Geração Rejeitada

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Geração Rejeitada Entre Angola e Portugal – 1950/1980


Edição: edições Vírgula ® (chancela Sítio do Livro) Título: Geração Rejeitada – Entre Angola e Portugal – 1950/1980 Autor: António Serra Correia Capa: Patrícia Andrade Paginação: Sítio do Livro 2.ª Edição Lisboa, Junho de 2015 ISBN: 978-989-8821-01-0 Depósito legal: 394906/15 © António Serra Correia PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

Rua da Assunção, n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt


António Serra Correia

Geração Rejeitada Entre Angola e Portugal – 1950/1980



Apresentação (Auto Biografia)

António Serra Correia, nasceu em Manteigas, no dia 17 de Agosto do ano de 1944, onde viveu com sua família até aos seis anos de idade. Foi com essa idade que um dia partiu com todos os seus para Luanda, onde já se encontrava seu pai, havia já algum tempo. Aí frequentou a escola primária e em 1956 começou o então ciclo preparatório na Escola Industrial de Luanda, seguindo-se depois o curso de Laboratório Químico, e terminado este, começou a frequentar a então secção preparatória para os Institutos Indus­ triais, apenas interrompidos pela obrigação do serviço militar. Foi enquanto estudante que embora na altura o não pudesse sequer adivinhar, teve como amigos, colegas de carteira e de turma, alguns dos que viriam a tornar-se em membros revolucioná­rios dos recém-criados movimentos pró-independência, tais como Vieira Dias, Quito, Fernando Van-Dunen, Saídy (Avelino) Mingas e irmão do nosso conhecidíssimo Rui Mingas, entre outros. Conheceu ainda era criança, o Dr. Américo Boavida, um Nacio­ nalista do MPLA. O antigo Hospital Universitário em Luanda, tem hoje o seu nome. Exerceu como técnico de Laboratório, funções no Instituto das Indústrias de Pesca de Angola, nos laboratórios de Luanda e depois de Benguela, de onde partiu para Nova Lisboa (Huambo), para frequentar o Curso de Sargentos Milicianos em Fevereiro de 1965. Foi aí que teve a consciência de que o serviço militar o iria “obrigar” a andar aos tiros provavelmente a alguns dos seus amigos e cama7


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radas de estudo que já era sabido estarem no campo oposto. Isso era algo impensável e que a todo o custo queria evitar, mas como? Havia algumas maneiras, mas nenhuma lhe agradava. Dava-se como analfabeto, ou quase, e então não passava muito tempo para além da recruta como soldado básico? Para além de não lhe agradar, também já não ia a tempo. Desertava? – Seria impensável. Toda a sua família iria sofrer de várias maneiras, para além do desgosto de o “perderem” seriam sem sombra de dúvida perseguidos pela PIDE. Restava a última e também não menos difícil. Iria esforçar-se para além das suas forças, de alcançar a melhor classificação possível, tanto ao fim dos meses de recruta como depois nos restantes meses de especialidade do CSM. De tal maneira se empenhou em tal propósito que num recrutamento que rondava um número próximo dos mil homens divididos por quatro companhias, tendo cada uma delas, quatro pelotões com mais de 40 soldados, sem contar com aqueles que não frequentavam o CSM, conseguiu a sexta melhor nota de toda a Unidade e dentro da sua companhia, a terceira. Foi chamado, entre outros, para frequentar o 2º ciclo do COM, em Mafra, uma vez que em Angola, o Curso de Oficiais Milicianos só se iniciaria dali a dois anos e nas mesmas instalações militares. Tal decisão iria implicar a que no fim do COM, fosse incorporado em contingentes metropolitanos, podendo vir a ser destacado para Moçambique ou mesmo para a Guiné. Angola seria uma hipótese igual, mas não havia a certeza disso. Tal como outros camaradas que como ele foram convidados, depois de ponderados todos os prós e contras, decidiram não aceitar (opção que tinham ao dispor) preferindo ser furriéis milicianos em Angola do que alferes milicianos noutro qualquer território. Tudo isto, afinal, para quê? Para evitar ir de imediato para qualquer frente de combate no Norte ou Leste e poder escolher a Unidade pretendida para colocação. 8


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Escolheu o Regimento de Infantaria de Luanda. Estava em casa e junto da família. Não ia para o mato a não ser em últimas circunstâncias. Tornou-se assim em instrutor militar e só foi para o mato cumprir quatro dos últimos seis meses de tropa. Só voltaria a saír de Luanda em Setembro de 1975 pelos motivos sobejamente conhecidos, infelizmente. Casou como qualquer cidadão normal e nessa cidade nasceram seus dois filhos e as suas funções profissionais foram desempenhadas na “Mabor Angolana”, indústria de confecção de pneus auto. Foi em Portugal que enfrentou as maiores dificuldades da sua vida. Tinha duas crianças pequenas para sustentar e se não fossem seus avós maternos e a relativa facilidade com que a esposa conseguiu trabalho, uma vez que era enfermeira de profissão, essas dificuldades seriam ainda maiores. A terra, o País, as gentes e seus costumes eram para si algo de muito estranho. Estava fora do seu ambiente, as portas fechavam-se constantemente cada vez que procurava trabalho. O seu Curriculum, ao mencionar as habilitações adquiridas em Angola não “valiam” para nada. Fez um curso de Instrução preparatória no Tribunal da Guarda, na esperança de que assim talvez fosse mais fácil. Não foi e as saudades da “sua terra” aumentavam a cada dia. Não fossem as obrigações familiares e já teria regressado enfrentando todas as adversidades. Aceitou de imediato o primeiro emprego que lhe fora oferecido, passados dois anos após a sua chegada, como servente da construção civil, mas a partir daí as oportunidades foram então surgindo, mas graças apenas a alguns dos “retornados” então já colocados e em funções em diversas áreas. Trabalhou numa indústria alimentar local (Guarda), dali para Ponte de Sôr para o laboratório de uma fábrica do ramo da indústria de borracha, dali para o Norte do País, para Santo Tirso, também para uma fábrica de pneus onde já encontrou alguns dos seus 9


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ex-camaradas de trabalho em Luanda. Estava finalmente bem e no seu “habitat” natural, pensava ele. Seria para ficar, se não surgisse uma proposta muito mais rentável e quase irrecusável para se mudar, primeiramente para Lisboa e depois para Sines, tendo um lugar para ocupar no Laboratório Central da Petroquímica. Foi admitido em Fevereiro de 1979 em Lisboa onde permaneceu quase um ano dividido em estágios vários, ora em Cabo Ruivo em Lisboa, ora em Leça, Matosinhos. Assentou arraiais em Sines, ou melhor, no Centro Urbano de Santo André, em Janeiro de 1980, até aos dias de hoje. Esteve na CNP até Agosto de 1983 de onde se mudou para a Carbogal de onde saiu para se reformar. Seus filhos aqui foram criados tendo apenas a idade idêntica à sua quando foi com a família para Luanda. Tal como lá, também cá acompanhou o desenvolvimento e expansão de ambas as cidades. Como criança, nos longínquos anos 50 o desenvolvimento e expansão de Luanda e aqui nos nossos tempos o desenvolvimento e expansão da nossa cidade Nova de Santo André. Para ele, mesmo não sendo de lá natural, Luanda era e é ainda a “sua terra”, sem esquecer, como é natural, a terra que o viu nascer. Também para seus filhos, não tendo nascido cá, a sua terra é sem sombra de dúvida a nossa cidade de Santo André, terra que não querem largar a todo o custo tendo em conta os tempos difíceis que atravessamos, mas sem esquecerem também aquela onde viram pela primeira vez a luz do Sol. Passados tantos anos podemos afirmar que já é mais Alentejano que qualquer outra coisa. Começou a escrever depois de reformado para dar corpo a um sonho antigo. Seu primeiro livro intitulado “Geração Rejeitada” é uma autobiografia e um relato do modo de vida que teve na sua infância e 10


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juventude, sem rejeitar a oportunidade de relatar alguns dos tristes acontecimentos acontecidos consigo e respectiva família após o 25 de Abril em Luanda e ainda os primeiros tempos em Portugal. O segundo e que aqui se apresenta, intitulado “O Soba Branco” é um romance de ficção inspirado em factos verídicos sobre a passagem por Angola de determinado militar no cumprimento do seu serviço obrigatório e depois, também ele, uma vítima dos tristes e trágicos acontecimentos após o 25 de Abril. Em Santo André e fora do âmbito profissional, chefiou em tempos o Agrupamento nº 581 do Corpo Nacional de Escutas, “bichinho” que lhe ficou do tempo da sua juventude em Luanda como escuta do CNE.

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Notas do Autor

Muito já se escreveu, e, porventura se escreverá, sobre as terras de África, mas procuro nestas linhas descrever algumas vivências familiares, não por entender que algo de relevo e de interesse haja nelas, porque, como a minha, houve centenas ou mesmo milhares de outras famílias, que por lá viveram e à Terra se dedicaram de tal forma, que se torna impossível esquecê-las. Tento também ser o mais claro possível, usando uma linguagem corrente e acessível, a todos os níveis culturais. Os episódios aqui narrados, são, contudo verídicos, mas procuro descrevê-los de uma forma romanceada e trabalhada de modo a que não pareçam factos meramente jornalísticos, com o tratamento normal de uma mera notícia. Começo assim por dizer que, por lá, os nossos horizontes não tinham fim nem limites. As perspectivas de futuro, sustentadas pelo regime político de então, eram invulgares, mas limitadas se pretendêssemos contrariá-lo, num ou noutro aspecto. Mesmo assim, nada nos impediu no caminho do progresso ao ponto de transformar aquelas terras em países modernos e ricos, onde havia lugar para todos (e ainda há, desde que não falte boa vontade) e de todas as raças sem excepção. Só os entendidos e verdadeiros conhecedores, podem atestar a diferença entre a convivência entre raças diferentes que sempre houve, comparando as antigas colónias portuguesas às de outros países europeus, que, como nós, por lá andaram durante séculos. É por isso, que quero aqui homenagear todos aqueles que escolheram o caminho da paz, da amizade e boa convivência, na igual13


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dade de oportunidades com os naturais, e que por essa causa, muitos deram a própria vida. Outros, sentiram por parte do regime de então, alguma marginalização, classificando-os como Portugueses, brancos de 2ª classe (ou brancos – negros). É verdade também, que muitos erros e injustiças se cometeram, e as vítimas eram quase sempre as mesmas, mas não foi a nossa geração que as cometeu, e contudo, foi ela quem “pagou as favas”. É também a esses, a essa “Geração Rejeitada”, que eu dedico estas linhas, mas cujos nomes das personagens aqui descritas, (por respeito para com eles, principalmente por aqueles que já não vivem entre nós) nem todos poderiam ser os verdadeiros. Outros são, mas só os próprios o saberão, se ainda forem vivos, e puderem, ou quiserem ler estas linhas. Não fomos nós que fizemos as guerras, que, a partir de determinada altura, se tornaram inevitáveis. E não foi apenas nas suas várias frentes armadas que havia combatentes. Havia outras frentes, principalmente no seio da sociedade civil. Aí havia combatentes civis de todas as raças, e nem todos foram reconhecidos como tal. Até nesse aspecto houve quem fosse rejeitado e sabemos bem porquê. Também é verdade que, depois de implantada a democracia que permitiu que essas terras passassem a ser de quem de direito, se continuaram a cometer muitos erros e muitos crimes, só que estes, apesar de serem crimes, não tiveram a punição que mereciam. Para mim, todas as Ditaduras são iguais e deviam merecer o mesmo tratamento. É a minha opinião. Os Nazis capturados depois de terminar a grande Guerra, foram julgados e condenados. Os Fascistas foram escorraçados e condenados conforme os crimes cometidos. Mas quanto aos Comunistas 14


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que cometeram crimes horrendos à “sombra” de uma falsa Democracia, que lhes fizeram? Nada! Absolutamente nada! Nem sequer coragem para os denunciar, enquanto não se deu a queda do Muro de Berlim, e o consequente fim da “Cortina de Ferro”, e, em Portugal, esta medida não foi excepção. Infelizmente! Estas linhas são também dedicadas a todos aqueles que, mesmo não pegando em armas, contribuíram para a liberdade do povo a que pertencem, tanto Angolanos como Portugueses. A colegas de turma em tempos de estudante, como o caso do Saydi Mingas, Quito, Óscar, Nini, Nicola, Roseira, e como não podia deixar de ser, ao “meu irmão” Pascoal, e a muitos mais. Aos meus falecidos pais e irmã, que até ao último dia de suas vidas nunca deixaram de desejar que a Sagrada Terra Angolana, conhecesse um dia o progresso, a justiça para todos, independentemente da sua raça ou credo, e uma verdadeira paz para todo o sempre. Terminaram a sua missão nesta Terra, com a esperança de poderem voltar um dia àquela a que se dedicaram de corpo e alma. Quanto a mim, ao fim de tantos anos, apesar de ser um Cidadão comum, Português de pleno direito, há no entanto no mais profundo do meu ser, algo para o qual não tenho explicação. Sou Português, sem dúvida, mas continuo a vibrar com tudo aquilo que nos chega de Angola. Alegro-me com o seu progresso e sinto o tormento por que ainda passa o seu povo mais humilde, como se fosse ainda um deles. Na verdade, continuo a sentir-me Angolano também. Será normal? Não sei dizer!

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I Capítulo

A GRANDE AVENTURA

José, filho mais novo de uma família numerosa, pai, pastor da Serra da Estrela e mãe doméstica como a maioria das mães de família dos primórdios do século vinte, vivia como toda a sua numerosa família, dos parcos rendimentos que o trato da terra lhes proporcionava. Escusado será dizer que a sua Escola, como a de todos os seus irmãos foi como a dos pais, no trato da terra e na guarda dos rebanhos de ovelhas e cabras entregues à sua guarda pelos respectivos donos. Foi assim a sua infância e respectiva juventude, e, talvez por ser o mais novo da família, «gozou» de alguns privilégios, como o de poder fazer parte do Rancho Folclórico da terra, participar na organização das festas religiosas da sua Freguesia, entre outros. Chegou a idade do namoro com uma rapariga da mesma freguesia, casaram passado algum tempo e teve a desdita de ficar viúvo antes de concluir o primeiro ano de casado. O desgosto foi grande e muito mais tarde, após esquecidas algumas dores, pensou em casar de novo depois de conhecer outra rapariga um pouco mais nova e que tivera uma juventude um pouco melhor que a sua. Ela já teve a possibilidade de andar na Escola (até à 2ª Classe) que concluiu, indo depois para uma fábrica de lanifícios como operária e daí para a cidade, Capital de Distrito. Lá trabalhou como serviçal e depois como aprendiz de enfermagem, profissão que exerceu até se conhecerem, namorarem e casarem algum tempo depois, pois já estavam ambos a chegar à casa dos “trinta”. Assim foi, passando ela a dona de casa e ele como jornaleiro, fazendo alguns “alqueves”, no alto da Serra para garantir o sustento 19


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da família então constituída. Quando o primeiro filho vinha a caminho, com a necessidade de arranjar mais algum dinheirito, lá conseguiu trabalho ainda como assalariado na Câmara Municipal onde passou a ser “pau para toda a colher” desde varredor a calceteiro e a aprendiz de canalizador. Esta última actividade, depois de aprendida, permitiu-lhe exercer, como responsável, dando-lhe alguma margem de tempo para outras ocupações particulares. Os filhos foram aparecendo, as dificuldades aumentando. E sabemos bem, que após a 2ª Grande guerra, e durante o tempo que durou, o povo passou tempos difíceis. E quando nasceu o terceiro de quatro filhos que tiveram, e distando entre si menos de dois anos de diferença, começou a avolumar-se a ideia de partir para outras paragens onde pudesse ter uma vida melhor para todos e poder garantir para os seus um futuro mais risonho, pelo menos melhor que aquele que seus pais lhe proporcionaram. Mas para onde? O mais longe da Terra para onde a obrigação do Serviço Militar o obrigara a ir, fora Lisboa onde permaneceu durante sete meses na Companhia de Caçadores nº 7, então no Castelo de S. Jorge. Não sabia mesmo que volta a dar à sua vida, até que surgiu uma luz ao fundo túnel. Tinha seguido viagem para Angola (Luanda) uma de suas irmãs e onde já residiam alguns conterrâneos a quem, alguém com algumas posses e influências, conseguira um contrato como doméstica numa pensão em Luanda. A essa possibilidade se agarrou, pois via nela a melhor que se lhe poderia apresentar visto ser analfabeto e nas Colónias continuaria a falar a sua Língua Materna e portanto, segundo ele, sem gran20


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des problemas de comunicação, de adaptação, e quem sabe, poder aprender a ler e a escrever. O certo porém é que passado algum tempo de estar a trabalhar em Luanda, a sua irmã escreve-lhe por intercessão de terceira pessoa (pois também não sabia ler nem escrever) que havia uma possibilidade de conseguir um contrato de trabalho como canalizador numa empresa responsável pela distribuição de água e electricidade à Cidade (L.A.L.). Com a certeza de que, caso aceitasse, lhe seria enviada na volta do correio a célebre “Carta de Chamada” documento obrigatório, para todo aquele que pretendesse ir paras as Colónias como “colono”. Já vinha a caminho o quarto filho quando resolveu, depois de ponderadas todas as situações e consequências ao deixar para trás mulher, três filhos e o quarto a caminho, com 5, 3 e 1 anos de idade, respectivamente, partiu então como colono com destino a Luanda no navio “Moçambique” em Janeiro de 1950. À chegada, foi para uma pensão no Bairro dos Coqueiros e que tinha precisamente o mesmo nome do Bairro, “Pensão dos Coqueiros” e junto do então único Estádio Municipal dos Coqueiros, que para além da prática do futebol, era um autêntico polivalente que ia do atletismo ao desfile de marchas populares e outros que tais como mais adiante veremos. A partir de então a única possibilidade de trocar notícias com a família era através de cartas, as quais, no caso dele, teve de se socorrer de um ou outro, entre os vários amigos e companheiros de aventura por terras então desconhecidas. Um deles era o Sr. Cunha, que mais tarde lhe cedeu a sua Caixa Postal na Central dos Correios (hoje, Palácio das Comunicações), na baixa de Luanda, em virtude de ter arranjado trabalho numa outra cidade angolana. 21


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Só passado algum tempo, e quando as saudades apertavam cada vez mais, e depois de saber que na sua terra, sua esposa acabara de dar à luz o seu mais novo e quarto rebento e que tanto desejava conhecer, decidiu, com a ajuda de sua irmã, procurar casa para onde se mudar e onde pudesse estar com aqueles que mais amava e que eram a sua razão de viver e a causa de toda a sua luta de contínuos sacrifícios. Então, depois de algum tempo de procura, conseguiram encontrar uma casa antiga, velha, para ser mais exacto, pois o seu salário somado ao da irmã não dava para melhor, pois tinham que reservar algum para o seu sustento e o da respectiva família que já não era assim tão pequena. A casa era uma construção do século XVIII, construída de raiz para ser um hotel, localizada na parte mais antiga e histórica da cidade, a Cidade Alta, bem próximo do Palácio Governamental e de alguns edifícios públicos tais como os Serviços de Fazenda, Serviços de Economia, Serviços de Pecuária, Museu Etnográfico e Zoológico e ainda Paço Episcopal, Tribunal Militar, ruínas da Igreja dos Jesuítas (mais tarde reconstruída segundo a traça original e denominada desde então como Igreja de Jesus), Observatório Meteorológico, mais conhecido por “O Balão”, e sem ter de os nomear a todos, a Igreja da Misericórdia de Nossa Senhora da Conceição, e na altura Igreja Paroquial. Pois vamos então ver que tipo de casa era essa. Comecemos pela entrada, (como é óbvio) cuja porta dava para a Rua do Sol, que ligava a Calçada de Santo António ao Asilo D. Pedro V, em frente ao Casão Militar/C.C.S. – Q.G. Ao abrir da porta, deparávamo-nos com uma escada com meia dúzia de degraus que davam para um pequeno quintal toscamente cimentado, tendo à direita outra escada, esta um pouco maior que dava para uma espécie de varanda com frente para o dito quin22


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tal. Ao cimo das escadas à direita tínhamos a cozinha, esta assente sobre uma placa de betão que cobria as escadas de entrada, e que, por sua vez, também era coberta com outra placa de betão. Era bastante pobre em equipamento necessário a uma normal cozinha pois dispunha apenas de um pequeno “lava-louça” que não passava de uma pia em pedra e uma outra em louça de forma circular, colocada a um canto e que servia para os respectivos despejos de cozinha. No canto oposto, uma plataforma também em pedra a uns cinquenta ou sessenta centímetros de altura onde era colocado um pequeno fogão a petróleo para confecção das refeições. Na parede oposta, uma janela que ficava sobre a porta de entrada. Saindo da cozinha e voltando à varanda, tínhamos à esquerda o quintal, à direita uma parede “rendilhada” com uma espécie de tijoleiras em forma de U invertido e assentes, uns sobre os outros de forma a dar-lhe um aspecto de arcos sobrepostos. Em frente, uma pequena janela que era da casa de banho e ao lado dessa mesma janela uma porta que dava acesso a uma divisão, pela qual se tinha acesso à dita casa de banho. A parede à direita era igual à da varanda, tendo ao meio uma pequena mesa de madeira, e uma estrutura toscamente construída, onde assentava um filtro de água em pedra porosa. Quanto à casa de banho era apenas um espaço cimentado com um chuveiro na parede da frente, ao canto do fundo e à esquerda, junto à janela que dava para a varanda, uma vulgar sanita e em frente desta um pequeno lavatório, e nada mais. A seguir a estas divisões da casa restavam dois grandes salões característicos das típicas salas de jantar daquilo que em tempos fora um hotel. O primeiro um pouco menor que o seguinte, dispunha de duas janelas à direita voltadas para rua, sendo uma delas aberta até ao nível do chão. Tinha um parapeito constituído por barras de ferro fundido, o tecto forrado a madeira pintada, soalho em madeira própria para o efeito, mas já mostrando, aqui e ali, alguma 23


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degradação. À esquerda uma grande porta em madeira, também pintada e trancada com três fortes travessas a ela pregadas, pois do outro lado morava outra família, e por fim o ultimo salão nas mesmas condições, só que um pouco maior, e que, em vez de uma porta trancada da mesma maneira, tinha duas, e em frente duas grandes janelas com o mesmo tipo de parapeito em ferro e ainda outra, igual, ao fundo e à direita. Tornava-se portanto evidente que em tais condições não seria possível viver uma família com o agregado familiar com tal composição. Onde estavam os quartos de dormir tão necessários à privacidade e comodidade mínima que cada qual necessitava? Era necessário fazer algo para a tornar minimamente habitável. Como resolver tão urgente necessidade? E mais uma vez, aquele chefe de família necessitou de ajuda, e não faltaram os amigos que com ele puseram mãos à obra. Começou pelo chão, no qual foi colocada, aos bocados, rede de capoeira, pregada à madeira do chão e então sobre esta foi colocada uma camada de cimento com areia fina, sobre todo o soalho e depois afagado com pó de cimento e óxido de ferro, dando-lhe um aspecto mais sólido, mais fresco e resistente. Isto em todo o lado onde o chão era em madeira, isto é, em ambos os salões e na divisão em frente da casa de banho e logo após a varanda inicial. Depois do chão seco e em condições de se andar sobre ele, começou então a preparar o material com o qual iria construir os quartos de dormir. Mas havia um problema: a estrutura não iria aguentar com o peso de paredes em tijolo por mais pequenos que fossem. Teria de ser material bem mais leve, e naquele tempo que poderia ser? 24


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Depois de muito pensar e procurar, lá conseguiu umas ripas de madeira, uns estreitos barrotes devidamente aparados, e com este material começou a delinear as divisões que precisava. No primeiro salão pregou ao chão os primeiros barrotes no sentido longitudinal, isto é, de porta a porta, passando a separar todo o espaço do salão em duas partes, sendo a maior a que ficava à direita do mesmo. Ao alto e pregados ao aro de cada uma das portas, pregou outros barrotes de modo a ficarem sensivelmente a uma altura de dois metros e meio, mais ou menos e depois unidos entre si por outros, devidamente sustentados por ripas, ao alto e também pregadas aos ditos barrotes (o do chão e o que determinava a altura da divisão). Esta “parede” foi concluída depois, aplicando aos barrotes e respectivas travessas ao alto, umas esteiras feitas de um material vegetal, tipo canas macias (e que por vezes serviam mesmo para se descansar sobre elas), atando-as ao “esqueleto” em madeira e depois forrada com papel e cartão de ambos os lados. No segundo salão, o processo foi precisamente o mesmo, indo a dita parede desde o aro da porta, até à parede a meio das duas “varandas” da frente, mas com uma diferença: esta divisão, a da direita, era por sua vez dividida em outras duas, sendo uma delas, a do fundo, destinada a ser o quarto para o casal, tendo uma passagem para o contíguo, já a pensar no bebé que estaria em breve para chegar, bem como nos restantes filhos que eram todos ainda crianças tendo o mais velho concluído há pouco tempo os seis anos de idade. – Então, e as portas? – Perguntam vocês! Pois bem! Simplesmente, não havia, pelo menos por agora, pois as crianças eram pequenas, o calor a que não estavam habi25


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tuadas seria decerto um incómodo ao princípio, e depois quando a esposa chegasse se pensaria numa solução em conjunto. Faltava agora, o mobiliário minimamente necessário. Pouco a pouco, veio uma cama comprada em leilão e quatro cadeiras oferecidas por alguém que acaba de renovar parte do seu mobiliário. Os proprietários da Pensão, Dª. Lourdes e Sr. Aguiar e que se tornaram seus amigos, lá iam ajudando no que lhes era possível, e de modo incompreensível para muitos daqueles que nunca passaram por terras Africanas, e que, não imaginam, nem lhes passa pela cabeça o tipo de amizades que involuntariamente se adquiriam, talvez pelo isolamento, pela ausência dos familiares, sabe-se lá. Chegavam ao ponto de ser tão fortes que por vezes davam a entender que já eram conhecidos de longa data. E deste modo, pouco a pouco, um banco aqui, uma cadeira ali, uma cómoda oferecida por alguém, e outra à medida do seu orçamento. A mercearia de que podia dispor, era fiada, com o compromisso de tudo ser pago no fim de cada mês. E no quintal, o que fazer nele? Era preciso um tanque para a lavagem da roupa, um arame onde a estender para secar, e se possível um pequeno espaço onde criar umas galinhas, porque não? Nisso pensou, e como o tempo urgia, pôs mãos à obra. Comprou uns tijolos, um pouco de cimento e areia e a um canto do quintal entre o muro que dividia o seu, do quintal do vizinho, e um largo pilar de sustentação de uma parede, lá “nasceu” o desejado tanque, e ao lado uma “selha” (meio barril de vinho, que, serrado ao meio, dava duas). Desse pilar até a uma parede de madeira e sobre um ressalto com cerca vinte centímetros de altura e da mesma largura do dito pilar, montou uma rede e fez o desejado galinheiro. Quanto às galinhas, logo viriam. 26


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Sob a varanda, uma dispensa, a cuja parede de madeira, estava pregada a tal rede do galinheiro, e que servia para toda espécie de arrumos, inclusive a sua própria ferramenta de trabalho, a sua e a que lhe estava distribuída. Agora sim! Sentia que já dispunha do mínimo para poder receber a família. Precisou apenas de tratar da papelada necessária e enviá-la para a Metrópole. Aí sua esposa trataria do restante, o que realmente aconteceu, seguido da trabalheira que esta, com a ajuda dos seus, conseguiu minimizar, e que era o embalar da sua tralha, aquela que supôs estritamente necessária, porque nem tudo podia levar consigo. E assim chegou o desejado dia da partida e, acompanhada do pai, lá seguiram viagem na camioneta de carreira, até à Estação do Comboio de Belmonte, onde tomaram o Comboio da Linha da Beira Baixa até Lisboa. Aí permaneceram alguns dias até chegar o dia do embarque com destino a Luanda. Embarcaram então no Navio de carga “Índia”, em terceira classe, que outra coisa não era que serem “acomodados” no porão do Navio como se de gado se tratasse, ela, os quatro filhos e cerca de uma centena de outras famílias, que partiam com a mesma esperança de encontrar uma vida melhor. ! Foram “apenas” vinte dias de viagem com “todas as comodidades”.

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A CHEGADA DA FAMÍLIA

O leitor, já se apercebeu, por certo de que todos os factos até aqui narrados e verídicos, falhe embora um ou outro facto menos correcto no tocante a pormenores e já dissipados pelos já longos anos passados sobre os acontecimentos, não poderiam ser descritos por alguém que não estivesse por dentro, isto é, que os não tivesse vivido e sentido de perto. Esse alguém, e autor destas linhas, não é senão o filho mais velho deste casal, que ao longo dos anos foi fixando e memorizando os factos que em família iam sendo contados e vividos em conjunto, e outros apenas pelo próprio. Sim, eu era o mais velho dos quatro e tinha seis anos de idade quando chegamos a Luanda. Quase a fazer os sete. Portanto, daqui para a frente o discurso vai ser narrado na primeira pessoa e baseado nas recordações e vivências do próprio, e ainda na perspectiva e vivência de todos os seus familiares, não esquecendo aqueles, alguns, que por força da Natureza Humana, já não fazem parte do Mundo dos vivos. A eles, e por eles, e pela memória dos milhares que como nós passaram por Terras de Angola, por ela trabalharam e deram tudo o que de melhor houve nas suas vidas. Por todos aqueles que ainda hoje ao falar-se naquelas terras, ainda tão queridas, sentem uma revolta de impotência misturada com sentimentos de amor por elas, mesmo sabendo que mais nada podem fazer. Continuemos pois com a narração dos factos por mim relembrados. 28


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No dia 14 de Julho de 1951, desembarcávamos no Porto de Luanda ainda no período da manhã e lá estavam, como era de esperar, meu pai e minha tia. Após o desembarque de toda a bagagem que por sua vez fora carregada numa carrinha de alguém, talvez mais um dos seus amigos que para tal se prontificou, lá seguimos com destino a “nossa” casa. Aí nos esperava o nosso primeiro almoço, antecipadamente confeccionado pela nossa tia, e coisa que me ficou gravada na memória e diversas vezes repetida ao longo dos tempos, foi o facto de que a sopa que me foi posta à frente era uma apetitosa canja de galinha, mas…, cada vez que me aproximava do prato, me davam vómitos e por mais que tentasse não fui capaz de a comer. – Será por ser feita com massinha? – Perguntavam-me minha mãe e minha tia. – Talvez seja por se sentir em terra firme e se sinta mal disposto. – Dizia meu pai, tentando justificar-me, talvez. – Mas, se as refeições a bordo, não eram melhores, antes pelo contrário, porquê isto? – Perguntava minha mãe! E aí me vieram à mente aqueles vinte dias de viagem que para mim e para outras crianças não foram nada maus porque tínhamos à nossa disposição um convés bastante cheio de máquinas, motores e inúmeros corredores, qual parque de diversões, onde corríamos uns atrás dos outros, subíamos e descíamos maquinaria que para nós não passavam de cavalos e carros imaginários, mas eram um autêntico tormento para as respectivas mães que nos vigiavam, bem como para toda a tripulação que andando por ali no seu trabalho diário de pinturas de manutenção e limpeza, as ajudavam na sua tarefa de vigilância. Pior, bem pior, eram as noites passadas 29


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no porão que virou autêntica caserna, pois as camas eram beliches militares dispostos em duas filas, de cada um dos lados, com um não muito largo corredor entre elas e onde tinha sido colocado a todo o comprimento uma suposta divisão de panos brancos, como lençóis pendurados numa corda e com a finalidade de pôr homens de um lado, mulheres e crianças do outro. Sem vigias e com tanta gente junta, alguns enjoados, e não eram poucos, será escusado dizer que o cheiro que se sentia era insuportável, apesar da limpeza que diariamente era feita por diversos elementos da tripulação. O ar era, na maior parte das vezes, irrespirável. Portanto não admira que preferíssemos o dia passado no exterior, apesar dos vários perigos que um navio de carga, inadequado ao transporte de passageiros, proporcionava. Mas era o que tínhamos, e a vontade de nos juntarmos aos nossos, que nos aguardavam superava todas as dificuldades. Mas finalmente, tínhamos chegado, e todos bem, graças a Deus, e não fora o caso, de eu não ter conseguido comer a canja, quase nem valeria a pena relembrá-lo, pois, de facto, como essa tarde foi passada, eu não me lembro, mas por certo foi dedicada ao abrir de toda a bagagem, das malas mais pequenas às maiores, incluindo algumas de porão e alguns caixotes. A partir daí foi a azáfama natural do arrumar de todas as bugigangas nos seus lugares, tratar das crianças e particularmente do mais novo da família e que portanto carecia de maiores atenções e cuidados, particularmente de meu pai que exultava de alegria por nos ter novamente junto de si, e a este em particular, pois ainda o não conhecia. Tinha apenas oito meses de idade, a minha irmã com dois anos, meu irmão com quatro e eu com seis. Depois de alguma acalmia com o passar dos dias, que para além do trabalho doméstico e do qual minha mãe se foi encarre30


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gando (minha tia tinha o seu emprego e pelo qual tinha de responder) aos poucos foi conhecendo os nossos vizinhos e pouco a pouco conhecendo o lugar, o bairro e todas as redondezas. A mercearia “A NUTRITIVA-BAR” ficava mesmo por baixo, no rés-do-chão, com grandes portas, umas viradas para a Rua do Sol e outras para o largo ao cimo da Calçada de Santo António e em cujo topo se situava o Jardim Municipal do Palácio. O seu proprietário era um bom homem, bonacheirão, baixo e de grande barriga, sempre alegre e bem-disposto. Um bom amigo, viemos nós a descobrir com o decorrer do tempo. Após o espaço ocupado pela mercearia, havia uma grande porta de duas folhas de boa madeira e que nunca se fechava, dia e noite. Ao que parecia, era a entrada principal do Hotel, se algum dia o fora, e ao entrar deparava-se em frente, uma escadaria em forma de caracol de dois lanços até ao primeiro andar, que era precisamente onde moravam os nossos vizinhos cujas portas trancadas, e que já mencio­ nei, impediam que se passasse de um lado para o outro. Seguiam-se depois mais três portas da ALFAIATARIA MODERNA, cujo dono o Sr. Ribeiro e respectiva família se juntaram ao nosso grupo de amigos, e logo a seguir uma sapataria, do Sr. Pinho e D. Mimosa, a sapataria PROGRESSO, para completar o número de estabelecimentos comerciais, virados para o largo de Sº António e para o jardim do Palácio. No primeiro andar mesmo por cima da alfaiataria, residia o seu proprietário, Sr. Ribeiro, e por cima da sapataria, a D. Maria Barrocas. Sobre a Mercearia, (como nós) os nossos vizinhos mais próximos, o Sr. Faím e sua esposa D. Maria e suas duas filhas, a Maria Odete e a Hortense.

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Do lado da Rua do Sol, e logo a seguir à nossa porta de entrada, a família Passos Ramos, mais à frente a menina Esménia, na sua casa cheia de hóspedes, e mais acima, a família Monteiro, cujo chefe, o Sr. Monteiro era um dos directores de Fazenda Pública, e ao cimo da rua a família Ramalho. Do lado oposto da rua, lembro-me bem da D. Vitória, viúva de um militar graduado e proprietária de um dos grandes quintais mesmo à frente das nossas janelas, e ainda, D. Henriqueta e Sr. Martins, que dividiam o mesmo quintal com D. Vitória. No lado oposto, no largo em frente das nossas janelas e da Mercearia, tínhamos ao cimo a residência do Director Geral da Companhia dos Diamantes (Diamang), um campo de ténis que pertencia à mesma residência e pegado a este o edifício dos Serviços de Economia. Logo a seguir a casa onde morava o Sr. Pinho, o sapateiro, e sua esposa D. Mimosa, a família Moura, a família Morgado, e ainda uma outra de quem já nem me lembro do apelido, e ainda na fase descendente da Calçada de Sº António a residência de uma abastada família Sousa Machado (fazendeiro de roças de café, suponho) a julgar pelas grandes “máquinas” estacionadas à porta: um Cadillac, um Buìck, um Chevrolet Impala, entre outros. Todos estes, se a memória não me falha, eram os nossos vizinhos aquando da nossa chegada, e com os quais, pouco a pouco nos fomos aproximando e criando os primeiros laços de amizade, alguns para toda a vida. Escusado será dizer que não seriam os únicos, e ao longo dos tempos outros foram surgindo e que no decorrer desta narração iremos conhecendo.

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OS PRIMEIROS PASSOS

Minha mãe, aos poucos, foi-se ambientando e quando se viu sozinha em casa com quatro crianças, pois tanto meu pai como minha tia tinham de ir para os seus respectivos trabalhos, teve de me distribuir algumas tarefas e responsabilidades, tais como, tomar conta de meus irmãos, especialmente do mais novo, mesmo que estivesse a dormir, e muito especialmente quando acordado, pois já dava sinais de querer dar os primeiros passos. Era preciso cuidar das tarefas domésticas, tais como, cozinhar, limpar o chão, o pó, lavar a roupa que não era pouca e estendê-la a secar, ir às compras, não só de mercearia que estava à porta, bem como ir ao talho, e o mais próximo que tínhamos então era o “Talho do Povo”, na Baixa e um pouco mais adiante do Largo de D. Afonso Henriques, mais precisamente na Rua Capelo e Ivens. Para ir à Mercearia fazer as compras de que precisava e com a qual já estava preestabelecido com o Sr. Rodrigues, não precisava de as pagar no acto de entrega, pois era norma corrente que os seus mais fieis clientes pagassem as suas dívidas no fim de cada mês. Bastava para isso que estes, dispondo de um pequeno livro, ou caderno, fizessem uma lista de tudo o que precisassem, e depois ao balcão da mercearia, à medida que se iam aviando os pedidos se iam registando à frente, e num espaço traçado para o efeito, os respectivos preços, que por sua vez eram também registados em género e custo num outro livro existente para cada cliente o qual estava sempre ao dispor na loja para consulta do mesmo, sempre que este o solicitasse para verificação e para que no fim de cada mês, caso batesse tudo certo, se pagar então a despesa acumulada. Era uma das tarefas que aos poucos passou a ser da minha responsabilidade uma vez que eu já sabia ler e escrever mesmo antes de ir para a escola, pois tinha sido uma das tarefas de meu avô materno que tomara a si o cuidado de me ensinar, antes mesmo de partir, 33


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através da velhinha “Cartilha Maternal de João de Deus”, então obrigatório nas escolas daquele tempo. Assim sendo, minha mãe, enquanto entregue aos seus afazeres, ia ditando, e eu escrevendo, tudo o que precisava, conferindo depois, não fosse alguma falha ou erro, dar origem a qualquer engano. Por sua vez, meu pai, chegado a casa após um dia de trabalho não dava mostras de cansaço, ocupando o seu tempo noutras tarefas, tais como as de limpar o pequeno galinheiro onde já havia algumas galinhas e um galo, pondo-lhe de comer, verificando se havia algum ovo para o “mata-bicho”, fazendo uma reparação ou outra, pois numa casa velha havia sempre qualquer coisa que era preciso reparar ou mesmo fazer de novo. E por falar nisso, lembro-me de o ver fazer uns trabalhos em madeira esquisitos para mim, pois não sabia do que se tratava. Quando ele me disse, assim que lhe perguntei do que se tratava, respondeu-me que eram uns moldes para fazer uns vasos para flores, a pedido de minha mãe. Eram apenas oito pedaços de madeira sendo quatro menores e outros quatro maiores de modo a que depois de unidos entre si, coubessem um dentro do outro e tendo o fundo completamente tapado depois de assente numa base de madeira. O espaço que ficava entre as duas peças em forma de trapézio invertido era depois ocupado com massa de cimento e areia, a qual, passados alguns dias estava seca, bastando depois desmanchar as peças para ficar então, e só, o vaso de cimento o qual ainda iria ser enfeitado com umas conchas trazidas da praia e por fim pintado. Fez vários e de diversos tamanhos onde depois de lhe deitar terra, plantava as plantas que ia arranjando, e que algumas vizinhas iam oferecendo. E assim, aos poucos aquela entrada pelo quintal, ia apresentando um aspecto mais bonito e acolhedor, ao ver aqueles vasos colocados nos topos de cada degrau, escada a cima. 34


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Por falar nas conchas da praia, relembro assim a nossa primeira ida à praia. Certo dia, depois de meu pai ter chegado a casa, perguntou: – Quem quer vir à praia? Ficamos todos a olhar para ele sem perceber bem o que ele pretendia. Foi minha mãe, que, passados uns breves instantes, perguntou: – Então são lá horas de ir à praia, (seriam umas cinco horas da tarde) sabendo tu que nem fatos de banho temos, e o sol pode fazer mal aos miúdos que ainda não estão habituados? – Ora mulher – disse meu pai em resposta – Precisamente por não estarem habituados é que estou a dizer para irmos agora, pois o sol começa agora a baixar e não está tão quente ao ponto de se queimarem. E quanto a fato de banho, os miúdos não precisam de nenhum em especial, basta levarem aqueles que diariamente usam, talvez então os mais coçados e nós vamos assim mesmo pois não tenciono molhar mais que os pés, e assim descontraímos um pouco, ou ainda o não merecemos? Minha mãe, pensando melhor, lá concordou e preparou tudo o que entendeu ser necessário. Pouca coisa, pois o tempo de que dispunha também não permitia a mais. E lá fomos nós, alegres, encantados com o nosso primeiro passeio na praia e ainda por cima com transporte, pois estava à porta um colega de meu pai (Sr. Ass) com uma carrinha à nossa espera para nos levar até à Praia do Sol, à qual se chegava ainda por terra. Foi um fim de tarde inesquecível, corremos, saltámos, e entrávamos na água até onde a nossa coragem deixava, e meu pai, sempre vigilante, permitia, e quando chegados a casa, depois do necessário duche, até o jantar foi mais alegre e saboroso. 35


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A ESCOLA (PRIMEIROS PASSOS)

Um dia, à mesa, meus pais conversavam a meu respeito sobre a escola, para me matricularem. Claro está, que eu não entendia nada do que conversavam entre si, mas notei alguma preocupação no semblante de minha mãe e dizendo “que era muito tarde”, e foi então que eu perguntei: – Mas mãezinha (era assim o tratamento entre todos nós, de pais para filhos e vice versa) é tarde para quê? Ficaram a trocar olhares entre si, e virando-se para mim, minha mãe chamou-me e disse: – Sabes que se não tivéssemos vindo para Luanda, tu já estarias na escola uma vez que já fizeste os sete anos, não sabes? Minha resposta foi apenas um encolher de ombros e percebendo a minha ignorância, minha mãe continuou: – Sabes filho, as aulas aqui começam em Abril e acabam em Dezembro. Ora, nós só chegámos em Julho e já não aceitam mais matrículas, e tu só podes ir para a primeira classe para o ano que vem e aí tu já estarás quase com oito anos. E até lá se não arranjarmos alguém para te ir ensinando e dando algumas lições, atrasas muito os teus estudos e depois é muito difícil recuperar o tempo perdido, e tu não queres ficar para trás, pois não? Fiquei a olhar sem saber o que dizer, e meu pai, entrando no diálogo, virando-se para mim, disse-me: – Aqui ao lado a nossa vizinha, a D. Maria Passos Ramos, conhece uma professora amiga e que tem um colégio. 36


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Interrompi e perguntei: – O que é um colégio? E foi minha mãe que depois continuou: – É uma escola na mesma, mas tem um dono ou mais, não é do Estado como as outras, portanto é a mesma coisa só que é particular, percebes? Disse que sim acenando com a cabeça, ao que minha mãe continuando, disse: – Assim se tu fores para lá até ao início do próximo ano, a professora ensina-te tudo o que precisas aprender e quando entrares para a escola, vais ver que fazes tudo com “uma perna às costas”. Cadernos, lápis, borrachas e canetas, compramos aqui na loja do Sr. Rodrigues e os livros servem os mesmos que serviram às filhas da D. Maria e para além disso trouxemos uma pedra (lousa), que pode muito bem ser usada. Ficou então decidido, e passado o fim-de-semana, lá seguimos, eu e minha mãe, na segunda-feira seguinte à tarde (pois as aulas só podiam ser à tarde) até ao dito Colégio “Portugal”, que ocupava parte, ou todo, não sei, de um prédio de três andares na Avenida Serpa Pinto, em frente da “TUDOR”, e próximo da Igreja do Carmo. Tínhamos as ditas aulas no terceiro andar, por vezes no terraço e quando acabavam lá vinha eu com uma pequena pasta de cartão, que mais parecia uma mala de viagem em miniatura e de que eu me orgulhava bastante, como se de uma preciosidade se tratasse. E, entre livros e cadernos, lá conseguia arranjar espaço para uma pequena garrafa de vidro branco com água e um pequeno lanche que comia pelo caminho que aprendi a conhecer em pouco tempo. 37


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Assim, quando o mês de Abril chegou já minha mãe tinha tratado da matrícula, bastando, para isso, a Cédula Pessoal. E, porque em termos administrativos, o local onde morávamos pertencia à Junta de Freguesia da Maianga, fui encaminhado para a Escola Padre José Anchieta que ficava não muito longe de casa e praticamente em frente do Quartel-General (o antigo) e no mesmo caminho de quem se dirigisse ao Hospital Central D. Maria Pia. Era uma escola com quatro salas de aulas sendo cada uma delas para cada classe, da primeira à quarta classe, e um grande recinto térreo, para onde saíamos no intervalo, e no qual havia, nesse tempo um pequeno espaço coberto com uma trepadeira, quase sempre em flor (buganvília) com quatro bancos corridos em cimento, para onde me dirigia a fim de comer o lanche e beber a minha inseparável garrafinha de água. O meu professor, lembro-me eu, chamava-se Sr. Costa, gostava muito dele, e já sabia da minha situação, pois se em idade eu estava atrasado em relação aos colegas, no conhecimento da matéria, de uma maneira em geral, eu estava alguns, não muitos, passos à frente. E como se costuma dizer terminei o ano com distinção e sem grandes dificuldades, deixando meus pais muito satisfeitos comigo, dando por bem empregue o tempo que passei no Colégio. *** Entretanto, em casa, as modificações e os melhoramentos iam surgindo. Um retoque aqui, uma pintura ali, e foi então que surgiu uma boa ocasião de poder melhorar também o quintal, além de que o melhoramento era estritamente necessário, pois sempre que chovia, era um verdadeiro dilema ir à cozinha e regressar, principalmente na hora das refeições, uma vez que teríamos de passar pela varanda na qual não havia cobertura de qualquer espécie. 38


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Além disso, a água acumulada no quintal, após uma boa chuvada, teria forçosamente de escoar escadas a baixo em direcção à rua, o que acontecia quando atingia uma determinada altura, impossibilitando que alguém entrasse ou saísse. Teria de ser pensado e estudado um processo de escoamento das águas em primeiro lugar, e para isso, meu pai lá se socorreu dos conhecimentos do Sr. Martins, (nosso vizinho, e marido da D. Henriqueta) que trabalhava na construção civil e encarregado dos respectivos esgotos. E, assim que lhe foi possível, lá opinou que seria necessário colocar um ralo mais ou menos a meio do quintal, e desnivelando o chão do mesmo, de modo que as águas escorressem para este, que por sua vez ligado através de um tubo, iria fazer com que as águas fossem escoadas para um rego, ou estreita valeta, como queiramos, construído entre a escada e a parede indo desembocar num buraco que dava para a rua e ao lado da porta de entrada, e por onde passava o tubo de abastecimento de água e onde estava colocado o respectivo contador. Ficou assim a escada com mais um degrau, e o chão ficou bem mais bonito e bem cimentado, e não voltamos a ver nele o aspecto de uma pequena espécie de piscina. Faltava, no entanto, resolver o problema de como cobrir a varanda, mas para isso o meu pai entendeu por bem consultar o Senhorio, pois, para além de ser uma obra que entendia ser da responsabilidade do mesmo, não dispunha de meios financeiros nem técnicos para a execução de obra com tal envergadura. O certo, é que depois de ter tido essa dita conversa com alguém que tinha a responsabilidade de o representar, chegaram a acordo, e passado algum tempo, lá fomos avisados de que iriam começar as obras e de que nos afastássemos do local, ou então, que tomás39


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semos as devidas precauções enquanto decorressem as mesmas, para ninguém se magoar. Mas tais obras não foram além da colocação de uns pilares em madeira, colocados aos cantos e um ou outro em determinados pontos julgados essenciais, umas ripas de modo a suster então umas chapas de zinco. Só que estas, depois de colocadas, ficaram a escoar para o lado do quintal e transversais as águas que vinham do telhado da casa. Resultado: A água quando era muita (e a maior parte das vezes era) ficava acumulada logo à saída do beiral do telhado, e acabava por cair logo rente à porta da salita em frente da casa de banho, e pela parede abaixo. Meu pai, vendo que tal obra não tinha resultado como o desejado e não querendo fazer qualquer espécie de reclamação, chamou a si os cuidados de pensar como resolver o problema e pôs então mãos à obra. Subiu ao telhado e colocou umas chapas lisas de modo a não travar as águas vindas do telhado, e presas à parede lateral por outra tira de chapa, e com cimento a cobrir todos os espaços por onde a água pudesse passar. Ficou melhor, mas não foi ainda o suficiente para o deixar satisfeito, mas ficou por aí. Logo pensaria noutra solução. Parecia que aos poucos a vida de todos nós se ia tornando banal dentro daquilo que cada um de nós ia fazendo no decorrer de cada dia. Eu, na escola durante a manhã e no período da tarde era tempo de fazer os deveres de casa, ajudar minha mãe, naquilo que era preciso e que estivesse à altura de o poder fazer, e só depois, tempo para brincadeiras com meus irmãos e também com os novos amigos e amigas, nossos vizinhos, com os quais nos íamos dando. Ora, por força desses meus afazeres, uma das minhas tarefas como mais velho, era ter de tomar conta de meus irmãos, e princi40


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palmente do mais novo, pois começava a querer acompanhar-nos mesmo quando íamos para a rua brincar, e talvez por causa dessa proximidade, me tenha afeiçoado de uma maneira mais próxima que aos outros, penso eu. O certo é que aconteceu um dia, ou melhor, uma noite em que por qualquer motivo ele estava mal disposto, talvez por força do calor que se fazia sentir, não fazia outra coisa senão chorar e uma vez que o nosso quarto era precisamente aquele que estava mais próximo do de meus pais, e as “paredes” como sabem, não eram dignas de tal nome ou categoria, nenhum de nós pregava olho. Os mais prejudicados com a situação eram os meus pais, pois chegavam à noite super cansados e precisavam de descanso, mas meu pai, talvez porque nunca tinha passado por tais trabalhos, ou já não estaria habituado, sei lá, farto de o ouvir chorar sem parar e preocupado ao mesmo tempo, perdeu a paciência. Levantou-se e chegando ao pé dele, pregou-lhe duas nalgadas pensando que com isso ele se calaria, mas eu ao ver aquilo, não me contive e virei-me para ele bastante zangado, e disse-lhe que não tinha nada que lhe bater, e ainda por cima, que não o tornasse a fazer. Bem, o resultado não poderia ser outro, estão mesmo a ver. Sem hesitar, e sem me dirigir qualquer palavra pregou-me uma tareia, a primeira, deixando-me bastante sentido, mas para mim foi o suficiente para entender que quem mandava não era eu, e tinha, para o futuro, de me por no meu lugar e nunca mais voltar a fazer o mesmo. E de facto serviu-me de lição, para o resto da vida, pois entendi que o respeito é muito lindo e é para se cumprir. Noutra ocasião, já meu irmão “caçula” se aventurava escadas abaixo, para ir ter connosco, e brincar junto de nós, e tantas vezes o fez que algumas dessas vezes nem demos pela saída dele, e só quando o ouvimos chorar na rua corremos a ver do que se tratava. 41


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Demos com ele sentado no passeio e perto da porta, completamente nu, atiçando um formigueiro de formigas negras e agressivas a que os naturais chamavam de “Kissondo miúdo”, e que eram de tal modo agressivas, que quando ferravam suas mandíbulas, ao tentar sacudi-las ficavam sem cabeça, ficando estas, agarradas deixando no local da mordedura uma marca avermelhada dura e bastante inchada. O resultado, ao encontrá-lo de tal modo vermelho e inchado, rodeado de um verdadeiro exército de formigas, se não lhe acudíssemos podia ser um caso sério. Minha mãe, aflita, não sabia o que fazer, muito menos qualquer de nós, e o que lhe ocorreu na altura foi metê-lo no tanque onde lavava a roupa e com o pedaço da barra de sabão que ali tinha à mão, esfregou, esfregou e se o procedimento foi o adequado, não sei, o certo é que ele foi parando de chorar. Ou porque com a frieza da água, esta, serviu de anestesiante à dor, provocando algum alívio no ardor que sentia, ou seria o efeito do sabão sobre a zona afectada, o certo é que acabou por se calar, e quando minha mãe o tirou da água, fez-lhe uma pequena massagem com um pouco de álcool (era o que tinha à mão). Ainda chorou um pouco mais, mas calou-se pouco depois e vestiu-o. Os inchaços provocados pelas mordeduras ainda permaneceram, mas viam-se desaparecer com o passar do tempo, que ainda foram alguns dias. Isto serviu também de exemplo para nós que embora mais velhos, não escapávamos a uma picada uma vez por outra, mas já com o conhecimento suficiente para não nos metermos com elas ou então, passar por elas guardando uma certa distância de modo a não as provocar. Outra vez, ao darmos pela sua falta, minha mãe foi à janela para ver se o descortinava e não o vendo, mandou-me que fosse à sua procura, pois não poderia estar muito longe. 42


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E de facto tinha razão. Fui dar com ele sentado a uma das portas da Mercearia, agarrado a uma caixa de tomate que o Sr. Rodrigues ali tinha para venda, e de um a um lá ia comendo sem que ninguém interferisse, já ele era só tomate por ele abaixo, todo lambuzado e sujo. Para o tirar dali não foi pêra doce, como se costuma dizer, e minha mãe assim que o viu naquele estado e depois de o lavar e vestir de novo, saiu porta fora em direcção à loja para pedir contas ao Sr. Rodrigues, a fim de lhe pagar pelo eventual prejuízo causado. Este, espantado a olhar para ela, apenas ripostou: – Então, que é lá isso, D. Maria José! (assim se chamava minha mãe) Já não me é permitido fazer dos produtos que aqui tenho, para além de os vender, oferecê-los também a quem quiser? Foi o que fiz, e com muito gosto, pois não calcula a satisfação que senti ao ver uma criança como o seu filho, comer o tomate com tanto agrado e tanto gosto, que não me importaria mesmo nada se consumisse toda a caixa, sabendo de antemão que era de todo impossível. Portanto nada me deve, antes pelo contrário, terei muito gosto de o ter por cá novamente e se não for para comer tomate, pode ser outra coisa de que goste, desde que não lhe faça qualquer mal.

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A LUTA POR MELHORES CONDIÇÕES

Estes foram alguns dos episódios de nossas vidas de crianças sem maldade, mas à medida que íamos crescendo, também essa “maldade”, próprias a qualquer criança começou a ser entendida como traquinice, mas num fundo de verdade, ainda não era maldade. Essa só viria mais tarde, mas nossos pais estavam atentos, para nosso bem. Meus pais, por sua vez, por mais que se esforçassem em ter uma vida mais desafogada, continuavam a lutar com imensas dificuldades, pois manter uma família composta de seis membros e com o filho mais velho com apenas oito anos de idade e a começar a sua escolaridade, para além de todas as despesas fixas que não eram poucas, a sua primeira preocupação era de momento conseguir mais algum dinheiro para fazer face a todas as necessidades do dia-a-dia. Eis então que, e após algum desabafo com alguns colegas de profissão, que da parte destes surgiu a ideia com a seguinte pergunta, lançada no ar como uma ideia para ser pensada: – Zé, já pensaste fazer uns “biscates”, fora das horas de serviço? – Pensa nisso e se quiseres, da minha parte, dizia um, tão cedo eu saiba de alguém que precise de um trabalhinho lá em casa, eu to encaminharei. Meu pai agradeceu, e foi para casa a pensar no assunto, e expôs a ideia à minha mãe que a achou talvez, a única solução, e na qual, também a ela, caberia como “dever”, participar. E se o pensou, mais rápido tomou a si a obrigação de algo fazer, mas sem saber bem o quê, e coisas do Destino, a nossa vizinha do 44


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lado, a D. Maria Faim adoeceu, caiu de cama e o médico que entretanto a viu, receitou-lhe umas injecções, mas não havia quem lhas administrasse. Minha mãe, que em solteira tinha desempenhado as funções de enfermeira auxiliar, e para o qual tinha aprendido ao longo dos anos todos os trabalhos inerentes à profissão, viu aí a oportunidade de não só ajudar uma amiga, como de futuro tirar daí algum proveito. E sem dizer nada a meu pai, temendo que se opusesse, uma vez que já não tinha mãos a medir com tanto trabalho, foi a uma farmácia da qual já éramos clientes, e empenhou-se na compra de um estojo metálico com algumas seringas e agulhas de vários tamanhos e também numa lamparina a álcool, tudo a ser pago em parcelas e à medida das possibilidades, e aos poucos foi montando em casa uma pequena farmácia. E a pretexto de que tudo aquilo era preciso, principalmente por nossa causa, lá convenceu o meu pai a arranjar um armário onde guardar tudo, de modo que nós, tão pequenos, não corrêssemos qualquer risco. Meu pai acedeu e fez com suas próprias mãos um armário com algumas prateleiras que depois pintou de branco e na porta uma cruz a vermelho. O que é certo é que tanto a meu pai como a minha mãe, daí para a frente foram surgindo as almejadas oportunidades e assim, com mais algum dinheiro a entrar, lá foi dando uma ajuda nisto e naquilo, e com algum esforço de ambos, conseguiram mesmo pôr algum de lado para o que desse e viesse. Um dia, porém, surge em nossa casa o meu primo António, camionista em Cabinda numa empresa madeireira, que vinha a Luanda buscar um novo camion e como não podia ser de outra maneira, lá ficou em nossa casa até o levantar e partir de novo para Cabinda. Durante a sua estadia, que ainda durou algumas semanas, propôs a meus pais se estariam na disposição de receber em casa a sua irmã, a Zezinha, até a poder vir buscar e levar com ele, assim 45


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que tivesse oportunidade, pois em breve teria de voltar a buscar novo camion. Meus pais, como era evidente, não disseram que não, e quando chegou lá tiveram de a acomodar durante o tempo que foi necessário. Depois, e a pedido de minha tia, que sabia bem que se os meus pais pudessem ter uns hóspedes em casa, seria possível terem outro tipo de ajuda, estes, ainda alegaram que não seria boa ideia, pois não dispunham de quartos para ceder a quem quer que fosse. Mas minha tia virando-se para eles, disse: – Não se preocupem pois eu tenho para onde ir. Para além de um pequeno quarto de que posso dispor lá na Pensão, o João (meu primo direito, e filho dessa minha tia), está a pensar em alugar uma casa e em qualquer altura, se necessário, também posso ficar com ele. – Mas temos de saber quem metemos em casa, pois com crianças tão pequenas, não podemos correr riscos. – Disse minha mãe, virando-se para ambos. – Acontece – disse ainda minha tia, e para nossa surpresa – que, em breve estará junto de nós, a Teresa, da nossa irmã Maria do Carmo. E onde poderia estar melhor senão ao pé de nós? E, que melhor lugar podemos arranjar para ela? A expressão de meus pais, foi de quem recebe um choque, pois não contavam com tal notícia, e sem expressarem qualquer palavra, minha tia ainda acrescentou: – Ela, quando chegar, irá arranjar trabalho e poderá pagar um aluguer, mesmo que a princípio seja pouco, sempre será uma ajuda, 46


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precisamente a que eu não tenho podido dar, para além da que tenho dado, para a renda de casa. Mas para meu pai, essa decisão, iria implicar num arranjo da casa, que embora previsto, se tornaria imperioso fazê-lo já, pois não tinha o mínimo de condições para receber uma moça da idade dela e da Zezinha. Perante tais factos, meu pai não hesitou em pedir ajuda a quem podia e sabia, e os acontecimentos foram surgindo, colhendo ideias e meios de todo lado, bem como braços para ajudar, o que era estritamente necessário e útil. E de muita importância se tornou a ajuda dada pelo Quim Caramelo, que era carpinteiro de profissão (mais um lá da terra, e ainda primo afastado, que entretanto tinha chegado há pouco tempo). Havia que melhorar o tipo de divisões inicialmente feitas e que há muito pediam reforma e de, em vez de papel, cartão e esteiras, foi melhorado o “esqueleto” em madeira, cujas paredes a partir daí passaram a ser em duplas placas de contraplacado, eliminando-se a passagem existente entre o quarto de meus pais e aquele que nos era destinado. Fizeram-se portas dignas de tal nome, no mesmo material. No salão anterior, cuja divisão, o dividia em duas partes, sendo uma, o corredor e a outra um quarto apenas, foi feita uma parede a meio dando origem a dois quartos, ambos com sua janela e respectiva porta. Na pequena sala, em frente da casa de banho, foi construída uma divisória com o mesmo material dando origem a um novo quarto, ficando assim a casa com cinco quartos de dormir. Faltava assim espaço para se arranjar onde se fizessem as refeições, pois sala de jantar digna desse nome, tínhamos apenas a única, a que restava e que era a que nascera com a divisão do maior salão, o último, no caso, mas demasiado longe da cozinha. 47


António Serra Correia

Entretanto, o pouco dinheiro que até aí se conseguira pôr de lado, ia desaparecendo, e o trabalho extra ia sobrando também para mim, pois como o mais velho, minha mãe encarregou-me de alguns serviços domésticos, como sendo, o varrer o chão, limpá-lo a pano (naquele tempo não havia esfregona), limpar o pó, encerar o chão, e por vezes ajudar a fazer as camas, lavar a louça, etc. O galinheiro fora retirado do nosso quintal, para o da frente, onde D. Vitória fez o favor de ceder um espaço para o efeito, e que meu pai aproveitou para, com autorização dela, fazer uma pequena horta que depois de vedada, ficava protegida das galinhas, dos gatos, cães e outros intrometidos de ocasião. Água não faltava pois por ocasião de fazer uma nova canalização para o quintal, lá foi autorizado a levá-la até à horta. No mesmo quintal ainda minha mãe foi autorizada a ter um arame onde estender a roupa e a utilizá-lo como se fosse seu. Junto ao muro que dava para a rua no espaço que pertencia a D. Henriqueta e Sr. Martins, passou o meu pai a organizar um pequeno estaleiro para o material que precisava para as primeiras obras, a par do material de construção que o Sr. Martins, ali já tinha. Ficou assim o nosso quintal com um pouco mais de espaço disponível, e meu pai pensou que o poderia aproveitar, alargando a varanda, e se o pensou, melhor o fez. Levantou uns pilares a partir do quintal, uma viga a uni-los, novo chão até essa viga e, sobre ela, um novo gradeamento de segurança. Aos poucos e à medida do orçamento de que ia dispondo, sem contar com a colaboração de todos os que de boa vontade lá iam dando uma mãozinha no que podiam, a casa ia ficando maior e um pouco mais acolhedora. Assim e aos poucos, já as pessoas que precisassem teriam onde dormir, e para a varanda, agora com espaço para ter uma mesa onde se pudessem sentar para além de nós seis, mais três ou quatro, já 48


A Geração Rejeitada

era bem bom, ficando esta já bem perto da cozinha. E para melhorar o conjunto, lá conseguiu meu pai convencer de novo o senhorio para compor e alargar o telhado da varanda, que desta vez foi coberto com telha dando continuidade ao da casa, e forrado mais tarde com placas de cartão prensado e pintado de branco. Não tardou que a partir daí não aparecessem interessados no aluguer de um quarto por parte de alguém que precisasse, não havendo portanto a preocupação de procurar alguém para o ocupar, assim que algum ficasse vago, havendo no entanto o cuidado de procurar saber quem meteríamos em casa, apesar de a maior parte deles, serem recomendados por alguém de toda a confiança. Mas para nós, não poderia faltar espaço para as nossas brincadeiras, e quando sentimos que era cada vez mais escasso, lá convencemos meus pais a deixar-nos ir brincar para o quintal, mesmo em frente das nossas janelas, e inteiramente vedado e praticamente abandonado por parte de seus donos, a “abonada”(?) família Sousa Machado. Ao fundo desse quintal, havia uma velha casa vazia e abandonada, sem portas nem janelas, e que os seus proprietários, já haviam decidido demolir. Mas, enquanto isso não aconteceu, foi para nós um belo “parque” para as nossas brincadeiras, onde podíamos correr pelos salões sem o receio de nos magoarmos, e onde fazíamos os nossos jogos de “cowboiadas”. Tinha também a um dos cantos, uma enorme molembeira centenária, e à sombra da qual brincávamos em dias de bastante calor. É evidente, que estávamos devidamente autorizados pelos donos, (família Sousa Machado) a brincar ali durante todo o tempo que quiséssemos. 49


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