Penedo dos Corvos

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pina da costa PENEDO DOS CORVOS Preview

TÍTULO

Penedo dos Corvos

AUTOR

Pina da Costa

EDIÇÃO GRÁFICA

Edições Partenon® (Chancela Sítio do Livro)

1.ª EDIÇÃO

Lisboa, fevereiro, 2025

ISBN: 978-989-8845-43-6

DEPÓSITO LEGAL: 541410/24

© Pina da Costa

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PUBLICAÇÃO

GUARDADOR DE VACAS

Longo tempo guardei para mim o improvável que vivi. Temia o descrédito e o gracejo, como sempre acontece quando a realidade se atreve a sair do trilho da comum razão.

É uma história simples de menino…

Simples? As histórias de meninos são sonhos; os sonhos nunca são simples, trocam-nos sempre as voltas. Claro que os grandes não sabem, perderam a fé na fantasia e sem fantasia não há sonho. Mas aqui há um menino… e sonho; sonho de um passado que há de viver e de um futuro que rememora.

Ia à escola e guardava vacas. Considerava-me um grande guardador de vacas: vaca minha não ia ao milhão do vizinho nem saltava para a ferrã dos campos que orlavam os caminhos. Os grandes ainda não me consideravam gente, todavia as vacas obedeciam-me como soldado ao seu general.

Até aos estranhos eventos que aqui narro, sempre fui guardador de vacas. Digo “sempre”, mas esse sempre representava menos de uma arroba de meses. Era, porém, todo o tempo de uma vida que alhures perdera o passado. Meus pais não sabiam ao certo, mas devia ter uns sete ou oito anos quando vim ao mundo. É estranho, não é!? Estranheza partilhada por todos: meus pais, vizinhos e eu próprio. Mesmo depois desse arcano me ter sido revelado, tão singular segredo permaneceu, por longo tempo, acantoado no mais silente de mim mesmo.

Estranho e perturbante! “Quando era pequeno…”, diziam, por tudo e por nada, meninas e meninos da minha idade. Ora, eu nunca fui pequeno. Muito pequeno, quero dizer. Era uma espécie de aleijado. Não que me sentisse desamorado, mas faltava-me um anteontem para me sentir dentro da norma. Há quem esconda em embuço de capucha ou dentro de mangas

perna e braço faltoso ou disforme. Eu escondia o meu aleijão de não ter passado num encolher de ombros envergonhado e silencioso.

Mesmo minha mãe, quando as comadres se embeveciam a falar da meninice dos seus filhos, iniciava uma calada e discreta retirada. O seu filho nunca fora infante!

Sempre receei o descrédito de quem me ouvisse ou lesse, remetendo para o sótão da minha mórbida imaginação os extraordinários acontecimentos que, por fim, decidi pôr em letras. Na verdade, desde novo que os adultos me consideravam sonhador e de devaneio fácil, não dando grande crédito às histórias das minhas vivências de um passado que eu não tinha.

Eu próprio duvidava, por vezes, das minhas certezas. Com efeito, como podia ter eu memórias daquilo que ainda não se libertara do domínio do desejo e do porvir? Como era possível o hoje recordar o amanhã? E surpreendia-me, no limiar da lucidez, como observador simultaneamente dentro e fora de mim numa ténue e diáfana fronteira entre o eu e o outro, num tempo que não era linear, em que o presente representava a concomitância do passado e do devir, um futuro já vivido.

Mas este hoje não são os tempos de agora que correm indistintos e velozes, antes um passado que sedimenta no fundo da mais funda cave das recordações, mantendo um obscuro e incerto equilíbrio entre uma realidade imaginária e o imaginário de uma realidade vivida.

O CORVO ENCANTADO

«Olá, menino!»

Ouço dizer. Tenho a certeza que ouvi. Olho para todos os lados desconfiado e perplexo. Alguém me chamava, mas não via ninguém por perto por mais que perscrutasse por entre o matagal e o fraguedo…

«Olá! Aqui em cima, no penedo.»

‒ Em cima do penedo? Mas não vejo ninguém, apenas um corvo…, pensava ou dizia eu, nem sei bem. Devo ter dito, pois obtive resposta.

Um dos lameiros meu preferido para apascentar os animais era este, a tapada do Cando; tapada porque estava toda cercada com um muro de pedra seca de granito que impedia as vacas de Preview

«Sou eu mesmo. O corvo que vês. O corvo que te chama.»

‒ Os corvos não falam. Alguém escondido no mato…, pensava ou dizia eu, nem sei bem. Devo ter dito, pois continuei a obter resposta.

«Para provar que sou eu quem te fala, vou descer até perto de ti e regressar de novo ao penedo.»

Atónito e assustado, sigo com o olhar o grande pássaro negro que desce planando do alto do rochedo na minha direção, faz dois círculos à minha volta, enquanto ouço dizer:

«Acreditas agora que sou eu a interpelar-te?»

Bem, acreditar acho que não acreditava, mas lá que escutava intrigado, isso escutava, ao mesmo tempo que olhava o corvo a retornar ao penedo. Era o maior corvo que jamais vira, talvez por nunca ter visto algum a esvoaçar tão próximo de mim. Até a sua cor de intenso preto parecia ter um brilho particular, metálico. Decidi, então, que era o corvo que me falava; e eu também falava, não era só pensar, decidi ainda.

saírem e lançarem-se cobiçosas por leiras vizinhas pisoteando e espontando centeios e trigais; sim, que as vacas sabem muito bem que o fruto proibido é o mais apetecido. A nascente situada quase no topo do cerrado mantinha o verde e o viço da erva mesmo no pino do estio. Chegava e, mal as vacas entravam, fechava o portal com rodoiros ou pedras. Assim, as alimárias não saíam e eu podia ir às minhas aventuras subindo rochedos, explorando moitas, seguindo rastos no solo ou adejos no ar.

O Penedo dos Corvos era um dos locais que gostava de visitar pelas vistas sobre o pequeno vale da ribeira que aí principiava e pela vida selvagem que se podia observar. Emergia da encosta como uma enorme e maciça mole de granito projetando-se na vertical sobre a depressão do terreno que se estendia a seus pés do lado poente; caía sobre o vale como uma parede abruta com cerca de 10 metros de altura; com cuidados e esforço, o seu carrapito ficava acessível pelo lado da montanha, a nascente, qual açoteia panorâmica.

Ouvira diversas histórias sobre o Penedo dos Corvos, porém um pássaro falar não era coisa que pudesse acontecer… As crianças podem acreditar nisso. Eu, com cerca de nove anos, já não tinha permissão para tais devaneios…

‒ Está bem! Mas fica sabendo que sei que os corvos não falam. Nem vou acreditar em ti. ‒ Devo ter dito já que o corvo continuou.

«Combinado! Não acredites. Ouve-me simplesmente.»

‒ Está bem! Ou melhor, não está bem! Um corvo fala comigo e eu falo com um corvo. Não está bem. Isso é coisa de maluquinho. Os pássaros não falam. Só nas histórias. Deve haver aqui algum truque…

«Não, não há truque algum, porém há encantamento. Sou um corvo encantado.»

‒ Um corvo encantado!...

De mal a pior. Um corvo encantado! Se fosse amestrado… Cada vez entendia menos o que se estava a passar. Adorava histórias de princesas e príncipes encantados que a minha professora lia se nos Preview

portássemos bem. Já não confundia, contudo, bonitas histórias com a dura vida. No entanto, eu escutava e falava. Pelo menos pensava que escutava e falava. Respondia ao corvo. Pelo menos pensava que respondia. E este responder, em voz ou em pensamento, mais não era que uma capitulação perante o impossível. E isso não abonava nada a favor da minha sanidade, ainda pensei. Só mesmo a minha tenra idade, em que a fronteira entre imaginação e realidade ainda está definida a tracejado, explicava esta fácil cedência ao inverosímil.

«Pois é verdade. Não sou um príncipe, mas encantado sou. De facto, é uma história longa e invulgar …, tão extraordinária que as razões da razão não a poderão explicar.»

Pensei ou falei? Como sabe dos meus pensamentos sobre histórias de príncipes encantados? Curioso: ouço o corvo falar mas mal mexe o bico. Será que comunicamos por pensamentos? Não era a primeira vez que ouvia vozes, vozes interiores, vozes que mais ninguém dizia ouvir. Mas isso era quando estava muito abstraído quase sonâmbulo…

Bem, nestas coisas o melhor é fazer de conta. Até gosto de jogos de faz de conta. Vou fazer de conta. O corvo fala para mim e eu falo para o corvo. Ele responde e eu respondo. Tudo no mundo do “faz-de-conta”.

‒ Está bem! Verdadeira ou falsa, se é uma história, vou gostar de a ouvir.

Para histórias estava sempre pronto. Em casa não tinha livros, e meus pais não tinham tempo nem disposição para me contar fosse o que fosse. E a escola era tão escassa em histórias… «Vamos combinar o seguinte: eu conto a história da minha vida e tu falas-me da tua.»

‒ Eu nada tenho para contar, apenas vou à escola e guardo vacas.

«As crianças têm sempre muito para contar. Ainda de mente asseada, conseguem galgar a aparência das coisas, sentir as energias veladas da natureza, dar alma a todo o ser vivente, e voar com a sua imaginação para mundos libertos do lastro da realidade. Tenho reparado em ti sempre que vens para este vale

do Cando; vejo como acompanhas o voejar dos pássaros, escutas o trilar dos grilos e das cigarras, segues a dança das borboletas…»

‒ Bem tinha a impressão de ser seguido por um corvo quando andava por estes sítios! Não levava muito a sério tal suspeita, por improvável, mas estranhava ser sempre um corvo solitário quando os corvos costumam andar em pequenos bandos. Então neste penedo parecia estar sempre algum de atalaia, atento ao que eu fazia. Por outro lado, é frequente haver corvos aqui pousados. Será por isso que se chama Penedo dos Corvos…

«Provavelmente. Assim é designado desde tempos imemoriais. A sua posição e dimensão dão-lhe destaque como ponto de vigia sobre todo este vale de prados e chãs até à Desondinha, e dos pinhais do Penedo Branco até ao caminho dos peregrinos que sobe a serra. É local de particular aprazimento dos corvos que aqui descansam e espreitam o vale à cata de comida.»

‒ Talvez gostasses de afogar saudades das terras da infância, repousar neste penedo e espraiares o olhar pelo vale que se estende para os lados do pôr-do-sol. Também gosto deste sítio. Sempre Preview

‒ Já vives aqui há muitos anos?

Tenho a certeza de que agora falei. E falei cheio de curiosidade. E com a iniciativa da pergunta, sem tomar consciência, assentia no sustento real desta imprevista situação. Até aí, desconfiado e cataléptico, reagira às questões do corvo num estado entre devaneio e realidade. Era surpreendente como a já bem cimentada descrença em relação a contos de fantasia ‒apesar de me pelar por eles ‒, desmoronava de forma tão fácil e célere, e já me sentia a dar crédito a esta insólita aparição. E não tinha dúvidas, era mesmo este estranho corvo que falava e não apenas vozes da minha própria mente, sempre fértil e vadia.

«Nasci e vivi aqui a minha infância ‒ ouvia o corvo responder; estou certo de que ouvia ‒. Antes da idade da razão abafar a idade do sonho fui descobrir mundo. Regressei recentemente para aqui acabar os meus dias e reviver as minhas ilusões perdidas. A falar verdade, nem sabia ao certo por quê e para quê este retorno...»

que posso venho para aqui com as vacas. Meto-as na tapada, fecho o portal para não debandarem, e assim posso vaguear por estes campos e esta vertente da montanha tão cheia de bicheza e de aventura. Os meus pais é que não acham muita graça. Meu pai reclama que a tapada já tem o pasto retouçado de tantas vezes para aqui vir com os animais, minha mãe precata para os perigos da serra, que me posso perder ou alguém levar-me... A princípio só podia vir na companhia de um deles; geralmente era o meu pai que aproveitava para roçar umas rocadas de mato ou cortar uma carrada de giestas.

«Apraz-me que venhas com frequência para estes sítios. Tenho notado os passeios que fazes ao longo desta encosta, a forma atenta como espreitas e segues a mais diversa bicharada, a tua curiosa observação do voo dos pássaros para lhes descobrires ninho, o encalço respeitoso do rastejar da serpente, e quase te deixas hipnotizar pelas libelinhas que esvoaçam em torno da fonte do carvalho, ao cimo da tapada de teu pai.»

‒ Um casal de gaios fez ninho no carvalho da nascente. Deve estar ainda na fase da postura pois só tem três ovos. Vigio o ninho desde que começou a ser feito, mas apenas lá subo quando os gaios andam por longe para não enjeitarem. Na verdade, tenho reparado num enorme corvo que parece gostar desse carvalho. Pensei que era para espiar os animais que vão beber à fonte ou para caçar rãs e lagartixas que por lá vivem. Reparando bem, parece-me seres tu…

«Serei. Espio, usando o teu termo, sobretudo a ti.»

‒ Não me digas que és tu o corvo que vejo constantemente sempre que ando por estas bandas da serra, na fonte, junto deste penedo e sobrevoando-me frequentemente quando percorro estes matagais!

«Considera que o mais das vezes serei eu. Faz de conta que sou uma espécie de anjo que te acompanha.»

‒ Nas estampas, os anjos costumam aparecer de branco…, mas está bem…, és o meu anjo negro! Estavas a dizer que há muito tempo que não vivias aqui e agora regressaste. Eu sei que

há pássaros que migram no inverno, contudo julgava que os corvos não; costumo avistar corvos todo o ano.

«Tens razão. Os corvos gostam deste vale aberto, intercalado de florestas e pastos, ladeado de montanhas. É por isso que há tantos corvos nesta região onde as serras irmãs, a Lapa e a Nave, estendem os seus mantos para recolher a água que escoam para o límpido e frio Paiva. E vivem cá todo o ano, toda uma vida. Eu, ao contrário, quis conhecer mundo, ir atrás do saber dos homens…»

‒ És mesmo esquisito: falas! Os corvos não falam. Dizes que foste conhecer mundo! Isso é coisa de gente, não de corvos. Os corvos não vão à escola, não leem livros. Estou cada vez mais intrigado. Devo estar embrulhado em algum sonho…

Com efeito, estava perplexo; perplexo e vacilante; e assim andei muitos dias.

«Quantas perguntas! O meu encantamento está a chegar ao fim, sem ter de beijar quem quer que seja. A vida de corvo vai deixar-me saudades, mas o seu fim foi desejo meu. Só tu podes fechar o meu encantamento, ouvindo e entrando na Preview

Costumava ter sonhos tão reais e intensos que era frequente meu pai ter de se levantar de noite para me sossegar. Mesmo depois de acordar, continuava a sentir dor no pé onde o lacrau me mordera, ou a ver a cobra a ondular debaixo dos cobertores… E, frequentemente, clamava por pessoas que ninguém conhecia, nem eu próprio, ou vivia aventuras e perigos em terras tão estranhas que até pareciam estar para além da minha imaginação.

Interrogava-me, pois, se não estaria a viver um sonho desses, capaz de usurpar todos os meus sentidos. De facto, era tudo tão concreto, tão vivo… e, confesso, quanto me agradava ter um corvo amigo, falante, um anjo como ele dizia e prometendo histórias de encantar!

«Já te disse que sou um corvo encantado.»

‒ Está bem! Então, conta-me essa história. Quem te encantou? Tens de beijar alguém para desaparecer o encantamento?

Em que te transformas quando perderes o encantamento?

minha aventura. A minha história ‒ terás de ser paciente ‒ será longa, longa de dias, pois toda a resposta está prenhe de novas interrogações.»

‒ Falas por enigmas. Nada parece fazer sentido nem ter real sustento. Mas a minha curiosidade está bem desperta para te escutar; escutar os teus segredos, as tuas proezas, as tuas explicações.

«Meus segredos, sem dúvida, mas passarão a ser igualmente teus: serão os nossos segredos. A ti tudo será dilucidado, sem, todavia, poderes partilhar com quem quer que seja essa revelação sob pena da maldição de loucura.»

‒ Está bem! Não sei se está bem…, mas está bem. Serão segredos só nossos. A ninguém contarei. E estou impaciente por ouvir a tua história, só que tem de esperar por outro dia. O sol está quase a esconder-se. Quando a sombra do pinhal toca neste penedo tenho de ir embora, recomenda o meu pai. E a sombra já engoliu o penedo e quase toda a serra de cá, e o sol já mergulha por detrás da serra de lá.

«Fazes bem em cumprir as orientações de teus pais. Eles próprios também têm as suas razões e os seus sigilos. Adeus, menino.»

Claro que não tencionava contar nada a meus pais, nem a ninguém. Quem acreditaria em história de corvos que falam? Minha mãe nem queria ouvir falar da serra; tinha um estranho e inexplicável pavor da montanha. Meu pai também evitava tal assunto. E os dois sempre com reservas e cautelas quando falavam das terras altas. A princípio atribuía a causa de tantas restrições ao temor de eu ser atacado por lobos, mas, segundo consta na aldeia, já não há lobos por aqui, pelo menos decorreram muitos anos sem notícia de tal aparecimento. Há histórias, muitas histórias de lobos e alcateias, mas são histórias de ouvir dizer; só os antigos, os velhos avós, têm as suas histórias de contendas com lobos.

Soube depois que dramas guardados no mais fundo da alma, e que tempos futuros revelariam, alicerçavam tais receios de meus pais.

VULTOS

anda o corvo em círculos sobre o penedo da sua eleição ‒registava para mim mesmo enquanto seguia atrás do chouto ronceiro das vacas em direção ao lameiro ‒. Será que não caça, não come, não vai além deste local? Que estou a viver uma situação bem invulgar com este estranho corvo, não há a mínima dúvida. Haverá, certamente, uma explicação natural; todavia, apesar de quase não pensar noutra coisa, não faço a mínima ideia de qual possa ser. E aquela do encantamento não me convence muito.

Preview

«Viva, menino. Acompanho-te com o olhar desde a curva do pontão. Ontem bem te esperei, mas deves ter ido para almargem da várzea.»

‒ De tarde, tive de ir com os meus pais até à Presa-Velha, para sachar e regar milho.

«Não disseste que frequentavas a escola?»

‒ Só tenho aulas de manhã. Gosto muito da minha professora; conta-nos histórias, cantamos, aprendemos muitas coisas.

Já quase sei ler… ainda não muito bem. Já falta pouco para terminar o ano escolar, menos de um mês. Depois fico com o dia todo livre para ajudar os meus pais e brincar. Talvez nos possamos encontrar mais vezes, embora ainda não acredite muito na tua história.

«Dá tempo ao tempo, que o tempo sustenta crenças por mais absurdas que sejam. Fico contente por gostares da escola. Mais que asas de corvo, a escola dá asas que nos transportam para um mundo mais vasto e compreensivo. Voar dá-nos liberdade, mas só o conhecimento é a verdadeira libertação. Com ele voamos até ao desconhecido e vencemos esse desconhecido. Quando era pequeno, como tu, queria saber tudo; tinha perguntas e mais perguntas, mas não tinha respostas…»

‒ Falas como se fosses uma pessoa. Mesmo que sejas um corvo encantado que quer ir à escola, não há escolas para pássaros. «Não há. Estou a dar saltos na narrativa. Impõe-se começar pelo princípio. O segredo das coisas está no seu princípio. E não estranhes os eventos extraordinários que te vou revelar, que a tua razão se vai recusar a aceitar e entender. Dá espaço à fé, sustém o entendimento.»

‒ Está bem! De ti já espero tudo. O que estou é impaciente por ouvir essa tua história.

Insisti, pressionado por uma crescente curiosidade por uma aventura que prometia ser fantasiosa e fantástica tão do agrado da minha imaginação. E não era só curiosidade que sentia. Simultaneamente, esperava encontrar uma explicação plausível que me aliviasse do impreciso desconforto pela mistura da realidade com algo que estaria para além do possível. O milagroso fica bem numa imaginativa história; amedronta, contudo, se entra na vida real. Este corvo não se encaixava nas minhas categorias mentais do crível, no entanto começava a acreditar nele. A angústia por este contraditório nascera com as primeiras palavras trocadas com o corvo e parecia não melhorar. Bem procurava com impaciência encontrar compreensão, senão validação, para tal insensatez. A verdade é que eu queria crer. E longo tempo me debati com o absurdo de ir aceitando como natural uma situação naturalmente improvável, senão impossível.

«Há muitos anos atrás, pastoreava por estes aclives da serra um menino, pastor como tu.»

‒ Eu não sou pastor! Guardo vacas.

«Sim, seja. Era um menino pastor e não um guardador de vacas, o que é um pouco diferente ‒ concedeu o corvídeo. ‒Era um menino sonhador, desejoso de saber coisas e conhecer mundo. Não tinha livros, nem quem lhe respondesse às incessantes e impertinentes perguntas que por tudo e por nada o assediavam. Os mais velhos não tinham tempo para as crianças, menos ainda para as suas curiosidades. Viviam sem ambição,

conformados com o seu mundo finito, cujas fronteiras mais longínquas raramente iam além das feiras e romarias da região. A tradição e a ignorância davam-lhes as certezas para os requisitos do espírito, e o saber prático transmitido de geração em geração garantia-lhes um sempre periclitante e miserando sobreviver. Tal como tu, o pequeno pastor gostava de explorar estes bosques, as moitas e as penedias. Considerava um desafio e um jogo descobrir os recatos de todo e qualquer bicho do monte; encantava-o acompanhar a passarada desde a feitura dos ninhos, a postura dos ovos e, particularmente, o desenvolvimento das crias. Entretinha-se a desvendar tocas de coelhos e toirões, esconderijos de raposas e texugos, ou os voos e saltitares evasivos e arguciosos dos pássaros para não denunciar o ninho ao predador. Nos fraguedos, conhecia quase todos os nichos e grutas desta parte da montanha que serviam de abrigo a animais e pastores. Apenas nunca tinha descoberto a cova dos ladrões, nem sequer tinha a certeza da sua existência. Todos tinham ouvido falar dela, mas nenhum dos seus amigos sabia onde ficava e alguns diziam mesmo que era uma invenção dos adultos.»

‒ Cova dos ladrões?! Também já ouvi falar, mas não sei onde fica ou se de facto existe. Dizem que se esconde mais para o alto da serra. Conta-se que, há muito tempo, houve um menino que entrou lá e nunca mais foi visto. Encontraram o seu rebanho, porém do menino nem rasto.

«Serão certamente referências ao menino da nossa história.»

‒ Ao menino-pastor? Foi raptado por ladrões? Pensei que os grandes contavam essas coisas para nos intimidar e assim evitarmos a parte alta da montanha onde nos podemos perder ou cair de alguma escarpa.

«Haverá também esse intento. O pequeno pastor, como dizia, conhecia bastante bem esta parte da serra, todavia da cova dos ladrões nem indícios. Que era grande e utilizada pelos malfeitores, garantia-se, para aí se esconderem e ocultarem os seus tesouros, produto dos assaltos que faziam. Acometiam as aldeias vizinhas e sobretudo os viajantes que passavam na estrada do Preview

vale do Távora. Constava que era difícil de encontrar, escondida por penedias e matos altos, contudo o pastorinho conhecia tocas pequenas e grandes, abrigos e grutas, estranhando nunca ter encontrado sinais duma caverna que diziam ser enorme. Só pelo tamanho e características dos trilhos, conseguia saber o animal que habitualmente os usava, mas de ladrões e seus esconderijos nem rasto, nem gruta, nem qualquer outro indício. Tal como tu, começava a desconfiar que era invencionice para manter os pequenos pastores a resguardo de abruptos fraguedos e íngremes ravinas. Meio declinado para o incrédulo, praticamente tinha desistido de a procurar.

Certo dia ao pôr - do - sol, quando o menino - pastor se preparava para regressar a casa com os animais, vê ao longe uns vultos que desciam a encosta norte, aparentando vir das escarpas. Julgou ver três vultos. Devido à distância, não conseguia identificar o atalho que seguiam, parecendo provir duma zona de fragas e penedos. Mais por hábito de orientação que por propósito particular, anotou mentalmente pontos de referência: um penedo que se erguia acima do matagal e um pouco abaixo iniciava-se a orla de um pinhal onde os três vultos se embrenharam.

Embora fosse ainda cedo para as novenas de junho poderiam ser devotos mais temporãos. Mas não, pensando melhor, os vultos pareciam descer, não subir a montanha até ao Santuário situado na outra ombreira da serra.»

‒ Essa parte da serra não conheço, nem de ver ao longe, como dizes.

De facto, meus pais proibiam-me, de forma determinante, de me aventurar por essas partes da montanha. Em rigor, não devia ultrapassar os pastos do Cando que rematavam as faldas da serra. As minhas abaladas, vertente acima, depois de fechar o portal da tapada para as vacas não saírem, eram limitadas e clandestinas. Não compreendia esta proibição dos meus pais, sempre intransigente e inegociável, e não raro a minha insistência provocava a irritação da minha mãe. Esta

interdição apresentava-se tanto mais estranha quanto sabia não ser partilhada por guardadores da minha idade que amiúde se aventuravam pela Corga do Fojo arriba sem aparente oposição dos progenitores. E que tinham estes declives de particular para merecerem tal veto quando não havia reservas em relação aos sequeiros do Touro ou às matas do Paiva?

O corvo, com esta história dos ladrões, desvelava uma razão plausível para tal recusa; todavia, os veros fundamentos desse interdito só mais tarde me seriam revelados.

«Também o menino raramente ia com o seu rebanho para essa parte da serra, distante da aldeia e para lá dos seus limites. Mas o avistamento dos três vultos intrigou-o. Sem outro entretém, uma vaga curiosidade impeliu-o no dia seguinte para esse nicho da montanha.

Deixou o gado em pequeno e encaixado vale, guardado pelo seu fiel cão. O Patudo desesperou por segui-lo. Como adorava acompanhar o dono nas suas explorações, ou vadiar o seu farejo pelo rasto de animais selvagens que cruzavam bosques e prados! Não que tivesse grande sucesso; pesadão, as suas caçadas estavam como regra condenadas ao fracasso; era cão ovelheiro e não cão de caça; isso, no entanto, não retirava prazer a esse jogo de ancestral instinto. O menino acorria, por vezes, ao seu maticar triunfante para o encontrar em nervoso cirandar em torno de bem enovelado ouriço-cacheiro ou de cobra enroscada em mola, bufando assustada; coelho ou raposo logravam, invariavelmente, desaparecer em matagal mais denso ou em buraco entre amontoado de pedras. O Patudo sabia, porém, que a sua principal função era guardar o rebanho e, relutante e desconsolado, lá ficou de plantão.

Ágil e afeito ao acidentado da serra, o menino foi desembaraçado a alcançar a zona do avistamento do dia anterior; não queria deixar ao abandono por muito tempo o seu gado, mesmo estando entregue a um bom guardião como o Patudo. Não foi difícil encontrar o local. Lá estava o pinhal e, um pouco acima, destacava-se um penedo no meio de um

afloramento de rochas. Era o penedo que tinha identificado no dia anterior, com uma saliência que parecia um tosco nariz; não havia dúvida.

Percorreu em exploração ligeira o trilho pedonal, bem definido, que subia a montanha, ziguezagueando através da encosta, traçando uma diagonal para minimizar a obliquidade imposta pela íngreme vertente. Deveria ser esta vereda que, depois de dobrar o dorso da serra, desembocava próximo do miradouro jesuíta, a poente do Santuário, e que ele bem conhecia das sazonais romarias, iniciadas ainda no colo da mãe. Observou mais atentamente o carreiro junto à proximidade das falésias. Não encontrou atalho, ainda que pouco definido, que apontasse a direção das penedias, apenas alguns sendeiros em sentido oposto, descendente, servindo talvez alguns prados escondidos nos vales que se desprendiam da pendente norte. Não eram, porém, os vales que lhe interessavam, antes as partes mais íngremes e rochosas. Só estas ofereciam condições para a existência de grutas, geralmente formadas por grandes penedos sobrepostos ou aconchegados como namorados.

O avistamento fora fugaz, à distância, e não vira elemento que fundamentasse suspeição. Ao certo, nem ele sabia a razão de tal visão lhe trazer à lembrança as historietas sobre a cova dos ladrões que corriam pela aldeia. Talvez o desafio e a curiosidade pelas coisas da montanha.

Se desistir não era prescrição da sua índole, certo é que era tempo de voltar para junto do seu rebanho e as suas investigações teriam de prosseguir em dia próximo. Era um menino de copiosa imaginação que tecia com a realidade empolgantes momentos que preenchiam a sua solidão pelas ladeiras da serra. Perdido em devaneios, ora se imaginava ágil e possante como lobisomem ora dotado das asas e da velocidade da águia. Sim, asas! Explorar lá de cima a serra agreste e os verdes vales; e agora como seria oportuno deslizar, qual milhafre, por cima do matagal e dos rochedos, e ir bem junto dos penhascos para descobrir buracos e cavernas.

Uma dolorosa aguilhoada de espinheiro e o contínuo vergastar da áspera vegetação trouxeram-no a terra, obrigando-o a atentar em discretas gretas de mato que o conduzissem a salvo das ferroadas do tojo molar e de tufos de gilbardeira até ao improvisado redil onde o Patudo o deveria esperar com impaciência, se é que, também ele, não tinha sido arrastado pelo apelo da aventura.

Se é certo que esta primeira tentativa fora de todo infrutífera, isso não lhe trouxera esmorecimento nem sombra de desistência. Mesmo o insucesso dos dias seguintes, em que a continuação das buscas não acresceu qualquer indicador, não murchou a sua determinação e curiosidade. A procura, sabia-o por experiência, era muitas vezes mais aliciante que o achado.»

‒ Sinto-me como esse menino. Também gosto de vaguear de corpo e imaginação por esta encosta pejada de vida selvagem, o problema são as interdições dos meus pais. Mas voltando ao pequeno pastor, que procurava ele ao certo?

«Simplesmente procurava, sem saber bem o quê. Ele era assim. Não precisava de grandes pretextos para imaginar uma aventura. De imaginação fértil e irrequieta, transformava um simples evento numa façanha quase épica.

Alturas havia em que não se lembrava de gruta, nem de ladrões, muito menos de a procurar; não passava de vaga curiosidade alimentada pelos dizeres da aldeia e que a imaginação fértil das crianças ampliava. Era, todavia, um desafio latente; ele que julgava conhecer tão bem esta vertente da serra, para onde vinha desde os quatro ou cinco anos, acompanhando o pai, raramente a mãe, e há mais de um ano explorada por conta própria. No entanto, depois de avistar os vultos, a ideia da gruta tornou-se uma obsessão que nem ele sabia explicar. Não ia desistir facilmente.

E terceira vez, três consecutivos dias, veio com o seu rebanho para a serra. Tinha um empreendimento a cumprir. Deixou o gado no local habitual, no verde lenteiro cercado de mato espesso e silvados impenetráveis. Era uma cerca natural que

pegueiros foram completando ao longo do tempo acrescentando muretes de pedras e ramos. Com o cão por perto, treinado para manter os animais adunados, afoitava-se a ausências de horas. Era um risco, bem o sabia. Ovelha mais ladina podia encontrar saída e perder-se na serra. Ou passar pastor menos honesto que lhe surripiasse dois ou três borregos que misturava com a sua trupe e pôr-se ao fresco. Embora com pasto curto, por ser um local assaz visitado por rebanhos atraídos pela frescura da erva tenra, alimada pelas escorrências das embebidas encostas e pelo ar húmido que as frias madrugadas condensavam em fartas orvalhadas.

Concedeu apressada vistoria a todo o perímetro do cerrado e, célere e impaciente, dirigiu-se para o local onde tinha lobrigado as três figuras. O Patudo, mais uma vez, latiu em súplica, ganiu em lamento e ladrou em protesto, mas por lá ficou. Explorou atentamente o carreiro próximo das falésias esperançado que o chuvisco caído durante a noite facilitasse a impressão de pegadas. Ao descer para a parte inferior do caminho, mal tinha andado uns cem metros, encontrou marcas que pareciam saltos de bota. Metros abaixo confirmou: havia mesmo pegadas humanas. Nada de especial nisso; embora caminho com raros passantes, sempre havia algum que outro romeiro, mesmo fora de quadra de romagem, ou agricultor a velar o seu pinhal ou a certificar-se que o seu agro de centeio não recebia visita de coelho. As peugadas pareciam rumar ao vale, mas de onde provinham?»

‒ E o menino não tinha receio de ser apanhado pelos ladrões enquanto andava por ali sozinho na serra? ‒ Perguntava eu, apossado de estranha inquietação e indefinível receio sentindo-me reviver a aventura do pequeno pastor.

«Medo tinha, mas os ladrões, se o surpreendessem, não sabiam o que ele andava a fazer. Além do mais conhecia bem a serra, e, sendo pequeno e lesto, esfumar-se-ia facilmente no meio do mato alto, como codorniz em campo de trigo. Pelo menos era o que ele a si mesmo dizia para se assossegar.

O que não podia era ser apanhado desprevenido; assim, vigiava constantemente as redondezas e os carreiros que desembocavam no caminho principal.»

‒ Chegou a encontrar alguma pista que o levasse à gruta? ‒Insistia eu, tentando apressar o desfecho da narrativa, acossado por crescente impaciência e interesse.

«Pouco mais que aqueles calcanhares de bota. Estava para abandonar definitivamente a busca quando reparou numa extensa laje que começava junto ao caminho. Elevava-se deste cerca de meio metro e rompia o arvoredo em direção à falésia. Tinha a forma de um círculo irregular ladeado de silvas, codessos e giestas. No topo superior, ligeiramente para a direita, adivinhou um rasgão no mato, ao lado de uma grande giesta. Como é que descurara este lajedo se passou à frente dele quase uma dezena de vezes? Claro que na pedra, lavada das chuvas, não havia pegadas. Como confinava com o caminho era um bom acesso sem vegetação que apontava para a falésia. O desnível, se para as suas curtas pernas exigia um trepar com apoio de mãos, para adulto era de fácil trespor.

Correu para a promissão de vereda. E era mesmo um apertado carreiro que se enfiava mato dentro com manifestas evidências de serventia regular e recente. Apontava para a falésia ziguezagueando em torno de calhaus, silvados ou tufos de mato mais espesso.»

‒ Olha, corvo, tenho de ir para casa. A história está em ponto interessante, mas meu pai tem reclamado por eu me atrasar. É que as vacas aleitantes, a esta hora, já estão bem amojadas e começam a perder leite se não forem atempadamente mungidas.

CAVERNA NA FALÉSIA

«Olá, menino! Tardaste um pouco na tapada. Alguma vedação danificada?»

Ouvi o corvo perguntar. Eu suspeitava, porém, que ele já sabia a resposta. Bem reparara em corvídeo voando alto, em círculos, bem por cima de mim. Não estava certo de que fosse ele. Corvos, neste vale, era o que mais havia e, todos encasacados de negro, não havia como os distinguir. Ia, contudo, suspeitando que sabia muito mais de mim do que deixava transparecer. Ele bem dizia que apenas me seguia quando eu estava nas proximidades da montanha. Mas, com fundamento ou não, eu pressentia que me rondava mesmo quando eu estava no lado oposto da aldeia, no extremo da folha de baixo, nas várzeas da ribeira. Certo é que apenas se aproximava e me falava junto ao Penedo dos Corvos. Talvez este penedo tivesse algum sortilégio particular que facilitava a comunicação, magicava eu.

‒ Oh! Não ‒ respondi ‒. Lembrei-me de mirar o casal de gaios que fez ninho no carvalho da nascente. Da última vez que fui espreitar o ninho, há mais de uma semana, tinha cinco ovos. Agora tem quatro passarinhos, ainda só com penugem. Um dos ovos deve ter caído ou uma das crias nasceu mais frágil e os irmãos desfizeram-se dela empurrando-a para fora do ninho.

«Tenho reparado que gostas de andar aos ninhos. Espero que não os destruas.»

‒ De forma alguma. Gosto de observar a maneira como as aves fazem os ninhos, quantos ovos põem, o tempo de choco e, sobretudo, o crescimento das crias. Há colegas meus que vão aos ninhos para beberem os ovos. Eu nunca faço isso.

«No tempo do menino da nossa história a fome falava alto. Procurar ninhos para retirar os seus ovos era quase uma

necessidade para muitas crianças. Faziam um pequeno buraco e bebiam-nos logo ali.»

‒ Graças a Deus, não preciso disso; em minha casa não há fome; há sempre pão; meu pai diz que em casa onde há pão não há fome... Mas voltemos à tua história.

«O menino seguia sem dificuldade o trilho que parecia utilizado com alguma frequência pois estava claramente desimpedido, sem ramos atravessados e o estilhaçado de folhas secas no chão indicava um pisoteio recente. Pequenos ramos partidos a mais de um metro de altura davam um sinal claro de não ser simples passadouro de animais selvagens. O mato era mais alto que ele, apenas lhe concedendo uma nesga de céu e, pontualmente, os rochedos mais adiante. Tinha andado uns cem metros quando, ao contornar um denso silvado abraçado ao toro de um pinheiro que se sobrepunha ao matagal, vê uma laje que sobe até à base do penhasco que ele conhecia à distância. No extremo da laje, entre dois penedos da falésia, viu um buraco onde seria fácil um homem entrar.»

‒ Era a gruta!?

«Sim. A gruta! apeteceu-lhe gritar. E o primeiro impulso foi galgar célere o lajedo que o separava da abertura. A curiosidade e a impaciência impeliam-no a correr. A ir confirmar. Seria um insignificante e diminuto nicho ou antes a caverna dos seus sonhos, o covil dos ladrões grávido de objetos valiosos?

A ideia de malfeitores por perto impunha respeito, contudo. De mão dada com a curiosidade estava o medo. Eram precisas cautelas. Apressou-se a recuar e a agachar-se entre a vegetação. Tinha de avaliar melhor toda a envolvente e assegurar-se que não era observado. A laje, com uma ligeira curvatura para cada lado, tinha uma extensão não superior a dez metros até aos penedos onde se encontrava a cavidade. Se bem que a primeira metade do lajedo tivesse uma inclinação acentuada, ele conseguiria percorrer essa distância em segundos. Todavia, era terreno aberto, exposto a eventuais olhares de quem estivesse no interior ensombrado do buraco. Sentia-se excitado pela descoberta, mas

o sentimento de temor não era menor. Sozinho no meio da serra, o que poderia fazer se fosse surpreendido por bandidos? É certo que essa história da cova dos ladrões poderia não passar de mera ideação popular. No entanto, o carreiro denotava uso, sabia ler os sinais.

A certeza de ser o esconderijo dos ladrões crescia. Lembrou-se de corriqueirices recentes sobre assaltos na estrada do Távora e em algumas povoações que a ladeiam, como aconteceu, dias atrás, em Vila da Ponte. A sua pródiga imaginação logo o confrontou com ferozes salteadores que não hesitariam em raptá-lo ou mesmo matá-lo caso o apanhassem. O receio tolheu-lhe o ímpeto e fê-lo redobrar prudências.

Atentou em sons estranhos à serra que ele não identificasse com aves, insetos ou o restolhar do vento nos arbustos, em particular o farfalhar de vozes ou outras sonoridades indiciadoras de gente. Do vale chegava-lhe o longínquo cucuritar de cuco. Da parte mais alta da serra, gritos desgarrados de corvos ou milhafres. Daqui e dali um esporádico ruflar de asas de voo rasante de ave. A algazarra de fundo era garantida pelas cigarras. Nenhum som fora do normal chegava até ele, muito menos dos lados da presumida gruta de onde apenas se desprendia sossego e silêncio.

Avaliou a situação: se em vez de atravessar o abaulado lanchal em linha reta, seguisse pela sua borda tinha menos exposição e o ângulo de visão do interior da gruta, caso aí estivesse alguém, era limitado. Contornou a laje a coberto da vegetação. Avançou aproveitando a fímbria umbrosa junto à falésia. Analisou a densidade do mato e eventuais caminhos de fuga. Precisamente do lado da aldeia, havia uma espécie de galeria em magote de giestas, cujos ramos pendiam com o peso de perfumadas maias. Era um possível caminho de escape para rapidamente se embrenhar no meio do matagal. Aí seria fácil esconder-se, e uma criança tem vantagem sobre um adulto correndo por entre arbustos, e a fuga seria na direção do rebanho e de terreno bem seu conhecido, e lá tinha o seu fiel cão, um cão possante, por quem podia gritar para o ajudar a defender-se… Preview

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