MAFALDA SILVA PEREIRA
A Vida das Almas
“É extraordinário”, pensava, “como uma simples transformação de estado nos dá tanta liberdade e nada é como pensávamos antes de chegar até aqui. Todos pensamos, enquanto vivos, que um jazigo é um sítio onde a nossa liberdade acaba e afinal é onde ela, de facto, começa.”
MAFALDA SILVA PEREIRA
A VIDA DAS ALMAS
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:
Mafalda Silva Pereira TÍTULO: A Vida das Almas AUTOR: Mafalda Silva Pereira CAPA E PAGINAÇÃO:
Paulo Silva Resende
1.ª EDIÇÃO Lisboa, Março 2012 IMPRESSÃO E ACABAMENTO: ISBN:
Publidisa
978-989-20-2594-0 331118/11
DEPÓSITO LEGAL:
© MAFALDA SILVA PEREIRA PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, lote 2, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt
A meu Pai
“A vida não passa de uma oportunidade de encontros: só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace.” Victor Hugo
A VIDA DAS ALMAS
q Na rua 2 do cemitério há encontros marcados matinalmente. As almas mais madrugadoras juntam-se à porta de José para combinar o dia. Com o seu espírito organizador e sempre ávido de comunicar os seus sonhos e as suas constatações reunia sempre um grande grupo de amigos que o ouviam entusiasmados. Seguiam para o lado sul onde a vista sobre a cidade e o rio era a mais bonita. Fora em vida um esteta e agora na sua nova vida continuava a apreciar os lugares bonitos e que lhe davam um descanso interior. Antes de sair, a sua mãe Alice, que há tantos anos não podia comunicar verbalmente com ele, com os seus anos de avanço e por isso com mais experiência, recomendava-lhe com o carinho de uma mãe de filho único que não apanhasse muito sol, pois o sol estava tão estranho que até às almas fazia mal.
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Ficava espantado consigo mesmo, pois durante a sua vida não gostava muito de conselhos e como alma agradecia e apreciava as angústias da sua mãe. Pensava para si que o ter percorrido grande parte da sua vida, sem a presença dela, o tinha feito perceber que as palavras de mãe são sagradas. Nesta vida como alma já não precisava de se mostrar homem. Já o era definitivamente, por isso, as emoções tantas vezes guardadas, para não mostrar fraqueza ou o seu lado feminino, que todos os homens repudiam, saíam duma forma espontânea e eram aceites por si. Que libertação sentia quando pensava que agora podia ser verdadeiramente aquilo que era. Dizia muitas vezes aos amigos: – Agora até posso chorar pois todos vocês me compreendem e não me julgam por isso. “É extraordinário”, pensava, “como uma simples transformação de estado nos dá tanta liberdade e nada é como pensávamos antes de chegar até aqui. Todos pensamos, enquanto vivos, que um jazigo é um sítio onde a nossa liberdade acaba e afinal é onde ela, de facto, começa. As únicas limitações neste estado são as memórias de coisas mal resolvidas e de erros que não fomos capazes de ultrapassar, ou que com os quais não conseguimos aprender e, por isso, melhorar. São só essas as preocupações que nos atormentam neste novo estado.” “A casa onde nos encontramos agora é nossa para a eternidade, e as despesas são por conta dos vivos. Ah, ah, ah!” |
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Ria e dizia: – Agora a responsabilidade é deles. São eles que pagam por mim! Como sempre teve uma relação um pouco estranha com o dinheiro, que feliz se sentia por o mesmo já não fazer sentido nesta nova vida.
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As reuniões começavam sempre com as preocupações dos mais novos. Chegaram há pouco tempo e não sabiam bem como encarar os seus novos problemas, a sua nova condição, a sua liberdade. José, sempre disposto a ajudar, e como a sua capacidade de liderança era grande, propunha-se sempre a ser o primeiro a falar e a conduzir a ordem de trabalhos. O seu pai, António, a uma certa distância assistia duma forma um pouco desconfiada às palavras que o seu filho proferia. A Esmeralda amiga sincera de sempre, desta e da outra vida, também se encontrava na reunião. O tema do dia era o que não aprenderam na vida passada. A reunião, cada vez mais concorrida, começava. José saudava com um bom dia todos os presentes e começava a sua palestra. |
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Com a sua voz forte e decidida fazia com que as almas mais distraídas ficassem atentas. – A minha maior fraqueza – dizia – foi conter-me sempre e dar uma imagem dura de mim mesmo. Nunca consegui partir essa barreira e mostrar o meu lado carinhoso e compreensivo. Temia que me chamassem fraco. O silêncio era cada vez maior, pois a maioria sentia que padecia do mesmo mal. A Esmeralda que sempre o defendeu e talvez por estar eternamente apaixonada por ele, pede a palavra a José e diz: – Era uma educação era uma forma de estar que ensinaram aos homens da tua idade. – Até concordo – respondia José – mas neste mundo sentimos que perdemos muito ao ser assim. Esmeralda pensa na sua vida e sente que também perdeu algumas emoções, por agir em certos momentos da mesma forma. Manuel que tinha sido seu chauffer, e que o tinha conhecido desde pequeno, pede também a palavra e diz: – José, tantas vezes senti isso, tantas vezes lho quis dizer, mas a minha condição de seu empregado sempre mo impediu. Hoje, penso que isso também era uma falha da minha parte mostrando uma certa cobardia, que só agora vejo como era ridícula. Nessa outra nossa vida há preconceitos que nos limitam e deixamos coisas importantes por dizer só por uma ridícula |
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condição. Nesta sabemos que a condição não existe, que somos todos iguais, e é por isso que é maravilhoso chegarmos aqui. Manuela sempre bonita e coquete logo de manhã pede a palavra. José sempre apreciou e aprecia a beleza feminina. Foi uma coisa que sempre o motivou. Sorriu logo e dá-lhe a palavra. – Diz, Manuela, o que achas sobre este assunto. Manuela que foi muito amada mas cedo ficou viúva, diz: – Também sinto que de facto muitas vezes guardei emoções, mas tu com as mulheres sempre foste muito charmoso… Todas achávamos que tu tinhas uma forte emoção escondida, e a verdade é que muitas felizardas a conheceram. Apesar da sua nova condição de alma sentiu um certo calor a vir-lhe a face. Era uma espécie de vergonha aliada a um certo prazer ainda guardado da outra vida e reconhece publicamente que a Manuela tinha razão. – É verdade – diz José – amei muito, e muitas vezes. Tive grandes paixões e houve momentos em que quebrei as minhas paredes. Felizmente que o consegui. Assim a minha pena é mais leve, se é que aqui existem penas. – É claro que existem – respondem todos – mas em conjunto vamos ultrapassá-las. A manhã já ia alta e não é que se tratasse de refeições, mas havia intervalos que se tinham que respeitar, pois o cansaço nesta forma é maior. Voltava-se à prateleira e ao silêncio. |
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Era um vazio acolhedor. Dava para ouvir o nosso cérebro em toda a sua dimensão. Distinguia-se todos os sentidos, todos os medos, todos os sentimentos duma forma nunca antes experimentada. Era um verdadeiro desafio a nós próprios. A singeleza que os rodeava, a falta de distracções, como os objectos queridos e apreciados na outra vida, a impossibilidade de voltar a vê-los dava-lhes uma espécie de força, de imaginação e de paz. Imaginavam nestes intervalos tudo o que mais os tinha marcado. Os cavalos, o mar, as serras, as pessoas. A serra que mais o tinha marcado era a serra de Sintra. Era a que lhe trazia melhores recordações. Passeios, contemplações, amores, e até alguns momentos de pânico quando lhe vinha à memória o grande incêndio que a sua querida serra sofreu. Neste estado, algumas das almas já não se lembravam de bens materiais que tinham possuído. Eles não lhes davam nenhum prazer. A evolução das suas consciências era cada vez mais elevada e por isso nada do que tinham possuído através de dinheiro era importante. A grande importância era dar de facto valor às emoções que sentiam ao imaginarem-se outra vez a sentir os cheiros, a beleza, a natureza e as pessoas amadas. Como se sentiam estúpidos quando lhes vinha à memória o esforço titânico que alguns tinham feito para conseguir bens materiais. Como se sentiam tristes consigo mesmos por esse |
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esforço não ter sido empregue em amor ou simplesmente em sentir mais, em apreciar mais! Estava José envolto nestes pensamentos quando recebe a visita duma tia querida, a tia que na outra vida por diversas circunstâncias tinha abandonado um pouco. – Olá, tia Isabel, então o que a traz por aqui? – Olha filho, vim agora de Oeiras. Fui visitar o teu pai. Contou-me muito satisfeito que tinha assistido hoje de manhã a uma palestra tua. – Não me diga, tia, eu não o vi. – Ele estava um pouco distante. Sabes, ele ainda tem um certo medo de te aparecer. José ficou pensativo. Na realidade na sua vida anterior nunca tinha percebido o seu pai, e essa falta de entendimento fazia-o sentir hoje uma amargura que tinha que rapidamente ultrapassar. – Pois é, tia, não o vi, mas agrada-me que ele tenha estado a ouvir-me. – Filho, tens que te encontrar com ele, tens que resolver as mágoas que lhe provocaste. Sua mãe, devido à proximidade dos jazigos, não pode deixar de ouvir a conversa e, no seu silêncio, pensou que de facto era preciso ajudar o José a resolver esta sua fraqueza. Tinha a |
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noção que tinha contribuído, e que ela própria também precisava de se libertar. – É verdade tia, tem razão, mas é preciso tempo, e aqui como sabe o tempo não nos falta. O tempo aqui é eterno. A tia despediu-se, e foi visitar Alice. Já não se viam há bastante tempo. No curto caminho que tinha que percorrer sentiu uma sensação de paz. Sentiu que o medo que tinha do seu sobrinho se tinha apagado. Sentiu-o flexível e compreensivo. Que bom que é estarmos nesta forma de vida, pensou. “Não há medos em comunicar, não há famílias a impedir, não há causas perdidas; há reencontros e o tempo que nos separou fez com que os muros criados na outra vida caíssem como por milagre.” Sorriu e foi conversar com a sua amiga Alice.
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José continuou no seu descanso, e no seu pensamento a imagem de seu pai começou duma certa forma a ser alterada. Começou a lembrar-se de momentos bons passados com o pai. Os menos bons ganharam uma dimensão tão pequena que pareciam agora ridículos. Como ele era bondoso, amigo e culto. Como é que sem muitas possibilidades materiais ti|
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nha conseguido viajar, ir às suas óperas tão amadas, aos seus concertos de música. Como a música lhe dava uma alegria de viver, tantas vezes incompreendida por José. Ao sentir pela primeira vez tudo isto, percebeu que o seu pai lhe deu, na outra vida, uma grande lição que nessa consciência nunca quis aprender. Até agora, por exemplo, nunca se tinha apercebido que o seu gosto pela música vinha da sua infância quando seu pai o fazia ouvir áreas de ópera e o levava aos concertos. Sentiu amor, sentiu paz, sentiu vontade de procurar o seu pai. Nesta nova forma de vida como são livres os sentimentos de todas as condicionantes. Quando se sentem são tão intensos que dão um enorme prazer.
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Já a tarde ia alta quando José se levantou para um passeio. A luz do fim do dia era muito especial. Nesta condição era muito apreciada por todos. Era a luz que precedia o anoitecer e apesar de a noite ser sempre de paz e de significar altas conversas à luz das estrelas, a luz do entardecer, tinha um especial encanto. Trazia boas memórias. Lembrava o fim do dia e das |
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preocupações de outras vidas. Isso significava nas consciências o fim do trabalho, o chegar a casa, o reencontro com o nosso espaço ou com a família. Lembrava-lhes ainda ternuras, sabores, cheiros, bons vinhos, bons jantares com pratos de peixe ou de carne, sopas, sobremesas e grandes conversas interrompidas por risos de crianças, colos e abraços. Reuniam-se todos para ver o pôr-do-sol com as suas memórias. Era muitas vezes um encontro em silêncio, e apesar de José, que tinha sempre a palavra na ponta da língua, geralmente o quebrar, neste fim de tarde, depois da conversa com a sua tia e da forte lição que tinha aprendido, não o fez. Pensava em todas as razões que o tinham feito agir assim na outra vida e achava-as mesquinhas e sem sentido. Não era um sentimento de perda, era mais uma vontade de não repetir nesta vida os erros do passado.
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O avô Domingos que na sua outra vida tinha sido tão importante na formação de José, continuava a ser nesta. Era o seu companheiro das noites e muitas vezes dos seus dias. Voltaram a conversar sobre as coisas que os dois na outra vida tinham transmitido um ao outro. O gosto pelas antiguidades, a admi|
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ração pela honestidade e pelos negócios, o prazer dos passeios nos jardins da quinta de Algés, pelos caminhos de saibro com buxos que formavam um pequeno labirinto, onde José jogava às escondidas com os amigos, das rosas que tinham um cheiro intenso, das trepadeiras de jasmins, e da vista deslumbrante para o Tejo. José sempre se fascinou por aquela figura austera. Nesta vida falavam da dor que lhes tinha provocado a separação estúpida um do outro por actos de orgulho. Como lhes parecia menor esse sentimento daquela época. Como parecia ridículo o julgamento e a forma de estar, que os tinha levado a uma separação tão dura. Juntos têm agora aprendido a eliminar tudo o que os magoou e estão cada vez mais próximos. A noite já ia alta, e um pouco fresca e por isso não houve reunião.
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No dia seguinte todos acordam com um burburinho. José que raramente era o último a aparecer, fica intrigado com o que se estaria a passar. Vai ao encontro de todos que já o esperavam e apercebe-se da razão de tanta agitação. Os mais madrugadores daquela manhã tinham encontrado um grande |
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letreiro, que tinha sido posto com certeza a altas horas de madrugada, pois ninguém tinha dado por isso, que dizia: “Amar faz bem à saúde”. José ficou perplexo e em tom de ironia pede a palavra e diz: – Não há dúvida que estes tipos não têm mesmo a noção da realidade, são mesmo humanos, então eles não sabem que nos agora somos a própria saúde? Então eles não sabem que agora não precisamos de nenhum remédio para sermos saudáveis e que por isso anúncios destes para nós, são dispensáveis? – Ora vejamos – continua José – na nossa outra vida é que tínhamos medo das doenças, nesta já não há doenças que nos matem… A doença é um peso do passado que nada tem a ver connosco agora. Tal como o stress, tal como a dor, tal como tantas outras coisas que estupidamente nos atormentaram e nos deram cabo da dita saúde. Aplausos. A Maria Pia que na outra vida tanto se tinha preocupado com a sua saúde, percebeu o alívio que esta forma de vida lhe dava. A Agustina faz uma pergunta: – Então e amar, continua a fazer-nos bem? Ficam todos um pouco pensativos e o tema matinal é lançado à apreciação de todos. Todos os que na outra vida tinham amado muito e se dado aos outros duma forma desinteressada |
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e verdadeira, como era o caso da Agustina, afirmaram: o amor é sempre a nossa salvação. – Salvação? – perguntam vários. – Mas nós já não temos salvação possível! Agustina então diz: – Todos os que souberam o que era amar sentiram sempre a compensação e os que não souberam sentiram sempre um amargo na sua vida. Quando amamos de verdade é fácil continuar a amar. Os que na outra vida não o fizeram seriamente e duma forma desprendida, têm que aprender agora. Silêncio geral. Eram muito sérias e sábias as suas palavras. Amar é de facto a coisa mais importante de qualquer forma de vida. Todos se dispersaram com a palavra amor na cabeça e com a dúvida se tinham realmente amado seriamente. Camilo Castelo Branco que tanto tinha escrito sobre o amor nos seus livros, e num tão especial para si, chamado Amor de Perdição, até ele se interrogou. “Amei de facto, ou foi uma espécie de doença? Amar será assim, ou amar será respeitar a decisão do outro e aceitá-la?” José que foi um “pinga-amor”, também ficou a pensar qual dos seus vários amores tinha amado desta forma. “Amar de facto é uma transformação, tudo nos parece bonito, bom, perfeito. Não encontramos defeitos. É uma espécie duma poção mágica que nos atordoa e com ela pintamos de cor de rosa, encarnado, amarelo, e de todas a cores da paleta a nossa |
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vida e por magia, emolduramo-nos dentro duma tela, onde só desenhamos duas pessoas que a preenchem na totalidade, e por isso, o resto não existe! Aqui, nesta forma, aprendíamos que muitas vezes nos enganamos, que muitas vezes escolhemos a pessoa errada, mas não culpávamos, nem julgávamos ninguém. Tudo aquilo que trouxemos para a nossa vida tinha sido fundamental para a nossa aprendizagem. As pedras encontradas, eram só formas de crescer, de aprender e de libertação. Que lucidez, e que paz nos dava esta forma de estar. “Enchia a nossa alma de bem estar e de agradecimento, por agora nos sentirmos assim.”
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Os passeios estavam cobertos de ciprestes – como eram protectores, e como nos davam a sensação da fortaleza, e da verticalidade. José que sempre foi um apreciador da natureza, gostava de percorrer as alamedas, sentir o cheiro que os ciprestes emanavam e da forma como a sua sombra era projectada no chão. Pensava também durante o seu passeio, como os julgamentos, as críticas, eram de gente pequena. |
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