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1. NOTA DA AUTORA
Lope de Vega (Felix Lope de Vega y Carpo), designado “monstro de la naturaleza” pelos seus contemporâneos, sobreviveu à Preview
A leitura do livro da consagrada hispanista, Idalina Resina Rodrigues, “De Gil Vicente a Lope de Vega”, foi o meu primeiro contacto com o notável autor espanhol.
Sob a douta orientação daquela professora da F.L.U.L. , o grupo de mestrandas em “Estudos Românicos” especialização em “Estudos Espanhóis”, em que me incluía, desenvolveu interessado trabalho de pesquisa na “Real Biblioteca de Madrid” (B.N.E.), no já longínquo ano de 2004.
Deparei-me, então, com “La Lealtad en el Agravio”, comédia inspirada em D. Afonso Henriques, a não desprezar, pelo inédito, entre as incontáveis obras de Lope de Vega.
Poder-se-á questionar a veracidade da biografia do primeiro rei de Portugal, revelada na comédia de Lope de Vega, mas não se deverá ignorar como legado para a posterioridade, de um dos nomes mais importantes do “Siglo de Oro” e dos mais inspirados autores universais.
Maria José Baião
derrota espanhola da “Invencível Armada”, em 1588.
A partir de então, escreve as primeiras obras de vulto, com destaque para “La Arcadia”, “Doña Boba”, “Amarilis”, “Romancero Español”, “Fuente Ovejuna” e tantas mais, de impossível enumeração, porquanto abarcam mais de mil e quinhentas comédias, contos, romances, prosa religiosa e histórica e Poesia.
Sucessivas tragédias familiares mergulharam-no numa profunda crise mística que o fizeram professar, renegando um passado de aventuras que, à época, escandalizou Madrid, mas muito terão inspirado a sua escrita.
Lope de Vega publica, em 1606, “El Arte Nuevo de Hacer Comedias”, enuncia princípios básicos, nomeadamente: a divisão em três atos com “apresentação”, “desenvolvimento” e “desenlace”; mistura de tragédia com o cómico e utilização de rima.
Dentro desses parâmetros se desenrola “La Lealtad en el Agravio” inspirada em D. Afonso Henriques, cujas deslealdades constam dos compêndios de História de Portugal, para além de outros traços de carácter revelados por Vega, que ninguém poderá julgar como verdadeiros, porém, em Teatro, a mentira tem sempre lugar, desde que levada a cena com mestria… É o caso: Lope de Vega é um mestre universal!
Ao descobrir esta comédia entre milhentas deste autor, empreendi traduzi-la, imaginando-a encenada, em Portugal, dadas as condições para cativar o público.
2. ENQUADRAMENTO HISTÓRICO
Lope de Vega (1565-1635), ao escrever “La Lealtad en el Agravio” inspirou-se na figura de Afonso Henriques e na fundação de Portugal – comédia que não deverá ser confundida com “Las Quinas de Portugal”, do seu contemporâneo Tirso de Molina (1574-1648).
Para além da fonte histórica, apenas têm em comum a exaltação da heráldica, englobando-se ambas as obras, nas designadas “Comedias de Blasones”.
O argumento principal desenvolve-se em torno da lealdade inquebrantável do aio, Egas Moniz, (Egas Nuñes), vilipendiado por Preview
Curiosamente, a primeira “Comedia de Blasones” data de 1527, da autoria de Gil Vicente: “Comedia sobre a divisa de Coimbra”.
O gosto por este tópico estende-se ao século XVIII, numa obra apócrifa que exalta os símbolos heráldicos de Portugal e de Espanha: “Leones de España y Quinas de Portugal”, que tem como função enaltecer a Fé católica e a Cruzada contra os infiéis que foi, durante séculos, um ideal comum peninsular.
Nesta, como noutras obras de Lope de Vega, a cristianização do conceito pagão de “catarsis” transforma-se em ensinamento moral do “Século de Ouro”, até 1659, crente na “Divina Providência e Justiça Divina”.
Transformado em “justiça poética” premiava “os bons” e reabilitava aqueles que pela sua vilania e baixos instintos se afastavam da “graça de Deus”.
Como tal, se revela Afonso Henriques no texto de Lope de Vega.
Maria José Baião
Afonso Henriques ao renegar os princípios com que fora educado. Todas as peripécias se desenrolam no tempo que decorre entre as batalhas de S. Mamede (1128) e de Ourique (1139), muito próximo da verdade histórica, remetendo para os diferendos entre Afonso Henriques e D. Tereza, sua mãe, Fernão Peres de Trava, o padrasto, Afonso VII rei de Leão e Castela e o “milagre de Ourique”.
Não será ficção o momento em que Egas Moniz, fiador da promessa de vassalagem desrespeitada por Afonso Henriques, se apresentou descalço, com uma corda ao pescoço, pronto a redimir com a própria vida a palavra não cumprida por Afonso Henriques.
Todavia, não corresponde à verdade histórica a existência de D. Tereza, aquando da batalha de Ourique, já que a sua morte terá ocorrido em 1130.
2.1. O conceito de “honra”
No teatro do século XVII são indissociáveis os conceitos de dignidade e nobreza de carácter, assim sendo, a desonra equivale à morte social da personagem.
Os casos de honra referem-se sempre ao incumprimento de acordos quer por linhagem, quer por outros laços, como no caso de Afonso Henriques/Egas Moniz.
Em “La Lealtad en el Agravio”, a honra ofendida é de tal forma valorizada que se torna mote para o título original da comédia.
Para Lope de Vega, os casos de honra “mueven com fuerza a toda gente”.
2.2. Rigor das três unidades
Fazendo jus ao que Lope de Vega preconiza em “El Arte Nuevo de Hacer Comedias”, observa-se o rigor das “três unidades”.
• “Unidade de ação”: a matéria narrativa está organizada em torno de um assunto principal.
• “Unidade de lugar”: a ação passa-se no Reino de Portugal, um “lugar a que se possa chegar em vinte e quatro horas”, assim sendo, a torre do castelo, os palácios, as serranias ibéricas e campos de batalha.
• “Unidade de tempo”: o autor recorre ao relato da ação mais que à sua representação.
• O argumento não cabe nas vinte e quatro horas, já que transcorre entre as batalhas de S. Mamede e de Ourique – incumprimento das regras ditadas por Lope de Vega, na sua “Arte Nova de Fazer Comédias”, todavia previsto, quando diz: “passe en el tiempo que pueda si no es cuando el poeta escribe História”.
A tradução não contempla a rima, mas consideramos que a adaptação para prosa não altera o contexto das tramas intrincadas, em que gravitam as complexas personagens.
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PRIMEIRO ATO
(Entram em cena os pastores Basco, Brito, Alcino e Bato)
BASCO – Vamos até à serra, anda lá o diabo à solta.
BRITO – Embora…
BATO – Anda, Alcino, por Deus!
Isto é uma gente endemoninhada…
BRITO – Parecem lagartos, mosquitos ou enxames de abelhas fugindo para a Extremadura.
BASTO – Acho que Afonso venceu as forças da mãe.
ALCINO – Sim, sim…
Estão a atravessar o rio, até se atropelam na fuga. Vai ali a fugir um homem armado.
BRITO – O cavalo já nem se mexe.
ALCINO – Caiu sem forças.
O dono está a ver se o anima. Vamos a ele!
BRITO – Comigo não contem!
(Entra em cena D. Fernando com a espada ensanguentada e coberto de pó.)
Maria José Baião
D. FERNANDO – Oh, montanhas que tocais os céus, humildemente, vos suplico. Vingança!
Do conde de Portugal tive hoje arrogante investida, levou-me a esposa e acossou-me o exército!
Mal está aquele que confia na glória humana!
Maldito quem não se precavê dos danos causados pelo seu semelhante!
Como escapar do ímpeto de um moço altivo, arrogante e destemido?
Ouvi-me, bosques sombrios! Soldados, concedei-me o que vos peço.
ALCINO – Acho que este é D. Fernando.
BASCO – Que dizes tu?
ALCINO – Digo e repito. Já o vi mais de mil vezes em Santarém e Coimbra.
BRITO – Parece que está ferido.
BASCO – De certeza que foi vencido por D. Afonso.
D. FERNANDO – Ouço vozes…
Corações nobres costumam esconder-se sob vestes humildes.
BRITO – Implora-vos ajuda, irmãos!
BASCO – É bárbaro não ajudarmos.
ALCINO – Mostremo-nos, então!
BRITO – Que mandais?
D. FERNANDO – Tenho a vida por um fio, embora sem culpa disso, pois meu único delito é ser o infeliz esposo da condessa.
O filho, contra mim, faz ameaças de morte. Não deixeis que derrame o meu sangue, vingando-se de mim por ciúme e cobiça.
O Rei Desleal
Tomai as armas amigos, dai-me uma roupa tosca para disfarçar-me e fugir.
BRITO – Deus meu! As vossas razões dão-me muita pena. Esperai. Posso conduzir-vos à raia de Castela.
D. FERNANDO – Deus é grande!
ALCINO – Parece que lá, ao longe, vão tropas…
BRITO – Sigam-me. Por aqui.
Se correr de feição, daqui a uma hora estamos perto do Guadiana.
Em boa hora, se não nos confrontarmos com a soldadesca, senão morremos como coelhos.
Alcino, se eu morrer, vende a minha burra parda, o meu mastim e a peliça: faz-me um enterro jeitoso!
ALCINO – Podes crer…
D. FERNANDO – Se voltar a pisar a minha Castela amada, juro voltar aqui mais rico, para vingar o destino.
(Sai D. Fernando.)
BASCO – Esconde-te, esconde-te, vejo gente a marchar nesta direção.
(Entram soldados, com D. Afonso, D. Álvaro e Ruy da Silva.)
D. AFONSO – Será que escapou com vida?!
Deus pôs-mo no meu destino, carrego-o bem pesado. Em que caverna te escondes, vil padrasto?
Maria José Baião
Em que abismo da minha justiça te afundas?
Volta, se altivo pretendes, à Lusitânia!
Pelas armas procuras um direito que é meu.
Que há sobre a minha mãe?
RUY DA SILVA – As vossas ordens foram cumpridas: prisioneira, Senhor, encerrada no Castelo, bem guardada.
Ao pisar as lajes frias com os seus reais pés, não contém as lágrimas em fio e implorou: “Senhor, não vingues o delito de Afonso, meu adorado filho único.
É ele a luz dos meus olhos e espelho em que me revejo.”
D. ÁLVARO – Que a fama dos teus feitos possa ecoar do Tejo ao Nilo, generoso Afonso!
Glória ao teu nome invicto!
Tu sujeitas à tua força a vil moirama, fazendo dos seus turbantes almofadas para nossos pés…
Que o Estado que, ora, herdaste dure séculos imortais e chegue ao trono de Apolo!
À tua mãe conquistaste as terras entre Douro e Minho e, neste dia, venceste o arrogante teu padrasto.
Quando o apanhares não o poupes à tua cólera.
Orestes matou a mãe, foi castigo merecido pela morte de seu pai e adultério com Egisto.
Que delito contra ti, cometeu minha Senhora, tua mãe?
Liberta-a, antes que o Céu que, no seu poder infinito bafeja os filhos obedientes, castigue os soberbos e altivos.
D. AFONSO – Tem tento nessa língua! Estimo tanto os teus conselhos, como fervo com as tuas razões.
Não tentes refrear a fúria que me incita a lutar pelos direitos
O Rei Desleal que são meus.
Se Portugal é herança de meu pai, é inaceitável a decisão de minha mãe de reservar esse domínio para os filhos do segundo marido.
Só me cabe defender-me. Defendo o que é meu!
Entre paredes, na masmorra ela vai amansar… Eu sou quem sou, sou o primogénito e sempre serei, amigo Álvaro!
(Entra um soldado.)
SOLDADO – Acaba de chegar de viagem, Egas Moniz!
(Entra Egas Moniz.)
D. AFONSO – Seja sempre bem-vindo, Egas Moniz!
EGAS MONIZ – Beijo vossos pés, Alteza!
D. AFONSO – Egas Moniz, meu mestre, tanto me honrais chamando-me de Alteza!
EGAS MONIZ – Escutai o ditoso relato da minha viagem: parti de Portugal, a teu mando, para falar com Afonso VII, imperador de Espanha e do soberbo Tejo que seus areais banha, parti para Aragão. Daí prossegui jornada até Barcelona, tão rica quanto bela e fiz-me aos mares e aos ventos.
Neptuno alegre por ver que navegava a tua embaixada, coroava as águas com glaucos e cerúleos cristais. Salacio, formosa, deslizava sobre as águas cercada de ágeis esquadrões de Nereides. Soprava um poente suave e agradável que amainou as águas e deu descanso aos marinheiros. Chegada a noite, todos ao sono
Maria José Baião
prestaram calmo tributo. Desta sorte, se chega a Marselha e se passa às águas em que Persona vive a sua formosura. Daí, cheguei a Génova, onde nos refrescámos para no dia seguinte, sulcar o húmido Tridente.
Passámos, então, aos portos aos quais Vénus e Alcides deram nome, sem que escolhos marítimos ou o canto de Alcione assombrasse. À vista dos campos a que Etrúria deu renome, entro na Civita Velha, para descanso da embaixada e caminho para Roma.
Inclinei-me, humildemente, perante o Pastor maior, timoneiro divino da nave dos militantes de Pedro. Diante dos cardeais do Sagrado Colégio expus as razões da nossa embaixada.
Finalmente. Senhor, tendo o Santo Pontífice ouvido as razões que envolveram teus belicosos esquadrões contra tua mãe, pronunciou esta breve sentença: Portugal é teu por herança!
Declarou ser justo que sejas seu único herdeiro, embora devas cessar a discórdia temerária.
Atendendo ao valor do grande Enrique, teu pai, conde de feliz memória, para que mais se celebre a tua fama, com Fé, para eterna glória de Deus, dá-te (que grande ventura), de Rei de Portugal a investidura!
Beijei seus sagrados pés e parti para Espanha, alegre e feliz por tão nobre façanha.
Chegado a Trujillo, sob rigorosa intempérie, recebi minha amada esposa.
Seu pai tudo preparara, antes de entregar a alma às estrelas, preocupado com haver quem lhe garantisse casa e fazendas.
O Céu me deu D. Inês de Vargas e, embora faça eu ultraje à sua beleza, quererá Deus que propague a minha linhagem.
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