A Eutanรกsia Descodificada Um Guia para o debate/referendo
Edição: edições Parténon® Título: A Eutanásia Descodificada | Um Guia para o debate/referendo Autor: Gilberto Couto Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 1.ª edição Lisboa, junho de 2016 ISBN: 978-989-8845-00-9 Depósito legal: 409495/16 © 2016, direitos reservados para Gilberto Couto PUBLICAÇÃO:
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O autor escreve de acordo com a antiga ortografia
Gilberto Couto
A Eutanรกsia Descodificada Um Guia para o debate/referendo
… a vida não é um bem que se deva conservar a todo o custo: o que importa não é estar vivo, mas sim viver uma vida digna! Por isso mesmo, o sábio prolongará a sua vida enquanto dever, não enquanto puder. […] Morrer mais cedo, morrer mais tarde é questão irrelevante; relevante é, sim, saber se se morre com dignidade ou sem ela, pois morrer com dignidade significa escapar ao perigo de viver sem ela! Séneca Cartas a Lucílio
Desacreditar os ditames da razão equivale a condenar os mandamentos de Deus. São Tomás de Aquino Suma Teológica
It’s not my job to tell her how to live, and it’s not my job to tell her how to die. (…) It’s my job to love her through it. Mãe de Brittany Maynard, 29 anos, que recorreu à «morte assistida» a 1/11/2014, no Oregon
Índice
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 I. Definições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 II. Matar e suicidar? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 III. Breves apontamentos sobre a vida, o sofrimento, o mal e a morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 IV. Condições do pedido de morte assistida . . . . . . . . . . . 33 V. Razões éticas contra e a favor da MA: generalidades . . . . . . 37 VI. A «doutrina da santidade da vida» . . . . . . . . . . . . . . 47 VII. Excurso 1. Confronto de princípios: algumas notas . . . . . 59 VIII. O argumento dos cuidados paliativos . . . . . . . . . . . 63 IX. Deixar morrer ou ajudar a morrer . . . . . . . . . . . . . . 67 X. A teoria do duplo efeito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 XI. O argumento da encosta escorregadia ou da derrapagem . . . . 75 XII. Excurso 2. Um ponto de situação prático . . . . . . . . . . 79 XIII. A falácia da autoridade (Juramento de Hipócrates) . . . . . 83 XIV. A situação legal sobre MA no mundo . . . . . . . . . . . . 89 XV. A situação em Portugal. O testamento vital . . . . . . . . . 93 XVI. Comentários finais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103 Leituras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
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Prefácio
A morte toca-nos a todos. É preciso educar para ela; pensar nela, sem tabus, como parte integrante das nossas vidas. Um dia ela virá, espera-se que só depois de uma vida longa e feliz. Como uma vela que se apaga, sem dor nem sobressaltos, a nossa vida esvair-se-á. Muitos de nós recebê-la-ão em paz, como certamente viveram as suas vidas, e verão nela o esperado «eterno descanso», não numa adesão sem raiva, claro, pois a nossa natureza é ser contrária à finitude, mas numa entrega resignada, necessária. Pior do que morrer pode ser o processo de morte. Temos que falar nele, prepará-lo, pois custar-nos-á menos se não nos apanhar desprevenidos. Neste pequeno livro fala-se de morte mas, sobretudo, das opções que poderemos vir a enfrentar quando num processo de morte sob «sofrimento intolerável». Urge tornar acessível, a todos quantos dela precisarem, uma rede de cuidados continuados e paliativos de elevada qualidade. Idealmente no domicílio do doente, voltando a humanizar um processo degradado pelo medo da morte e que empurrou os que amamos, nos seus últimos dias, para uma solidão entre desconhecidos e indiferentes, tantas vezes no corredor de um hospital. Os que puderem e quiserem terão os melhores cuidados paliativos numa sociedade melhorada, mas os que não os quiserem – ou tendo-os, recusarem continuar numa tortura ou artificialidade sem sentido –, te-
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rão eles direito a escolher ser ajudados a morrer? A questão é importante, porque ninguém pode dizer que não lhe será alguma vez colocada, e porque a resposta mostrará – ou não – em que medida fomos autores da nossa morte, como o fomos da nossa vida.
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I
Definições
Numa «definição breve de morte assistida: trata-se da antecipação voluntária da morte em casos clínicos extremamente graves, irreversíveis, e no respeito de todas as salvaguardas existentes nas leis despenalizadoras. Pode revestir-se de duas formas – a auto e a hetero-administrada –, habitualmente designadas de “suicídio (medicamente) assistido [SA]” e “eutanásia” [EVA]»1. Logo aqui começam as querelas entre os que são “contra” este direito de escolher como morrer e os que são “a favor” dele. Os primeiros intitulam-se, orgulhosamente, como pró-vida; os segundos, respondendo que também são pró-vida (porque os doentes em causa não amam menos a sua vida que os outros), também se têm intitulado, mais benignamente, como pró-escolha. Os que são “contra”, dizem que toda a morte é, em geral, assistida por alguém, recusando ainda os termos de suave, pacífica, livre, misericordiosa ou com dignidade, que os “a favor” usam. Porque, em geral, toda a morte é assistida, dizem, embora seja falso, pois muitos doentes morrem sós, num canto ou corredor do hospital, perante a indiferença de funcionários que lhes são desconhecidos e que por ali passam, e a qualidade e o acesso aos 1
Cf. Santos, 2015, p. 27.
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cuidados paliativos são ainda maus, em Portugal. Além disso, os “contra” gostam dos termos «suicídio» e «eutanásia», pela conotação forte e negativa que têm, tal como preferem usar os termos «matar» e «assassinar» o doente. Os “a favor”, como se viu no primeiro parágrafo, acham preferível a designação de «morte assistida» (MA), encurtando o termo “morte voluntária assistida” ou “ajuda ao morrer a pedido”. Não há termos ideais ou moralmente neutros. A eutanásia (“boa morte”) popularizou-se como sinónimo de um médico (ou outra pessoa) que ajuda um doente a morrer, apesar de ser um termo de má memória por ter sido usado pelos nazis como eufemismo dos assassínios por eles perpetrados. Mesmo assim, pode-se aprofundar ainda mais essa designação e juntar-lhe uma série de qualificativos (em desuso) importantes de conhecer:
Eutanásia voluntária activa (EVA) É sobre esta “eutanásia” que falarei neste pequeno livro; ela pressupõe, como referido, que o doente pede para morrer, o médico acede e ajuda-o a morrer, por motivos compassivos e atendíveis legalmente e porque, em geral, o doente não consegue ou não é capaz de se suicidar.
Eutanásia (voluntária ou não) passiva Neste caso, o doente recusa um tratamento que lhe poderá ser vital ou os médicos suspendem ou não o iniciam sequer (“deixam morrer”), de acordo com o doente e/ou familia e/ou colegialmente – nos dois últimos casos se o doente estiver inconsciente –, um tratamento que consideram inútil ou fútil ou desproporcionado em termos da avaliação que fazem das suas vantagens/desvantagens. Esta forma de eutanásia é ética/deontológica e politicamente consentida, apesar de, só para complicar um pouco, o doente poder não ter dado
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qualquer indicação sobre o seu desejo (numa “directiva antecipada de vontade” – DAV – ou, vulgo, testamento vital) e poder não ser claro o prognóstico do doente. Os “contra” (a MA) não gostam de lhe chamar eutanásia passiva porque dizem não se tratar de uma eutanásia: os médicos deixam apenas a natureza actuar e o doente morre da sua doença e não por uma morte infligida (auto- ou hetero-, pelo seu médico, a pedido). O problema é que esta eutanásia pode ser mais grave moralmente, conquanto seja feita sem o consentimento do doente. Os “contra” preferem dizer que se tratou de uma limitação do «esforço terapêutico» (também conhecido como obstinação ou encarniçamento terapêuticos) ou distanásia. Nesta fase ficam aqui, desde já, duas reflexões: 1. Aos doentes em estado vegetativo persistente (têm uma variável autonomia funcional, no sentido fisiológico, mas terão perdido – pelo menos – as funções nervosas superiores ou a capacidade de autocons ciência2), durante anos, tem sido vedado – ou seriamente complicado – o acesso à terminação da vida a pedido dos que lhe são mais próximos, na ausência de uma DAV. Mesmo com recurso à suspensão de tratamentos ou cuidados. Em alguns doentes ventilados em coma irreversível (situação algo semelhante à anterior) torna-se muito complicado fazer com que o médico desligue o ventilador. Ainda que tenham uma DAV, ou nomeado um procurador, que “peça” para que o doente seja “desligado da máquina”. Isto porque, alguns dos países que legislaram e implementaram as DAV (como já acontece connosco desde 2012 e 2014, respectivamente), não as tornaram vinculativas, ou de cumprimento obrigatório pelos médicos, se preferirem. Portanto, em alguns casos, o desejo dos doentes pode não 2 Esta é, ainda, uma questão discutível, pois alguns doentes podem estar conscientes mas impedidos de comunicar (síndrome locked-in).
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ser respeitado. E há um conflito entre Estado, médicos e familiares sobre se o doente em questão é ou não sujeito a um prolongamento indevido da sua vida; como se viu, a distanásia é um pecado médico frequente, uma espécie de resiliência de «curadores feridos»3, apesar de eticamente reprovável e criticada pelo código deontológico dos médicos. A Igreja (a ordem dos médicos e o CNECV4) não considera legítima a suspensão de tratamentos e/ou cuidados nestes doentes, a menos que a isso obriguem as suas DAV (agora implementadas). 2. A recusa de tratamento por parte do doente é inatacável ética e legalmente, ainda que se saiba que ele vai morrer. É o que acontece nos tristemente célebres casos de crentes de certas seitas que sangram de uma úlcera benigna e recusam ser transfundidos e morrem, aos 20, 30 ou 40 anos. Trata-se de um suicídio com a conivência dos médicos e do Estado, que não parecem ter quaisquer problemas de consciência, nesse caso, em invocar o “sagrado” princípio da autonomia do doente. Tudo bem. Aqui reconhece-se que o doente é quem manda, mesmo se as razões são incompreensíveis, mas os médicos respeitam a decisão do doente e não o abandonam até ao fim, dando-lhe conforto até morrer – apesar do dissentimento (não consentimento) em socorrer-se de uma medida que lhe salvaria a vida. Levado às últimas consequências, o argumento da «santidade» da vida, não devia permitir que um doente recusasse um tratamento vital (para todos os efeitos equivalente a “escolher morrer”). Aqui é notório o conflito entre o respeito pela autonomia do doente (competente) e o «princípio da inviolabilidade da vida». Se os moralistas tradicionais fossem coerentes, considerariam que o Estado devia agir contra a vontade do doente, no sentido de protegê-lo de si próprio, recorrendo ao equivaTermo de H. G. Gadamer, para explicar a não conformação médica pelo facto de a morte não poder ser vencida. 4 Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. 3
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lente a um “internamento compulsivo”; e a Igreja devia considerar tal acto do doente como equivalente ao pecado do suicídio.
Eutanásia indirecta Esta designação de eutanásia está em desuso. Refere-se à morte de um doente em consequência de um tratamento paliativo, por exemplo, morfina em altas doses para controlar a dor (“teoria ou princípio ou doutrina do duplo efeito”, a que voltarei). Pode considerar-se uma variante da eutanásia passiva, quanto mais não seja porque se alberga sob o “guarda-chuva” de que a morte não era o objectivo primeiro do médico, antes tratar a dor, e de que é uma prática consensual ética e legalmente. Os “contra” (a MA) não gostam de se lhe referir como uma forma de eutanásia mas antes com o termo referido, muito mais eufemístico, de “duplo efeito” ou, mesmo, de “sedação paliativa” (não admitem sequer o uso, pelos que são “a favor”, do termo de sedação terminal, para que não haja confusões sobre as reais intenções dos médicos dos cuidados paliativos, que não matam mas cuidam da dor do seu doente, ainda que ele morra).
Eutanásia não voluntária Esta designação pressupõe que o ser humano (atente-se à mudança do agente) não tenha dado o seu consentimento para morrer mas que também não fosse de algum modo capaz de o fazer, ou porque (segundo alguns teóricos do assunto) não é sequer uma pessoa racional (redundância propositada) ou não está consciente. Dito isto, refiro-me aos casos problemáticos do embrião/feto, no caso do aborto (que não é designado eutanásia); e aos casos de pessoas que não têm ou perderam a competência e/ou a consciência para decidirem sobre os seus assuntos, nomeadamente, poderem escolher morrer. São exemplos, alguns deficientes profundos, doentes com
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doença de Alzheimer avançada e casos de “comas irreversíveis” (incluindo os casos, mais complexos, de síndrome locked-in). Este livro não se dedica a estes casos, que requerem um outro livro e são muito mais controversos. A situação a que me vou dedicar, da eutanásia (voluntária activa), é muito mais simples do que essas outras questões, incluindo a do aborto, na minha opinião. Desde logo porque a eutanásia pressupõe que estamos a lidar com pessoas conscientes, livres e competentes. Dito isto, é importante sublinhar que a maioria dos médicos que alivia o sofrimento dos seus doentes terminais, ou retira um doente com uma situação irreversível do ventilador, sedando-os “terminalmente” – para que não gemam de dor ou sufoquem nos seus últimos minutos de vida –, seriam uns assassinos nos termos dos “contra” se não dissimulassem a sua intenção e revelassem espanto pelo facto de o doente ter… morrido. Se assim não fosse teriam praticado uma eutanásia não voluntária ou, se o doente ainda balbuciasse um «bom dia» antes de morrer, provavelmente, uma eutanásia involuntária.
“Suicídio” (medicamente) assistido (SA) O suicídio está descriminalizado na lei portuguesa. Quem leu A Peste, de Camus, lembra-se de Cottard, um dos personagens que é “acompanhado” de perto pelo médico e pelo polícia da aldeia depois de uma tentativa de suicídio. Lembramo-nos da condenação ao inferno, ainda na terra, movida pela Igreja aos que se suicidavam, proibindo-lhes a inumação em terreno sagrado e que se rezassem missas por eles. Hoje isto parece-nos estranho, sobretudo porque o suicídio (dito racional, não o impulsivo, mais vezes associado à depressão) foi descriminalizado na maior parte dos países ocidentais. Por isso se compreende (?) que militantes de certas seitas se suicidem exangues em nome da sua religião mas, simultaneamente, tratam-se o melhor possível os deprimidos e os desesperados (e bem), para evitar que eles venham a cometer suicídio.
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Em alguns países (Suíça) e Estados norte-americanos a lei permite apenas o suicídio assistido, por um médico ou não, desde que seja o doente a tomar ele próprio a medicação letal. Isto por se julgar que este acto conflitua menos com as pretensões dos médicos e dos doentes e da sociedade. Não deixa de ser curioso que, segundo inquéritos realizados nos Estados Unidos, a maioria da população seja favorável à MA e não distinga entre SA e EVA; ao contrário dos médicos, que são contra a MA mas, dentro desta, mais favoráveis ao SA (porque os “põe fora” do problema)5. O médico é uma figura pivô em todo este processo, quanto mais não seja porque é chamado a validar, de algum modo, as razões do doente, e a prescrever a medicação, muitas vezes tomada sozinho e clandestinamente, na solidão do seu quarto6. Alguns defendem que o termo “medicamente” deve ser guardado para situações em que o médico também está presente no momento da morte. Os que estão “a favor” (da MA), não aceitam o termo “suicídio”, como veremos a seguir. Apesar de imperfeitas e polissémicas, o facto é que as designações de eutanásia (no sentido que virei aqui tratar, de voluntária activa) e de “suicídio” (medicamente) assistido, podem bem ser agregados na designação genérica proposta por Laura Ferreira dos Santos, com que começámos este capítulo, isto é, de «morte assistida».
«Sofrimento intolerável» É frequente dizer-se que o doente que pede a MA se encontra em «sofrimento intolerável», a que se segue uma cerrada disputa sobre o que é isto e que capacidades existem de o anular totalmente ou não. Cf. Emanuel, p. 7. Veja-se o famoso relato do Dr. Quill sobre o SA da sua doente Diane, N Eng J Med 1991; 324:691. 5 6
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Não é difícil definir o sofrimento intolerável, nem é verdade que todo o sofrimento seja tratável, como insistem os fervorosos adeptos dos cuidados paliativos (também eu não escaparei a usar alguma linguagem tendenciosa). O sofrimento não é, nem nunca será, algo objectivável. É o doente quem no-lo diz, pelo que dele captamos apenas uma impressão, pois trata-se de uma experiência pessoal e intransmissível. É mais do que uma dor ou outro sintoma físico ou psicológico, é uma dependência, uma indignidade, um sofrimento existencial (uma falta de sentido), é tudo isto e nada disto, uma vez que o doente pode não saber sequer o que o faz sofrer. As leis existentes exigem a consulta por mais do que um médico, a exclusão de problemas mentais, o esgotamento dos cuidados possíveis (e queridos pelo doente), entre outras medidas, precisamente para garantir que o pedido de eutanásia não é uma precipitação. Quem é “contra”, fala da pressão que o doente sente, por parte da familia e da sociedade, e de quanto a doença pode cercear o discernimento, mas tendem a olhar o doente como se fosse sempre incompetente. É certo que não isento de contextualização, como todos nós, mas o doente é competente. Não nos cabe, muitas vezes, contestar a sua decisão impunemente e considerá-la não objectiva, como se existisse tal coisa como um sujeito puro diante do objecto.
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II
Matar e suicidar?
Um dos argumentos fundamentais contra a MA pode ser resumido nesta sentença, tão martelada nos debates, e que posso enunciar assim: «vocês não acabam com o sofrimento, vocês matam o doente, ou colaboram no seu suicídio». A frase transmite, erradamente, a ideia que o médico é que é o agente da morte, e não que a morte é pedida pelo doente; raramente, se alguma vez, eu (ou qualquer outro colega médico, estou em crer) sugeri a eutanásia a um doente. Mas o contrário, o doente pedir, é comum. Assim deverá ser, julgo eu, pois mesmo existindo uma lei que aprove a MA, defendo uma “política” de publicidade mínima, bastando que o doente tenha conhecimento da existência da lei, e que o médico só fale desta alternativa, com raras excepções, se interpelado pelo doente. «Ajudar um doente a morrer a seu pedido» é um eufemismo para os fundamentalistas anti MA. Embora seja a melhor forma de traduzir o que efectivamente se passa. Esta ajuda não deve ser confundida com o suicídio nem com o homicídio, nem sequer com o que se reveste da forma de «morte compassiva». As principais diferenças em relação ao homicídio são claras: na MA, o agente pede ajuda para acabar, justificadamente, com a própria vida; em oposição, há clandestinidade no homicídio, ilegalidade e, nos casos de «morte compassiva», apesar da bonomia dos juízes em casos desespera-
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dos, pode nem sequer haver consentimento da vítima em causa (deficiente profundo ou sujeito com demência ou outra doença neurológica natural ou traumática grave ou coma irreversível). Sobre a questão de «matar» o doente para acabar com o sofrimento, ela tem que ser vista sempre em perspectiva, pois o doente entende que não tem alternativa. Nós não temos alternativa. Não é vida – ou valor algum, muito menos acrescentado, continuar a ter a vida que se está a ter, segundo o doente –, por isso, não é «um doente qualquer» aquele que me pede para o ajudar. O doente e o seu sofrimento confundem-se e estão irreversivelmente ligados nos últimos dias de vida. Mesmo quem inflige a morte a um doente no processo de «eutanásia passiva» ou «eutanásia indirecta» sabe da inextrincável sobreposição – o objectivo não é matar alguém mas usar a morte como meio para um fim: por exemplo, acabar com um grande sofrimento ou (pela impossível separação entre ambos) com uma vida que não vale a pena viver7. Ou seja, a intenção do doente que recorre à MA pode ser, tal como a do médico que recorre às formas de eutanásia antes referidas, acabar com o seu sofrimento apenas, mesmo que daí resulte a morte. Como vimos em Galha (cf.), estes doentes amam imensamente a vida, e não sentem que estão a escolher, repita-se, entre a vida e a morte, mas entre um modo de morte A e um modo de morte B. Sobre o termo suicídio, vários autores e associações defendem a sua não utilização. Porque, como já disse, tem uma carga valorativa (a intenção) que pode ser injusta, desde logo pelo que se acabou de referir: que o doente procura na morte (MA) um meio para obter o fim do seu sofrimento irremediável e irreversível. Posso acrescentar outras diferenças significativas8: 1. O suicida (em geral) não tem doença terminal e quer morrer; quem busca a MA tem uma doença terminal e quer viver; 7 8
Cf. McMahan, p. 456. Cf. Santos, 2009, pp. 142-143.
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2. Os suicídios habituais são trágicos; os da MA são pacíficos, tanto para o próprio como para os familiares; 3. Os suicídios são muitas vezes clandestinos, impulsivos e violentos; os que buscam a MA fazem-no de forma planeada, controlada e querendo aprovação social; 4. Os doentes que se socorrem da MA não entendem que se «estão a matar»: a doença é que os está a matar, e isto faz toda a diferença. Ainda que se tratasse de um suicídio (racional), pois então, McMahan pergunta-se: a nossa sociedade já permite o suicídio ou então nunca podia desligar o ventilador, a pedido expresso do doente, sabendo que isso lhe ia provocar a morte. É lícito prestar «assistência ao suicídio» passivo mas não ao «suicídio» activo (MA)? Quando em ambos os casos o que se faz é respeitar a vontade do doente, que pura e simplesmente se recusa a continuar a ser salvo9. Pior, diz o autor, é discriminar os que não estão em situação capaz de expressarem a sua vontade ou “carregarem no botão”, pelo que estão condenados a não poder usar do direito de dissentir (caso de doentes com esclerose lateral amiotrófica, por exemplo)! Ou então, numa outra analogia, diz Rachels10: B. Clark recebeu um coração artificial em 1982 e, diz o autor, uma espécie de «chave» com que poderia desligá-lo se entendesse que a sua vida não era “satisfatória”: «se é permissível para B. Clark usar a chave, como poderia ser errado um amigo fazê-lo por ele?», pergunta Rachels. Ou seja, o suicídio não só não constitui um crime como se pode assemelhar tanto a uma suspensão de um meio extraordinário como a uma MA!
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Cf. McMahan, p. 458. Cf. Rachels, 1986, pp. 78-87.
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