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Maria João Carrilho
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«A ausência do espaço e do tempo caracterizam o mito. Assim reconhecemos aquilo que está a ser contado como parte de nós, parte da nossa herança cultural. Precisamos que nos contem estas histórias uma e outra vez. Até que a solidão já não seja associada à velhice, nem a inocência ao abuso, nem a dor ao abandono.»
E os meus sonhos?
maria joão carrilho
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Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa. A sua formação passa também pela Escola Superior de Teatro do Conservatório Nacional. Ensina Línguas Estrangeiras, Português e Expressão Dramática. Participou em diversos projectos de ”Mandrágora, Associação de Cultura e Arte”, integrando o seu elenco teatral. Incentivou a criação de grupos de teatro de bairro e de escola, tendo levado a cena diversos autores: Tchekhov, Almada Negreiros, Maya Angelou, entre outros.
Elisabeth Bammel
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novelas suburbanas
Escreve para revistas locais e independentes. Gosta de passear à beira mar e de andar de eléctrico em Lisboa, a sua cidade natal.
maria joão carrilho
NOVELAS SUBURBANAS
FICHA TÉCNICA EDIÇÃO: Edições Vírgula
® (chancela Sítio do Livro) Suburbanas AUTORA: Maria João Carrilho TÍTULO: Novelas
REVISÃO:
Susana Fernandes Pedro Marks PAGINAÇÃO: Paulo S. Resende CAPA E ILUSTRAÇÕES:
1.ª EDIÇÃO Lisboa, Fevereiro 2014 ISBN:
978-989-8678-48-5 369222/14
DEPÓSITO LEGAL:
© MARIA JOÃO CARRILHO
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
NOVELAS SUBURBANAS MARIA JOテグ CARRILHO
Ao senhor Palomar
A S P A L AV R A S I N VA S O R A S O pesadelo tinha acabado, depois de ter convencido a família de que não era no meio de papéis para arquivar que se sentia feliz e que só a perspectiva matinal de ter de se deslocar para o serviço o desanimava. De facto, não havia dia que não voltasse a casa indisposto, taciturno, o que não deixava de preocupar Isabel, que bem via o modo como ele se atirava para o sofá e reivindicava os chinelos, complemento obrigatório do único prazer do dia – espetar-se em frente à televisão a ver as notícias. Meninas, pouco barulho. Recomendava Isabel às filhas enquanto se interrogava, de peito murcho. Ele já não gosta de mim? Josué decidira requerer a aposentação.
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Para quando atingisse a almejada meta, tinha Josué passado a vida inteira a trabalhar e a poupar, a acumular um pé-de-meia que lhe permitiria, a ele e aos seus, comer uma sopa todos os dias. Também para que é que era preciso mais? Perguntava ele à mulher, e ela na dúvida, a pensar com os seus botões se valeria a pena arriscar, tê-lo ali à perna todo o santo dia, a controlar todos os seus movimentos e todos os seus gastos, incluindo a ida mensal ao cabeleireiro, a cobrir os brancos, o seu melhor pecado. Mas se bem o pensou, melhor o realizou. Josué não encontrava saudades do dia em que deixara o fastidioso emprego, as toneladas de pastas diariamente depositadas na secretária, a empilharem-se em fila de espera a que ele tinha de dar despacho; ou seja, colocá-las no monte respectivo, ou num novo lote que baptizava com um novo nome. Josué era finalmente feliz. Acordava de manhãzinha com todas aquelas histórias na cabeça, que tinha imediatamente de transpor para o PC, como se de mais uma necessidade matinal se tratasse, ir à casa de banho ou lavar os dentes. Josué não sabia explicar, que quanto mais o
fazia mais necessidade tinha de o fazer. E dia em que não o fizesse não era dia. Sentia que lhe faltava qualquer coisa, como se lhe tivessem impedido o café da manhã, ou passasse a ser proibido fumar. Quantas vezes Josué, ainda em cuecas, se sentava à secretária na tal necessidade. Todavia, mais importantes mudanças se vislumbravam na carta do seu destino. Fatal, o dia em que encontra o Malaquias, antigo colega de escritório que há muito mais tempo tinha deixado de trabalhar. O que é que fazes, o que deixas de fazer, agora escrevo, diz o Malaquias. E dá para viver? Pergunta o Josué, com a filha mais nova pela mão, enquanto espera que Isabel se despache com as compras do minimercado. Dar, não dá, Malaquias tinha já publicado alguns artigos em revistas semanais, freelancer, diz ele. Pagavam pouco, claro, mas tinham-lhe sugerido que publicasse e já ia no segundo volume de fascículos sobre a arte de viver gastando pouco. Eu também ando a escrever umas coisas, atreve-se Josué, mas a conversa fica por ali, tinha que ir, lá voltava a mulher, carregada, cabelos desgrenhados, como se tivesse sido amassada nalguma carruagem de metro sobrelotada.
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Uma noite recebeu a visita de Malaquias, para um café, como tinham combinado. Então ele também escrevia? Temos de ver isso. Tanto insistiu que Josué lá lhe mostrou o que andava a fazer. Que aquilo era bom, dizia o amigo, muito forte, a narrativa. E um tema muito em voga – memórias da guerra colonial. Continua pá. Semanas depois, lá está o Malaquias a bater à porta, a cair-lhe na sopa, que tem de o apresentar a uma editora amiga dele. Que não, que não tinha coragem, ripostava Josué. O que é que as pessoas haviam de pensar, ele, a escrever? O certo é que o outro o convenceu a acompanhá-lo à editora da tal revista. Foi buscá-lo a casa na semana seguinte e lá partiram com a resma de papéis mal-amanhados. Malaquias é quem convence a jovem esposa do proprietário da Revislivris Editores, editora principal, redactora, directora de publicidade e marketing, a contratar Josué para uma participação como freelancer, se não gostar não publica, se não publicar, não paga, não é assim doutora? Ele, Malaquias, já tinha experiência. Josué a querer e a não querer. Oh amigo, claro que vão gostar do que tu escreves, eu
gostei, a doutora também, homem. Fizeram-no assinar um contrato em que lhe pagavam à página. Tinha sido esse o ponto de viragem. A Josué parecia que se lhe tinha acabado a paz. Encomendavam-lhe uma crónica sobre os soldados portugueses em África agora, uma história de mulheres dali a dois dias, porque é que não aproveitava esta ideia tão boa, da mulher que vivia com o cão, ou a do homem que aparecera esticado na relva, original para lá, versão final para cá. Aquilo não tinha fim. As madrugadas de Josué eram agora preenchidas com contas de cabeça, quantos caracteres, quantos parágrafos, com alguma urgência, hoje, o mais breve possível, amanhã. A editora tratava de lhe marcar encontros em livrarias, em casas de chá com bolinhos, em bibliotecas pelo país fora, em todo o lugar aonde os leitores, sobretudo as leitoras, manifestavam interesse em conhecer o autor das Crónicas Avulsas. Ler a correspondência, responder. Corrigir provas, aprovar a ilustração do texto, Josué sentia-se novamente
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preso de um chefe, a editora, que constantemente lhe fazia sugestões, lhe dava ordens. Não estava a gostar lá muito do pratinho, não tinha pensado nisto, que o publicar lhe tolhesse os movimentos para escrever, o culpado era o Malaquias. Muita coisa na vida de Josué se digitalizara, o amigo Malaquias não tinha esse problema, dizia que não queria, aquilo não era para ele, passar a vida na net. Ele era de outros tempos, não tinha paciência, não se ia agora habituar, era adepto do cara a cara, do frente a frente, quanto muito do telefone a telefone, mas pouco. Continuava a usar a velha máquina de escrever e eles que se amanhassem. A verdade é que quando Josué pensava na vida, era vê-la cada vez mais a andar para trás – as pastas do escritório a serem substituídas por correspondência digital diária, mais que diária, a caixa do correio atafulhada de mails, que havia que catalogar e arquivar de acordo com o seu teor. E os meus sonhos? Ele não queria era perder aquela urgência de inventar. Para isso precisava de tempo, para olhar para as gentes, para cozinhar tudo dentro
dele, para repensar, rever, corrigir e tornar ao princípio. Acedeu a tentar concluir o tal romance. A editora continuava a achar a ideia muito interessante. A seu pedido, a crónica de Domingo passou a ser quinzenal, de modo a poder dedicar-se à história da mulher que vivia com o cão. Isabel e os filhos incentivavam-no. Que sim que era bom para a saúde, a ocupação, bla, bla. Tem dias, pensava ele. Seis meses passados, estava apto a satisfazer a proposta da Revislivris. Outros três meses e A Mulher Que Vivia Com O Cão a sair do prelo, de capa azul e magenta. O Malaquias aparecia todas as noites. Desde que se tinha autoproposto a apresentar o livro, queria saber tudo sobre Josué. Com uma curiosidade mórbida, punha-lhe perguntas sobre a infância, sítios antigos, se tinha nascido de termo ou não, se teria sido prematuro, numa espécie de psicanálise que já ia na mediunidade, nas vidas passadas e nos antepassados. Foi por aí que se lhe atravessou a questão da identidade, do ser e não ser. E se o amigo desconfiasse que ele não era ele, ou melhor não era apenas ele, mas também
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Maria do Ó, uma mulher que andava pelo éter, que passeava pela internet, autora de textos, mais propriamente posts, em deambulações digitais? E que diria Isabel, a mãe dos seus filhos, ao vê-lo com um nome de mulher, a assinar polémicas de culinária poética, misturadas com fotografias de crianças de bibe, de legumes idos ao forno? Com certeza que ele não era o Fernando Pessoa ou coisa que o valha, que isso dos heterónimos não era com ele, que aquilo trazia água no bico. O próprio Malaquias não o ia aceitar. Josué cairia no total descrédito como autor, seria tido por um usurpador de personalidade, um fora-da-lei; e então deixou-se ficar de segredo bem guardado. Entretanto, no meio das receitas de cozinha de nem só de pão vive o homem wordpress.com iam aparecendo referências a ele próprio, um tal escritor de um subúrbio de Lisboa que se preparava para editar um romance. O que de início não parecia fácil, ir galgando terreno encavalitado no seu próprio eu, em breve se transforma no hábito de andar embrulhado na analogia de si, como se a ficção fosse, ela mesma, a vida. O Josué era muitas
vezes Maria do Ó, autora de um blogue virado sobretudo para as culinárias de peixe de anzol, que dava também cobertura a referências e informações diárias tiradas dos jornais. Ao amigo não diria nada, que o outro até nem ia à net. Mas aquilo a preocupá-lo, logo agora, tão perto do fantástico evento. Por esta altura já a Revislis se tinha tornado quase que uma pessoa da família. Já as filhas tinham ouvido contar inúmeras histórias sobre a editora, a Dra. Cristina, que até estava grávida, o marido, um fulano cheiinho, o Capoulas, muito menos eficiente do que ela, e a gráfica, que funcionava num armazém fora de portas e instituição que cumpria bem o seu papel de má da fita, bode expiatório de tudo o que corresse mal na empresa. Ele eram as contas por pagar, as cores a saírem mal, o alinhamento estragado, tudo culpa da gráfica. Até a miúda mais nova, a Marinita, se alguma coisa corria mal lá em casa, casquinava – a culpa é da gráfica. Chegada a véspera da apresentação de A Mulher Que Vivia com o Cão, anunciada como uma saga sobre a solidão
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do nosso tempo, de pastelinhos quase feitos, groselhas e garrafas de vinho compradas no Continente, para ser mais em conta, e o raio da gráfica que não mandava o livro. E se houvesse uma gralha, se não tivessem incluído o último capítulo da coisa, como acontecera na última versão que lhe tinham enviado? Acabava-se. A breve incursão pelo mundo das letras nem sequer chegaria a começar. Ficar-se-ia pelos entretantos. Na sua história, que ele e só ele tinha imaginado e parido, é que não podiam tocar, não senhor, podia ser bera mas era dele, desabafava aos gritos com Isabel enquanto ela fritava os pastelinhos de bacalhau para o dia seguinte. E se tiver que se adiar? Congela-se tudo, homem, não te aflijas, congela-se tudo, mentia a mulher para não ter de o ouvir. Na manhã do dia fatídico, o Malaquias a telefonar de cinco em cinco minutos, a inquirir com voz soturna se a encomenda já tinha chegado; e a afirmar peremptório, não te preocupes, pá, eles não falham, não falham. Cada vez que tocavam à porta era um sobressalto. Ninguém vai à porta? Gritava ele do seu cói, e se for o carteiro? Acorria uma das filhas, de muito má vontade, que
para poder estar presente na apresentação ia ter de adiar o encontro com o namorado e chegar atrasada a um concerto no coliseu. Quem é? Ninguém, um sem-abrigo a vender postais. O Malaquias a telefonar, em ponto de rebuçado, então já falaste com a gráfica, não te aflijas, é mesmo assim, só sabem trabalhar sob pressão, todos estes gajos dos jornais, das revistas, com os livros ainda é pior. E ele que nunca mais, nunca mais se metia noutra. Deixa lá, é o país que temos, acrescentava o Malaquias. Ninguém cumpre, não viste hoje a história dos magistrados, a copiarem nas provas e o castigo foi terem Dez? Dez, homem. Que país, que país, como é que isto nos aconteceu. Ouviste o bastonário, esse também é uma no cravo, outra na ferradura. E Josué a não querer ficar atrás, estes políticos da treta, por que é que não vai tudo de férias e nos deixam em paz? O Malaquias cada vez mais inflamado a responder, estes gajos da política deram-nos cabo da revolução, é o que é. Josué que sim, de solilóquio interior, que tinha que fazer os agradecimentos e a tomar notas enquanto falava ao telefone. O infeliz não se decidia sobre o que haveria
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de dizer. Já tinha escrito o romance, agora que o deixassem remeter-se à sua insignificância. A mulher e as filhas tinham passado os últimos dias numa roda-viva de cabeleireiros e costureiras a subirem e a baixarem bainhas, a escolher cores e berloques, joias para o acontecimento. E agora não o deixavam descansar, que não, que de jeans não podia ir, era um bar da moda, intelectual mas não tanto, de intelectuais mais pró chique. E o Malaquias de novo ao telefone, não te consumas, pá, trata-se de um encontro de amigos, tinha ligado para lhe dar uma óptima notícia, achava ele. Josué atento às suas vísceras, a galgarem por ele acima os níveis de ansiedade, o colesterol, os açúcares, a pressão arterial. Malaquias que tinha falado com alguém, que lhe prometera dar um toque a outro alguém, para que convidasse o presidente da Junta a estar presente. Bolas, logo esse, pensa Josué coçando a orelha esquerda num rito nervoso; nunca simpatizara com o Partido do homem, e ainda menos com o sujeito.
Josué abre a janela da varanda e olha a noite lá fora. O aroma verdejante da madrugada, a isto se podia chamar uma lufada de ar fresco, diz para os seus botões, enquanto saboreia os pés descalços no lajedo da varanda. Enfim sós, ele e a sua noite, saído da cama escaldante de palavras invasoras. Cumprira-se. Pela primeira vez na vida sentira que tinha feito alguma coisa, estava ali, na face dos poucos exemplares que restavam da cerimónia de lançamento. O livro como o tinha idealizado, as histórias que tinha inventado, aquela mistura de ele próprio com ele próprio, desconhecido, surpreendente, inconsequente e livre nas suas diversas identidades.
Entretanto Maria do Ó tinha-se tornado referência obrigatória no mundo dos bloggers. Era agora uma profissional. Segundo o último relatório da Wordpress o nem só de pão vive o homem tinha atingido uma média de 9900 visitas diárias. Grandes costureiros e marcas de roupa, da Zara aos grandes armazéns nova-iorquinos, todos se candidatavam a ser anunciados no blogue de Josué sem
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nunca se terem interrogado sobre quem seria a Maria do Ó, o importante era vender. A sua carreira de blogger ia portanto de vento em popa. Na base do sucesso, a capacidade imaginativa de Maria do Ó, o tão exaltado empreendedorismo. Ela optara por alargar o âmbito do blogue e conseguira uma simbiose interessante entre receitas de comida afrodisíaca e a publicação de mails de leitores que procuravam resposta aos seus problemas. O consultório sentimental rapidamente evoluiu para a área da sexologia.
Naquela madrugada, no auge de uma criatividade doentia, numa conversa interminável consigo próprio, ele não resiste a publicar um desabafo. Apeteceu-lhe assumir-se como um assíduo frequentador do nem só de pão vive o homem que aparece a contar as suas mágoas a Maria do Ó, via mail. O testemunho do tal leitor, um «atormentado das letras» cuja identidade Maria do Ó não revela, «aqui se publica», diz ela. A imagem escolhida por Maria do Ó
para ilustrar o texto do «promissor ficcionista e afamado gourmet», é nem mais nem menos do que uma fotografia de um prato de Bacalhau à Ramos. O mail rezava assim: «Cara Maria do Ó, Estou quase a desistir desta nova indústria. Não me está a calhar tanta andança. Ele é de editora em editora, de autor em autor, a espreitar, a comparar e lá se vai o prazer de imaginar, escrever e ler. Há que fazer relações públicas, percorrer o caminho das estrelas, mas qual deles? Para ser uma espécie de Lili das letras? Bahhh, antes uma Lili, Lili, uma genuína Lili platinada e esticada.» E mais adiante, «Ando por aqui, por esta feira de vaidades, arrependidíssimo.» «Uma lancinante confissão», é como a autora do blogue nem só de pão vive o homem classifica o passo seguinte. «Já comecei a detestá-los, a eles e às suas andanças por páginas lobísticas, camaradagens e jantares à beira de qualquer coisa. Não os suporto, sobretudo quando amo
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o que eles escrevem. Pressinto-lhes um mundo vão que não lhes perdoo, eu, sim, é que sou mesmo puritano. Não lhes admito a humanidade, preferia-os divinos.» E Josué a comentar, assumindo-se como Maria do Ó, «não podia estar mais de acordo consigo. Também eu lastimo tanta inconsequência.» E numa tirada filosófico-estatística, «o ser humano, caro atormentado das letras, contém em si 75% de fingimento e 25% de verdade mascarada de fingimento. Veja bem, que até neste blogue, temos exemplos desta constatação. Tudo não passa de um disfarce. Se quer que lhe diga, a mim, nem um simples arroz de peixe me sai bem, e, inclusive a foto do Bacalhau à Ramos para onde você agora está a olhar, não passa de uma montagem.» Josué desculpava-se perante os leitores, não tinha hipótese de responder a todos. Como as queridas e queridos leitores sabiam, Maria do Ó era uma mulher muito ocupada, sobretudo depois do nascimento do seu último filho, uma bebé de 3 meses, uma menina, que Josué não resistira a inventar.
Foi precisamente aí que a coisa se complicou. Uma das admiradoras de Maria do Ó conseguiu descobrir que ela morava em Portugal, e, ainda mais, o verdadeiro endereço do rebento de Maria do Ó, de nome Fátinha, cujo ritual diário era descrito por Josué em vários tons de rosa deliciando os leitores com episódios românticos da vida familiar da criaturinha, do mamar ao mudar da fralda. Um verdadeiro lar doce lar. Os visitantes aderiam, cheios de conselhos paternais, maternais, de tias velhas que sabiam muito do assunto. Esse doce lar, pois claro, não era outro senão o apartamento do primeiro andar de um subúrbio de Lisboa que nós bem conhecemos.
Esta manhã, Josué já sentado à secretária de conversa com as suas palavras invasoras. Embebido na gostosa tarefa, a campainha da porta a tocar e Josué a deixar-se ficar sentadinho, alguém tratará do assunto, pensa. Por sorte ou por azar já a mulher tinha saído, sexta-feira, dia de praça. Intercomunicador para lá, intercomunicador
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para cá, suba, suba, faz favor. A dona Maria do Ó, por favor. Josué faz das tripas coração e responde pois, pois. O funcionário, profissionalíssimo, de boné da DHL. Se a senhora não está, assine aqui, por favor, e passa-lhe para as mãos uma enorme caixa de cartão. Que é isto? Já o homem desce a escada, bom dia, quando Josué acorda do seu torpor, bom dia, bom dia. A partir daquela hora Fátinha passa a contar com um verdadeiro enxoval, ele é casaquinhos, botinhas de lã, macaquinhos de algodão, soquetes e barretes a condizer, mantas, brinquedos, bibelots de borracha que abarcam inúmeras espécies do mundo animal, desde elefantes que apitam a gatinhos que miam. Sobressalta-se quando ouve Isabel meter a chave à porta. E agora? A sensação de se ter portado mal surge acompanhada do espanto. Mas o que é que eu fiz? Pelo sim, pelo não, arruma tudo aquilo atabalhoadamente na caixa de cartão e esconde-a debaixo da cama. A mulher grita lá de dentro, que veio só deixar uns sacos, tem de voltar lá abaixo. Ele suspira, aliviado. Por volta do meio-dia, Josué espia a janela junto à secretária, a carrinha do correio novamente à porta a
tropeçar em Isabel que volta do cabeleireiro. E o funcionário a pedir-lhe que assine, uma encomenda da Holanda para a senhora Maria do Ó. Esta história vai acabar muito mal. Pois é. O carteiro toca sempre duas vezes, pensa Josué. Imóvel, numa rigidez quase cadavérica, coloca as orelhas em posição de captador de ondas hertzianas. Sente os apêndices auditivos, numa elasticidade animal, a amplificarem os mais breves ruídos: a mulher a meter a chave à porta, na cozinha, a pôr o avental, a descascar os legumes para a sopa. Josué a estranhar tanto silêncio, nem a rádio ela liga. Como um gato em busca da presa, ele aparece. Fazes um café? Hoje é a tua vez, sugere Isabel de sorriso enigmático. E, com toda a calma , então gostaste das botinhas? Pena serem azuis, não?
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