

L ourdes B iga
L ourdes B iga
N suradas
de L idia N a X
título: Memórias Não Censuradas de Lidiana X
autora: Lourdes Biga
edição: edições Vírgula ® (Chancela Sítio do Livro)
grafismo de capa: Ângela Espinha
paginação: Alda Teixeira
1.ª Edição
Lisboa, janeiro, 2025
isbn: 978-989-8986-96-2
depósito legal: 539978/24
© Lourdes Biga
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Dedico este livro à minha Família e aos meus Amigos. Sem eles eu não o teria escrito.
“Vou mudar de casa e não sei para onde vou. Isso enche-me de esperança.”
arundhati roy
In “O Ministério da Felicidade Suprema”
Encontrei aquela casa anunciada no jornal diário da cidade, num pequeno espaço destinado a “Casas para alugar”, com esta simples nota descritiva: “Ideal para pessoa só/ estudante”. Sendo eu estudante e só, pareceu-me destinada. O facto de ficar praticamente longe de tudo atraiu-me imediatamente, pois não aprecio estar rodeado de gente. Sou um solitário por vocação e necessidade. Estudante-trabalhador ou trabalhador-estudante, eis o que sou. Gosto de estar sozinho e preciso de estar sozinho. As duas coisas confundem-se.
Tinham-me informado que a anterior residente fora uma inquilina idosa, que ali vivera sozinha durante cerca de quinze anos e tivera convívio ocasional com alguns dos outros habitantes daquele prédio antigo de três andares, situado na extremidade de uma rua da periferia. Esperava, portanto, encontrar uma casa cheia de objetos velhos sem valor material, em grande desordem e deficientes condições de limpeza, com paredes de cor indefinida, janelas que não se conseguiriam abrir, portas presas nos gonzos, e um odor intenso e generalizado a germes e bolores.
Quando, ao chegar, abri a porta e senti na atmosfera um suavíssimo aroma floral, pensei que me enganara no andar, mas
refleti que isso não era plausível. A chave servira à primeira tentativa. E, de seguida, ao contemplar o ambiente da pequena residência, voltei a recear ter entrado na casa errada. Os móveis de madeira clara criavam, sobre o fundo azul das paredes, um ambiente luminoso e repousante. Havia uma mesa oval de tamanho médio, um armário com loiça, duas cadeiras, uma estante com várias prateleiras cheias de livros e um banco com costas, exibindo girassóis pintados na madeira. Havia ainda um guarda-vestidos com três portas. A cama de ferro estava pintada de azul-turquesa e o medalhão da cabeceira exibia também pintura com motivo de girassóis. Por último, num recanto que continha um candeeiro de pé alto, surgiu a meus olhos um pequeno sofá de tecido acetinado amarelo-vivo. No chão, um velho gira-discos e três ou quatro pilhas de discos encostadas à parede. Não havia tapetes. Fogão, esquentador e frigorífico, todos funcionais e de dimensões médias, e um conjunto de prateleiras na parede, sobre as quais repousavam alguns tachos, panelas e frigideiras, constituíam o recheio da cozinha. O asseio, a ordem e a tranquilidade eram quase palpáveis em toda a pequena habitação.
O que eu sabia, ou julgava saber, acerca das pessoas com muita idade não se conformava com este ambiente doméstico. Em consequência, exultei com a sorte que me coubera. A renda era baixa e eu assinara o contrato após uma brevíssima ponderação. Tinha pressa. A pressa é apanágio das mentes jovens. Ao longo da rua, porém, enquanto caminhava para a casa do anúncio, imaginara-me a gastar dias entediantes e cansativos em limpezas profundas num espaço de outro modo inabitável. Preview
Uma semana depois da decisão, o que coincidiu com o início do mês de setembro, já eu estava instalado no diminuto, mas gracioso, apartamento e decidi passar em revista os livros da estante. Não consigo viver sem livros e considerei que talvez alguns daqueles me interessassem. De facto, havia vários que decidi examinar. Retirei todos os volumes da estante, a fim de proceder à escolha e posterior organização dos que poderia vir a ler e, nesse momento, deparei com um maço de folhas de papel. Manuscritas. Para minha surpresa, o conjunto estava cuidadosamente numerado e possuía um título. Não encontrei assinatura.
Como já disse, o título da obra não é da minha responsabilidade nem foi escolhido pelo editor: já constava ao alto das páginas que encontrei cuidadosamente disfarçadas atrás das prateleiras, decerto à espera de que uma alma gémea, talvez uma alma errante, se sentasse a lê-las nas madrugadas da insónia e Preview
Decidi ir lendo nas horas vagas, as poucas de que dispunha, as páginas da obra inédita que me viera parar às mãos e que parecia ter-se escondido num sítio recôndito para vir a ser encontrada por mim.
Quase dois anos depois dos acontecimentos que atrás relato, entreguei a um editor o manuscrito tal como estava quando o encontrei, na expectativa de uma decisão sobre o destino das páginas de autoria desconhecida.
O resultado final da edição, cujo texto segue fielmente o manuscrito, será analisado pelo leitor. Eu fui apenas o mensageiro que cumpriu o que considerou ser seu dever. Não deixo expresso o meu nome: o que importa é que entreguei devidamente a mensagem a quem de direito.
aquecesse o coração na chama pulsante da vida que nelas se reflete.
Espero que, finalmente, essa chama tenha encontrado abrigo e paz no coração dos girassóis.
Sempre me pareceu um exercício enfadonho e inútil escrever sobre a vida pessoal, quando não se tem filhos ou outros descendentes a quem possam interessar, direta e intimamente, tais relatos. Em primeiro lugar, porque, de um certo ponto de vista, todas as vidas se assemelham. Em segundo lugar, porque o narrador de memórias tem geralmente uma tendência irresistível para abrilhantar, retocar, eliminar e ou reconstruir factos, intenções e pensamentos, como se costuma fazer às paredes, telhados e dependências de uma casa velha, depauperada e sem encanto, antes de a pôr à venda num anúncio. E tal como na casa velha se deitam fora todos os cacos e trapos patéticos ou mesmo repugnantes que nenhum comprador vai querer por perto, assim também no caso das memórias se descartam as lembranças incómodas para o sujeito narrante, ou que possam vir a ofender o gosto, a sensibilidade ou os conceitos morais do futuro leitor.
Consideremos, por exemplo, a infância, patamar da vida em que o narrador bem estruturado e sensato quererá provavelmente colocar o início da sua narrativa. Logo aqui se deparam
dificuldades de raiz a ambas as partes, a que narra e a que lê. A infância é um território vasto e acidentado, coberto de névoas e neblinas, de acesso difícil por sendas tortuosas à beira de precipícios, atravessado por ribeiros profundos e sinuosos, povoado de sombras que se movem incertas numa direção indefinida, em tempos irremediavelmente caídos de um calendário que já não está em vigor.
Comecei, porém, por falar de filhos e outros descendentes como motivação válida para a escrita de memórias. Não tenho filhos. Uso aqui o verbo “ter” com um sentido muito pessoal. Ter filhos, igual a: conviver com os filhos com uma certa frequência, poder falar com eles quando se quer, ao menos saber onde eles se encontram e o que fazem, mantendo uma relação de, no mínimo, alguma proximidade e sentimento, significativa para ambas as partes. De tal modo que as memórias também lhes façam referência, inclusive que eles se vejam nelas retratados e, por esse facto, reconheçam a importância do texto para si próprios e para a sua vida — ainda que às vezes os descendentes considerem que o narrador não lhes fez completa justiça ou omitiu factos, pensamentos ou sentimentos que eles gostariam de ver referidos.
Repito, pois: não tenho filhos. Mas dei à luz duas crianças num período conturbado da minha vida, tão conturbado que em qualquer dos casos não soube ao certo quem era o pai. Para ir mais longe e mais fundo: eu nem sabia quem era eu própria. E de ambas as vezes, alguém, assim espero, se apiedou da criança, dando-lhe um destino talvez mais seguro, longe da corrente de sombras e desencanto a que me encontrava presa. E de ambas Preview
as vezes eu fui menos mãe que uma fêmea de animal doméstico ou selvagem, menos que uma cadela, uma leoa, um crocodilo-fêmea ou uma galinha, pois essas são mães presentes, dedicadas e incansáveis, que cumprem a sua tarefa até ao momento em que os filhos se tornam autónomos e se libertam, libertando-as a elas.
Encontro-me hoje numa idade e numa situação em que consigo ser frontal e até impiedosa comigo própria. E que diferença isto faz em relação aos meus ligeiros dias de juventude! Nessa época eu era impiedosa com os outros e facilmente lhes fazia o retrato das imperfeições e dos erros, ao passo que era alegremente tolerante para com as minhas próprias faltas e lacunas. Tinha até defeitos de estimação, que considerava fazerem parte integrante da minha personalidade e dos quais julgava não poder abdicar, sob pena de deixar de ser eu própria. E se eu gostava acima de tudo da pessoa que era eu própria!
Poderá o leitor ver a que ponto me sinto desprendida do meu ego, situação que considero indispensável a quem decida escrever memórias, pois só desse modo se consegue relatar os factos sem apego, e evitar tanto quanto possível os erros que referi no início desta narrativa. Digo até “corajoso leitor”, pois terá de possuir coragem alguém que se disponha a ler um relato cru e sem rodeios de uma vida que deverá muito em breve, assim o espero, chegar ao fim.
E o leitor estará agora a perguntar: por que razão uma mulher idosa e com a morte a curto prazo, sem descendentes e desprendida do seu ego, desejará confiar as memórias a um público anónimo do qual nunca conhecerá a opinião, uma vez que já estará morta quando, e se, o livro chegar a ser lido?
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Há duas razões importantes.
A primeira é que todos os humanos, mesmo os desprendidos e os inconscientes, desejam deixar qualquer marca da sua passagem neste mundo para que não tenham vivido completamente em vão, nem sejam para sempre sepultados na escuridão do olvido. Essa marca pode constituir, quanto mais não seja, um exercício de liberdade ou, por acaso remoto, uma obra de arte.
O leitor tem, com certeza, um bom sentido das realidades da vida e poderá dizer:
“Não compensa o esforço: são tentativas irrelevantes, instáveis e votadas ao fracasso, simples perda de tempo. Mais valia ir passear ao sol”.
Respeito a opinião, mas o tempo é meu e vou usá-lo como me aprouver. Quanto ao resto da sugestão, também não posso fazer-lhe a vontade: o sol é meu inimigo, seca-me os olhos e provoca-me dores de cabeça. Prefiro ficar resguardada em casa.
A segunda razão pode expor-se do seguinte modo: embora eu saiba que os seres humanos só com relutância aceitam o sabor monótono da prudência, a ele preferindo o gosto inebriante do risco, lego nestas páginas o relato de decisões que implicaram frequentemente consequências funestas não calculadas. Não espero, na verdade, que esse exemplo tenha grandes efeitos práticos. Apenas preciso de, tanto quanto possível, esvaziar e libertar a minha memória neste tempo final, expondo à claridade do sol factos que durante muitos anos mantive escrupulosamente secretos, como acontece frequentemente fazer-se a uma malformação física repugnante ou a um parente escandaloso. Preview
Eis, portanto, uma tarefa de que espero tirar vantagem pessoal ao despedir-me do mundo e ao sacudir para trás o peso das minhas mágoas. Mas de modo nenhum pretendo usar este escrito para servir em bandeja um estudo das consequências a ter em conta quando se vive, como eu vivi, com desprendimento das tradições e audácia nos objetivos.
Julgo ter respondido a algumas questões que a leitura deste manuscrito poderá suscitar, se porventura não for simplesmente destruído antes mesmo de receber a atenção de uns olhos e de um espírito complacentes ou apenas curiosos.
Haverá decerto outras questões que o eventual leitor poderá julgar pertinentes ao terminar a leitura. Posso calcular quais sejam, mas não lhes vou responder.
O leitor diligente que estiver a meu lado ao longo das páginas e que, no final, gaste algum do seu tempo a meditar sobre o que leu, encontrará as respostas que procura.
Dentro do livro? Talvez, mas mais provavelmente dentro de si próprio.
Será conveniente explicar agora o título destas memórias. Começo pelo nome próprio, que é o meu. Lidiana é o nome que me atribuíram, mas para se chegar a ele houve muitos conflitos, acusações mútuas, amuos e, por fim, ressentimentos.
É o nome que resultou de um acordo arduamente conseguido no seio da minha família.
Na maior parte das famílias, a escolha do nome a dar a uma criança recém-nascida é uma ocasião marcada por emoções e atitudes positivas e festivas. Em vez disso, a minha avó paterna e a minha mãe envolveram-se numa disputa que se prolongou por semanas, a ponto de se terem constituído dois lados opostos na querela, que, a partir de certo momento, passou a contar com a maioria dos parentes.
O nome da avó era Ana e Lídia o nome da mãe. Dado que qualquer delas exigia ver o seu nome na certidão de nascimento da recém-nascida, com exclusão do nome da outra, não se conseguia chegar a uma conclusão. Alguém alvitrou então que o nome da criança podia facilmente conter os dois, seguidos um ao outro, conclusão que o bom senso teria tirado no primeiro instante, caso o bom senso fosse apanágio das duas litigantes.
Ainda assim, não foi possível terminar o conflito, dado que cada uma delas exigia ver o seu nome colocado em primeiro lugar.
Ou seja, a questão agora passara a ser “Ana Lídia ou Lídia Ana”. Por fim, um amigo da família, ancião impoluto e respeitado por todos, alvitrou Lidiana, uma invenção que aglutinava os dois nomes rivais, com a grande vantagem de ser inovador, ou, pelo menos, desconhecido de toda a gente na cidade.
Respirou-se fundo e a menina pôde finalmente ser batizada, o que, se não pôs fim à animosidade entre as duas parentes, permitiu o retorno à vida normal ou ao simulacro dela.
Do que atrás ficou dito, é lógico concluir que o apelido da família ficaria tristemente realçado se figurasse no título destas páginas. Não seria justo para os parentes que não entraram no conflito, para aqueles que na época eram crianças e para os vários que nasceram depois dela... além disso, acredito que os factos, os sentimentos e os locais apresentados nestas páginas em toda a sua crua verdade deixariam embaraçados, talvez até socialmente Preview
Quando cresci o suficiente para aprender e memorizar o meu nome, tomei-lhe gosto e pronunciava-o sem hesitação, ganhando até um certo orgulho por poder ostentar algo que considerava belo, adequado e que nenhuma outra pessoa conhecida possuía. Por outro lado, desgostava-me que fosse o resultado de uma disputa entre as minhas duas parentes mais próximas que, julgava eu, deveriam ter-se unido e não confrontado à beira do meu berço. Mas essa é uma questão fulcral que teve as suas consequências.
É oportuno explicar também o X.
prejudicados, os atuais descendentes da minha família, o que está absolutamente fora dos propósitos desta narrativa.
Estou plenamente consciente de que não surgiu do nada o aforismo popular:
“Pagam os justos pelos pecadores”.
Julgo que a palavra Memórias, constante do título, já foi cabalmente tratada no primeiro capítulo desta narrativa, portanto passemos adiante.
Vem agora a expressão “não censuradas”. É imperioso que o leitor destas páginas compreenda a gravidade da situação. As memórias só têm razão de ser se a pessoa que as escreve, neste caso eu, estiver num período da vida em que deixou de fazer juízos de valor tendenciosos a favor de si própria. E esse leitor deve estar lembrado do que afirmo lá atrás a propósito do assunto. Se não se lembra, faça o favor de repetir a leitura. Velha sou eu e lembro-me perfeitamente do que escrevi.
Além do mais, não me interessaria gastar o precioso e fugaz tempo que me resta de vida a relatar factos inventados, embelezados ou censurados em nome da elegância, da beleza, do bom nome, da decência ou de vários outros conceitos que, nesta fase da minha existência, já se esbateram debaixo das camadas de poeira acumuladas pelo progressivo esboroamento de muitas das minhas esperanças e crenças.
Caso o leitor se sinta neste momento assustado ou mesmo escandalizado pela minha amoralidade, tenho uma sugestão a fazer-lhe:
Desista. Desista o quanto antes da leitura destas memórias e procure o conforto de que precisa noutro tipo de obra Preview
escrita. Talvez um livro de viagens que o transporte para paisagens longínquas. De preferência muito longínquas, pois são essas que provavelmente nunca terá oportunidade de visitar e, em consequência, nunca lhe darão desilusões. Ou talvez uma novela cheia de cenas de amor entre apaixonados ardentes, mas hesitantes, que ora se aproximam e riem de felicidade, ora se afastam e choram de inquietação, gastando nessas dúvidas existenciais páginas e páginas de prolongada e dispendiosa leitura. Ou ainda um repositório de orações de uma religião à sua escolha, que o confortem a qualquer hora do dia ou da noite, e lhe proporcionem, nesta sofrida vida terrena, o êxtase da beatitude que alguns afirmam existir apenas no Além depois da morte.
Acerta altura da minha vida tornei-me progressivamente admiradora do isolamento físico e da consequente solidão: o ser humano visto como um todo pode ser uma fonte inesgotável de desgostos, desilusões e antagonismos. No entanto, agora, para ser imparcial, cabe-me dizer que a culpa é também do observador: este é igualmente um ser humano e possui exatamente as mesmas características que abomina no seu semelhante. Como observadores, somos as mais das vezes impiedosos; como alvos de observação, muito tolerantes. As duas faces da mesma moeda constituem as duas faces de qualquer indivíduo, observador e observado. O grau de exigência e o grau de permissividade são, no entanto, surpreendentemente variáveis. É por ter consciência desta disparidade que admito, com bonomia e até algum prazer nesta fase pacificada e já quase desprendida da vida, a sua presença a meu lado, caro leitor. Reconheço que fui radical e pretensiosa quando afastei, para não dizer enxotei, pessoas que tentaram aproximar-se de mim em outras épocas, partindo do princípio de que elas nada me trariam de bom. Não trouxeram, evidentemente, porque não lhes permiti... nem eu lhes proporcionei a elas. E é deveras divertido
que pareça agora, na velhice, mais aberta e permissiva que nos anos da juventude…
A explicação do título deste manuscrito está terminada e, com algum receio de que os comentários adjacentes tenham sido fastidiosos para o leitor mais impaciente ou mais jovem, vou passar à fase seguinte da narrativa, cujos factos e personagens têm vivido a meu lado todos estes anos, com vontade própria e independente da minha. Não prometo apresentá-los numa sequência cronológica: pelo que tenho verificado, tanto os factos como as personagens não só possuem vida própria como escolhem o momento, a hora ou o dia para surgirem à minha frente e dialogarem comigo, ainda que não me apeteça. São como aquelas visitas que aparecem inesperadamente nas nossas casas à hora do jantar, ou na ocasião em que, já atrasados, estamos a vestir o casaco para ir à rua cumprir uma obrigação inadiável de que nos lembrámos à última hora.
Há, no entanto, uma diferença ponderosa entre as visitas inconvenientes e os factos ou personagens que me impõem a sua presença: é que as primeiras podem ser habilmente descartadas ou adiadas para uma ocasião mais propícia e, em último caso, deixadas a falar com a porta da rua, se tivermos mesmo de nos ausentar à pressa... Ao passo que, no meu caso, personagens e factos são despudoradamente insistentes, insidiosos e instalam-se para ficar.
Aanimosidade sempre latente e muitas vezes explícita entre a minha avó e a minha progenitora foi um dos vetores da minha infância e prolongou a sua influência nefasta pela minha adolescência. Enquanto fui criança, assumiu a forma de um incómodo permanente que me envergonhava, como se fosse eu a responsável pelos olhares de soslaio, as palavras agrestes e a postura litigiosa que dedicavam uma à outra, tanto em privado como em público. Tornara-se uma rotina que todos pareciam considerar normal, não só os membros da família como os restantes habitantes da cidade, e toda a gente se habituou a seguir estratégias para evitar tomar partido.
Tratava-se, portanto, de uma condição e não de um problema, para todos menos para mim. E porquê?
Quando comecei a abrir os olhos para o que me rodeava, com o propósito de compreender e assimilar o mundo, estádio da vida que toda e qualquer criança sem atrasos de crescimento atinge muito cedo, as minhas duas parentes rivais encarregaram-se, cada uma por si e com grande diligência, de me alertar uma contra a outra.
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