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ANTÓNIO AUGUSTO MARQUES DE ALMEIDA
ESTUDOS DE HISTÓRIA FINANÇAS E MENTALIDADES
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FICHA TÉCNICA edição: Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» título: Estudos de História. Finanças e mentalidades autor: António Augusto Marques de Almeida capa: Patrícia Andrade paginação: Alda Teixeira 1.ª Edição Lisboa, junho 2016 isbn: 978-989-99625-0-7 depósito legal: 409878/16 © António Augusto Marques de Almeida
publicação e comercialização:
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APRESENTAÇÃO
Tem este livro a particularidade do autor desconhecer a sua elaboração. A. A. Marques de Almeida foi professor catedrático na Faculdade de Letras de Lisboa, jubilado em 2005 e homenageado, em 2006, com a obra Rumos e Escrita da História. Volvidos dez anos entendemos que os muitos estudos dispersos merecem a visibilidade que aqui se pretende dar a alguns deles. Confrontados com vasta produção, houve que seleccionar, de forma a viabilizar a edição no desejado – um volume de estudos. Não tendo o autor participado dessa escolha, sendo esta, pois, de nossa inteira responsabilidade, esperamos que as opções agradem ao nosso Amigo. O título da obra surgiu prontamente e vale uma explicação: Estudos de História evocam a obra assim dedicada a Luís de Albuquerque, linha historiográfica em que situamos A. A. Marques de Almeida e Mentalidades e Finanças define a sua vertente analítica. A capa só podia ser a dimensão que perpassa a narrativa – a moeda. O enquadramento editorial da obra tinha de ser a Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste», que fez nascer e crescer, pela iniciativa e apoio mecenático da Família Benveniste. Facilitado fica o acesso a textos de grande riqueza para o conhecimento da História Moderna de Portugal, na área das mentalidades e das finanças, acreditando que o reavivar de problemáticas e de metodologias possa contribuir para estimular as investigações e renovar as perspectivas. Assim pressentiu Gonçalo Couceiro Feio, a quem ficamos reconhecidos pelo cuidado com que procedeu à disposição dos textos para publicação. Gratos também a João Nuno Menezes Cordeiro, pela disponibilidade de reprodução da peça da sua colecção numismática que lustra a capa. Ao A. A. Marques de Almeida, por cuja obra tivemos de reunir, debater e conviver, fica o nosso agradecimento. Lisboa, Maio de 2016. MARIA DE FÁTIMA REIS FRANCISCO CONTENTE DOMINGUES
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ÍNDICE
Sinais Gravados Noutros Sinais ou História e Legibilidade do mundo. Um Discurso a Dois Tempoos com Mudança de Paradigma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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O zangão e o mel. Uma metáfora sobre a diáspora sefardita e a formação das elites financeiras na Europa (séc. XV-XVII) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Dívida Pública, Dinheiro e Crédito no financiamento das armadas da Índia entre 1580 e 1640 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
47
Pedro Nunes e a formação dos conceitos na Ciência dos Descobrimentos . . . .
61
Inovação e resistência na prática científica no Portugal das Descobertas . . . . .
71
Recepção e Difusão da Informação Científica no Portugal Quatrocentista. Algumas Questões de Método . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
85
Algumas questões sobre a matematização da História. Certezas provisórias e equívocos constantes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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A Evolução da Economia Portuguesa de 1450 a 1550 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113 Aritmetização do Real na Sociedade Portuguesa (séculos XVI-XVII). . . . . . . . . 131 O Perdão Geral de 1605 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 149 A Aritmética Comercial em Portugal nos Séculos XVI e XVII . . . . . . . . . . . . . . . 163 O uso da numeração escrita e falada em fontes documentais portuguesas dos séculos XVI e XVII. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 201
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Colaboração no Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses Affaitadi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233 Feitoria de Antuérpia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 235 Fugger . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238 Gualterroti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Haro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 240 Livros de Aritmética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 242 Marchione . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 244 Moeda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245 Quintaladas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250 Tomé Lopez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251 Welser. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
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SINAIS GRAVADOS NOUTROS SINAIS OU HISTÓRIA E LEGIBILIDADE DO MUNDO. UM DISCURSO A DOIS TEMPOS COM MUDANÇA DE PARADIGMA
O historiador é um manipulador do tempo. Prende-o num campo ou castelo de palavras. E qualquer um o desperta da mortalha das letras, como lembra João de Barros, com a luz dos olhos ou o chamar da voz. Mas verdadeiramente não é o tempo que prendemos mas tão-só os acontecimentos – sinais gravados noutros sinais. A. BORGES COELHO, O Tempo e os Homens. Questionar a História III, Lisboa, Caminho, 1996, p. 13.
Não é necessário por lei precisa da História, que o Historiador se antecipe com reflexões, deve contentar-se em escrever as cousas, como elas se passaram, sem se intrometer a julgar delas; deixe ao seu leitor o juízo livre sem o prevenir com invectivas, ou com apologias a tomar um, ou outro partido. JOSÉ DA CUNHA BROCHADO, Sessões na Real Academia da História, de 10 de Dezembro de 1721.
Não se escrevem as cousas como elas foram, mas como o Historiador percebe como elas podiam ser, ou como lhe convém que fossem. Não põem a exactidão em descobrir a verdade, mas em formar a reflexão que, ou a dissimula, ou a destrói. JOSÉ DA CUNHA BROCHADO, Sessões da Real Academia da História de 22 de Setembro de 1729.
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1. Heranças em tempo de mudança O século que agora termina assistiu, a partir da tradição romântica das Geisteswissenschaften, a uma incessante procura de reorganização do espaço das ciências humanas e a sucessivas tentativas de definir o seu lugar face às ciências da natureza. Desde o início dos anos trinta, na esteira da cultura da incerteza adveniente da física quântica que por essa altura abalava os sistemas de leitura do real, a pulsão para formar novos horizontes teóricos e criar uma discursividade nova, onde a interpretação desempenhava papel decisivo, não parava de crescer. Estava em construção uma nova ideia da realidade e vivia-se então uma previsível ruptura dos sistemas de leitura do real, e o que parecia ser mais importante era definir uma nova utensilagem analítica, capaz de fazer frente ao vazio deixado pela inoperância dos sistemas clássicos de explicação. A emergência de um novo paradigma cultural fazia-se anunciar no meio de forte contestação e polémicas duradoiras, cujo eco ainda se não extinguiu. No domínio da História a inovação paradigmática foi sendo obstruída pelas pesadas heranças que a factologia impunha, e que de uma forma bem visível persistem ainda hoje. Essa discursividade tradicional teimava em antigas fidelidades e apegava-se aos factos, sendo-lhe difícil sobreviver numa atmosfera onde os referentes se alteravam continuamente e toda a informação se tornava difusa e lacunar. A História como factologia esgotava-se na ordem de uma discursividadc descritiva, que organizava a informação por ordem selectiva dos acontecimentos, colando-se, obstinadamente, à tentativa de reconstrução do passado. Mas as novas condições de possibilidade abriram os sistemas de compreensão do mundo da experiência do homem e cercaram a tradição historiográfica que se alimentava da explicação dos factos. Há já sessenta anos atrás os bons velhos tempos da documentação inédita como garantia de inovação historiográfica recebiam guia de marcha. Neste ponto, a bifurcação era inevitável: os caminhos dos documentalistas e dos historiadores afastavam-se irremediavelmente, dadas as diferentes condições de exigência e de especificidade a ambos exigidas. Assim parecia, mas assim não aconteceu; uma vez mais por obra da
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oposição dos paradigmas da factologia e da continuidade de metodologias desajustadas das novas expectativas. 2. A história como leitura do mundo No princípio foi Lucrécio quem atirou a primeira pedra. A metáfora de que o Mundo podia ser lido como um livro, e as condições das suas múltiplas leituras vinha prestando, há mais de dois mil anos, excelentes serviços às sucessivas tentativas da sua interpretação. Interpretar o Mundo é destino do historiador. Seguramente, um mundo específico, O mundo relacional tecido pelo viver quotidiano da sociedade humana, o Lebenlswelt da conceptualidade alemã, que reparte com as disciplinas vizinhas (sociologia, economia, antropologia ...). a incumbência de ordenar um discurso científico. Assim entendida, esta discursividade é uma forma de legibilidade do Mundo, apenas uma de entre a considerável panóplia, que o homem foi decantando para se aproximar da variedade de mundos tornados possíveis pela cadeia de interpretações piercianas, de que a história é, tão-só, mais uma de quantas. Desde a década de trinta que os novos modelos de leitura pré-anunciavam os primeiros paradigmas que a davam como uma forma de leitura do Mundo. Em 1936, Ortega Y Gasset (Em torno a Galileu. Esquema das Crises, Petrópolis, 1989, pp. 26-27) a propósito de Galileu e do estudo das crises, disse sobre a ciência, mas que se ajusta ao que pretendo ilustrar: A ciência é, com efeilo, interpretação dos factos. Por si mesmo eles não nos dão a realidade, ao conlrário, ocultam-na, isto é, propõem-nos o problema da realidade. Se não houvesse factos não haveria problemas, não haveria enigma, não haveria nada oculto que fosse preciso des-ocultar, des-cobrir. [...] Os factos cobrem a realidade e enquanto estivermos em meio à sua pululação inumerável estamos no caos e na confusão. Para des-cobrir a realidade é preciso que retiremos por um momento os factos de em torno de nós e fiquemos a sós com a nossa mente. Então, por nossa conta e risco, imaginamos uma realidade imaginária, fabricamos uma realidade imaginária, puro invento nosso; logo, permanecendo na solidão de nosso íntimo imaginar, encontramos que aspecto, que figuras visíveis, em suma, que factos produziria essa realidade imaginária. É então que 13
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saímos da nossa solidão imaginativa, de nossa mente pura e isolada, e comparamos esses factos que a realidade imaginada por nós produziria com os factos efectivos que nos rodeiam. Se casam uns com os outros, deciframos o hieróglifo, des-cobrimos a realidade que os factos cobriam e escondiam. Essa tarefa é a ciência.
Colocado assim o problema, mutatis mutandis, a história outra coisa não é senão interpretação de factos, acervo, quantas vezes avulso, de hipóteses de trabalho estruturadas em texto e ordenadas em linguagem conceptual, obedecendo a regras lógicas, semânticas e formais que enformam um discurso rigoroso e eficaz, mas não indiferente às regras e práticas da heurística, como é bem de ver. A História, como forma de olhar o Mundo, faz a leitura do real e das suas multiplicidades: uma cadeia pierciana que, sendo infinita como se sabe, cria dificuldades acrescidas à discursividade, obrigando constantemente à re-invenção da história e à reescrita do passado. Bem vistas as coisas, a História não consiste apenas em factos e em conclusões de factos; ela é essencialmente feita de ideias, de interpretações divergentes e quantas vezes contraditórias dos factos que geram, aqui e ali, grande conflitualidade, de erros, e assim por diante. O historiador não conhece o que realmente aconteceu, e o que chega ao seu conhecimento é uma certa forma de ver, e isso faz com que toda a construção seja ideacional. A este propósito Nelson Goodman dirá que o mundo do historiador é criado pelo seu olhar, que se encontra confinado entre a capacidade de compreender e de explicar o ruído que vem do fundo da documentação e as experiências pessoais vividas no decurso do seu trabalho. No plano da construção histórica e na cultura da incerteza que caracteriza hoje em dia a investigação em ciências humanas e sociais, o historiador ganha o sentido da fragilidade do seu conhecimento, e sabe quanto o seu discurso é efémero. Não são questões novas: afinal, elas são consequência do ruído surdo dos debates contemporâneos sobre a formação e o papel do discurso historiográfico, cujo local mais apropriado tem sido o espaço do terceiro mundo, proposto por Popper, que é o mundo das ideias, o mundo platónico do conhecimento objectivo. Em tal discussão, as abordagens mais frutuosas têm sido interdisciplinares e talvez, e até por isso, Foucault ou Feyerabend não têm a última palavra a dizer, pois esta fecunda discussão passa por 14
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muitos outros. Em primeiro lugar pela já citada tradição das Geisteswissenschaften, Wilhelm Dilthey e Ernest Cassirer, para tudo o que diz respeito ao apuramento da teoria de base; por Edgar Morin, Karl Popper, para as grandes discussões da criação dos campos teóricos e do método; por Imre Lakatos e Tarski para a problemática da verificação e da validação; e por Hans Blumenberg para as questões suscitadas pela legibilidade dos mundos e condições das possíveis leituras. E foi esta História feita de interpretação de factos, sujeita, como qualquer outro conhecimento das ciências humanas, a discussões sem fim, inserindo-se no processo popperiano da tentativa e erro, que ganhou novo estatuto. Ou deveria ter ganho, não fora a resistência tenaz da tradição factológica a que já me referi. A partir de então, a História deveria ter-se reconhecido como sendo algo do domínio do que poderia ter sido. Mas uma parte significativa de historiadores continuou, recalcitrante, a afirmá-la como sendo do domínio de algo do que foi. Na hora da separação das águas, uma coisa ficou clara: a relação de identidade entre a história e a historiografia em que aquela se reescreve e sem a qual, de facto, não existe. Mas, no fim de contas, não mais objectiva, porque, afinal, a história não passa de um nome que se dá a muitos e emaranhados saberes para os quais ainda se não descobriram os limites. Por tudo quanto se disse, não é demais insistir na História como leitura do Mundo, mas é bom recordar que as condições históricas em que acontece são determinantes, pois a leitura é confinada ao tempo do leitor, e por isso, é inelutavelmente histórica. Neste sentido pode dizer-se que a história nasce de acertos e desacertos a dois tempos. Era nisso que pensava Raymond Aron, ao recordar o livro de Claude Lefort sobre Maquiavel, quando falava de diálogo – outra coisa que a história também pode ser – e lembrava que se colocavam frente a frente um homem do século XX e um outro do século XVI, cada um parte integrante de uma sociedade, de um tempo e de díspares visões do mundo. Também o diálogo profundo de Lucien Febvre com Rabelais é um ajuste de contas, o fino apuramento do deve e haver entre dois séculos, entre duas sensibilidades, entre duas visões do mundo. À custa de tantas vezes repetido, nada disto é novo, mas o que é realmente importante é ganhar consciência de que não pode ser de outra maneira; o 15
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historiador não pode ir além das condições da sua própria experiência e não há conhecimento histórico fora da discursividade historiográfica. Na lenta elaboração da História como leitura do Mundo, de Tucídides a Herder e a Cassirer, já nos nossos dias, o historiador tem procurado surpreender o mundo, só atingivel – reconquistável – diz Cassirer, através da recordação histórica. Mas recordar não significa simplesmente um acto de reprodução, como lembrou; é de uma nova síntese intelectual – de um acto construtivo de que, afinal, se fala, e esta só interessa ao historiador enquanto for entendida como referente da estrutura social, no seio da qual se formam as representações do mundo natural e do mundo inter-relacional dos homens. Assim, quando falamos de História, não falamos propriamente do campo da experiência humana, mas sim da informação que dessa vivência chegou até nós, e que muitas vezes oculta a realidade que sucessivas gerações quiseram que fosse ouvida, que fosse admitida como sendo próxima da fala original. À primeira vista parece ser consensual; mas, prestando mais atenção, a informação recepcionada e a sua transformação em conhecimento revela-se uma tarefa complexa que o historiador domina mal, mas que é indispensável para a formação do seu olhar. Durante muito tempo conhecimento foi o que, em dado momento, era tido como verdadeiro, mas há muito que deixou de ser assim: agora basta que seja verosímil e conforme as regras com que se trabalha a informação das fontes, e se atenda à capacidade semântica que revelam. Neste processo, a interposição de uma distância crítica e o recurso à utensilagem hermenêutica assumiram um papel decisivo na validação do conhecimento de que o historiador se reclama. Eis por que a análise hermenêutica permanece insubstituível desde os inícios do século XIX; a discursividade da história não se confina a uma simples apreensão de mundos, mas antes e em primeiro lugar, à sua leitura.
3. A história como fala Ora, é precisamente pela exteriorização deste tipo de conhecimento que nos aproximamos da consciência da realidade de que falava Heisenberg. 16
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O mesmo é dizer que a História é uma fala. Uma fala humana, entenda-se, através da qual se escuta o ruído difuso de vivências idas, o sussurro dos registos da memória; a todo o momento se pode ouvir bater o coração humano, e evocar as camonianas memórias de alegria. A história é um sítio onde o homem está. É verdade que pode ser definida de muitas maneiras (e tem-no sido no decurso do tempo) mas é também, a par de muitas outras coisas que igualmente pode ser, uma relação nem sempre pacifica. Com o tempo em primeiro lugar; dessa relação, diz-se frequentemente ser conflituosa, inquinada de vícios e de preconceitos culturais e de mentalidade, que tornam difícil a distância que alguns reclamam como base da objectividade indispensável à visão histórica. Não é fácil ser de um tempo e falar de outro, e mais do que a distância importa a forma como o historiador cola os acontecimentos na cadeia do tempo e fixa nela a leia relacional que a cronologia tece. É o clássico problema da distância temporal que vai do olhar que olha à coisa olhada, e que no confronto entre a física quântica e os sistemas de leitura da realidade que a antecederam tem mobilizado todas as polémicas e discussões à volta. Mas, verdadeiramente o que se discute é a observação, e as condições em que se realiza, sabendo-se, como se sabe, que é selectiva, pois fixa determinados motivos e exclui outros, e não é inócua nem neutra, pois a simples observação altera a realidade observada. Depois, com a localização dos acontecimentos na isocronia do tempo, onde nada se diferencia e todas as distâncias se esbatem, e o esforço lógico de entender fica manifestamente aquém do necessário. Aqui, como tantas vezes acontece com o nosso conhecimento, sempre sabemos menos do que necessitamos saber, e esse défice encontra no conceito de «tempo amarrotado» dos nossos vizinhos da topologia matemática um princípio de ajustamento eficaz. Ouçamo-los: estenda-se sobre a mesa uma folha de A, branca e defina-se nela um quadrante cartesiano no qual se marcaram distâncias e proximidades de tempo. Sobre a linha do tempo assinalem-se certos acontecimentos de escolha aleatória, por exemplo, o reinado de D. Dinis, a época do Marquês de Pombal, ou ainda um acontecimento mais antigo: a batalha de Ourique. Agarre-se em seguida a folha de papel e amarrote-se; dois pontos muito afastados podem encontram-se subitamente muito próximos ou 17
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até sobrepostos. Se rasgarmos a folha de papel, pode até acontecer que dois pontos muito próximos fiquem agora muito afastados. Resulta, assim, que a configuração topológica do passado é algo que o historiador tem de ter em linha de conta ao estabelecer o sistema relacional com o passado que estuda. Também para ele o tempo é um vazio onde nenhum ponto existe, nem nenhuma direcção é privilegiada. Dois mil anos ou duzentos anos valem o mesmo, e nenhum esforço de raciocínio lógico anula a estrutura isotrópica que o tempo é. E todavia o que parece óbvio por vezes confunde. Tomo de empréstimo a ideia de Nelson Goodman: a fala da história, não sendo nunca o que o mundo foi, mas apenas o que o mundo parece ter sido aos olhos de quem recepciona o ruído da informação, é o olhar sobre o mundo e, ao mesmo tempo, é o próprio mundo. O historiador é um fazedor de mundos e o que a historiografia nos desvenda não é o mundo que foi, mas tão-só o ruído do mundo que parece ter sido aos olhos de quem escuta, em conformidade com o estádio da sua cultura e sensibilidade, e sempre nos limites máximos da sua capacidade de interpretar e de compreender. Escrever a história é, inevitavelmente e sem remissão, um exercício diacrónico e anacrónico gizado entre dois tempos: o tempo do acontecer e o tempo de contar; hermenêutica e método, eis o quadrante onde tudo se decide. Senão vejamos: há muito que a discursividade da história se estilhaçou como unidade analítica, e nos últimos anos as rupturas que ocorreram no discurso historiográfico, em certa medida, autonomizaram o trabalho do historiador. O primeiro dique a ceder foi, e isso está fora de questão, penso eu, o método. Em primeiro lugar porque deve ajustar-se a metodologia e as técnicas de investigação ao tratamento da informação, definir o campo teórico e a linguagem conceptual a usar na formação do discurso historiográfico, e fazer uso apropriado da utensilagem analítica. Depois, ao invés da metáfora de António Vieira, que dizia haver na semana dias para carne e dias para peixe, e só o pão ser comer de todos os dias, falta ao historiador o cibo quotidiano que mata todas as fomes: um método que dê para tudo. A utensilagem analítica para a história económica em nada, ou pouco, ajudará na história das mentalidades. O conceito de preço, essencial para a História económica é inerte para a História da arte ou do gosto e da sensibilidade. Tudo terá começado 18
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pelo incremento da linguagem conceptual de que as ciências humanas, e naturalmente a História, progressivamente se reclamaram no desfazer das antigas heranças. Depois, os problemas colocados pela interdisciplinidade e pelas progressivas rupturas por que passaram as ciências humanas no decorrer deste século fizeram o resto. O que ficou foi uma discursividade mais e mais analítica, em que as fronteiras dos saberes ajustaram com eficácia uma metodologia de rigor científico. A fala da história faz-se ouvir mais clara, mas não necessariamente mais objectiva.
4. ... e uma fala sobre o passado Mas, o que distingue a fala da História de outras falas, é que a sua endogenia se vira para o passado e só dele se ocupa. À história enquanto fala, cabe apenas a tarefa de se ocupar daquilo que se pode dizer do passado. Nada mais. É como na narrativa de Aristodemo: quem não esteve no banquete precisa que lhe contem o que lá sucedeu. Assim sendo, a historiografia organiza-se como uma metafala, sempre complexa, caótica, cheia de erros que induzem a desordem da escrita, e a desordem da escrita alimenta a desordem da história. A herança que o passado legou ao historiador confina-se, em grande parte, a textos desordenados e a nada mais, embora se sinta ser preciso repor um pouco de ordem. Mas é errado pensar que o discurso da história tenha por finalidade descobrir o passado, pois essa condição remete-nos, uma vez mais, a tudo o que à observação diz respeito. Na verdade, a relação que o historiador estabelece com o passado é apenas uma tendência assimptota entre o mundo que está à sua volta e no qual se integra – o Mitwelt – e o mundo acontecido – o Vorwelt – o mundo daqueles que o precederam. O desafio do historiador é aproximar, sobrepor, diria melhor, os dois mundos que tendem a encontrar-se, mas que nunca se encontram, assimptotas, portanto. Eis por que a probabilidade de recriação é inatingível: esse mundo permanece para todo o sempre irrepetível e inalcançável, o que faz do passado um espaço e um tempo demasiado longínquos. Ainda por cima nem todo esse passado é histórico como tão bem 19
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intuiu António Sérgio (Ensaios, Lisboa, 1971, vol. I, p. 172) quando negava ao passado – a todo o passado, diga-se – a condição de histórico: Histórico – todo o passado? Mil vezes não, senhor Arqueólogo: um facto define-se pela sua função no fluxo de vida em que ele actuou, e a história só é viva quando os sucessos são vistos em relação ao que veio depois e ordenados por conseguinte numa sirie processual como agentes de transformação e factores de desenvolvimento da consciência da humanidade. Só são históricos, portanto, os factos que tiveram efeito no espírito humano sobrevindo, e a sua historicidade é proporcional à sua função humanizadora, à sua energia de progressão, à sua capacidade de servir de degrau à ascenção futura da humanidade.
Ao que veio depois, não se esqueça. Contando as palavras uma a uma, e não perdendo nenhuma das subtilezas do texto, Sérgio tem razão: para se fazer ouvir, à história só resta a escrita, ou seja, a historiografia, ordenada sob a forma de discurso; não o dispensa porque não se sustenta sem ele. Sempre a velha constatação de que por detrás da coisa, há sempre escondida qualquer outra coisa... Sem historiografia não se pode olhar o passado, porque passado e discurso historiográfico confundem-se. A historiografia é conhecimento histórico da história, mas é, ela própria, histórica, no seu processo de construção. Bem pode o historiador ordenar o discurso, sustentando-o nos limites do seu saber, da sua sensibilidade e da cultura do seu tempo. O que lhe sai das mãos é sempre uma construção cultural e histórica. Estes são os limites a que está confinado e dentro dos quais a história é o mundo só tornado possível por uma escrita e pela leitura dessa escrita, no complexo processo da compreensão e da explicação. O Mundo do historiador é tão-só um mundo possível que, quanto mais se explica, melhor se compreende.
5. O discurso historiográfico enquanto fala da história Mas em nome de quê ou de quem fala a História? Em primeiro lugar, como tão bem lembrava Cassirer, cabe ao historiador fundir todos os diseacta 20
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membra, membros espalhados do passado, e ordená-los numa estrutura feita de dois tempos: ontológico e metodológico. A seu modo cada um deles desempenha um papel único e sequencial; o tempo da definição da coisa, e os métodos de abordagem e tratamento, afinal, como se pretende estudar. Nos dias que vão correndo, a consciência histórica faz sua a relatividade do que sabemos; o nosso conhecimento cada vez mais incerto organiza e aprisiona os modelos de explicação, que sustentam as visões do mundo e estruturam a discursividade. Tendo em linha de conta que a capacidade explicativa do paradigma tem limites, como é, afinal, limitada toda a teorização, a consciência histórica da história é a consciencia da historicidade do presente. Como salientava Dilthey, só conhecemos numa perspectiva histórica, justamente porque somos seres históricos, e isto por muitas razões diferentes, mas também porque o nosso conhecimento e os nossos saberes são historicamente condicionados. Mas como todos os discursos científicos, a História parte sempre do que já está disponível, pois também para ela vale a asserção que diz que o nosso saber se faz com a nossa imaginação, mas também com os restos dos saberes dos outros. Consolidar o que sabemos é constante fazer e desfazer de uma teia emaranhada de informação lida e treslida, que persistentemente se configura e reconfigura. Nas mãos do historiador não se trata de recuperar o passado, porque O que aconteceu faz parte de um mundo para sempre perdido; é antes uma discursividade sobre O que poderia ter acontecido, mas nunca sobre o que realmente aconteceu: impõe uma estrutura, conceptualiza e organiza o sentido semãntico da informação com que trabalha. Nada mais do que isso. O discurso sobre o Marquês de Pombal não faz falar o Marquês de Pombal, nem tão-pouco fala em nome dele. Apenas fala dele. Nestas circunstâncias há muito que a historiografia perdeu o valor de verdade, mesmo quando tomada no sentido literal, e hoje só sobrevive na ideia de tribunal que a história ainda pode ser, metaforicamente falando, claro. Se, para Fernão Lopes – e refiro-me à escrita, pois no cronista nada mais me interessa e muito menos se escreveu uma coisa e fez outra – a leitura do mundo era ainda uma procura constante e obstinada da verdade, desde então muita água correu debaixo de todas as pontes. O que o movia era «escrever verdade e contar as cousas da guiza ca aveherô», ou seja, a 21
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constante e firme procura da sobreposição de dois mundos: o mundo do realmente acontecido, e o mundo possível pela recepção da informação. Registe-se (Crónica de D. João I, Porto, 1983, voI. I, p. 2): Nos certamente levando outro modo, posta adeparte toda afeiçom, que por aazo das ditas rrazoões aver podíamos, nosso desejo foi em esta obra escprever verdade, sem outra mestura, leixxamdo nos boõs aqueeçimentos todo fimgido louvor, e nuamente mostrar ao poboo, quaaes quer contrairas cousas, da guisa que aveherõ.
Anos adiante, já em outros tempos e em outras circunstâncias, Cervantes viria ainda dizer, a propósito do El Ingenioso don Quixote de la Mancha que «la verdad, cuya madre es la historia, émula del tiempo». A verdade permanecia ainda como elemento essencial do discurso da história e elemento quase único da sua validação. E no entanto, não deixa de ser interessante reparar na aventura de D. Quixote: um percurso cheio de minúcia, sinuoso, na tentativa persistente, mas sempre negada, de recolher por todo o lado os signos que mostrassem que os antigos livros de cavalaria falavam a verdade, uma vez que eram a representação do Mundo. Esses mesmos livros que baixaram ao braço secular da governanta que os condenou à fogueira, os mesmos que lhe fizeram a cabeça e o transformaram num molho de ossos sacolejantes. A par e passo, D. Quixote não procurava a verdade, a não ser, claro, a que vinha contida nos seus livros. Mais do que buscar a Dulcineia, buscava nas poeirentas estradas e tabernas da Mancha o mundo contido nos livros antigos da cavalaria. A sua aventura não era uma experiência histórica, era antes uma decifração do Mundo. A discursividade historiográfica não tem um olhar inocente sobre o mundo relacional que surpreende. Nestas condições auto-alimenta-se, cria o seu próprio destino, indesmentível e imprescindível; daí o ser triunfante. O caso da existência da denominada Escola de Sagres enraizou uma tradição persistentemente defendida, e de nada têm valido as vozes sensatas de Duarte Leite e de Luís de Albuquerque, pondo a nu o anacronismo do facto, seja no sentido literal ou metafórico. Que a historiografia não é inocente digam-no os nossos cronistas e historiadores do passado, Zurara ou Góis (Fernão Lopes também serve), que 22
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fizeram o discurso respeitoso, obediente ou incómodo e por isso pagaram ou foram louvados. Sabemos quanto o discurso de exclusão é, na historiografia portuguesa, um modelo dominante que, em certas alturas – refiro-me aos discursos sobre a sociabilidade – adquire comportamentos devastadores (os estudos sobre a inquisição ou as Sumas de consciência). Todos estes discursos de exclusão social ou de interdição ideológica, funcionam em pleno no alcançar dos seus desígnios e na sua consolidação no campo da historiografia. Donde se prova que, de facto, nada tem de inocente, e às vezes fala em contracorrente, mais raramente contra a maré. Desta forma já deu para perceber que o discurso historiográfico há muito que perdeu privilégios. Fossem eles quais fossem, desempenharam papel importante no processo de aceitação social, no campo da ideologia, e impuseram modelos geracionais de comportamento. Mas há muito que as luzes do palco se apagaram; as máscaras caíram e ninguém poderá dizer hoje larvatus prodeo, sem que disso não assuma toda a responsabilidade.
6. Uma última questão. a mudança de paradigma ou lector in fabula Sobre o procurar a História na confluência da escrita do autor com a leitura do leitor, diria Virgílio ser aqui que a porca ía torcer o rabo. O texto foi condicionado pela regra da conformidade com a informação das fontes, com o verosímil, e com o provavelmente acontecido, o que obrigou à recolha e tratamento da informação em conformidade com as regras da construção do discurso historiográfico. Na concepção tradicional, a história está feita, quer dizer, a investigação está concluída, o discurso ordenado e a galáxia de Gutemberg, está à vista. Em breve vai chegar às mãos de um público, vasto e diferenciado nos seus interesses e na sua motivação de leitura. Alguns acreditam que a história está feita para sempre. Será mesmo? Que relação vai estabelecer-se entre o texto historiográfico e o leitor? É bem de ver que se trata de uma leitura em segunda mão, pois o leitor vai ao encontro da realidade velada do autor. E pode até acontecer – acontece muitas vezes – que a isocronia ou a diacronia entre escrita e leitura esfume ainda mais a realidade do texto. É certo que sempre que o texto passa de 23
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um contexto cultural para outro, são-lhe apostas novas significações que nem o autor nem os leitores, seus contemporâneos ou não, se poderiam dar conta. O contexto cultural em que a interpretação é levada a cabo organiza grande parte da sua semântica, e a distância temporal das leituras foi sempre decisiva na avaliação deste processo. Neste sentido, o texto historiográfico ganha uma autonomia semântica, a que Ricouer atribui extrema importância, e por meio da qual se abre o universo dos seus leitores e se cria o auditório do texto, na medida em que uma obra cria o seu público. Ora, acontece que no momento da recepção, o discurso historiográfico é um esforço contaminado e exposto a todas as impurezas das leituras sociais que tentam adaptá-lo ao jogo dos seus próprios interesses. Aqui é bem visível a intencionalidade do texto. O discurso circula livremente, cumprindo um destino feito de expectativas e de resistências. E nâo se trata de uma contaminação residual, periférica ou mesmo ocasional; muitas vezes a distorção é intencional e as falas que o sustentam tornam-se ideológicas, como vimos em exemplos dados. Se fosse assim, o discurso historiográfico era tão-só um conjunto de escritas que fixavam a História, e esta era-lhes sobreposta e limitada por elas. Ao leitor caberia o papel passivo, na solidão da sua leitura, negada a sua capacidade de imaginar e de re-inventar o texto que lê, como e enquanto leitor. Estava-lhe reservado o papel aristotélico de não fazer parte do todo quem a ele não pertence. Mas não poderá ser de uma outra maneira, a história ser outra coisa para além de um conjunto de escritas em que, afinal, os discursos historiográficos se estruturam? Qualquer coisa ao invés do que tradicionalmente se procura estabelecer, isto é, o que o autor quis dizer, e nunca o que o leitor entende, como avisadamente dizia Barthe? Não poderia a História ser definida como um conjunto de escritas, sim, mas de leituras, também? Não poderia o leitor, na sua simples condição de leitor, mas com o seu conhecimento do mundo, chamado à recriação do discurso historiográfico, exactamente no momento em que o texto passa de um contexto cultural para outro? Esta mudança de mãos que o discurso sofre, em que se aditam novas significações até então desconhecidas do autor e dos leitores, não seria o momento crucial do processo de formação da história? 24
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Se sim, a resposta pode muito bem ser outra, sem todavia chegarmos ao extremo de o nascimento do leitor tenha de pagar-se com a morte do autor, como pretendia Barthe. As leituras do Mundo são históricas, já vimos porquê, tanto como históricas são as condições das suas práticas. Daí resulta que o modo como as leituras se recepcionam e a historicidade da compreensão dos discursos historiográficos sejam filhos de um tempo, que permanece como referente obrigatório e indispensável à sua compreensão. Exactamente a propósito das condições da recepção das leituras e da historicidade da compreensão dos discursos historiográficos, disse um dia António Sérgio: O passado valeu pelo que se negou – afirmando o futuro. São os sucessos posteriores que nos dão a ver o significado de um facto qualquer realmente histórico; o presente – e o porvir – julgam e valorizam o passado, e a altura a que sobe o herói é sempre a porção de actualidade que a sua ideia conservará para a humanidade porvindoura. Por isso a interpretação de um faclo histórico se metamorfoseia com as gerações: porque à medida que o tempo corre é que preluzimos o auroral de cada noite que passou.
O discurso historiográfico alimenta o imaginário do leitor, e a usabilidade da história aproxima-o do texto, envolve-os num jogo interactivo de leitura e de decifraçao, e conduz o confronto de duas estratégias: a inlentio operis e a intentio lecforis. Podemos ainda perguntar, que é que o leitor procura num livro de História? Provavelmente o que lá não está, e o que lá falta é aquilo que o historiador omitiu. Remediar o que tiver de ser remediado, disso o leitor se encarregará.
7. Conclusão Assentemos, então, que a história não sai terminada da oficina do historiador; ao leitor, enquanto lector in fabula, cabe-lhe a tarefa decisiva: a hermenêutica do texto. Essa capacidade de interpretar a discursividade historiográfica faz parte integrante daquilo mesmo a que chamamos história, 25
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cuja construção passaria a ser uma tarefa dual em que o leitor e o historiador confluíam, assimptotos, para uma mesma leitura. É neste sentido, que a história pode ser definida como uma longa e inacabada teoria da transformação: dos homens, do tempo, das acções dos homens no tempo, uma síntese, sempre provisória, do conhecimento do real e das suas transformações. Ora aí está algo que a história pode ser: a escrita e a leitura levadas a cabo pelas gerações, numa tarefa inconclusa, num esforço de Sísifo que os deuses não premeiam e o vulgo não aprecia. Mas, afinal, que se pode pedir ao discurso historiográfico? Em primeiro lugar não se deve ir além da sua capacidade de explicar, e entender isso como algo provisório. A História e a sua discursividade podem ficar imunes à revelação do mundo físico de Heisenberg? Convictamente acho que não. A história adapta-se ao mundo da incerteza em que, nos nossos dias, operam as restantes ciências do homem, porque, nunca como hoje, o saber permaneceu tão incerto, e a validade do que sabemos foi tão fugaz. Resta-nos aprender a conviver com certezas provisórias e dúvidas constantes, as nossas e as dos outros, mas sobretudo com as nossas, que definem uma cultura de incerteza que contamina todo este século. Será de mais dizer que, por esta via, a História é um acto de comunhão, de confluência, entre a escrita e a leitura, num processo interminável de observação, feita carapau para gato de Schrodinger? Ainda uma última questão: científica, a História? A pergunta coloca desafios interessantes, diversos e inconclusos. Por experiência pessoal tenho para mim que a história se organiza como tal: o trabalho do historiador desenvolve-se no plano de rigor da prática científica, na exigência do método, na imprescindibilidade da organização da pesquisa, na estruturação e organização do discurso, na formação das linguagens conceptuais e no uso de uma extensa e ajustada panóplia de utensilagem analítica. Mas tudo isso não faz dela uma ciência. A História permanece paixão, empenho e deslumbramento. E por que não um estado de graça, puro e simples? Não é a isso que se chama criatividade científica? Eu não sei; só gostava que pensassem...
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Orientação de leituras BLUMENBERG, Hans, The Genesis of the Copernican World, Cambrige, MIT Press, 1987. GADAMER, Hans-Georg, O Problema da Consciência histórica, V. N. de Gaia, Estratégias Criativa, 1998; Verdad y Metodo, Salamanca, sn., 1987. GOODMAN, Nelson, Modos de Fazer Mundos, Porto, Asa, 1995. Of Mind and olher Maters, Cambridge, Harvard University Press, 1984. HEISENBERG, Werner, Le Manuscrit de 1942, Paris, Seuil, 1998. LAKATOS, Imre, Criticism and the Growth of Knowledge, Cambridge, Cambridge University Press, 1990. KOSHUCK, Reinhart, L’Expérience de l’Histoire, Paris, Gallimard. Le Seuil, 1997. ORTEGA y GASSET, Em tomo de Galileu. Esquema das Crises, Petrópolis, Vozes, 1989. RUHLA, Charles, La Physique du Hasard. De Blaise Pascal à Nils Bohr, Paris, Hachette, 1989. SÉRGIO, António, Ensaios, Lisboa, Sá da Costa, vol. I, 1971.
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O ZANGÃO E O MEL. UMA METÁFORA SOBRE A DIÁSPORA SEFARDITA E A FORMAÇÃO DAS ELITES FINANCEIRAS NA EUROPA (SÉC. XV-XVII)
0. Introdução A ligação dos capitais das comunas judaicas ao comércio local e regional é uma constante estrutural na economia europeia da Baixa Idade-Média, e tal facto corresponde às primeiras fases da acumulação do pré-capitalismo europeu. Robert Lopez deu-se conta disso mesmo, quando estudou a primeira revolução comercial. E o que se conhece da realidade portuguesa no tempo da monarquia agrária, verifica esta tendência que, tanto quanto se sabe, não se alterou, mesmo quando a economia portuguesa enfunou a vela para os novos espaços atlânticos, e mais tarde para o comércio da especiaria africana. Quando, século adiante, as primeiras mercadorias asiáticas chegaram aos portos de Lisboa e Antuérpia, os mercadores judeus e seus capitais estão envolvidos no negócio. A Europa foi o tabuleiro onde a diáspora sefardita jogou, desde cedo, a sorte das primeiras formações capitalistas. Era, afinal, o ponto de chegada de um trend de acumulação de capital, há muito iniciado e que o comércio das especiarias não parara de acelerar e de rentabilizar desde os primeiros anos de quinhentos. De Lisboa ao Báltico, das praças da Alemanha central às cidades do Adriático e do Mediterrâneo oriental, a Salónica e a Alexandria, as comunidades estão por toda a parte, ágeis e dúcteis, assentes numa estrutura empresarial que, um dia, faria Werber Sombart dizer que estas comunidades inventaram o capitalismo, tal a importância dos judeus na sua construção. Contudo, mesmo que assim não fosse, o século XVII foi para Braudel o século dos mercadores portugueses1. Mesmo que a crítica de Schumpeter a Werner Sombart tenda
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FERNAND BRAUDEL, Le Mediterranéen, 1966, t. 2.º p. 152.
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