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DAVID DA SILVA
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FICHA TÉCNICA edição: edições Ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) título: Murtosa Pedaços de Vida autor: David da Silva paginação: Alda Teixeira capa: Patrícia Andrade foto da capa: Paulo Horta Carinha 1.ª Edição Lisboa, Setembro 2015 isbn: 978-989-8714-55-8 depósito legal: 397459/15 © David da Silva
publicação e comercialização:
Rua da Assunção n.º 42, 5.º Piso, Sala 35 | 1100-044 Lisboa www.sitiodolivro.pt
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DEDICATĂ“RIA
Dedico este livro aos meus filhos Diana Carla da Silva e Henrique Miguel da Silva e aos meus netos Arabelle Rose e Dylan James.
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AGRADECIMENTOS
Às gentes do Canto da Maceda, Murtosa Que são o centro de todas as histórias que relato em ‘Murtosa, pedaços de vida’. Às pessoas que colaboraram comigo Na recolha de informação foi preciosa a colaboração de Albino Silva, Ana Maria Faustino, Conceição Cunha, David Timóteo, Delmira Rendeiro, Deolinda Amador, Domingos Professor, Francisco Vieira, Joaquim Maria Marques (Bôrras), Maria do Carmo Bôrras, Maria da Cruz Pires, Natália de Lurdes, e Paulo Horta Carinha. À minha família E, em particular à minha esposa, Anabela Silva, que sempre me incentivou a que publicasse o livro e fez tudo ao seu alcance para que eu o conseguisse.
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NOTA DE ABERTURA
Não se começa um texto às três da manhã a menos que a inspiração seja arrebatadora. E esta é, pelos vários motivos que tentarei explicar-vos, mas não sem antes encher um cálice do melhor Porto que tenho guardado – porque a ocasião não é para menos – que me aconchegue o corpo e a alma, e permita que as palavras fluam, como heras. Confesso que já sorri, gargalhei e já chorei também, com as estórias do David da Silva. O meu amigo David! Amigo de sempre… Ele não sabe, porque eu nunca lho disse, mas quando o tema são os amigos de infância, é o seu nome que me sai primeiro, apesar de sermos de gerações diferentes e de não nos vermos há quase 30 anos. Por isso, o convite para redigir esta nota de abertura é, apesar da enorme responsabilidade, um grato prazer e uma honra. Pessoalmente, adorei este “MURTOSA – Pedaços de vida”. Sinto-o como uma lufada de ar fresco a arejar-me o baú das memórias, que por vezes tendem a misturar-se com os meus devaneios. Vindo de quem vem, não me surpreende, porque sempre conheci o autor envolvido com as coisas da terra, postura que fez dele uma referência para muitos e um exemplo a seguir. A sua paixão pelos usos e costumes das nossas gentes é contagiante e acabou por incutir também esse “bichinho” em muitos dos que com ele privaram. 9
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O leitor tem em mãos uma emotiva homenagem, mas também uma indispensável ferramenta pedagógica. Registar o passado para memória futura é uma das mais nobres causas que um homem pode abraçar, porque mais importante que deixar fortuna, é deixarem-se valores intelectuais e morais aos que nos sucedem. É exactamente essa particularidade que distingue e enobrece este livro; porque sai – na linguagem simples e acessível que caracteriza os da borda d´água – do coração de um eterno apaixonado pela terra que o viu nascer; e porque retrata, sem peneiras, o viver de um povo e de um canto que, para muitos, sempre foi (e ainda é) o parente pobre do Concelho. Há por aí muito boa gente que precisa de ler este livro. Pode ser que alguns percebam, por fim, que afinal na Gafanha Baixa também se criaram e ainda criam homens e mulheres de bem, gente honrada, que trabalha, que paga as suas dívidas, que enaltece a família e os amigos, que ensina os filhos a respeitar o seu semelhante, a temer e adorar a Deus… É isso que retenho, do muito que o David nos conta… E mais não digo; antes vos convido a lerem e absorverem cada um destes “pedaços de vida”; ou não fossem “pedaços”, o manancial de sentidos que nos completa.
FRANCISCO JOSÉ RITO
(Escritor do Canto da Maceda)
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PREFÁCIO
Toronto, 15 de Fevereiro de 2015 – São sete horas da manhã desta segunda-feira de Inverno. Cai neve em Toronto. No mês de Fevereiro tem caído que sobra! Muita gente deseja que ela já não caia. Eu sou um deles. Tenho saudades do verde com que a Primavera pinta tudo ao redor, dos cheiros e sons agradáveis que ela oferece, e dos gansos canadianos fazendo parar os carros quando atravessam a ‘Jane Street’, em Maple onde resido e, principalmente, do movimento mais descontraído das pessoas que enchem as ruas e lhes dão outra vida. Cheguei cedo ao local de trabalho como chego todos os dias. Ainda tenho a carapuça de lã enfiada na cabeça e nem tirei as luvas. Não está mais ninguém na sala onde estou! As cadeiras e as mesas perdem o sentido sem gente por perto… Daqui a uma hora já está povinho de Deus em todo o lado. Este é um centro de assistência a cancerosos e só funciona de dia. Trabalhar aqui requer devoção. Tenho recebido lições de vida de alguns doentes. Podem até sentir dor, mas não os vejo sofrer! Mostram uma felicidade invejável. Assumo pelo seu exemplo de que o homem tem essa capacidade de superar, de anular o sofrimento. Não nascemos para sofrer. Estimo a vida. Gosto das pessoas. Tenho um carinho especial para com as da terra em que nasci e que me ensinaram a viver. 11
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Desde menino que me habituei a observar a minha gente, a estar atento ao que fazia e como o fazia. Nasci na Murtosa, no canto da Maceda, juntinho da ria, que todos conhecem como ria de Aveiro, mas que para nós é a ria da Murtosa. Meu pai foi moliceiro, minha avó era varina, e a minha mãe foi criada de servir e também vendeu peixe. A canastra foi o meu segundo berço! Bem cedo me envolvi com o meu povo, um povo simples, típico, alegre, trabalhador e solidário. Sentia-me bem ali na minha terra e emigrei!... Mais um teste à minha capacidade de lidar com mudança. Sempre gostei de desafios. Encontrei um país aberto, acolhedor, com culturas diversificadas, farto, cuidado, bonito, cheio de oportunidades. Sinto que valeu a pena ter emigrado. Mas, por outro lado, não consigo esquecer tantas vivências que deixei para trás e que nunca vivi no Canadá na sua forma mais genuína. Sinto uma vontade incontrolável de as partilhar. “Murtosa, pedaços de vida” é fruto dessa vontade, e propõe-se levar aos leitores o tipicismo, os costumes, as crenças, a simplicidade de vida do povo da Murtosa, a ‘minha terra’, e em particular do povo do canto da Maceda, o ‘meu canto’. Fiz questão de escrever num estilo muito simples, popular, e sempre com muitas expressões típicas da nossa gente. Tornou-se fácil, porque tive o privilégio de ter nascido e vivido ali… Todos os ‘pedaços de vida’ são da segunda metade do século XX, tempo da minha meninice e juventude. Em alguns, eu sou protogonista.
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Gente trabalhadora, solidária e alegre Vi pela primeira vez a luz do dia no canto da Maceda, também conhecido por canto da Gafanha Baixa e na rua que termina no Chegado, a rua D. Dinis. Juntinho à ria, habituei-me gostosamente ao cheiro da maresia, a ver o desembaraço dos homens lidando com o barco moliceiro na apanha das algas, a transportar com os bois, do barco para os campos, os ‘fios’ verdes saídos do fundo das águas cristalinas, ou avidamente lançando nas águas as redes para pescar o peixe que é o seu alimento de quase todos os dias. Dava muito pimpão e robaco a leste do Laranjo (água doce), em toda a ria apanhava-se carpa, peixe agulha, solha, linguado, enguia, choco, robalo, dourada, taínha, rodovalho, congro, choupa, boga, barbo, ruivaco, galeota, lingueirão, sável, lampreia, garranto, larote e outros peixes, e também moluscos e crustáceos. O pescador pescava com a solheira, a rede de salto, a branqueira, a caçoeira, a chincha, a berbigueira e armava os galrichos para a apanha da enguia. Alguns pescavam também com a fisga, que era proibida. Os marinheiros não davam tréguas a quem prevaricava, mesmo assim havia sempre quem o fizesse, que ‘‘a necessidade obriga’’, justificavam. Nesse ano de 1960, as casas que o povo habitava no nosso canto eram dum modo geral feitas de tijolos e cimento e cobertas por telha francesa. Havia ainda algumas de madeira, cobertas com 13
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telha mourisca, e umas poucas de telha-vã, evolução dos célebres palheiros que serviam para arrumar o material usado na faina do rio. E, em alguns casos, até o barco moliceiro era habitação. Noutras zonas do concelho, existia (ainda existe) a ‘Casa-Alpendre’. Era uma casa mais ligada a atividade do campo, da lavoura. A cobertura era de telha caleira, que o povo conhecia por telha Fontela. As paredes eram de adobo de barro ou adobo de cal e areia. Normalmente tinham a cozinha, alcovas (quartos), a sala, a despensa e um alpendre. Na Gafanha Baixa, todas as casas possuíam a ‘Sala do Senhor’, ou pelo menos um canto para a devoção. Quando o espaço o permitia, havia uns pequenos anexos usados também como habitação, pois as famílias eram grandes. A nossa gente não dispensava uma pequena horta onde semeava batatas, couves-galegas, as de repolho, roxas e as couve-nabo, tomates, alhos, cebolas, nabos, pepinos, feijão riscado, manteigueiro, preto e frade… Todas as casas tinham galinheiros onde se criavam as galinhas pedrês, branca, rosa, preta, as palheirinhas, além dos patos, e também tinham currais onde se cevavam os porcos para a matança pelo S. Simão, lá pelos finais do mês de Outubro. Filho de pai moliceiro e criada de servir, foi na azáfama comercial que eu mais vi os meus progenitores envolvidos. Uma loja, recheada de tudo o que era de precisão para a gentinha do canto e com as portas abertas ao vai e vem contínuo dos clientes, trazia os meus pais ocupados sete dias na semana. A sua grande fonte de receita era a venda de géneros alimentícios e vinho! Principalmente a do vinho. O negócio do vinho, ali no canto, era um grande negócio! Uma boa maioria bebia e, dessa maioria, também faziam parte
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algumas crianças. Decorria o século XX e acontecia ainda! Pobres miúdos! Quando a maré de ir ao rio era para o cedo, os do canto vinham à loja logo de manhãzinha para encher o garrafão empalhado, de dois ou cinco litros, aproveitavam para levar as mercearias necessárias e mandavam apontar no rol. Mas houvesse tintol, que alguns com qualquer côdea de broa de milho e meio quarto de azeitonas já faziam a festa. O rol, ai se o rol falasse! Continha tudo tim-tim por tim-tim, que só depois de se receber o dinheiro das barcadas do moliço da semana, ou de se juntar o necessário na venda da pescaria, é que eram feitas as contas com a loja. O rol do meu pai era um calhamaço, meio amarelado pelo uso e cheio de nomes com números por ali abaixo. Aquilo às vezes dava confusão, que havia desses que, na mira de não pagar, apregoavam aos quatro ventos que “as contas estão erradas e não se gastou tanto, não senhor”. O meu pai, com a paciência que o caraterizava, lá explicava parcela por parcela, até que vinha ao de cima a evidência de que afinal estava tudo nos conformes. Ao fim de semana, quando não era durante a semana, o vinho subia à cabeça de um ou outro. O Diabo metia o rabo e, num nada, já havia quem empunhasse alfaias e tudo! “Eu posso ir preso, mas tu vais desta para melhor”, ameaçava um. Não faltava a intromissão das mulheres, puxando-se mutuamente os cabelos e valorizando o espetáculo ao levantarem as saias para baterem no rabo, em afronta à adversária. “Olha, olha bem tinhosa, está tudo muito limpinho, aqui não há nada que se rape”, desafiava uma delas. A GNR às vezes vinha no intuito de indagar o que tinha acontecido, mas ninguém da multidão que se juntou adiantava muito, que a coisa era de ficar mesmo por ali. A GNR voltava ao Posto sem nada fazer e não demorava quem garantisse que “numa próxima, quando a GNR for mesmo precisa, não vem”. 15
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Mas esta gente era gente boa, solidária, com espírito comunitário e muito amiga do seu canto. Fazia questão de viver ali e com toda a família por perto. E, se porventura emigrava, certo é que aplicaria as poupanças na melhoria da habitação ou até na construção de uma nova, a pensar no regresso ao ‘torrão’ que pisara pela primeira vez. Todos se conheciam e tinham uma relação muito próxima e amiga. Quando era tempo de virar um barco moliceiro para a amanhação (reparação), quase todos os homens corriam junto da ria para ajudarem. E no Chegado, num ápice, aparecia gente das famílias de Abelhão, Afonso, Alhos, Amador, América, Angelica, Arrais, Arrojado, Atornado, Baibôa, Bancaneza, Barroqueiro, Barrota, Beiras, Benta, Bichinho, Bitaolra, Bôrras, Branco, Calistas, Camolo, Campos, Caneira, Carmeira, Carapelho, Carlas, Chanfrante, Chapa, Clemência, Chinelo, Chôta, Cigano, Conazia, Constantino, Costeira, Cunha, Custódia, Cuxado, Embirra, Espicha, Farturas, Ferrôlha, Fidalgo, Fonseca, Formigo, Freguesa, Fresca, Furão, Gaio, Galvão, Garrafa, Labareda, Lagoncha, Lamarão, Lázaro, Lanzeira, Leandro, Lelinha, Lé, Liberdade, Ligeira, Lino, Lopes, Maia, Manta, Marenas, Marques, Martela, Matos, Moles, Moleda, Moscas, Naia, Oliveira, Padinha, Papagaios, Páscoa, Pastor, Patarata, Patica, Pescador, Pincuda, Pirão, Pita, Pocinhos, Porto, Pozes, Prata, Quintas, Rabias, Rabuças, Ramalho, Rancas, Rebelo, Regedor, Rito, Rolha, Saldida, Sanfona, Santos, Saramago, Sardo, Serralheiro, Silva, Soares, Tamanca, Tavares, Telhôa, Timóteo, Tôrra, Vidreira, Vieira, Viola, Zargo, Zuá… Alguns dos homens destas famílias ali estavam a ajudar a virar o barco moliceiro, puxando firme pelas cordas (uma na ré do barco, e a outra na proa), enquanto outros faziam força com as próprias mãos na beira saliente do bordo e, juntos, elevavam à vertical o 16
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bicho com gritos de “arriba, arriba” e a modos do bordo que ficava no cimo ser escorado pela toste que alguém com experiência lhe apontava. Colaboração dada, e com sucesso, lá íam pelos tremoços, azeitonas e pelo molhar do bico na taberna, e quem pagava era o dono do barco, que fazia questão nisso. Garantem-me que um dia um homenzinho, que tentava escorar o barco com a toste e que não o terá feito com a precisão necessária, encontrou ali a sua morte! Não é do meu tempo. Quando morria alguém, toda a gente acompanhava o defunto à sua última morada e, mesmo que o morto não fosse da família, vestiam de preto no derradeiro acompanhamento. Os homens que íam ao enterro eram convidados depois a passar pela taberna para comerem as azeitonas, os tremoços e beberem uma pinga de tintol em memória do falecido, que já Deus tem. Por altura do casamento de alguém do canto, o povo saía à rua para colocar arroz em cima dos noivos, ou até pétalas de flores brancas, desejo de fartura e fertilidade para o casal. O lançamento do arroz ou das pétalas acontecia ao sair da Igreja, ou ao longo do percurso que era feito a pé até à casa da noiva. Ao sair da Igreja, uma das mulheres mais chegadas ao casal, parava-os, lançava arroz e dizia: Abram roda, abram roda Façam o favor de parar Vós viestes da Santa Igreja De ver Jesus no altar E de amar a Santa Cruz Deus queira que daqui a um ano Estejais como a Virgem com Jesus 17
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(Virando-se para o noivo) Vou pedir licença ao noivo Mas muito me está a custar Que me dê a licença Deste arroz lhe ‘prantar’ Aceite senhor noivo Na pontinha do seu chapéu São cravos e rosas Qu’estão a cair do Céu (Virando-se para a noiva) Aceite senhora noiva Na pontinha do seu manto São cravos e rosas Enviados pelo Espírito Santo Flores e goivos Por cima dos namorados Foram para lá solteiros E vieram para cá casados Ao fim de nove meses Toca o sino a batizados (Nome da noiva) Pensa bem qu’és casada Se algum dia houver ralhos em tua casa Não o dês a demonstrar Que alguma das tuas companheiras Disso se vai gabar
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Em agradecimento, os noivos mandavam um pacote de bolachas ou de bolos doces a casa de toda a gente que os brindou com arroz ou pétalas de flores. Se os noivos, ou os pais deles, tivessem nota em cima de nota, havia boda grande debaixo duma barraca comprida e coberta pelas velas do barco moliceiro, mas isto era muito raro, mas cheguei a ver. Ouvi a uma das mulheres de lá que, no dia do seu casamento, a mãe lhe deu de comer sardinhas assadas, a ela e ao noivo! Não devia ter sido só sardinhas, mas o certo é que não havia posses para grandes rasgos. Apesar das dificuldades que se viviam, o povo era alegre. As gentes do meu canto passavam muito do seu tempo livre cantando à desgarrada na taberna, em mais que um dia da semana depois da safra do moliço. Eu divertia-me com a cantoria! Cheguei a assistir mais que uma vez ao cantar ao desafio na loja do Manuel Galvão. Cantavam aí o Zé Lanzeira, o Augusto Conazia e a Rosa Lázara acompanhados à viola pelo Raúl Chanfrante e pelo velho Galvão. Já mais tarde eu assistia à desgarrada na loja dos meus pais. E aí costumavam cantar o Zé Lanzeira, os Formigos, pai e filho que, além de cantarem, acompanhavam com gaita de beiços. Juntava-se também o Ti António ‘‘Pissinha’’ marcando o compasso com uma colher nos próprios dentes e fazia-o bem. O Zeferino de vez em quando também comparecia com o acordeão. A loja abarrotava de gente que seguia com muita atenção o desafio, que acabava sempre em bem quando não acabava em mal. Juntava ali muito rapaz solteiro. Era por isso que as moças casadoiras vinham até à entrada da loja e, do lado de fora, punham o olho a algum que lhes pudesse interessar. Praticamente todas deram o nó (casaram) com rapazes que matavam o bicho (bebiam) na nossa loja. E isso era o 19
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normal, que os rapazes de fora do canto eram escorraçados pelos que lá viviam. “Eles que vão lá para a terra deles, que desapareçam daqui”, ordenavam. Nos dias de ir à festa do S. Paio, o povo juntava-se em grandes grupos no Chegado ou na Cova do Chegado. Cada grupo ía até à Torreira num barco moliceiro ou num barco mercantel pagar promessas ao santo, ou só para se divertir. Os barcos eram enfeitados com bandeiras de vários países de emigração, colocadas numa corda que ía da proa ao mastro e dele à ré. Durante o percurso, os tocadores de concertina, gaita de beiços, viola da terra, cavaquinho, ferrinhos, pandareta e tambor acompanhavam homens e mulheres na cantoria. ‘‘O S. Paio da Torreira Foi tomar banho à praia Com tamanha bebedeira Que às calças chamava saia’’… Quando o estômago começava a dar horas, faziam um intervalo na pândega, puxavam pelos cestos de vime e colocavam em comum o que cada um trouxera para dar ao dente, que era geralmente o arrozinho de tomate ou arroz seco, o peixe branco frito, as enguias com molho de escabeche, os pastéis de bacalhau e os rojões…! Os palhinhas do tintol, esses andavam de mão em mão desde o ponto de partida. ‘‘E aí vai mais uma pinga!’’, dizia um enquanto chegava o gargalo à boca. Pelo tempo que esteve no trombone, não foi só mais uma pinga! Quando o grupo de cada barco chegava à Torreira, fazia questão de visitar a capela onde estava o santo. (No século XIX, o ponto 20
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alto da festa era esse de ir ver o santo e banhá-lo com o vinho que também bebiam. Acreditavam que o ritual contribuía para afastar a doença da família). O grupo ía de seguida molhar os pés ao mar. Os homens tiravam os sapatos e meias, arregaçavam as calças e molhavam os pés, e as mulheres, já sem sapatos, molhavam também os pés até meia canela e para tanto puxavam ligeiramente para cima as saias. Todos tinham um olho na onda, para fugir quando ela se aproximasse… Cada grupo dava depois a volta pela festa e, entre o mar e a ria, fazia rusgas com muita desgarrada e dança. Só mesmo depois das três ou quatro da manhã é que as pessoas se recolhiam para dormir um quase nada em cima das tostes do barco, que cobriam com uma vela para as resguardar do orvalho. Os donos dos barcos e os familiares mais chegados dormiam dentro da proa. Voltavam à Gafanha Baixa pela tardinha do último dia da festa. No ‘adeus’, costumavam cantar também: ‘‘Ó S. Paio da Torreira Meu milagroso santinho Hei-de cá voltar para o ano Lavar o santo com vinho’’ ‘‘Ó S. Paio da Torreira Ó meu milagroso santinho Se me casares neste ano Levo-te um pipo de vinho’’… Alguns familiares que não foram ao S. Paio íam esperar estas pessoas ao Chegado, ou à Cova do Chegado, e era como se elas chegassem do estrangeiro!... E, todos juntos, vinham em rusga até ao 21
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Coval (pequeno largo na rua D. Dinis) fazendo uma paragem em cada loja, onde continuavam com a pândega… (Consta que antigamente um grupo de ílhavos roubou o S. Paio da Capela!... Não se sabe ao certo se tal aconteceu, ou se será pura lenda. Há relatos interessantes do ‘dito roubo’. Senos da Fonseca, em ‘‘O roubo do S. Paio da Torreira’’ descreve em pormenor a façanha praticada por um fulano de um grupo que veio de Ílhavo ao S. Paio da Torreira, lá pela primeira década do século passado. Segundo Senos da Fonseca foi e tinha que ser o ‘‘Manuel Mano, useiro e vozeiro em tropelias do género, um verdadeiro agitador com larga folha de serviços de registo de acontecimentos de peturbação da concórdia pública’’. O tal de Manuel Mano pensou roubar à Torreira o santo mais famoso naquela terra e levá-lo para Ílhavo… Se bem o pensou assim o fez, e nem quiz saber das muitas vozes discordantes do grupo. ‘‘Já no arraial, rodeando a celha para dar cumprimento à promessa do banho ao santinho, logo o Manuel Mano, o inveterado brincalhão, aproveitou a confusão da rega vínica para surripiar o santo, enfiando-o no bolso do varino, largueirão e abotoado de cima a baixo, do camarada Zé Guerra, sem que este se apercebesse do facto. Lesto puxa-o para fora da Capela, e só cá fora lhe segreda o feito. Era mais que tempo de abandonar o local do crime, pois que ninguém, ao que parece, no estricote, se tinha (ainda!) apercebido, de imediato, de tal ousio, tão caudalosa era a torrente despejada sobre o orago que nada deixava ver, névoa tinta rubi cerrada, esparramada na celha…”. Quando o povo se apercebeu que o santo tinha sido roubado foi o fim do mundo! Os sinos tocaram a rebate e ‘‘logo se vasculharam as caras dos circunstantes, pretendendo-se com isso descortinar sinais dos ditos, que por serem gente de parentesco tão próximo – os nossos antepassados foram frequente visita daquelas bandas, deixando larga prole nas galegas perdidas na solidão dos seus homens ausentes, metidos em guerras infindas de Castela – todos 22
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e nenhuns, o pareciam ser. Do santo nem cheiro, pois se algo tresandava por aquele corrupio de gentes, e empestava a atmosfera, esse era o da vinhaça, que fartamente tinha sido emborcada pelos folgões peregrinos, senhores de apurados dotes destilatórios”. Mas, a determinada altura, um dos murtoseiros apercebeu-se da presença no meio da multidão de um homem vestido com varino grosso!... Ainda que nas promessas ao santo os devotos fossem capazes de tudo, essa de vestir roupa tão imprópria para o calor que se fazia sentir não lhe batia certo na mioleira. E vai daí, “se melhor o pensou, mais rápido desfez a dúvida, estaqueando à navalhada o varino do Zé Guerra, burrel feito em fanicos... E o pobre do Zé Guerra, que lá ficou em posição tão escura, especado em ceroulas, rodeado por tantos sacripantas de olhares contaminados prenunciando feroz vingança, deitava contas à sua sorte, ao tempo que pudicamente encobria as suas expostas intimidades, que certo era, correrem verdadeiro risco de serem separadas do dono, tantas as naifas que bailavam ameaçadoras em frente do seu olhar, diga-se, um pouco inquietado. Pudera!... um escrivão do tribunal metido em tal alhada… Um homem capado não era lá muito aconselhado para cumprimento da tarefa que exige o uso intensivo da ‘caneta’…”. A sorte do Zé Guerra foi andar por ali em promessa ao santo o Administrador do Concelho de Ílhavo que “deu ordem de prisão ao ‘maralhal dos larápios’, recambiando-os para Aveiro, onde prometeu, lhes seria aplicado severo castigo. Assim prometeu e assim se confiou na palavra da autoridade. E a barca carregou os infiéis, a caminho do degredo, exultavam os murtoseiros”. Foi apenas para enganar o povo da nossa terra “pois o Regedor, Sr. José Vaz, fazia, ele também, parte do grupo. Passada a ilha de Sama, logo a barca rumou à Costa Nova, onde desembarcou os desavergonhados sacrílegos, recebidos em verdadeira apoteose, como heróis, pois a notícia correra célere como o vento”). 23
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A malta nova do meu canto também gostava de ir às descascadelas ou desfolhadas para o Ribeiro, para o Bunheiro, ou até para as Quintas do Norte! E era mais ou menos assim: o lavrador acarretava as espigas do milho das terras para a sua eira, isto lá pelo fim do mês de Agosto, ou já em Setembro (ano de 1961), e combinava com os vizinhos o dia da descascadela. A data, então, andava de boca em boca e chegava ao conhecimento de muita gente! As crianças, moços, moças e pessoas mais velhas juntavam-se no dia determinado e ajudavam na descascadela das espigas de milho. Era uma alegria quando aparecia o milho rei, a espiga vermelha! O felizardo que a encontrava tinha como prémio beijar, com muito respeitinho, a carinha das moças e mulheres presentes. Os donos da casa serviam no final uma merenda avantajada com pãozinho de milho e centeio, azeitonas, chouriço caseiro, bacalhau na brasa, e tinto maduro ou verde branco na cabaça ou na malga. Depois acontecia a dança, pois que no grupo que se juntava havia sempre alguém que tocasse a concertina! A descascadela ou desfolhada começava pelo fim da tarde e a dança, que fazia parte dela, ía pela manhã dentro. Aos fins de semana, a malta dava a volta às festas dos arredores. Mas muitos dos rapazes e raparigas ficavam pelo Maninho (terreno não cultivado no cruzamento da rua D. Dinis com a rua da Saudade) ou pelo Bico onde jogavam ao lencinho. Numa roda de moços e moças, um moço ou uma moça tentava por fora da roda deixar o lenço em alguém distraído, ou quiçá em quem gostava, enquanto ía cantarolando:
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‘‘O lencinho está na mão Ele cai aqui ou não Quem olhar para trás Leva um grande bofetão” Se não se apercebesse do lenço atrás de si, o contemplado ía para o choco, sentadinho dentro da roda. A gente jovem e solteira jogava também no Bico, no Maninho ou na Lagoncha em dia de ‘Espiguinha” ao jogo do pisca, no qual cada rapariga estava à frente de um rapaz, e um deles ficava sem par. Com uma piscadela de olho, ele tentava roubar a rapariga a algum distraído. Aquilo chegava a dar briga pela insistência que se fazia de ir buscar a rapariga que estava debaixo de olho de outrém. No Domingo de Páscoa as pessoas brincavam ao jogo da Reza! Depois da meia-noite de Sábado de Aleluia, um rapaz e uma rapariga tentavam dizer, em primeiro, “Reza”. O prémio para quem se antecipasse a dar a ordem era um pacote de amêndoas, que podia ser de meio quarto, quarto, meio quilo, ou quilo, conforme o acordo prévio. Não se podia mandar rezar debaixo de telha. Tinha que ser ao ar livre. Havia menino que se escondia em cima do telhado dum palheiro, disfarçado de boina enfiada até às orelhas e enrolado em cobertor para completar o disfarce, e esperava que a moça passasse para a missa primeira para a mandar rezar. Às vezes acontecia que os familiares ou amigos da rapariga lhe davam dicas onde o rapaz estava. Ela então, de rosto tapado com o xaile, ía pé ante pé pelas traseiras do palheiro, apanhava o adversário desprevenido, e gritava-lhe: “Reza, reza”!... Estavam ganhas as amêndoas! “Vamos, vamos ali à loja, e ‘arrota’ com o meio quilinho de amêndoas”, exigia ela e assim acontecia. 25
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O povinho do meu canto também dançava muito, quase sempre danças de roda, e evitava o contacto do corpo, que “o respeitinho é muito bonito”, prevenia. Era comum dançar a moda “Se tu és o meu amor...”. Num lado estavam as cachopas, no outro os rapazes. Eles combinavam quem era o par de cada um, e as raparigas faziam o mesmo. Cada uma das moças então ía ao encontro daquele que supunha ser o seu par, com todos a cantar e a ritmar com as palmas: “se tu és o meu amor, dá-me cá os braços teus, se não és o meu amor, vai-te embora adeus, adeus”. Se acertasse, dançava no meio com ele, se não, voltava ao seu lugar e esperava pela sua vez para tentar de novo. Depois de todas as raparigas terem adivinhado qual o seu par, era a vez de cada rapaz ir ao encontro das raparigas para tentar adivinhar qual a que lhe estava destinada. Destas danças e jogos saíam muitas vezes os namoricos. O namoro a sério acontecia na porta da casa da rapariga, mas não era assim rápido que isso se dava. Primeiro o rapaz ía e vinha das festas (ou do Bico) a pé, com a bicicleta na mão e ao lado da namorada, mas só a pegava longe da casa e deixava-a também longe. Quando achasse que era a altura certa, lá tentava ficar à porta da casa dela, sempre receando que pudesse haver reação contrária dos pais! Se acaso não a houvesse, então o rapaz voltava, no outro dia, para namorar a rapariga à porta e depois fazia disso costume. Na passagem do ano, algumas pessoas vestidas de roupa velha percorríam, a pé ou de bicicleta, as ruas da freguesia arrastando latas ferrugentas, e despojando-se delas quando os sinos da torre da Igreja Matriz badalavam as doze horas da meia-noite, dando assim o adeus ao ano que acabava. Recolhíam a casa depois de saudarem o novo ano com gritos de “Viva o Ano Novo”! Alguns rapazes ficavam mais tempo e, pelas duas ou três da manhã, íam 26
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sorrateiramente a casa de algumas pessoas roubar lindos vasos, de preferência os cheirosos vasos de manjerico, para os colocarem no adro da Igreja. Havia quem levasse para o adro até carros de bois, charruas, e ainda outras velharias que colocavam enfiadas nos ferros do gradeamento. Os donos (ou familiares dos donos) não tinham mais nada a fazer do que levar tudo de volta, depois da missa primeira do Ano Novo, na qual participaram. Mas, sabe Deus, o que remoíam contra quem fez tal habilidade! Cheguei a ouvir este desabafo engraçado: “Olha para isto! Filhos da (...) que não têm mais nada que fazer! Desgraçados!... (E dando em si) Perdão, Meu Deus, que vim agora de comungar!”... Mais ou menos por alturas do Carnaval, os rapazes solteiros saíam à rua com um ramo de urtigas verdes colhido da horta da sua casa para esfregarem as pernas às raparigas novas e às mulheres mais velhas! Umas e outras usavam saias por meia canela, mas ainda ficava a outra meia canela à mostra para eles a esfregarem com as urtigas, e os pelos urticantes destas dão uma sensação de ardor que nem vos digo!... Era tempo de Serra-à-Velha, e também de Serra-à-Nova, que os rapazes tanto esfregavam as velhas como principalmente as novas. Por sua vez, as crianças e os jovenzinhos íam de porta em porta pedir carne para o caldinho, conforme a lenga-lenga que as mães lhes ensinavam e que podia variar de mãe para mãe: “Ti Deolinda, dê-me um bocado de carne para o ‘mê’ caldinho, por ‘mor’ de Deus Nosso Senhor”. As pessoas respeitavam a tradição de partilhar, e lá íam então à salgadeira e punham na saca, feita de remendos de pano, um naco de carne de toucinho com febra de permeio. E havia garotos que enchiam a saca!
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Ainda na altura do Carnaval, os rapazes costumavam brindar as raparigas com o pó-de-arroz, que era um pó muito usado na beleza feminina e que se vendia em embalagens pequenas de cartão. O pó-de-arroz servia para polvilhar a pele mas, como era Carnaval, os moços compravam-no para o atirar por cima da roupa das raparigas para delírio de todos os que assistiam! Pelo começo da Primavera, havia um ritual muito interessante, o de colocar as maias à porta de casa. É comummente aceite que se tratava de um costume pagão. As maias eram ramos de árvores a florir colocados nas portas ou janelas das casas para celebrar o início da Primavera e o novo ano agrícola. Na nossa terra, as maias eram inicialmente de ramos e flores naturais, mas passaram a ser feitas com papel próprio de várias cores. Algumas maias eram autênticas obras de arte! As raparigas solteiras faziam-nas e colocavam-nas penduradas à porta da sua casa, na noite de 30 de Abril, para passarem a mensagem aos rapazes de que estavam livres, prontas para a Primavera do amor. Pela Festa litúrgica da Assunção da Virgem Maria, em meados de Agosto, realizava-se em todo o país a festa da ‘Espiguinha’. Festa de origem pagã e virada para a celebração da prosperidade da terra, era realizada no nosso concelho no local conhecido por Lagoncha. Nesse dia a Gafanha Baixa ficava quase deserta, que o pessoal não perdia por nada a ‘Espiguinha”. Os rapazes enfeitavam as boinas com espiguinhas campestres, ou colocavam-nas penduradas na orelha e do mesmo jeito que o faziam com o cigarro. Colhiam também ramos nos campos vizinhos à Lagoncha e punham-nos no guiador da bicicleta para os oferecerem depois na festa às suas preferidas... Ao longo do dia, as pessoas divertiam-se dançando modas de roda,
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ou entregando-se a jogos populares. Voltavam às suas casas com o sol a pôr-se. Nos primeiros dias após a festa, não faltavam comentários acerca de como tudo decorreu! Este é forte: “Houve menina que perdeu ‘a sua espiguinha’ no meio do pinhal, e mesmo assim há-de fazer questão de levar vestido branco e ramo de rosas da mesma cor no dia do casamento”. Ironia!... O nosso povo tinha (e tem) muita ironia, o seu quê de maroto, e de poético também! Erguia em sítio estratégico do canto o Velho da Aleluia, uma figura feita de palha e vestida a rigor para a condenação de morte na fogueira depois da meia-noite de Sábado de Aleluia. O ‘velho’, içado no topo duma vara pela Sexta-Feira à noite, feito Judas enforcado, ostentava um testamento escrito manualmente em folha grande de papel pardo e seguro ao casaco com alfinetes. O testamento do ‘velho’ contemplava algumas pessoas da terra. “Para a beata da Cotilde, deixo-lhe os óculos de aumentar para ver os rapazes solteiros quando estiver a rezar”. “Para a nossa Rita, o ‘meu carrinho de duas rodas’ para ela fica”. “Para o porco do Boavida vai o meu casaco castanho, mas que o use depois de tomar banho”. E o testamento continuava... Pela meia-noite, o ‘velho’ era lançado à fogueira e o pessoal divertia-se a saltá-la. Como lugar de compras e encontro, o povo adorava ir à Feira que todos os meses acontecia no dia cinco, no local que ficou conhecido como Feira dos Cinco. Ali era feita a venda e compra de porcos, além das padas de Pardilhó e o pão de rosca das vendedeiras que vinham lá dos lados de Estarreja. Na Feira dos Cinco, na Murtosa, os moliceiros aproveitavam para negociar com os lavradores de Estarreja, Salreu, e Angeja as marés de moliço das semanas seguintes. As Praças de Pardelhas e Estarreja eram também muito apreciadas e, na de Pardelhas, algumas varinas faziam questão de 29
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