No colete do seu bolso encontra um pedaço de papel pardo com as seguintes palavras “Amo-vos meu príncipe”. Isabel tinha-o escrito com um pedaço de madeira queimada que havia retirado da lareira. Longe dos olhares indiscretos, junto a um pequeno lago, cheio de folhagens, os dois amores encontraram-se. Trocaram beijos apaixonados que apenas alguns rouxinóis puderam testemunhar anuindo tão belo momento que os seus belos cânticos tinham deixado escapar. As túlipas e as dálias pintavam um belo quadro iluminado pelo sol que se ia esbatendo, foram cúmplices de um sentimento tão forte e tão belo que apesar de secreto, tinha a força de um amor


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incondicional. João e Isabel não tardaram a recolher ao palacete. O sol estava a pôr-se, não sem antes levantar uma leve brisa fria e húmida como que anunciar a chegada da noite, com pompa e circunstância, oculta por uma neblina densa que teimava em dissipar. Antes que a realeza chegasse dos seus afazeres e dos preparativos para o aniversário da Duquesa de Sintra, Isabel dirigira-se rapidamente à cozinha para a ajudar a mãe na preparação da janta para os comensais que chegariam dai a pouco ávidos do delicioso repasto. João deitara-se um pouco, algo cansado do pequeno passeio que dera. Contava já cerca de três meses que a pneumonia tinha atirado João à cama, por isso estava ainda algo débil. A sua estatura elevada e outrora robusta, jazia agora num corpo franzino, dançando nas calças de fazenda e na camisa branca que o colete lhe ocultava. O dia 29 de Janeiro chegara rapidamente e hoje

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Sintra rejubilava empolgada pelo acontecimento esperado. Manuela Constança completava neste dia os seus 70 anos. Ainda que o tempo ameaçasse chuva, parecia no entanto ter poupado a região como se tréguas tivessem havido para que a população pudesse vislumbrar todo o aparato real. As ruas estavam propositadamente decoradas com arranjos florais compostas de caudas de pássaros de anil e hortênsias que emanavam tons de branco e azul, por sinal cor do vestido que a duquesa de Sintra ostentava, com folhos largos e saia oval, corpete à cor do vestido e leque de um lilás desbotado à continuação da edumentaria. O ponto alto culminaria no jantar oferecido pela duquesa para cinquenta convidados no palacete, seguido de um baile de máscaras. Ao som de harpa e violino, na degustação de um delicioso licor Real Companhia Velha, as hostes aguardavam as entradas de perdiz e faisão com


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molho de gengibre por entre conversas em surdina, olhares de soslaio e uma ou outra gargalhada prontamente reprovada por olhares mais criteriosos que só bem bebidos a censura poderia baixar. A duquesa fora presenteada com um magnífico conjunto de azulejos centenários em faiança azul e branca do célebre pintor espanhol Gabriel del Barco num estilo marcadamente barroco representando um cenário campestre. O jantar acabara tarde, e dera-se início ao baile. As donzelas agora mais espirituosas e um pouco inebriadas, dançavam com os cavalheiros trocando de pares alternadamente vislumbrados por sorrisos efusivos de rosto a coberto das máscaras, que eram correspondidos com vénias de parte a parte. O rosa espampanante dos vestidos e os bordados artísticos ganhavam a sua expressividade ao som de “requiem” de Mozart e da “serenata nocturna”, brilhantemente

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interpretada por músicos vindos propositadamente de Viena. Trocavam-se confidências e aplausos rasgados, enquanto algumas donzelas mais acaloradas se agitavam incessantemente nos seus leques rendilhados. Com o passar das horas, das velas restavam apenas cotos e o cansaço apoderara-se da maior parte dos convivas, que entretanto se arrastavam para as suas charretes, alguns bem bebidos, numa madrugada fria que se ia esbatendo pelo clarear do dia que entretanto ia irrompendo na escuridão que ainda se fazia sentir. Manuel Constantino acabara de mascar tabaco e degustara entretanto um conhaque velho, que juntamente à cerveja que havia tomado lhe provocava um entorpecido do pensamento e na voz que lhe saia entaramelada, murmurando impropérios para quem os quisesse ouvir. Uma coisa não lhe saia da cabeça, o desdém que lhe tinha sido dado por Isabel e por isso


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teria que obstinadamente tentar uma aproximação, nem que fosse pela força. Isabel entretanto já dormia, cansada de servir à mesa, a noite fora longa, mas teve tempo de levar qualquer coisa a João para comer, que apesar de sentir melhor, não lhe passaria pela cabeça juntar-se a tanta gente que nada lhe diziam. Dera apenas um beijo à sua avó e oferecera-lhe rosas brancas que tanto apreciava. Ainda que já tivesse pegado no sono, Isabel acorda entretanto sobressaltada pelo facto de alguém estar a tentar abrir a porta do quarto dos fundos onde pernoitava. A porta estava trancada à chave. Por detrás da porta ouvia-se alguém a murmurar. Isabel hesitou em perguntar quem estava do outro lado. Contudo, perante a insistência, Isabel indagou e de modo assertivo perguntou quem era. Do outro lado, alguém dizia num tom exaltado, mas arrastado e monocórdico.

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– Não sois mais teimosa que eu… as fêmeas não me resistem… tenho quem eu quero !!! – disse Manuel Constantino num tom peremptório, embora vacilante e visivelmente embriagado! – Tendes juízo senhor Manuel! – respondeu prontamente Isabel, confiante, embora receosa de toda aquela situação embaraçosa e constrangedora. – Vossa senhoria precisa é de um banho de água fria!!! Agradeço que saia da minha beira!! Ainda que não anuísse de bom agrado, Manuel não esperava tal resposta pronta e firme, ao que retorquiu: – Não perdeis pela demora, haveis de ser minha, nem que seja por uma noite!! De seguida fez-se silêncio e a noite voltou a adormecer, calma e serena, para que em breve o romper da


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alvorada se fizesse anunciar pelo chilrar dos pássaros e dos primeiros raios de luz que teimosamente insistiam nas frestas que as janelas iam deixando passar. João soubera do sucedido na noite anterior. Isabel confessara-lhe o receio que tinha e que pela sua posição social lhe seria complicado estar a manifestar o seu desagrado à realeza, temendo inclusive represálias caso isso acontecesse. João havia-lhe dito que não se preocupasse e que falaria com Manuel Constantino. Diariamente, João dava pequenas caminhadas pela tapada, numa franca e rápida recuperação que não deixava de ser surpreendente. O próximo passo seria fazer caminhadas na praia que João tanto gostava, embora o médico ainda achasse que não o devesse fazer face à exigência do mar. Estes pequenos passeios, conferiam-lhe pouco a pouco resistência física e sobretudo alento e moral para continuar, agora

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ao lado de Isabel que o apoiava incondicionalmente, sentido-se por isso muito bem e confiante, como se fizessem parte um do outro, embora o secretismo pudesse pairar sobre aquela mágica relação aparentemente impossível e condenada ao ostracismo perante os olhos da sociedade aristocrata. Manuel Constantino acordara tarde com uma enorme ressaca. Nem os sapatos havia tirado quando o seu corpo se prostrou pela cama. Pedante como sempre, chamou incessantemente o mordomo para que lhe trouxesse café e um jarro com água para se lavar. Frustrado por não conseguir os seus intentos na noite anterior, atribuía as culpas a tudo e a todos. Saiu apressado, ainda atordoado pela longa noite. A charrete aguardava-o para o levar ao terreiro do paço em Lisboa, onde se iria encontrar com alguns comerciantes de café e tabaco chegados de Espanha há uns dias.


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O movimento para o centro de Lisboa era apreciável. O número de transeuntes a caminho da baixa lisboeta pululava num frenesim diário por entre o empedrado recém reconstruído que o galope dos cavalos assinalava. A baixa estava diferente, mais ampla, sobretudo depois do terramoto de 1755 que obrigara Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal) a alterar por completo a arquitectura paisagística de Lisboa e toda a sua toponímia. Respirava-se outro ar ao sabor dos novos tempos. De Sintra a Lisboa eram mais de duas horas de caminho por entre estradas tortuosas de terra batida e arvoredo, por vezes denso, que se fechava em copas. Manuel fechara negócios importantes e garantira o fornecimento de café e tabaco para o mercado nacional. Regressara ao final da tarde a Sintra quando uma forte chuvada se abateu sobre o caminho. O clima desta zona era caprichoso e mudava frequente-

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mente de “humor”, elevando os níveis anuais de pluviosidade na bonita região de Sintra dando-lhe um toque mágico e fazendo desta vila um dos jardins e uma das paisagens mais belas até então vistas, dignas de um bom quadro impressionista. Relâmpagos e chuva forte não poupavam a vila. O dia começara a fechar-se sobre si mesmo. Os equídeos assustavam-se com o ribombar da trovoada. Agitados recusavam-se a galopar, não obstante fustigados pelos chicotes que teimavam em assentar injustamente nos seus dorsos. Meia hora se passou sem que houvesse tréguas parte a parte, quer do tempo que parecia não melhorar quer dos potentes e robustos cavalos que não davam sinais de quererem progredir. Mais tarde, a tempestade amainou, sem que no entanto parasse de chover. A agitação dera agora lugar a uma maior tranquilidade e a charrete lá conseguiu partir, não ganhando Manuel para o susto,


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precipitando-se para o seu conhaque de bolso, desapertando atabalhoadamente o colete e o volumoso lenço que trazia ao pescoço. Três quartos de hora depois, a charrete chegava ao palacete a Sintra. Já era noite. Uma chuva fina e persistente insistia em encharcar a vila. A humidade era elevada. O clima típico da região via-se agora a braços com uma frente fria vinda do atlântico que trazia uma massa de ar turbulenta e gelada carregada de água, ávida por desabar nas encostas de Sintra. Manuel Constantino chegara esbaforido e agitado. Enregelado, pediu para que lhe preparassem um banho quente e uma boa sabonária. Ao bom estilo burguês deixou-lhe mergulhar pouco depois na água bastante quente, tragando um brandy aquecido enquanto ia enrolando o seu bigode como já era hábito com um sorriso perverso, como que a comemorar o fecho do seu negócio e a pensar nas suas próximas

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estratégias amorosas. Algum tempo depois, enquanto vestia o seu traje emproado e galante, ouve bater à porta. Era João, que aproveitando a oportunidade da presença de Manuel Constantino, lhe viera dar uma palavra. – Caro Manuel, permitíeis que entre? – Sim, podeis, o que o traz por aqui caro primo? Não deveis estar a recuperar? – Sinto-me melhor, não vos preocupais! A viajem a Lisboa correu-vos bem? – perguntou João. – Um pouco atribulada, devo confessar! Os deuses lá por cima não andam bem dispostos… chove demasiado nesta terra… ao menos no Brasil está sempre quente, mesmo que chova! – É uma questão de vos habituardes caro primo!


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– Certamente não vos dirigistes aqui apenas por isso? – perguntou Manuel. – Constou-me que apoquentais algumas mulheres do serviço de cozinha e que a noite de ontem foi agitada! – Ilustre primo, quem vos haveis dito isso? Ás vezes o fermento da cidra faz das suas e ontem, devo confessar, que estava particularmente espirituoso… mas nada demais! – Da fama não vos livrais por certo – retorquiu João. – Vos tendes na cozinha uma moça muito vistosa, mas dotada de uma rebeldia incomum! – Por certo, estais mal habituado ilustre primo… aqui tendes uma casa de respeito… não vos meteis em sarilhos… deixai as vossas aventuras e devaneios amorosos para outras paragens!

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– Não vos preocupais, vos saberdes da vossa vida e eu da minha – respondeu Manuel prontamente. – Estais avisado meu ilustre amigo, negócios de saias e impropérios madrugadores não são apanágio desta casa… agora se me dais licença, irei retirar-me. Depois desta conversa, João saiu do quarto, deixando Manuel um tanto ou quanto perplexo, mas não demovido dos seus intentos mais perversos que tinha em mente. A fama de mulherengo que vinha de longe não iria cessar tão facilmente.


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