António Martins Matos
Uma de tinto… e um dominó
FICHA TÉCNICA
título: Uma de tinto… e um dominó
autor: António Martins Matos
edição: edições Vírgula ® (Chancela do Sítio do Livro)
arranjo de capa: Ângela Espinha
paginação: Alda Teixeira
1.a Edição
Lisboa, Outubro 2024
isbn: 978-989-8986-93-1 depósito legal: 537985/24
© António Martins Matos
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Prólogo
Permitam que me apresente, Mário Ataíde escritor frustrado, como qualquer escritor que se preze. Desde já e para pôr os pontos nos iis, não pensem os leitores que as milhentas frustrações de um escritor têm a ver com problemas editoriais ou similares, nada disso.
Com tantas Editoras nos nossos dias, e com tantas facilidades sempre postas à disposição dos que escrevem, as maiores frustrações prendem-se exclusivamente com o acto de tentar fazer nascer uma pequena e simples história.
Não perceberam? Eu explico melhor.
Escrever um romance pode ser um acto muito nobre, mas comporta alguns riscos, diria mesmo, demasiados riscos, as tais frustrações. Elas estão ali, logo à partida, naquelas noites de insónia, quando as primeiras ideias começam a germinar na cabeça do escritor. Depois é sempre a piorar. De insónia em insónia, o primeiro capítulo já está completamente imaginado, tempo de acordar e sentar ao computador.
Acto segundo, chega a amnésia, tudo o que foi pensado durante a noite… desapareceu.
Passos seguintes, é preciso repetir este circuito inúmeras vezes até que, finalmente, surjam as primeiras palavras… Era uma vez…
Para quem tenha a veleidade de se querer iniciar nestes assuntos, aconselho a começar por escrever algo de carácter histórico, sobre o Reino de Portugal e alguma figura ilustre, o D. Afonso Henriques e a sua Mãe, ou o D. Pedro e a Inês de Castro, coisas assim, onde existem demasiados factos que não se podem alterar, mas onde o candidato a escritor se possa ir espraiando, umas ideias aqui, outras acolá, o chamado romance histórico, tudo sempre dentro daquelas baias limitadoras
da imaginação. Mas nunca, mesmo nunca se metam a escrever romances do tipo “vulgaris”, matéria demasiadamente perigosa e, quase sempre, de desfecho imprevisível.
Não acreditam? Deixem-me contar-lhes a minha experiência e depois ajuízem por vós mesmos.
Para começar, é preciso enquadrar “o tempo e o local” onde a trama se irá passar, a duração da mesma e mais alguns outros pequenos pormenores.
Algo muito importante, tudo tem de estar em alerta para entrar em acção quando o dito romance começar a fervilhar, tal e qual como na culinária, quando se faz um bolo. Os respectivos ingredientes não podem estar guardados na despensa, têm de estar na bancada da cozinha, à mão de semear, ou como agora se diz, “just in time”.
Logo depois chega o momento de fazer nascer as personagens.
Em primeiro lugar o “núcleo” da história, o herói, a heroína e os seus interlocutores mais próximos.
De seguida vem o chamado “citoplasma”, os que não tendo os papéis principais, também são importantes para o desenrolar da trama, zona onde normalmente estarão incluídos os familiares dos importantes, os sem qualquer interesse, os invejosos e os maus da fita.
Mais tarde é preciso dar corpo aos chamados “figurantes”, sem um papel bem definido, mas sempre muito importantes para “ligar a massa do bolo”, para que tudo possa fluir na perfeição.
Depois, é como no cinema. O escritor grita “Acção” e as personagens começam a mexer-se dentro do cenário e das baias anteriormente preparadas pelo dono da história.
É neste ponto em que os riscos associados à profissão, emergem. Por vezes as personagens revoltam-se e não aceitam o guião, resolvem entrar em conflito aberto com os papéis entretanto atribuídos.
Os maus a quererem ser heróis, os heróis a gostarem de fazer umas “maldades”, algum figurante mais atrevido e que supostamente deveria permanecer calado, a sair lá do seu cantinho, a declamar uns monólogos.
O escritor ainda vai fazendo uns cortes e alguns aditamentos, mas o novelo vai-se complicando, cada vez mais intrincado, de tal modo que a dado momento e em vias de perder o controlo da coisa, não tem outro remédio senão mandar a ordem:
Alto e parem todos onde estão!
Passo seguinte, revisão da matéria dada, acerto de alguma pontuação ou eventual alteração na sequência de um ou outro parágrafo, um derradeiro controlo da coisa, pronto a recomeçar do princípio.
É neste momento que tudo se complica ainda mais. Ao ser feita a chamada para o reiniciar da história, muitos escritores acabam por verificar que, por vezes, há algumas personagens que desapareceram, levaram sumiço. E não são só os figurantes e a restante arraia miúda. Volta não volta é o próprio herói ou a prima-dona, a “boazona” da história, que resolve eclipsar-se.
Situação estranha e altamente frustrante. Por mais que os procurem, dentro e fora do texto e até mesmo dentro dos “files” do computador, na maior parte das vezes a busca acaba por se tornar infrutífera. As ditas personagens resolveram pura e simplesmente abalar, eventualmente para algumas outras histórias mais a seu gosto.
Ingratas, nascidas aqui e logo partindo para ali, ou acolá.
Que, verdade seja dita, por vezes nem tudo é perdido. Às vezes acontece precisamente o oposto, alguém que não faz parte da história original e que resolve aparecer, timidamente, a tentar responder à chamada, um pouco sem saber em que página do texto se colocar. Foi o que aconteceu neste romance, uns tantos alentejanos, a beberem do tinto e a jogarem ao dominó. Não se sabe de onde vieram, nada a ver com os aqui nascidos, e que a páginas tantas resolveram vir instalar-se nesta escrita.
Claro está que o escritor tem sempre “a faca e o queijo na mão”. A sua derradeira arma é a “Sineta”, como as usadas nos bares ingleses para a derradeira bebida, e que, só no momento de começar a escrever o último capítulo e com as ideias já bem definidas, o escritor pode accionar, algo do tipo “LAST CALL”.
Sineta acionada e é vê-los aos saltos, alguns a regressarem esbaforidos, andaram por outras aventuras, chegam sorridentes e de óculos escuros, queimados do sol. Alguns outros, tristes, a partirem com uma pequena lágrima ao canto do olho… É a vida, que escrever romances é muito difícil.
Ainda um outro conselho, não se iludam os leitores com o que, os mais batidos nestas coisas de romances, lhes vão tentando impingir.
Um romance só o é se contemplar uma bela história de amor, que, em termos geométricos, é sempre uma figura com pelo menos uns três lados, de triângulo para cima.
Ainda há quem nos queira tentar vender o contrário, dando como exemplo o “Romeu e a Julieta”. Nesse caso nem era um triângulo, era mais um quadrilátero, os dois amantes e as duas famílias, os Capuleto e os Montecchios, quatro lados.
No caso presente e depois de vários cortes, o texto está conforme as regras ditas oficiais, um hexágono regular, com seis libidinosos triângulos e nove diagonais. Para além disso ainda há aqueles alentejanos, os tais do “tinto e dominó”, algures, estirados ao sol, a maior parte das vezes a rirem-se da história e a darem-me cabo da prosa.
Os meus familiares, a quem dei a ler o texto final, acharam que este romance tem demasiadas personagens, podendo levar o leitor a perder-se na trama. Também me xingaram os ouvidos, que raio de ideia, um capítulo em que as paredes de um Duplex são as intervenientes! Francamente!!!
Lá me tentei defender, retorquindo-lhes que sempre tinha ouvido dizer que, por vezes, “as paredes têm ouvidos”.
Para terminar, deixem-me confessar-lhes algo. Nesta tarefa de escrever e publicar uma história, o verdadeiro gozo da coisa está no imaginar, planear, escrever, riscar, aumentar, diminuir, alterar, apagar, reescrever…
… o assunto fica de tal modo na nossa cabeça que até chegamos a sonhar com o texto, vírgulas e eventuais exclamações.
Depois vem a revisão, a revisão da revisão, e mais umas tantas revisões. Neste campo aconselho a darem a prosa a ler a algum familiar afastado, daqueles que só se falam no Natal e Páscoa, afastados mas mais assertivos, todos os outros são suspeitos…
Finalmente, e no momento em que o texto vai para a Editora, perde todo o encanto. E escusam de se massacrar, há sempre um erro que, aqui ou ali, bem camuflado, só vai aparecer no fim, quando a obra já estiver devidamente publicada.
Quanto às Editoras, grandes ou pequenas, não há muito a dizer, apenas uns malandrecos que vivem à nossa custa e gostam de nos explorar. Voltando ao meu romance, tinha começado a escrever uma coisa bem fininha, acabou por sair um policial, confuso e mal esgalhado. A culpa foi de algumas personagens, que não sabem acatar ordens.
Romances… nunca mais.
Por isso, e com o devido conhecimento de causa, renovo o meu conselho inicial:
Se se sentirem tentados a escrever, tudo bem… … mas só sobre a História de Portugal.
1. A Família Almeida
Nascidos em Lisboa, nos inícios dos anos quarenta do século XX, o José e a Emília eram aquilo a que se poderia chamar de dois comerciantes “de gema”. Os pais dele tinham explorado uma mercearia no Bairro de Alcântara, os dela uma retrosaria em Algés. Para além de comerciantes ainda eram bem lisboetas, ela nascida na Maternidade Alfredo da Costa, ele na Associação dos Empregados do Comércio, ali ao Largo do Caldas, bairro da Mouraria. Constituíam uma família vulgar, como tantas outras que por aí vão nascendo, crescendo, vivendo e morrendo. Nada nas suas já longas vidas tinha sido excitante, arrebatador, triste, ou qualquer outro adjectivo importante.
Na actividade das suas carreiras profissionais dedicavam-se ao chamado comércio a retalho. Tinham herdado a pequena loja de vestuário e derivados dos pais da Emília, bem situada, numa movimentada rua de Algés. Não sendo um negócio das Arábias, dava-lhes perfeitamente para viverem com algum desafogo.
Moravam por cima da loja, no 1.º andar de um prédio de r/c e três pisos. O negócio das linhas, novelos de lã, botões, camisolas e peças de fazenda, era altamente rentável, tanto mais que sempre tinham dispensado eventuais empregados, um deles fazia as manhãs, o outro as tardes, tudo muito bem coordenado.
Daquele casamento nascera um único filho, o Raul, segundo a esclarecida opinião da mãe Emília, o maior, o mais bonito, o mais perfeito, o menino dos seus olhos! Que o jovem até era bonito. Para além de umas feições muito correctas, herdadas da mãe, ainda tinha uns olhos bem bonitos e um pouco estranhos, mudavam de cor conforme a luz do dia, ora ficavam esverdeados, logo depois passavam a acinzentados, ou o mais habitual, uma mistura dos dois tons, difícil de definir.
Na justificação para aqueles lindos olhos do filho e porque ambos os Almeida tinham olhos castanhos, a Emília, que no liceu estudara aquelas coisas das “Leis de Mendel” e das “ervilhas-de-cheiro”, dizia que devia haver alguém nas suas famílias que, de tempos a tempos, apa-
recia com aqueles olhos meio esverdeados, restos de algum ascendente escandinavo, celta ou… similar. Nada a obstar. Lisboa já fora Olissipo e sempre tinha sido um porto por onde muitos navegadores tinham passado, desde o tempo dos Fenícios, Bretões, Cruzados, e … outros.
O filho crescera bonito e saudável. Quando fizera o exame da 4.ª classe, tirara o seu primeiro Bilhete de Identidade. Ao tentar definir a cor dos seus olhos, o funcionário nem soubera bem o que escrever. Para tentar resolver a indecisão e depois de muito pensar, acabara por se decidir por “olhos verdes”.
Os Almeida nunca tinham ido ao estrangeiro, nunca tinham comprado um automóvel, nunca tinham ido passar férias ao Algarve. A sua vida sempre se tinha situado dentro de uma área definida por uma figura irregular de vértices bem definidos em Oeiras, Vila Franca de Xira, Vendas Novas (onde o José tinha feito a tropa), Setúbal, Sesimbra e a sua praia preferida, a Costa da Caparica.
Os seus eventuais passeios domingueiros regiam-se normalmente dentro dessas coordenadas. O mais habitual era irem até ao Cais do Sodré apanhar o barco para a outra banda, almoço em Cacilhas num daqueles restaurantes à beira-rio, a habitual caldeirada, passeio pela beira-rio, apontados a Porto Brandão, nova travessia no barco até Belém, regresso a casa. Quando queriam variar… faziam o passeio no sentido contrário.
Uma vez e a título muito excepcional, tinham ido numa excursão de carácter histórico, “O Passeio dos 3 Castelos” com uma Guia a elucidá-los sobre vários acontecimentos da História de Portugal. Tinham passado pelo “Castelo de Sesimbra”, conquistado por D. Afonso Henriques em 1165; o “Castelo de Palmela”, onde o Condestável D. Nuno Álvares Pereira, após a vitória na batalha dos Atoleiros (1384), tinha acendido grandes fogueiras para alertar o Mestre de Avis; o “Forte de São Filipe” em Setúbal, construído em 1590, durante a ocupação espanhola, por Felipe II de Espanha, para se defender dos piratas e dos… portugueses.
Em boa verdade, a Emília não achara grande graça aos Castelos, na sua douta opinião todos feios e muito parecidos. O que ela adorara tinha sido o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel.
Por um qualquer motivo que o José não tinha conseguido identificar ou compreender, logo á chegada do autocarro a mulher tinha ficado em transe, as lágrimas a caírem-lhe pela face, a ir rezar na pequena capela, à procura de um padre para se confessar.
A Guia a contar e recontar os excursionistas, a dar por falta de um deles, o motorista a olhar para o relógio, a apitar, para partirem, ela sem aparecer. Tinha sido uma cena um pouco para o… muito estranho.
Não contando com esse pequeno incidente, o passeio até tinha corrido muito bem, fascinados com as vistas de Setúbal, divertidos com as gentes a carregarem nos erres e a adorarem a sua gastronomia.
A partir desse dia tinham ido algumas vezes àquela cidade, essencialmente para comer o choco frito ou as sardinhas assadas, o percurso de Cacilhas a Setúbal, ida e volta, nas camionetas da EVA, Empresa de Viação do Algarve.
Mas nem tudo era sempre assim tão monótono. Durante os meses de Agosto, faziam uma “loucura” … … fechavam a loja, letreiro na porta:
“Férias do Pessoal, reabre a 1 de Setembro”
Chamavam o táxi de um vizinho conhecido e lá partiam, com armas e bagagens, em direcção ao destino, a melhor das praias de Portugal, a Costa da Caparica.
Casa alugada durante o mês, a mulher pouco ia à praia, tinha de fazer o almoço, jantar, arrumar as camas, limpar o pó. Trabalhava mais em férias que durante o ano, já que, em Algés, tinha uma empregada doméstica.
Barraca da praia alugada no Banheiro Tarquínio, o mês passava a correr. Sessenta banhos depois telefonavam ao amigo do táxi, de volta ao ponto de partida, pai e filho devidamente bronzeados, a Emília a precisar de férias.
Uma única vez tinham viajado na direcção norte, até à Figueira da Foz, sempre no táxi do vizinho. Nem fora uma viagem de passeio, antes uma ida a um funeral de um familiar do marido.
Aproveitando a viagem, o grande clímax da vida dos Almeida tinha sido a entrada no Casino da Figueira da Foz. Um pouco a medo, o José até tinha posto uma das bonitas gravatas lá da loja (depois ia devolvê-la).
Essa visita ao Casino tinha sido bastante complicada. O homem tinha um qualquer fetiche pelo número 14 e, na mesa da roleta, ia lá colocando todas as suas fichas. Não fosse a Emília a dar-lhe um apertão no fundo das calças e a coisa ia-lhes correndo mal…
Passados todos aqueles “problemas” do Casino e já no regresso, armados em turistas, tinham alargado a volta, uma visita por Coimbra, ficado maravilhados com os autocarros que pareciam eléctricos (ou seria ao contrário?), o Penedo da Saudade, o Choupal e o Portugal dos Pequeninos. Uma constatação, o rio Mondego afinal não passava de um pequeno riacho, os de Coimbra se quisessem ver um rio a valer tinham de ir até Algés.
No seguimento do passeio tinham aproveitado para visitar alguns outros sítios maravilhosos, Fátima e a Batalha… Que o Senhor Manuel do táxi até sabia do assunto, já tinha feito muitas viagens por aquelas terras, sempre com estrangeiros.
Em Fátima e com a sua mulher tão “católica”, o José receara por alguma outra cena, em tudo semelhante à do Cabo Espichel, mas os seus pecados já deviam ter sido lavados ou, talvez, terem prescrito. Desse modo, e apesar de uns pequenos “recuerdos” que tinham de ser devidamente benzidos, felizmente, tudo correra dentro da normalidade.
Pensando no Senhor Manuel, a Emília nunca percebera por que razão o vizinho era tão prestável. Naquela viagem de três dias, apenas lhes cobrara o preço do gasóleo e as dormidas na Figueira e em Coimbra.
O homem tinha uma filha…
… seria que estava a estender a teia para caçar o seu menino?
Não tinha sorte nenhuma. Podia tirar o cavalinho da chuva. O seu filho não ia casar com a filha de um motorista de táxi. Com os apoios
que iria arranjar ao filhote ele ainda ia ser, no mínimo, Presidente da Câmara de Oeiras, tão certo como ela se chamar Emília.
Em resumo, aquela tinha sido a grande viagem das suas vidas. Quando morressem e salvo melhor opinião, certamente que iriam morar numa campa rasa, mas deveriam continuar a ficar confinados aos cemitérios de Algés ou arredores.
O filhote Raul crescera forte e saudável. Passara a sua juventude entre os vários cafés de Algés, em especial o Catavento, com os seus bilhares, a Cervejaria Relento e os seus bifes, com molho e um ovo a boiar, o Restaurante Martinez (quando a mãe se recusava a fazer o almoço) e, claro está, o Sport Algés e Dafundo, sócio desde que nascera e onde desenvolvia o físico, essencialmente à conta da natação.
Se a vida dos progenitores era de uma pacatez assinalável, era natural que o filho devesse seguir as mesmas pisadas, pelo menos até terminar a 4.ª classe. Depois e com a ida para o liceu, outro galo passara a cantar. O feitio do mancebo mudara e, ajudado por aqueles olhos de cor variável, tinha descoberto muitos outros horizontes, sentindo-se pronto a conquistar o mundo.
A entrada no Secundário tinha transformado a sua maneira de abordar a vida. Ia de comboio, como tantos outros colegas de escola, para o Liceu de Oeiras, aulas só de tarde, que as meninas ocupavam as manhãs. Ele e os amigos até costumavam ir para o liceu mais cedo que o habitual, não para serem melhores estudantes, mas sim para esperar as jovens à saída, sorrisos e um ou outro papelinho trocado, pouco mais que isso.
Como eram bem organizados, a cada um dos rapazes do seu grupo já tinha sido atribuída a respectiva namorada, tudo muito bem definido, que elas nem sonhavam como iam sendo distribuídas, já que, aparte os tais sorrisos, ninguém falava com ninguém.
Foi no último ano do liceu, na Festa de Finalistas, que acabou por dar o seu primeiro beijo a uma rapariga, à volta de um segundo. Gostou da sensação, acabou por ser seu namorado durante os seguintes dois dias, para a próxima vez havia de melhorar.
Ainda com os dezassete anos descobrira algo muito mais importante e que iria transformar toda a sua vida. Se os seus olhos faziam estragos mais ou menos poéticos nas donzelas da sua idade, em compensação, incendiavam os corações das mulheres mais velhas.
Das constatações aos factos foi um ápice. A sua primeira noite de homem tinha-a passado no 3.º andar do prédio onde habitava com os pais. A vizinha era bonita e passara na loja para comprar uns botões, metera-lhe um bilhetinho na mão, deixara a porta entreaberta e a casa à média luz. Depois do jantar, o jovem, ainda com o estatuto de menino, subira sorrateiramente aqueles dois andares. De madrugada descera-os, muito devagar para não acordar a família. À entrada do apartamento dos pais, tinha alterado o plano, resolvido dar um pontapé na porta, tão só para saberem que passara a ser um homem feito.
Com a chegada dos dezoito anos e como prémio pela entrada na Faculdade de Direito, os pais não se tinham poupado a despesas e tinham-lhe dado dois valiosos presentes, a carta de condução e um automóvel.
Claro que, no futuro imediato, o menino ia precisar de transporte para ir de Algés até à Cidade Universitária, e não ia andar à chuva ou de transportes públicos. E, por outro lado, juntava-se o útil ao agradável, quando fosse necessário irem a qualquer parte já não precisavam do táxi do vizinho, ele que fosse procurar um genro para outras paragens. Um Mini em segunda mão, que segundo as palavras do vendedor de um stand de automóveis usados lá de Algés, estava como novo, ainda só tinha vinte e dois mil quilómetros, ainda que o talão das revisões já tivesse o canhoto dos quarenta mil preenchido. Segundo o vendedor apenas e só porque o anterior dono gostava de fazer as revisões em avanço...
Tinha sido com esse presente, um Mini, “verde-garrafa” e de capota branca, que, de repente, o mundo do jovem Raul se tinha alargado. Já não era só Algés, todas as redondezas passavam a estar no seu raio de acção, as raparigas de Oeiras ao Restelo que se cuidassem, os seus olhos multicores iam começar a contabilizar baixas.
Assim foi, os avanços pelo mundo feminino logo se iniciaram com bastante sucesso, os beijos tinham passado a ser molhados e intermináveis.
Mas nem tudo tinha corrido bem. Um ano depois o plano, tão auspicioso de início, tinha-se complicado numa pacata vila situada um pouco acima de Algés, de seu nome… Linda-a-Velha.
Alguns dos seus amigos do liceu moravam nessa zona, havia por lá algumas jovens das suas idades e que também podiam ser umas eventuais candidatas a namoradas do tal amor platónico. Ele ainda tinha feito um pequeno reconhecimento da zona, mas… já estava numa fase mais avançada, descobrira por lá alguns outros motivos de maior interesse. Foi assim que, num final de tarde, os seus pais o tinham visto a passar por eles, com uma rapariga no carro. Até aí nada de mal, mas, naquela passagem para os peões lá de Algés e enquanto o sinal de trânsito evoluía entre o vermelho e o verde, a mãe logo tinha reparado em alguns estranhos itens, a saber:
No arrojado corte de cabelo da donzela, negro da cor dos corvos, nos seus lábios, de um batom escarlate, no seu olhar e sorriso libidinoso, na vestimenta altamente provocadora de curta mini-saia azul e lenço ao pescoço de igual cor, demasiadamente atrevida para o seu gosto. Para além de tudo isso e ainda mais grave, o seu adorado filho guiava de um modo um tudo ou nada a puxar ao perigoso, não tinha a mão direita no volante nem na alavanca das mudanças, mas sim … nas pernas da rapariga.
Uma última constatação, enquanto o verde para os carros se acendia, verificara que a rapariga era mais “uma mulher”, bem mais velha que o seu Raul.
Ao chegar a casa perguntara ao marido o que ele pensava do assunto, o homem não soubera responder, metera os pés pelas mãos. Muito a custo lá tinha conseguido elaborar o seu reporte. Do que se lembrava, a mulher era morena e… avantajada.
Emília ficara desiludida com o seu marido. Como era possível não ter reparado em todos aqueles itens que ela verificara?
Quatro jantares depois e em jeito de conversa, tipo “parte vaga”, lá perguntara ao filho quem era aquela morena que ele andava a passear…
Não tinha obtido qualquer resposta, o filho não lhe dera troco, homens, todos iguais!
Aquele assunto só tinha ficado mais ou menos esclarecido quando, dois meses depois, o carrito do filho tinha sido encontrado meio abandonado numa rua de Linda-a-Velha, com dois pneus cortados à navalha.
O susto que a senhora tinha apanhado, alguém tentara fazer mal ao seu menino.
De seguida, os acontecimentos tinham-se precipitado e a verdade, tal como o azeite, tinha finalmente vindo ao de cima.
Já há algum tempo que o seu menino andava a ser manipulado por uma velha de vinte e cinco anos, moradora em Linda-a-Velha e casada com um palerma qualquer. Cada vez que o homem saía de casa, (era caixeiro-viajante), a megera fazia com que o seu menino aparecesse por lá.
A mulher certamente deveria ter algum elixir com que o ia subjugando.
E, como se tudo isso não bastasse, mais tarde as coisas ainda se tinham complicado para pior, já que o caixeiro-viajante, que era um homem feio e mal-encarado, tinha descoberto que alguma coisa estranha se passava. Numa primeira fase tinha cortado os pneus ao carro do seu inocente filho. Também constara que andava a ver se o encontrava para lhe bater.
Querido filho, jovem e inocente, a ser perseguido por aquele energúmeno…
Reunião familiar de emergência, o passo seguinte tinha sido a mudança da Matrícula da Faculdade, do Direito de Lisboa para a de Coimbra, pelo menos aí ninguém iria bater no seu menino.
De imediato a mãe contactara a sua tia Arminda, viúva e com uma pequena pensão, morava naquela cidade e sobrevivia alugando quartos a estudantes. Para além da renda que iriam pagar pela estadia do Raul, ainda ficava a garantia de estar em família.
Raul não se opusera àqueles planos. Também ele tinha achado ser uma boa solução ausentar-se daquelas paragens, o caixeiro-viajante era
corpulento e ele, apesar de ter andado nas aulas de judo do Algés e Dafundo, odiava a violência.
Despedidas, como se o rebento fosse para a Austrália, num domingo chuvoso o Raul Almeida lá tinha partido com livros e bagagem, de Mini, apontado à casa da Tia Arminda. Na Portagem da autoestrada tinha ligado o cronómetro, precisava de ver quanto tempo levava na viagem.
Com este final (in)feliz deveria ter ficado a velha morena dos vinte e cinco anos. Triste, o seu Raul abalara, mas a vida tinha destas coisas, era preciso saber os momentos de avançar e os de bater em retirada. Meses mais tarde o Raul tinha-se queixado à família, as viagens Coimbra-Lisboa-Coimbra de Mini iam sendo demasiadamente violentas para as suas costas, até já andava a meter uns emplastros e a tomar uns comprimidos, a ver se as dores passavam. Se queriam continuar a ver o seu menino, a família Almeida tinha de desembolsar mais alguns dinheiros para que trocasse de carro, um mais confortável e apropriado para todas aquelas viagens semanais.
Os pais tinham decidido esquecer os próximos projectos de Verão na Costa da Caparica e acabado por lhe adiantar o necessário para a compra de um outro carro. Fazia mais barulho que o Mini, mas também era bem mais bonito, vermelho e italiano. Para além disso, já não tinha aquele problema dos talões das revisões fora de prazo, há muito que tinham ido para o lixo. As coisas estavam a melhorar, com este Alfa Romeu, já conseguira reduzir o tempo de viagem em quase trinta minutos.
Cinco anos passados, o Raul Almeida, estudante de Coimbra, estava em vias de terminar o curso de Direito. A família já se antecipara ao que estava para vir e mexera uns cordelinhos. Através de alguns conhecimentos, nascidos e alimentados lá na loja dos pais, empregadas que trabalhavam nas casas de alguns Senhores Doutores, já lhe tinham conseguido um bom Patrono e um Estágio remunerado.
Depois daquele desterro forçado por terras do Centro, o regresso a Lisboa estava próximo. Segundo as informações dos seus pais, o caixeiro-viajante e a mulher dos cabelos negros há muito que tinham desaparecido, podia regressar sem medo de represálias, o futuro voltava a apresentar-se risonho.
Uma outra excelente notícia, tinha ficado “livre” da Tropa. Por duas vezes ainda recebera os chamados “adiamentos”, tudo normal. O curso quase a terminar, quando esperava ter de ir “assentar praça” tinha recebido um papelito, o Exército a libertá-lo, a dar a tarefa por concluída. Ficara surpreendido e muito agradado. Talvez o seu pai tivesse metido a habitual cunha ou qualquer coisa similar.
Mais tarde chegara à conclusão que ninguém tinha interferido naquele assunto. O ter ficado livre da tropa estava em linha com o que o Governo da altura se preparava para implementar, o fim do Serviço Militar Obrigatório (SMO). Que os filhos dos políticos não precisavam de aprender a marchar. Tinham de, rapidamente, ir assentar praça nas Juventudes Partidárias, a preparação para os seus futuros empregos.
Aos fins de semana o Raul metia-se no carro e vinha até à Capital, no que se costumava dizer “de gás à tábua”. Ia registando os tempos da viagem, sempre a tentar bater recordes. Sempre tivera a paixão por automóveis. Depois do Mini verde e do Alfa Romeu vermelho, gostaria de ter dinheiro suficiente para, um dia, poder vir a ter um carro a sério, o seu sonho era um Porsche. Por agora tinha que se contentar com o seu Alfa, velho e carunchoso, não podia apertar muito com ele, caso contrário ainda acabava empanado e no meio da estrada. Um dia… … um dia havia de ter uma máquina à maneira! Com o preço da gasolina e mais uns arranjos do carro para pagar, a mesada começara a ser demasiadamente curta, mas a adrenalina estava garantida. As despesas daquelas viagens Coimbra-Lisboa-Coimbra eram normalmente compartilhadas pelos poucos colegas de curso oriundos da capital e também desterrados, iam aproveitando a boleia. Com o tempo, esses pedidos tinham começado a rarear, a razão estava à
vista, os amigos não gostavam de fazer aquele percurso de coração nas mãos, iam preferindo vir de comboio, mais lento, mas bem mais seguro. Essa falta de comparticipação obrigara Raul a espaçar as vindas a Lisboa. Por falta de verba as viagens já tinham passado a quinzenais, se nada se alterasse havia o risco de passarem a mensais.
Passar o fim de semana em Coimbra era deprimente, sentia imediatas saudades dos bilhares do Catavento, dos encontros com os amigos na Mexicana da Praça de Londres e das noites passadas na “2”, a discoteca da moda, ali para os lados do Autódromo do Estoril. Ao fim-de-semana, a única diversão lá por Coimbra era pegar nos livros e estudar, até chegar o sono ou a segunda-feira seguinte.
Naquela sexta-feira não tinha arranjado “passageiros”, tinha decidido não ir a Lisboa. Bom, a desculpa era uma outra, uns seus amigos tinham organizado uma “grande festarola” em Gaia e até tinha dois colegas lá da Invicta que queriam contribuir para a gasolina. Desta vez tinha apontado ao Norte, desculpas à família, tinha de estudar. A festa acabara por ser bem boa, miúdas em número aleatório, o problema era a ressaca.
Sábado, já o início da tarde a chegar, resolveu ir apanhar ar, ver o mar, talvez o ajudasse a passar o “chagrin”. Meteu-se na “bomba vermelha” e apontou à Foz. Uma primeira constatação, aquela malta do Norte até era muito fixe, a Ponte da Arrábida não tinha portagem.
Tinha acabado de estacionar o carro e caminhava junto à praia, aspirando aquele ar frio e húmido, quando viu as três jovens. Vinham passeando e em aproximação, numa grande cavaqueira e altos risos. De imediato reparou numa delas, não se ria com a boca, era mais com todo o corpo.
Feitio atrevido ou não tivesse ele nascido na Mouraria, não perdia nada em atirar uns piropos às raparigas…
Bom dia ó jovens e belas donzelas… isto é que é o Castelo do Queijo?
A resposta veio pronta:
— Vê-se logo que o lindinho é lisboeta. Isto aqui é uma praia…
Todas as três raparigas a rirem…
Àquela coisa ali ao fundo é que chamam o Castelo do Queijo, mas o verdadeiro nome do edifício é o Forte de S. Francisco Xavier.
O eventual gelo nem chegara a existir ou então logo se derretera, de imediato os risos tinham sido contagiantes. Apresentações feitas, resolveram ir beber uns “cimbalinos”, ali a um café próximo. Raul lá se foi tentando insinuar junto das raparigas, talvez os seus fins de semana se mudassem para o Norte. Calculara-as pelos vinte anos, universitárias, também aborrecidas com aquele fim de semana, eventualmente sem poderem ir ter com as famílias. Depois dos cafés e numa de Marialva, ofereceu-se para as levar aonde elas quisessem ir, o depósito da gasolina ainda estava a meio. Para as impressionar carregou no pedal, o seu Alfa Romeu acelerou forte e barulhento pela Avenida da Boavista acima… Tinha ficado impressionado com a mais nova das miúdas, de cabelo negro e muito curto, olhos castanhos, nariz arrebitado e cara malhada de sardas. Tinha uma boca pequena e um lindo sorriso. E depois, vestia de um modo simples mas com gosto, uns botins, umas longas calças, justas ao corpo, uma blusa branca, seios ausentes.
Do que conseguiu apurar, andavam em Letras. Acabou por as deixar na Rotunda, com a promessa de, no dia seguinte, Domingo, se voltarem a encontrar. Promessas cumpridas em parte, apenas uma delas acabou por comparecer ao encontro, calculou que deviam ter tirado à sorte quem iria dar trela ao “lindinho” lá de Lisboa.
Não era a preferida. Com muito tacto para não espantar a caça lá ficou a saber que as raparigas em falta eram a Clara, andava no primeiro ano da Faculdade, e a Adriana, mais nova, ainda frequentava o liceu, mas gostava de se armar em mulher e andar com elas. Ai sim… que liceu?
Segunda-feira, ainda não tinha voltado para Coimbra, continuava em Gaia, uma pensão nas Regadas. Tivera de telefonar aos amigos, uma avaria no carro, lamentava, tinham de voltar a Coimbra de comboio, ele ficava, a ver se reparava a viatura.
À hora do fim das aulas estacionou o seu Alfa Romeu nas imediações do liceu, nada aconteceu. Terça-feira, repetiu a dose, repetiram-se os resultados. Quarta-feira, última tentativa para localizar a miúda. Tinha de regressar a Lisboa nesse dia, a família já estava impaciente e ia haver um fim de semana prolongado.
Estava prestes a desistir quando, de súbito, a porta se abriu e a Adriana entrou no carro. Vinha bem diferente do fim de semana anterior. Antes tinha-lhe parecido uma jovem mulher de uns vinte anos, vestida de um modo sensual e com gosto. Agora, de meias brancas quase até aos joelhos, mini-saia aos quadrados verdes e blusa branca, não lhe dava mais de dezasseis anos. Acabada de sentar e já lhe atirava:
Que queres?
— Vim ver-te.
Logo se tinha arrependido da frase, era demasiado velho para a jovem, ou talvez fosse ao contrário, ela era demasiadamente nova para ele. Lá arranjou uma frase de “parte vaga”:
Como sabias que era eu?
O teu carro é muito barulhento. Vá, anda lá com isso…
Arrancou devagar. Não tinha pensado o que fazer se, por um acaso, a viesse a encontrar. Agora ficara encabulado, sem saber o que dizer. Foi guiando devagar, para tentar ganhar tempo.
A miúda voltou-se para ele, sorriu:
Levas-me a casa?
Claro, onde moras?
Ainda ontem passaste à minha porta, ias tão depressa que nem a viste!
Levou-a quase até à porta. Num dado momento a jovem fez-lhe sinal, mandou-o parar, deu-lhe um rápido beijo na testa e, saindo do carro, correu rua abaixo. Ficou a vê-la afastar-se durante uns longos trinta metros, após o que ela abriu o portão de uma das vivendas da rua e desapareceu.
O passo seguinte foi apontar à ponte da Arrábida e iniciar mais uma corrida até Lisboa. Com o feriado do 1.º Dezembro, o respectivo fim-de-semana ia ser grande. Três horas, cinquenta e sete minutos e alguns
segundos depois, estava a chegar a Algés, à casa dos pais. Precisava de tentar melhorar aquele tempo.
Vinha confuso, com algumas milhares de ideias a passarem-lhe pela cabeça, precisava de definir uma linha de conduta, que a miúda era demasiadamente jovem, mas … tinha mexido com ele.
Na Sexta-feira resolveu ir ao cinema, um filme para se divertir, no São Jorge, “Rocky”, uma panóplia de murros para espairecer as ideias.
Sábado à noite tinha passado pela Discoteca “2”, encontrado alguns amigos de outras aventuras e umas amigas boazonas para apalpar, elas gostavam, mulheres a sério. A miúda lá do Porto passava a segundo ou terceiro plano, podia ficar lá no seu cantinho, que não tinha tempo nem paciência para desmamar crianças.
Foi no Domingo que o assunto voltou a incomodá-lo. Ao passar junto ao bairro do Arco Cego viu o cartaz em exibição no cinema local. O filme chamava-se… “A Liceal”.
De repente tudo se tinha complicado e voltado ao início. Tinha planeado partir de Lisboa durante a tarde, de modo a ainda ir jantar a Coimbra. Resolveu ir ver a sessão das dezoito horas. O filme acabou por ser um fracasso, já que a heroína da fita era loura e avantajada, enquanto a miúda lá do Porto era morena, sardenta e tábua de engomar…
Meteu-se ao caminho. Ao pagar a portagem em Sacavém ligou o cronómetro, lá seguiu estrada fora, o carro a voar, a cabeça a borbulhar ideias. Depois e aos poucos foi abrandando a corrida. Quando finalmente chegou à casa da tia em Coimbra, o mostrador do cronómetro marcava o seu pior tempo de sempre. Quase meia-noite, a tia em aflição, o jantar frio, já tinha telefonado para os pais e acendido uma vela a um santo. Lá teve de arranjar uma desculpa, um pneu defeituoso, tão defeituoso que tinha furado duas vezes… e por sinal no mesmo sítio!
Por semelhança com a semana anterior, sabia o horário de saída da miúda às Quartas-feiras, lá no liceu do Porto. As vésperas passaram-se com grandes indecisões, ir, não ir, não ir, ir…
Foi, de Coimbra até ao Porto, a voar e em tempo record.
Ainda estava a estacionar o carro junto ao liceu já ela vinha ao seu encontro. Entrada de rompante e a bater com a porta, livros atirados para o banco de trás, outra mini-saia de uma outra cor, a deixar ver a quase totalidade das finas pernas, esticando-se e dando-lhe um breve beijo na boca. Ficara petrificado.
Vá, anda lá com isso…
Arrancara devagar, em direcção à casa da jovem.
Vamos até à Foz…
Foram, depois trocaram os primeiros beijos e as primeiras juras de amor. Só nesse momento Raul fez a pergunta que lhe andava a bailar há alguns dias.
Quantos anos tens?
Dezoito.
Não acreditou.
No mês seguinte a cena foi-se repetindo, Coimbra, Porto, liceu, Foz…
Um dia em que a sua tia Arminda de Coimbra tinha decidido ir visitar uns familiares e se tinha ausentado, Raul levou Adriana até Coimbra, o lençol tinha ficado com algumas manchas vermelhas bem visíveis, o trabalho que tinha tido para as tentar dissimular…
Duas semanas depois e ao deixá-la junto da casa dos pais, Adriana disse-lhe:
Entra, vais conhecer a família, o meu pai precisa de uma ajuda lá na papelada…
Entrou como se fosse para subir ao cadafalso, muito mais medo do que sentira com aquela história do tal feioso caixeiro-viajante lá de Linda-a-Velha.
O pai da Adriana, Joaquim Ferreira, olhou-o com curiosidade. A sua filha já o descrevera, esperava um jovem mais novo, mas, para estar no fim do curso de Direito tinha de ter alguma idade…
Passada aquela inspecção inicial, logo o homem avançou:
Tenho aqui algumas dúvidas nestas Procurações e….
O senhor precisava de algum aconselhamento.
Tinha sido aceite.
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Não durou muito aquele namoro. Alguns meses depois, alguém tinha ido segredar ao Joaquim Ferreira que, quando a família se ausentava, em algumas das vezes os namorados andavam meio enroscados pelo chão da sala.
De imediato tinha sido corrido!
2. A Família Ferreira
Desde que se lembrava, o Joaquim Ferreira sempre vivera em casa dos seus tios, o José Silvestre e a sua mulher, de nome Ilda. Do que ouvira dizer, os seus pais seriam de famílias remediadas que, por alguma razão não muito clara, talvez doença, teriam morrido durante a sua infância. No meio de todas essas contrariedades, os seus tios ter-se-iam substituído na responsabilidade da sua educação.
Habitavam numa pequena aldeia perto de Rebordões, Santo Tirso, casa própria de dois andares, fria e em granito, um pequeno pomar, uns cem hectares de vinha e adega.
Com aquele pequeno pecúlio, na aldeia eram injustamente rotulados como sendo “gente rica”. Sendo verdade que iam vivendo com um certo desafogo, tudo aquilo não era suficiente para que lhes conferissem algum estatuto de abastados.
Tinha estudado as primeiras letras lá na escola local, mais tarde na Escola Comercial do Porto, a dormir na casa de uma prima da cunhada da tia de alguém…
Tinha sido o melhor tempo da sua curta vida, com dois cursos em simultâneo, o Comercial e o de Anatomia. A sua prima, afastada mas presente, ministrara-lhe aulas das várias cadeiras, das teóricas às práticas, e acabara a fazer-lhe o exame final, devidamente passado e com distinção.
Ambos os cursos terminados, quase de imediato arranjara emprego numa Fábrica de Lanifícios perto da aldeia dos tios. Mais tarde tinha sido chamado para a tropa. Andara por lá quase três anos a marchar e, com a Guerra Colonial a decorrer, por um qualquer milagre, livrara-se de ir á guerra, nomeado para uma Comissão de Serviço em Cabo Verde.
Alferes Miliciano de um Batalhão estacionado na Ilha do Sal, a sua missão durante vinte meses tinha sido o garantir a segurança da ilha e do seu pequeno Aeroporto e fazer uns Destacamentos na ilha mais próxima, a Boavista.
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