Os Ordenadores do Caos

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OS ORDENADORES DO CAOS

JORGE VIEGAS

FICHA TÉCNICA

título: Os Ordenadores do Caos

autor: Jorge Viegas

edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)

ilustração de capa: Lívio de Morais

arranjo de capa: Ângela Espinha paginação: Alda Teixeira

1.ª Edição Lisboa, dezembro 2024

isbn: 978-989-8986-97-9 depósito legal: 539980/24

© Jorge Viegas

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publicação e comercialização: www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

O berlinde com Eusébio lá dentro

Almiro Lobo é o escritor que, mais do que qualquer outro, me devolveu a terra onde nasci. A terra onde eu devia ter permanecido, mas não permaneci.

“O berlinde com Eusébio lá dentro” não me permitiu ter uma leitura normalizada e habitual, porque nele reencontrei emocionalmente espaços onde eu estive e pessoas que eu conheci.

O tempo moçambicano será cada vez mais moçambicano ao ser interpretado por escritores moçambicanos. Essa interpretação, por outros iniciada, tem uma continuidade, e um alargamento na escrita de Almiro Lobo. A escrita de um cronista, de um contador de histórias e de um sociólogo. Uma escrita que sintetiza duma forma notável a realidade com que se depara, e delineia perfis psicológicos com uma extrema sobriedade verbal.

O texto “esta terra é dos pretos” sobre o professor de Educação Musical em Quelimane, Tomás Firmino, foi um dos que mais prendeu a minha atenção. Porque Tomás Firmino foi o

meu professor de Canto Coral na escola comercial e industrial D. Francisco Barreto, em Quelimane, e quem me possibilitou a minha primeira experiência no campo do teatro, ao integrar-me como protagonista de uma peça levada à cena numa das festas da escola.

São para mim uma surpresa inexplicável as palavras proféticas ditas por Tomás Firmino nos dias imediatamente anteriores ao 25 de Abril de 1974, as quais, segundo Almiro Lobo, seriam as seguintes: “— Esta terra é a dos pretos. Vai ser governada por pretos. Eu já cá não estarei. As coisas estão a mudar. Um dia os meninos hão-de perceber isto que vos digo agora.”

Uma outra inexplicabilidade é a do espírito que era tão pontual que nos faz associá-lo ao rigor cronométrico com que o filósofo Kant circulava pelas ruas de uma cidade alemã: “Já não havia quem acreditasse que o espírito voltaria às 6h.” “— O espírito tem relógio? Que espírito é este que sabe ver horas?” (Madjin: a voz dos espíritos.)

Este livro obrigou-me a remexer nas gavetas da minha memória, onde os “The Blue Twisters” do Né Afonso, as latas do leite condensado Cruz Azul, de Milo, de Ovomaltine, o comboio Lichinga-Cuamba, o Diretor Provincial de Educação Boene, o nascimento do metical e a troca de moeda, o Mutchapáwé, as patanícuas e outras cousas mais, despertaram do sono do esquecimento a que estavam habitualmente remetidas.

Gostaria que Almiro Lobo soubesse, e por isso aqui deixo escrito, que a leitura do texto “galinha assada com vinho tinto gelado” do qual transcrevo os dois seguintes excertos, “como servente, além de carregar e descarregar caminhões com sacos de sêmola, varria várias vezes o armazém”. – “na primeira manhã, fui a um café. Há muito não via tanto bolo junto e variado. Nas prateleiras envidraçadas os bolos pareciam irreais”, me trouxe à memória alguns versos de José Craveirinha: — “Roto e descalço/vai o rei da Munhuana/de montra em montra/pelas ruas da cidade”. E as suas breves alusões ao Land Rover na narrativa “enfermeiro por um dia” recordou-me a pulsação enérgica do poema “Nós descolonizamos o Land Rover” de Albino Magaia.

Como alguns poucos Almiro Lobo lembra-nos que a participação de um homem na construção do mundo tem como base principal o esforço que ele despendeu na construção de si mesmo.

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No mundo da lua?

… talvez não…

Há um resíduo permanente em nós das histórias infantis que lemos. Não sei se poderá afirmar que a literatura para as crianças tem os seus clássicos. Se não os tem, como poderão ser classificados os contos da Branca de Neve, do Capuchinho Vermelho, do Soldadinho de Chumbo, da Galinha dos Ovos de Ouro, do Ali Babá e os quarenta ladrões, do Pinóquio, da Carochinha, do Rei que vai nú, e terminamos por aqui dado que é o que de imediato ocorre á nossa memória.

Ana Paula Antunes, que será possivelmente uma escritora ocasional, leva-nos até ao tempo em que os animais falavam com a finalidade de nos alertar para um problema social do tempo presente: o autismo. A primeira das ousadias da autora foi a de fundir os dois tempos: “A história que vos vou contar é uma fábula. Poderão vocês pensar, que como todas as fábulas, aconteceu há muito tempo, mas não, foi apenas ontem… Tudo se passou numa pequena quinta, mesmo às portas da cidade, bem aqui ao nosso lado.”

O protagonista da narrativa é o pintainho Pedrocas cujo desalinho comportamental traz o desassossego ao reino da bicharada: “— Não sei o que se passa com ele.., é diferente, não pia, não sai ao pé de mim, ainda não sabe comer sozinho, não brinca com os outros, não presta atenção a nada, passa a vida a olhar para plantas. — Hum, hum! — exclamava o mocho com ares de entendido. — “Mal educado é o que ele é! — Comentava sempre que havia oportunidade a pata Patareca, pois tinha ficado com o Pedrocas e com a mãe atravessados na goela desde o dia em que este lhe havia chamado de gorda em frente ao pessoal todo”.

O diagnóstico do mocho é certeiro: “Hum, hum, pelo que me contas, ou muito me engano, é um caso de autismo”. Um autista é aquele que vive descentrado da realidade que o cerca, absorvido pelo seu mundo interior imaginário. Na interioridade de Pedrocas as plantas eram os elementos mais importantes. E a fixação do seu interesse nas plantas faz dele um herói: “A certa altura Pedrocas dá um grito. — Não, Patinho, não comas isso, essa planta é uma Cicuta Maculata, muito venenosa e até mortal, ora vê! — Apontava Pedrocas, muito aflito, para o livro que estava a ler.” Estas e outras peripécias de um pintainho degenerado superior, são enriquecidas com os desenhos ingenuamente expressivos de Afonso Sobral dos Santos distribuídos por todas as páginas do livro.

O sonho de uma adolescente

Uma mulher é um enigma impossível de decifrar. As tentativas mais consequentes para decifrar o indecifrável terão de partir da própria mulher. O alcance dessas tentativas será ampliado se a mulher optar pelo mui nobre ofício de escrever.

Foi essa opção tomada pela autora deste livro.

Uma obra onde se desenha nitidamente o perfil de uma heroína do dia-a-dia, delineado desde a infância num lugar do interior, sem sinais de modernidade, onde tinha vivências harmoniosas com a paisagem, as árvores e os animais: “E a vaquinha amarela, está bem avô?” Uma bezerra que tinha nascido há pouco e Ana colocou-lhe o nome de “Boneca Amarela”.

A sua relação com os humanos naquela época sujeitava-a a grandes constrangimentos.

Com o objectivo de mudar a vida e de grande desenvolvimento pessoal acaba por partir para a cidade mais próxima da sua localidade.

Quando esse novo destino se cumpriu a sua ingenuidade foi abalada, diante da complexidade dum novo mundo.

JORGE VIEGAS

Mas, é nesse mundo, que ela vem descobrir o seu grande amor.

Esta história baseia-se em factos reais da vida de uma adolescente, no seu tumultuoso processo de adaptação ao ritmo de actividade duma cidade.

O Círculo

Ana T. Freitas

Se por algum motivo os meus olhos procuram delinear um trajecto no mapa de Portugal, e a linha a seguir passa pela vila de Coruche, a minha memória é ocupada por três pontos de referência que a esse lugar dizem respeito e que são os seguintes:

— o volume majestoso das águas do rio Sorraia que é um dos seus limites. (No dia em que lá estive decorria uma cheia.)

uma casa grande sufocada por um emaranhado de ramos de árvores supostamente tropicais. E escrevo supostamente tropicais porque me fez lembrar, quando a vi, uma casa a ser engolida pela selva brasileira.

— a figura estilizada da poetisa Ana T. Freitas pressionada pela preocupação de que tudo venha a dar certo no evento um poema na vila, cuja organização está a seu cargo.

É desta poetisa a autoria dum livro de cordel intitulado “O Círculo”. A capa do livro mostra com legítimo orgulho uma imagem a preto e branco sobre tela de Ana Freitas designado de “O Círculo”. Um círculo, secundado por círculos cada vez

menores que convergem para um ponto. O ponto da irradiação plena da palavra poética. Palavra que a partir deste ponto se propaga ao modo das linhas concêntricas das ondas hertzianas, a emitir permanentes sinais no sentido de captar a atenção do possível leitor.

Nas palavras que escrevo, inteira me dou, parece-nos dizer a poetisa ao longo dos seus poemas.

O primeiro texto remete-nos para o seu lugar de origem: “Douro meu / como te adoro / teus montes, vales, rios, fragas / tu próprio, meu rio!” - “Douro / minha seiva meu sangue tacteados meu berço / ainda tão carinhosamente embalado.” (p. 7) Um lugar onde durante uma infância despreocupada e feliz viveu as peripécias adequadas a uma maria-rapaz: “rostos teias de aranha / do foge e esconde / no escuro rastejante / entre cubas e tonéis” – “no andar de trotineta / «caseira» / que as magras economias / espicaçavam o engenho” – “água límpida e cristalina / lavada pelo sabão das lavadeiras / que nos fazia nadar sem sabermos / mesmo sem as bóias / refugo da oficina mais próxima / no escorrega de papelão / nos inclinados lameiros bordejantes do Douro / tisnados pelo Sol ímpio do Estio.” (ps. 10/1)

Alguns dos poemas evidenciam os principais factores económicos das regiões onde viveu: “videiras viçosas / poucas, Preview

A angulosidade das paisagens durienses reflectiu-se nos ângulos duros dos obstáculos que a vida a obrigou a transpor: “socalcos / minhas origens / a minha vida / em socalcos.”

quase definham / reminiscências da filoxera? / praga malvada.” (p.12) – “O azeite / quem diria / que um produto tão natural / tanta polémica alimentaria” (p. 14) “Pele rugosa e caprichosa / de riqueza e beleza ímpares! / Vaidoso, rei do montado.” (p. 15)

Prisioneira duma gaiola sem grades assim se sente a poetisa. E as paredes dessa gaiola imaginária são sustentadas por duas realidades palpáveis: a primeira é a da passividade: “ Vem aí o Sr. Director / Bem composto, altivo, decidido, de tudo sabedor, enigmático … / Sente-se vazio, temor, amorfismo / talvez por imposição ou servilismo / talvez por ausência de democracia … conformismo… — “Bom dia Sr. Director! / Como está Vossa Excelência de consciência? ” (p.38) E a segunda é a da excessividade burocrática: “papéis e mais papéis / vomito papéis.” (p. 37)

Mas o grande circo que a vida é, “a vida é um circo no círculo” (p. 48) permite à autora aceder a outras pistas que lhe são próprias, e onde ela se reencontra: No sentimento pleno dum amor idealizado que se concretiza: “chorar / só por te amar” (p. 42) “amor equilibrista / simbiose perfeita / emoção constante / a chama que me mantém / equilibrada / em equilíbrio / desequilibrado.”

Na sensação de que a sua alma se dilui ao deixar-se embeber pela aura espiritual duma cidade, dum lugar ou duma efe-

méride: “Lisboa domingueira / és leve, sem buliço, apetecível / vestes lavado, caprichas / és bela” (p. 20) – “reis da selva, chitas / imponentes na imensidão / Quénia, que saudades / de cores quentes, cheiros vivos / acácias floridas.” (p. 28) – “No palco real de Westminster Abbey principescamente / engalanada, qual jardim britânico / ao pontual segundo do Big Bem o enlace acontece” (p. 35). Na crença de que a poesia permanece fortemente ligada à construção da História: “Junqueiro, Quental, Pessoa, / Ary, Zeca, Alegre / poetizaram / desnudando injustiças atropelos hipocrisias / de mundos separados por mares centenários / e tão iguais.” No valor inestimável da profissão que escolheu: “Ser professora / sonho de criança / escolha de adulta em democracia crença no futuro / esperança na vida que se multiplica em frutos sempre melhores / sonho de muitos sonhos feito.” Assim a autora dá cumprimento ao apelo dum outro poeta que foi também um grande educador, Sebastião da Gama, que nos disse: “Pelo sonho é que vamos.”

O mar verde de mim e as terras

brancas sem açúcar

Temos diante de nós um livro cujo título algo insólito nos convida a pegar nele e a ler um ou outro texto. Essa leitura ao acaso e o olhar interrogativo da autora na contracapa vinculam-nos à obrigação de ler integralmente a obra.

A poesia de Andrea Paes emite os sinais duma significativa tranquilidade existencial. Os seus versos dão a entender que o real imediato é aceitável se nós nele nos incorporarmos com humildade. Incorporação esta que se processa em plenitude quando somos crianças, e o mundo é para nós um organismo perfeito: “Era só ali./ E eu cabia nos ramos / das acácias / e não sabia/ do longe que existia.” (p.17) Ao crescer, apercebemo-nos que os tempos passados, presentes e futuros, estiveram, estão e estarão, contaminados pelo desconcerto do mundo: “... e se eu fosse Deus/ e tivesse outro sítio para morar / abandonava a raça humana / e inventava uma outra /que não pudesse raciocinar” (p.48)

O documento de identidade de um poeta designa-o, antes de tudo, como um habitante do reino das palavras: “É dentro das palavras / que eu moro./ Dentro da fonologia / ondulada das sílabas / que se conjugam,/ formando a tonicidade / do meu sossego / da minha paz / do meu silêncio.” (p.47)

O poeta americano ArchibaldMacLeish escreveu uma das definições mais lapidares da poesia: “o poema deve ser / destituído de palavras / como o vôo das aves.” No poema Meditação de Andrea sente-se o eco silencioso dessa definição: “Ausência de pensamento / e o silêncio acordado / dentro de mim.” (p.52)

Um dos poemas lembra-nos que a perturbação mais grave do amor é a sua não correspondência. “As paixões surgem./ Preview

A sensibilidade poética da autora permite-lhe captar com propriedade o latejar da vida na natureza: “Oricuri dança as suas hastes / molhadas de sal / que brilham ao vento./ Dança / dança devagar / e absorve todo o meu pensamento.” (p.38) E ao sentindo imemorial da vida ela contrapõe, num outro texto, o sentimento grave do absoluto da morte: “Passeio de mãos dadas / com a morte.”/ “Eu, dentro da minha / vontade de viver./ Ela, dentro da vontade de me ter.” (p.58)

Na sua larga maioria os poemas de “O Mar Verde de Mim” versam uma temática amorosa. Alguns exaltam a veemência do acto amoroso: “Escreve na curva cheia / do meu peito / as palavras molhadas / no céu da tua boca. / Deixa-as escorrer, / transformarem-se em versos / suados de prazer./ Faz poesia comigo.” (p.18)

Não se explicam./ Magoam o corpo / quando são sós./ Eu quero uma paixão / acompanhada.” (p.43)

Importante, importante, é a permanência do amor: “O amor é sempre verde / Mesmo depois de desbotado / ele volta a nascer / com a mesma cor / verde e salgado.” (p.22).

E nem a presença possessiva de outras cores em versos do penúltimo poema do livro, “neste norte gelado e branco,” “os pássaros escrevem a negro”, “e é nestas terras brancas sem açúcar”, “pela intoxicação loura do malte” consegue esbater definitivamente o verde infinito desse mar sem fim. Os versos de Andrea Paes surpreendem pelo inesperado fulgor de imagens que nos libertam do nosso modo pautado de viver.

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Almada – Gente Nossa – Volume II

Artur Vaz

As palavras que dizemos dão uma ideia do que nós somos.

O livro em epígrafe é uma obra com palavras ditas por várias personalidades que se notabilizaram nos mais variados campos da actividade humana.

O dado que estabelece o traço de união entre todas essas palavras é o facto de as pessoas terem nascido ou vivido no concelho de Almada. Ao responderem às perguntas do jornalista e escritor Artur Vaz, esses homens e mulheres dão-nos não só uma imagem de si, como ainda desvelam uma sucessão de quadros nos quais entrevemos a vida do referido concelho em particular e a situação do país em termos gerais.

As actividades que tornaram ilustres os entrevistados são as mais variadas, designadamente as de pintura, literatura, fotografia, jornalismo, música, canção, cerâmica, associativismo, toureio, desporto, cinema e ensino.

As perguntas e as respostas apresentam-se numa linguagem directa, despidas de evasivas e entrelinhas e tentam sustentar linearmente as alegrias e as dificuldades de um tempo

de rápida mutação. Os entrevistados são ao mesmo tempo intervenientes e testemunhas dessas mudanças.

Entrevistar essas personalidades com direito de permanência na memória colectiva foi para Artur Vaz uma obrigação de cidadania de urgência inadiável: “Este profícuo conjunto de depoimentos, de valor ímpar para a bio-etnografia almadense, cujas personalidades através das suas intervenções cívica e cultural representam um rico manancial de referências para as gerações vindouras. É nosso dever, enquanto cidadão atento, registá-los para a posteridade.”

A liberdade traz consigo um excesso de palavras. A todos cumpre escolher as que têm por mais próprias para decifrar o tempo. As que o escritor e memorialista Artur Vaz escolheu partem do pressuposto de que a esquerda é o verdadeiro motor da História.

Terra Morena

Por pedido do seu autor transcrevemos nesta edição repetidamente a crítica literária de Jorge Viegas ao livro de Caeiro Correia que por falta de espaço não transcrevemos integralmente na página cultural da nossa edição do mês passado.

CONNOSCO... UM ESCRITOR

Eu poderia começar a escrever sobre o livro de Caeiro Correia, “Terra Morena”, duma forma dubitativa. E a base da dúvida estaria na pergunta seguinte: — Quem sou para falar dessa obra?

Se assim o fizesse talvez muito cedo eu viesse a desistir de escrever sobre o referido livro. Na verdade não me julgo em condições de pretender ser um crítico literário. Assim, optei simplesmente por assumir de forma mais lata a minha condição de leitor e por passar em forma de letra as impressões que me ficaram da leitura do “Terra Morena”.

A impressão mais forte é a de que o livro está escrito num português vernáculo, sem jaça, podendo uma vez outra aparecerem vocábulos de pouco uso — doairo, azamboada, alvoreado, foeiradas, etc... Dum modo simplificado eu diria que,

pelas intenções, o livro pode enquadrar-se como neo-realista mas que, pelo estilo se encontra mais próximo dos escritores do romantismo. Este aspecto leva a que “Terra Morena” seja uma obra deslocada no tempo.

O enredo passa-se num tempo que nos é adjacente, mas o processo de escrita insere-se em correntes literárias de tempos mais antigos.

De algum modo este livro foge à regra comum. Na maior parte das histórias que lemos em que há uma situação de mistério, a referida situação transparece logo nas primeiras páginas. Em “Terra Morena” não é assim. O que lemos está escrito de forma clara e directa, a arquitectura da história desenha-se sempre com nitidez, mas é nas páginas finais que verificamos que afinal existia um mistério. E a clarificação desse mistério leva-nos a ver algumas personagens sob uma luz diferente.

Mas, “Terra Morena” é sobretudo uma história de amores infelizes, tendo como trama alguns (bastantes) fios de política e (poucos) de romance policial. E um dos pontos mais notórios da politização do texto é que quando um dos protagonistas se refere aos “monstros sagrados” da literatura de sua veneração particular, enumera em duas partes distintas do livro os nomes de Victor Hugo, Balzac, Gorky, Tolstoi e Vladimir Llitch Ullianov e as respectivas obras designadamente “Os Miseráveis”, “A Mãe”, “Guerra e Paz” e “Que Fazer”.

O traço entre vírgulas devia estar ocupado por uma das obras de Balzac possivelmente esquecida pelo autor.

Ora, com estes livros de cabeceira dorme-se sempre melhor para o lado esquerdo. Mas será que Victor Hugo, Tolstoi, Balzac e Gorky, na sua condição de criadores de literatura maior, aceitarão pacificamente a companhia de Lenine (Vladimir, llitch Ulianov)? Sobram algumas dúvidas.

Mas dizê-lo como tenho vindo a dizer é reduzir a questão. O importante é que toda a obra está construída no sentido de retratar uma determinada situação social, cujo ponto de implosão histórica é o dia 25 de Abril de 1974.

Vejamos o seguinte parágrafo da página 41 do livro: “Crianças mal agasalhadas, com as cores indefinidas da miséria a tingirem-lhe os rostos tristes e carentes, arrastavam os pézitos descalços pelas ruas lamacentas da aldeia. Outras, ainda mais pequeninas dependuravam-se de mulheres derreadas pelo peso dos anos e da vida, como rebentos em árvores ressequidas. Os xailes pretos e esfarrapados em que se envolviam, quando sacudidos pelo vento, ondulavam como bandeiras da fome. E, assim, de olhos encovados e humedecidos, vergastadas pelo frio, aguardavam pacientemente que da penumbra dos postigos entreabertos, surgisse uma alva mão bem cuidada e de fartos adornos, transportando na ponta dos dedos a migalha que a efémera generosidade do momento lhe ditasse”.

E é como se dentro da nossa alma despertasse o eco amortecido do verso: “De pé, ó vítimas da fome.”

Na cerimónia de lançamento do seu livro, Caeiro Correia deu a entender aos convidados que era um escritor “habi -

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Pode comprá-lo, clicando aqui: sitiodolivro.pt/Os-Ordenadores-do-Caos

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