‘O SEGREDO DA SERRA DA LUA’
FICHA TÉCNICA Edição: Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) Título: O segredo da Serra da Lua Autora: Carolina Carvalho de Sousa Capa: Patrícia Andrade Paginação: Nuno Remígio 1.ª Edição Fevereiro, 2014 Depósito legal: 368037/13 ISBN: 978-989-8678-43-0 © Carolina Carvalho de Sousa PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO
Av. de Roma n.º 11 – 1.º Dt.º | 1000-261 Lisboa www.sitiodolivro.pt
O segredo da Serra da Lua
“A coisa mais bela que podemos experimentar é o mistério. Ele é a verdadeira fonte de toda a arte e ciência” Albert Einstein
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I - Cuidado! – gritou Lídia, ao ver que o automóvel, onde seguia com o seu companheiro, quase colidia com uma árvore à sua frente. Desciam já a serra de Sintra, quando Júlio, ao volante do seu Rover, reparou que a viatura não travava. Chovia copiosamente. A estrada mostrava-se escorregadia e escura, tanto pela tempestade que se fazia sentir, como pela densa vegetação que se erguia à sua volta. O que dificultava ainda mais a tarefa do jovem de controlar o veículo. Ela agarrava-se ao cinto de segurança, fechando os olhos cada vez que o veículo derrapava, e prendia a respiração sempre que deparavam com uma curva mais apertada. Ele segurava o volante com toda a força que podia, rezando para que a sua perícia de piloto da aviação não o abandonasse naquele momento. Ao avistar uma clareira no meio de todo aquele pinhal, Júlio voltou a direção para o seu lado esquerdo, conseguindo imobilizar o carro contra uns arbustos, ajudado pela vala da berma que prendeu as rodas traseiras. Lídia respirou fundo, olhando admirada para o seu marido, pela forma como ele fora capaz de dominar a situação com tanto sangue frio. O que se passou com os travões? – acabou por perguntar. Com os cotovelos apoiados no volante, e a cabeça entre as mãos, Júlio apenas murmurou: - Não sei. Depois de um breve silêncio, enquanto abrandavam o ritmo dos seus corações, ele abraçou-a, perguntando: - Estás bem? - Tirando o susto, estou. Mas o que vamos fazer agora? Olharam em redor e, salvo a luz dos faróis de uma motorizada que passou na estrada, indiferente àquela tempestade, a escuridão dominava em redor. Júlio saiu do carro, dirigindo-se para a berma da estrada, pensando que alguém acabaria por parar e prestar-lhes ajuda. Mas o trânsito era ocasional e pouco solidário.
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Numa noite daquelas, quem os poderia censurar? Acabou por voltar para junto dela: - Lembrei-me que existe uma estalagem, não muito longe daqui. Vou aproveitar que está a chover menos e vou lá telefonar. Aqui ninguém vai ajudar-nos. Ela impediu-o de afastar-se, segurando-lhe o braço: - E eu fico aqui? - perguntou-lhe, algo assustada com a ideia de ficar completamente sozinha no meio de todo aquele breu. - Se preferes apanhar chuva... - Prefiro! - exclamou decidida, ao mesmo tempo que abria a porta. Júlio tirou o casaco, já bastante encharcado, e colocou-o sobre a cabeça de ambos. Trancaram as portas da viatura e seguiram por entre os pinheiros, serra a cima. A caminhada era feita quase por intuição, entre ramos e troncos de árvores, ervas rasteiras, raízes soltas, e um terreno lamacento onde sentiam enterrar os pés, a cada passo que davam. Lídia era uma mulher de trinta e dois anos, alta, magra, com uma pele muito clara, cujos olhos, verde-esmeralda, davam emoção a um rosto já de si muito expressivo, emoldurado por uns longos cabelos castanhos mel. Vestia geralmente tailleurs de bom corte e bons tecidos, sempre originais e confortáveis. O mesmo já não se podia dizer do que calçava. Usava sapatos de salto alto, tipo ‘agulha’, o que a fez torcer o tornozelo várias vezes, amaldiçoando outras tantas, aquela noite em que tudo parecia correr mal. Finalmente, depois de caminharem cerca de meia hora, conseguiram alcançar um caminho mais seguro, traçado e coberto com alguma gravilha, que os levou às traseiras da estalagem. Contornaram o antigo palacete e tocaram insistentemente à campainha da grande porta de madeira, da entrada principal. Foi uma senhora, extremamente magra, vestida com um saia-casaco cinzento muito escuro, que veio recebê-los. - Desculpe ter tocado assim. – disse Júlio, ao reparar na expressão carrancuda da mulher. – Mas é que estamos encharcados... O nosso carro avariou... - Podemos telefonar? – cortou a esposa, procurando abreviar a explicação, pois a água da chuva escorria-lhe já pelas costas abaixo e ansiava por um abrigo. - Entrem. – disse a mulher, secamente. Eles entraram para o hall, onde o chão de mármore e o lambrim de madeira causavam um bonito impacto visual ao serem refletidos no grande 8
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espelho de moldura dourada, que ocupava toda a parede do fundo. Depois de sacudirem a água das suas roupas, seguiram a anfitriã, entrando para a primeira porta do lado direito, que os conduziu a uma enorme e acolhedora sala de estar. O chão era também em mármore, mas coberto com tapetes de arraiolos, rodeados por confortáveis sofás de armação em cerejeira. Na parede da entrada, uma estante da mesma madeira, exibia livros de autores portugueses, franceses e ingleses, e numa pequena mesa revistas das mais belas paisagens da serra convidavam a uma visita. A parede oposta estava decorada com muitos quadros antigos, que mostravam como era Sintra no tempo de Eça de Queirós, charretes utilizadas pelos jovens burgueses nos seus passeios e os elétricos do início do século. Mas o que chamou a atenção de Lídia, foi a grande lareira, ao fundo da sala, que por sorte estava acesa e soltava um aconchegante calor das suas brasas, atraindo-a imediatamente para a sua beira, enquanto Júlio seguia a antipática empregada para o telefone da receção. Sentiu aquele calor inundar-lhe o corpo, que já tiritava de frio, tão encharcadas que estavam as suas roupas primaveris. Decorria já o mês de Maio, mas parecia que o bom tempo teimava em chegar naquele ano. Os dias começavam com uns tímidos raios de sol, mas, à medida que o final da tarde se aproximava, chegavam também as nuvens e o vento fresco. ‘Parece que estava a adivinhar... Não me apetecia nada sair de casa hoje.’ Pensou ela, recordando a insistência do marido para irem a Colares, lanchar com a mãe dele. Inconscientemente, ou talvez não, ela evitava já as idas a casa da sogra, pois sabia de antemão qual era a primeira pergunta que iria ouvir: ‘Então já há bebé?’. Lídia tentava ficar grávida ia para dois anos e começava a desesperar com a incompreensível demora. Os exames médicos diziam que estava tudo bem, no entanto mês após mês chegava a mesma deceção. E Júlio que não conseguia perceber que a ânsia doentia da sua mãe a deixava ainda mais nervosa... Algo que puxava insistentemente a sua saia, veio quebrar o fio dos seus pensamentos. Olhou para baixo e deparou, para seu espanto, com um menino de olhos muito assustados. Baixou-se, observando-o de frente, tentando perceber o que ele lhe dizia: - Por favor, ajude-me! – pediu a criança, muito baixinho. - O que tens? – perguntou-lhe ela, pegando naquelas mãos tão pequeninas, mas que tremiam tanto. 9
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- Ajude-me... – repetiu o petiz, olhando receoso em seu redor. - Eles vão matar-me! Lídia não soube o que fazer. Aquele pequenino rosto mostrava sinais de lágrimas secas, e os seus olhos enchiam-se de outras tantas, prontas a cair. Nunca vira uma expressão tão aflita... - Ah! Estás aqui! – exclamou uma voz na entrada da sala. O pequenino estremeceu, apertando as mãos da jovem e sussurrando: - Por favor... A mulher agarrou-o pelo ombro, afastando-o violentamente, ao mesmo tempo que o repreendia: - Eu já não te disse para não chateares as pessoas?! Já para a cozinha! Ela sentiu as mãozitas da criança a fugirem das suas e arrependeu-se de não ter sido capaz de as prender. * Era quase meia-noite quando Lídia e Júlio chegaram ao conforto do lar, uma pequena moradia à beira da praia do Guincho. O reboque da sua companhia de seguros, prejudicado pelo temporal que se fazia sentir, demorara muito tempo a descobrir a estalagem e, posteriormente, a transportar o veículo para a porta da oficina que o iria concertar. Finalmente, deixara-os em casa. Júlio não se conformava com o estranho acidente: - Vou exigir uma peritagem! - exclamava, ao mesmo tempo que se despia no seu quarto. – Ainda na semana passada levei o carro à revisão… Isto não podia ter acontecido! Ficar sem travões?! Assim sem mais nem menos?! Preparava-se para entrar num duche quente, quando reparou que ela não prestara a menor atenção às suas reclamações. - O que se passa? Estás a pensar em quê? Íamos morrendo e tu não dizes nada? Lídia, que despira já o tailleur ensopado, trajando o seu roupão de turco lilás, sentou-se na beira da cama, com o olhar preso no infinito. - Estás a ouvir? – insistia Júlio. – Sentes-te bem? Acordando dos seus pensamentos, a rapariga hesitou, mas acabou por dizer: - Vou aquecer leite com mel. Também queres? Ele abanou a cabeça negativamente, e entrou no duche, cujo vapor já invadia o vestiário e o quarto. 10
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Contava já trinta e três anos, e exibia um porte atlético, conseguido graças ao constante exercício físico a que se acostumara desde pequeno. O seu rosto, bem talhado, lembrava um Deus grego, de expressivos olhos castanhos-claros e cabelo muito negro e ondulado. Quando já se encontravam deitados, ele reparou que Lídia estava a ter dificuldades em adormecer, pois não parava de dar voltas na cama. Queres fazer o favor de me contares o que te preocupa? – pediu ele, sentando-se e acendendo a luz do candeeiro sobre a sua mesa-de-cabeceira. Com uma certa relutância, ela voltou-se para ele, confessando preocupada: - Aconteceu uma coisa muito estranha na estalagem, quando foste telefonar. - O quê? - Um menino, que não devia ter mais de quatro anos, veio pedir-me ajuda. O rapaz franziu o sobrolho. - Que tipo de ajuda? Esmola? - Não... Disse que o queriam matar. - Matar? – espantou-se Júlio, não conseguindo acreditar – Ora, estas crianças sempre têm cada uma! - Achas que estava a exagerar? - Claro! Possivelmente é filho de alguma empregada. Deve ter feito qualquer judiaria e a mãe queria castigá-lo. Sabes como são os miúdos... Lídia queria acreditar nisso. Nem que fosse só para se sentir melhor com a sua consciência. Mas recordava o pequenino rosto de olhitos assustados e custava-lhe a crer que todo aquele pânico fosse simplesmente medo de um castigo. - Mas se tu visses a expressão dele! – insistiu, sentando-se na cama. - Devia ter feito alguma bonita! – puxando-a para baixo, tentou encerrar o assunto: - Vá, agora dorme. Hoje apanhaste um susto jeitoso, por isso estás para aí a imaginar coisas. Contrariada, ela deitou-se. No entanto só adormeceu muito mais tarde. * A manhã trouxe com ela o sol de um novo dia, como que apagando pensamentos tristes de uma semana cinzenta e sempre com chuva. Júlio saíra cedo, dirigindo-se para a oficina onde deixara o seu automóvel, para apressar o seu conserto, e para saber os motivos de tão perigosa avaria. 11
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Ela, mal reparou no dia que fazia lá fora, levantou-se de imediato, pensando em tomar o pequeno-almoço ao ar livre. Vestiu o seu roupão e entrou na cozinha para preparar a refeição. Era uma divisão muito ampla e iluminada pela claridade do sol, devido às portas de vidro que a ligavam ao terraço. O chão era em mármore rosado, os armários em branco lacado com puxadores dourados, e os azulejos, brancos, eram riscados por tons de rosa e cinzento. Pegou na bandeja, onde tinha colocado algumas tostas, doce de framboesa e um copo com sumo de laranja, e saiu para o terraço. Afastou a mesa e as cadeiras do abrigo superior da varanda, e sentou-se ao sol, numa das cadeiras bem almofadadas. Era em dias assim que gostava de admirar a beleza da paisagem à sua volta. Do seu lado esquerdo, recortava-se a costa rochosa, típica pela sua erosão lapiaz, que terminava nos longos areais do Guincho, cujo mar era sempre tão revolto. Ao seu lado direito, erguiam-se os contrafortes da serra, seguidos pelo Cabo da Roca. Para trás da sua casa, ainda podia contemplar o verde da Mata da Marinha, com os seus pinheiros bravos e mansos. Recordou-se dos acontecimentos do dia anterior e tudo lhe parecia agora muito menos dramático. ‘O Júlio deve ter razão. As crianças são terríveis para inventarem situações, chegando mesmo a acreditarem naquilo que inventam. De tal forma que nos convencem também.’ Pensando que, além disso, também estava muito nervosa com o acidente, Lídia esqueceu o pequenito de olhos atemorizados. Tranquilizada pelo ambiente que a rodeava, o sol muito brilhante e o céu azul, só conseguia sentir-se feliz e otimista. Terminava já o pequeno-almoço, quando se apercebeu que a melodia das ondas sussurrava aos seus ouvidos, como que chamando por ela. Não resistiu. Deixando a bandeja sobre a mesa, a jovem apressou-se a vestir o seu fato de banho verde-água e, enrolando simplesmente uma toalha à cintura, saiu de casa em direção à praia. Como calculava, pois ninguém esperaria um dia quente daqueles a seguir a outro tão invernoso, pouca gente ocupava aquele longo areal do Guincho. Melhor, pensou ela, assim não teria de preocupar-se com o onde estender a toalha. Colocou-a na areia seca, mas o mais perto possível da água, e foi dar o seu primeiro mergulho do ano. Possuía uma completa fascinação pelo mar e, apesar de ter nascido muito longe de qualquer praia, era-lhe particularmente difícil ficar distante dele, fosse para sentir as ondas a rebentar contra o seu corpo, ou apenas para 12
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perder o olhar naquela agitação fascinante. Era ali que encontrava a terapia necessária para as tensões que vivia, agora mais do que nunca. Sentia-se só. Sem qualquer conforto, mesmo que moral, de um ombro amigo. Os seus pais tinham decidido morar na Suíça, pouco depois do seu casamento com Júlio, pois a sua irmã, que já lá vivia ia para cinco anos, chamara-os para perto dela. Teresa decidira emigrar para aquele país logo que terminara o seu curso de hotelaria e, pouco depois de ter encontrado uma boa colocação num grande hotel português, acabou por lá casar. Hoje era já mãe de um bebé com um ano, um ‘matulão’ muito lourinho e de grandes olhos azuis. Que inveja sentia dela! Tudo o que parecia tão difícil para si, fora sempre tão fácil para a sua irmã... As suas amigas de infância, assim como as colegas de escola, tinham ficado por Coimbra, onde ela nascera e crescera, até decidir o seu futuro profissional. Já em Lisboa, onde iniciara a carreira na área da fotografia paisagística, não fizera muitos amigos. Talvez habituada a amizades mais profundas, não conseguira adaptar-se a relações tão fugazes e superficiais, próprias da grande capital. Instalara-se em casa da sua tia Laura, em Alcântara, pois esta, já viúva, fez questão que Lídia, pelo menos durante o tempo do curso, lhe fizesse companhia. Ela gostava daquela casa, já antiga, mas com muito espaço, partilhado apenas com um preguiçoso gato siamês. A ondulação, muito forte, rebentava contra as suas pernas, fazendo com que quase perdesse o equilíbrio. Salpicou-se para habituar o corpo à temperatura da água e mergulhou para lá da rebentação das ondas. Recordou a primeira vez que vira Júlio. Fora um encontro muito estranho... Ela tomava café numa esplanada junto ao rio Tejo, juntamente com a sua colega, como sempre faziam quando saiam das aulas de fotografia. Deviam ser umas seis horas da tarde. Trajando ainda a sua farda de piloto, o jovem entrara no estabelecimento de uma forma muito apressada, como se fugisse de alguém. Ao reparar nas raparigas, aproximou-se da sua mesa e pediu para se sentar, explicando que precisava de ajuda. Vigiando sempre a entrada da esplanada, ele contou apenas que estava a ser seguido desde o aeroporto, por um indivíduo de traços orientais que já o ameaçara com uma navalha. Com sede de aventura, tão própria da juventude, elas logo se interessaram pela história do rapaz, prontificando-se para ajudá-lo no que precisasse. Ainda por cima ele era tão bem parecido!... E foi o que fizeram. Apesar de todos os conselhos que sempre ouviram para não darem confiança a estranhos, Lurdes ofereceu-se de 13
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imediato para, no seu carro, dar boleia a Júlio que, assim, chegou são e salvo a casa. Sentiram-se umas heroínas! A partir desse dia, o piloto, como lhe passaram a chamar, aparecia na esplanada, sempre que o seu horário de voos permitia, para se encontrar com elas. As jovens já se perguntavam se toda aquela simpatia era apenas gratidão ou teria algum outro motivo por trás. Esperaram cerca de duas semanas para descobrir. Foi numa sexta-feira que ele chegou de uma forma surpreendente: trazia consigo um pequeno ramo de botões de rosas vermelhas. Quando o viu estender o ramo na sua direção, Lídia nem queria acreditar que aquelas lindas flores eram para si e que iria jantar com a ‘farda’ mais atraente que já conhecera! Dois anos depois estavam casados. Júlio nunca lhe explicara melhor aquele incidente com o chinês e parecia até evitar qualquer conversa nesse sentido... Com alguma dificuldade, pois as ondas desenrolavam de uma forma muito forte, ela saiu de dentro de água e estendeu-se sobre a toalha de praia. Uma das sensações que o seu corpo mais apreciava era sentir o sol a tocar na sua pele, aquecendo-a, depois de um mergulho refrescante. Ficou cerca de meia hora ali estendida, sem pensar em nada, até que sentiu chegar o apetite para o almoço. Sacudiu a areia da toalha e voltou a enrolá-la à cintura. ‘Talvez Júlio já tenha chegado’, pensou. Mas a visita era outra: - Pedro?! – admirou-se ela, ao deparar com o rapaz à sua espera, perto da descida para a praia. - Já estava a pensar que vocês tinham saído, quando me lembrei de vir espreitar aqui. O Júlio não está contigo? Pedro, embora parecesse mais velho por ser muito forte, tinha apenas trinta e quatro anos. Os seus olhos, de um castanho-esverdeado, extremamente claros, eram quase inexpressivos. Gostava de se vestir de forma descontraída, com t-shirt e calças de ganga, quase sempre acompanhadas por um blazer desportivo. O seu cabelo, muito louro, estava sempre num perfeito desalinho. Considerava-se um ‘velho’ amigo do seu marido, muito embora não se conhecessem há tanto tempo como isso. Com o casamento, tornara-se amigo do casal, muito embora Lídia tivesse umas certas reticências em relação àquela amizade. Não gostava da forma como, muitas vezes, ele a olhava. Parecia que a percorria com o olhar, de alto a baixo, como se ela fosse o seu prato favorito. Era o que acontecia naquele momento e ela, com o fato de banho colado ao corpo, sentiu-se ainda mais desconfortável do que o costume. 14
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- Júlio foi à oficina. Tivemos um pequeno acidente ontem. – respondeu, ao mesmo tempo que desenrolava a toalha da cintura e a voltava a enrolar ao corpo, prendendo-a debaixo dos braços. - Um acidente? – preocupou-se ele – Onde? Naquele momento chegavam à porta de casa, e ela, ansiosa, por vestir outra coisa, disse apenas: - Espera um pouco, aí na sala, que eu já te conto tudo. Se quiseres liga a televisão. Vou só tomar um duche, não demoro nada. Vinte minutos depois, ela estava já de volta à sala, sentindo-se mais confortável num leve vestido primaveril. Na sala sobressaíam os tons verdes, predominantes nos tapetes, sofás e nas muitas plantas que decoravam os quatro cantos. A mobília, de bambu, combinava uma mesinha de tampo de vidro, colocada ao centro dos sofás, um pequeno móvel que sustentava a televisão, o vídeo e a aparelhagem e, na parede da entrada, um bar muito original exibia garrafas dos mais diversos licores, whiskies e aguardentes. No entanto, o ponto forte daquela divisão era, sem dúvida, o grande aquário que fora montado na parede que dava para o pátio, ao lado da porta. A luz do sol vinda do exterior incidia nos coloridos peixes que, no seu nadar ondulante, distribuíam a cor e luminosidade do arco-íris a todas as paredes da sala. - Então, conta-me o que aconteceu... Magoaram-se? – perguntou Pedro, que não tinha esquecido o acidente que ela comentara. - Felizmente, não. Mas apanhámos um grande susto. O carro ficou sem travões, assim, de um momento para o outro. Imagina! - Sem travões? Isso é muito estranho. – intrigou-se ele, franzindo o sobrolho. - Ainda por cima estávamos a descer a serra de Sintra, chovia a cântaros e não havia luz! – acrescentou ela, não atribuindo muita importância à preocupação dele. – O que nos valeu foi a destreza de Júlio. Fiquei realmente impressionada com a forma como ele manejou aquele volante... Notando que Pedro parecia nem sequer a ouvir, interrompeu a narrativa: - O que foi? Pareces distante. - Eu? Não, não é nada. Só acho que isso é muito esquisito. - Esquisito porquê? O teu carro nunca avariou? – perguntou algo irritada com o jeito dele. - Dessa maneira não. Nem o carro nem a mota. Os veículos não perdem os travões assim, sem mais nem menos. – hesitou uns segundos, e acabou por perguntar: 15
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- Vinham de onde? - Da casa da minha sogra. - Ah... – debruçando-se na direção da jovem, tentou aconselhar: - Se eu fosse a ti tomava cuidado... Mas não terminou a frase, surpreendido pela chegada de Júlio: - Estás por cá? – estranhou este, manifestando pelo tom de voz que não tinha gostado da atitude do outro para com a esposa. – Então essas férias? – perguntou, sem interesse, ao mesmo tempo que o cumprimentava, friamente. - Foram curtas. – respondeu Pedro, franzindo o nariz. - O México é um país que eu sempre desejei conhecer. - E porque não vão os dois? A Lídia ia adorar aquelas ruínas antigas! - Não tiraste fotografias? – perguntou ela. - Ainda não as revelei. Agora conta-me – pediu Pedro, voltando-se para o anfitrião, e insistindo no tema do acidente – O que é que te disseram na oficina? Júlio, que se sentara no sofá ao lado dele, carregou o semblante: - Ela contou-te?... – Parecia não ter vontade de falar naquele assunto – Foi só uma avaria. - Só?! – revoltou-se ela, que ficara magoada por ele não a ter beijado quando chegara – Nós ‘só’ podíamos ter morrido! - Não sejas dramática. Também não foi assim tão grave. O visitante olhava para um e para outro, estranhando o casal. Ainda antes de ter partido para férias tinha-os visto tão carinhosos um com o outro, sempre com pequenas caricias e palavras ternurentas, chegando quase a enjoar quem os via, com tanto mel. E agora, um mês depois, parecia que existia um grande abismo a separar os dois. - Se achas que não... – retorquiu ela, levantando-se do seu lugar – Vou preparar o almoço. Almoças connosco? - Não, obrigado. – agradeceu Pedro, adivinhando uma nuvem cinzenta a pairar sobre eles. – Já estou de saída. A jovem acompanhou-o até à porta, voltando depois à entrada da sala: - O que se passa contigo? – perguntou de uma forma agressiva – Perdeste a noção da realidade? De repente, o acidente deixou de ser grave? O marido não lhe respondeu, nem com um simples movimento. Olhava para a televisão, procurando ignorá-la, sem no entanto prestar a mínima atenção a qualquer imagem. - Como é que podes reagir assim? És cego, por acaso? Espantando a companheira, ele levantou-se do sofá, respondendo: 16
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- Isso querias tu… Que eu fosse cego! E passou por ela, saindo da sala, deixando-a completamente estupefacta. Ainda pensou em segui-lo até ao quarto, mas acabou por abandonar a ideia, recusando-se a continuar uma discussão ridícula. Além disso não se sentia muito bem. Entrou na cozinha e tentou preparar uma refeição rápida. Não tinha a mais pequena vontade de cozinhar, o que a surpreendeu, pois considerava-se bastante prendada naquela área e adorava confecionar pratos criativos e molhos apetitosos. Em vez disso, limitou-se a tirar do frigorífico um frango, que cortou aos pedaços. Depois de temperado, colocou-o dentro de um tacho, onde juntou uma sopa de cebola e meia cerveja. Para acompanhar, abriu um pacote de batatas fritas, colocando-as numa travessa. Júlio costumava ajudá-la, mas desta vez nem sequer se oferecera para pôr a mesa. ‘O que se passava entre eles? Estaria o seu casamento a terminar?’ Lídia não conseguia aceitar essa ideia, muito embora admitisse que a relação entre os dois já não era a mesma. Substituindo os mais ternos carinhos de outrora, imperava a frieza. Talvez frieza fosse uma palavra muito forte, mas existia uma distância, como se alguém tivesse cavado um fosso entre eles. Podiam ver-se, mas não tocar-se... E era o que acontecia. Eles já não se ‘tocavam’. Nem física nem afetivamente. Mesmo quando faziam amor, ela sentia essa distância. Se não fosse aquele desejo, tão desesperado, de ter um filho, talvez até já nem fosse capaz de o procurar... Como tudo estava diferente. Sentiu uma pequena lágrima a querer soltar-se, mas logo a impediu, sobrepondo àquela sensação de infelicidade, uma revolta muito mais forte. ‘E ele ainda tinha coragem de insinuar coisas sobre Pedro! Estúpido! Nem conseguia perceber que se passava precisamente o contrário. Nem que eram as suas atitudes, frias, que a faziam afastar dele.’ Foi com esta raiva no peito, que a rapariga jantou ao lado do marido, sem trocar uma única palavra com ele. Júlio também não fez qualquer tentativa para quebrar aquele silêncio. Na sala escutava-se apenas o ruído dos talheres nos pratos e a voz da locutora que, na televisão, enunciava as noticias mais importantes do dia. O desemprego voltara a aumentar, a Policia espancara dois estudantes, mais uma mina explodira na Bósnia... Como até as mais negras tragédias parecem insignificantes quando o nosso coração está triste de amor... * 17
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Olhou para o relógio luminoso e nem queria acreditar nas horas que eram! Três da madrugada e ele sem conseguir dormir. De costas voltadas para a companheira, tinham acabado de trair a promessa de nunca adormecerem zangados um com o outro. Voltou-se para a jovem, observando a silhueta que conseguia discernir entre a escuridão do quarto. ‘Será que existia alguma coisa entre ela e Pedro? Encontrara-os numa confraternização tão chegada...’ Esquecia-se que os ciúmes o faziam ver também com a imaginação. Sentia-se inseguro. Desconhecendo a origem daquela insegurança, ele não sabia lidar com os mais absurdos pensamentos que surgiam no seu espírito. ‘Será que ela me despreza porque eu não consigo dar-lhe o filho que ela tanto quer?’ Levantou a mão no intuito de lhe acariciar o corpo mas, a poucos milímetros da cintura dela, desistiu. Como ultimamente acontecia, o seu orgulho venceu o amor. * Pouco passava das dez da manhã, quando Lídia chegou a Cascais. Dirigiu a sua moto para a zona mais nova da vila, onde se podiam encontrar blocos de apartamentos, como que montados em escada, rodeados de palmeiras, muita relva, campos de ténis e até piscinas. Muitas vezes interrogava-se como é que o seu sogro tinha dinheiro para tantos luxos. Antigo gerente da Residencial de Colares, ele perdera o seu cargo ao separar-se da mãe de Júlio. Desconhecia qual seria agora a sua forma de sustento. Sempre simpatizara muito com Afonso e recusara-se a perder um amigo só porque Matilde cortara qualquer diálogo amistoso com este, desde o divórcio. Ele até lhe agradecera essa atitude, mas em relação ao filho sentia-se muito magoado com o seu afastamento. Lídia tentara com que o seu marido compreendesse que o pai tinha direito de escolher o resto de vida que pretendia levar, e optar pela sua felicidade. No entanto, muito conservador, Júlio não conseguiu reagir bem à ideia de ver os seus pais separados, atribuindo as culpas a Afonso, por deixar a mãe desamparada. ‘Desamparada! Imaginem! Aquela mulher tinha até energia para conduzir a vida dos outros!’ Deixou a moto estacionada em frente da porta principal e entrou. O porteiro veio recebê-la da mesma forma simpática de sempre: 18
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- Olha a menina Lídia! Por cá, hoje? Então, como tem passado? - Bem, obrigada, Luís. O meu sogro está em casa? Luís tinha o rosto mais sorridente que já conhecera. - Está, sim. – respondeu ele. Depois, aproximou-se dela quase lhe segredando ao ouvido: - Mas olhe que não deve estar muito bem-disposto. A dona Matilde esteve cá e não vinha com ‘cara de bons amigos’. - E já saiu? - Sim. À coisa de dez minutos. A rapariga sentiu-se satisfeita por não ter de se cruzar com aquela mulher e, principalmente, de não ter que ouvir as coisas desagradáveis que esta costumava dizer ao ex-marido. Quando o sogro veio abrir-lhe a porta, o seu semblante não enganava ninguém: - Oh, filha, és tu?! Entra! – disse ele ao deparar com a nora. Afonso era um homem de cinquenta e cinco anos, magro e muito alto. Os seus olhos, escuros e sinceros, e o seu cabelo grisalho, faziam dele uma figura atraente e confiável. Cansado da forma seleta como tivera de se vestir ao longo de vinte e cinco anos, como gerente da residencial, de fato, gravata e sapatos reluzentes, trajava agora com a maior descontração possível. Era um adepto convicto das calças de ganga, camisa de mangas arregaçadas e mocassins. A única coisa a que ele prestava realmente atenção no seu visual, era ao bigode que exibia sempre bem aparado, e um pouco retorcido nas pontas. - Ainda bem que apareces… Estava mesmo a precisar de conversar contigo. - Já sei que a Matilde esteve cá. – confessou a rapariga, depois de o cumprimentar com dois beijos na face. - O Luís disse-te? – Ela acenou com a cabeça, afirmativamente. - Pois é, – continuou ele – mesmo separados continua a infernizar-me a vida! Depois de uma breve pausa, onde pareceu recordar o que acontecera, perguntou: - Tomas café? Naquele pequeno apartamento não existiam mais de duas divisões e uma grande varanda. O quarto ficava no lado esquerdo e a sala encontrava-se dividida da cozinha apenas por um balcão de nogueira com tampo de mármore. Lídia sentou-se num dos bancos altos, junto desse balcão, e aceitou o café que o anfitrião lhe oferecia. Este manteve-se de pé, com a chávena entre as mãos e os cotovelos apoiados na pedra. O seu olhar estava distante. Parecia refletir. - Não queres contar-me o que se passou? 19
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Ele hesitou e a jovem estranhou a sua indecisão. - São as coisas do costume. – acabou por responder, sem desviar os olhos daquele líquido negro e espelhado. - Não me parece. – arriscou ela – Tu nunca ligaste muito às provocações da Matilde. Ficas, no máximo, a injuriá-la de tudo o que te vem à cabeça. Mas hoje não. Hoje vejo que estás triste. Finalmente, ele olhou-a nos olhos, confessando de uma forma grave: - Tu sabes que eu gosto muito de ti e do meu filho, não sabes? - Sei... - Eu não queria vê-los magoados... Deus sabe que tentei! Lídia não conseguia compreender o que ele queria dizer. Observava-o espantada. - Mas é impossível demover aquela mulher das suas convicções! – continuou Afonso, largando a chávena ainda cheia de café, agora frio, sobre o balcão. - Queres explicar-me do que estás a falar? – pediu a rapariga, começando a ficar inquieta com aquelas palavras. O anfitrião, que andava de um lado para o outro no meio da sala, compreendeu que a estava a assustar com a sua atitude. Arrependeu-se de ter sido tão impulsivo e tentou acalmá-la: - Desculpa, eu não queria preocupar-te. – disse ao mesmo tempo que lhe pegava nas mãos. - O que é que querias dizer com isso de não quereres ver-nos magoados? – insistia ela. O sogro franziu os lábios como que receando dizer mais alguma coisa que, sabe-se lá porquê, não podia. - A única coisa que posso fazer é prometer-te que vou fazer tudo para evitar o pior. - O pior?! Não entendo... - No fundo não acredito que Matilde seja capaz de levar as coisas até ao fim. A jovem olhava-o incrédula. Afonso estava irreconhecível. ‘O que teria acontecido? Ele parecia tão nervoso... Mais do que isso, estava mesmo assustado.’ Murmurando umas palavras de despedida, Lídia deixou o apartamento do sogro, sem conseguir sequer começar a conversa que pretendera ter com ele. Dirigira-se para ali com a intenção de desabafar alguns dos seus problemas com Júlio, talvez na expectativa de que, como pai, a ajudasse a compreender o que se estava a passar com o seu marido. Além disso, ela não tinha 20
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mais ninguém a quem recorrer. Afonso era o seu único amigo. Era?... Agora também se interrogava sobre isso. Se nem naquele homem podia agora confiar, então o mundo era mesmo um lugar insuportável... Deixou a portaria, sem reparar que Luís lhe desejava um bom dia. Montou na sua moto e dirigiu-se para a marginal. ‘Esta manhã está toda a gente mal-humorada!’, pensou o porteiro, ao mesmo tempo que tirava o chapéu e coçava a cabeça, observando a partida rápida da rapariga. Mas, ao notar a sua própria imagem refletida no vidro da porta, voltou a colocar o chapéu, de forma galante, e no seu olhar pseudo Humphrey Bogart, concluiu com um sorriso: ‘Todos menos eu, claro!’
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II Quando Lídia chegou a casa, trazendo na ideia vestir o seu fato de banho e ir mergulhar, corpo e alma, na água do mar, Matilde esperava-a. Com certeza que o seu anjo da guarda tinha tirado aquele dia de folga... - Por onde andavas? Estou à tua espera vai para duas horas! – reclamou ela de imediato, não esperando sequer que Lídia descesse da motorizada. Ela fingiu não perceber o tom de censura e cumprimentou-a: - Bom dia, Matilde. Então, veio visitar-nos? – perguntou, em jeito de afirmação, ao mesmo tempo que abria a porta da entrada. - Quando é que se decidem a contratar uma empregada? Sempre que venho cá e vocês não estão fico na rua à espera, ao passo que assim sempre podia entrar e esperar na sala. Conheço uma moça... - Eu já sei, com muito boas recomendações. – rematou a nora – Mas já lhe disse que não quero, nem preciso, de mais ninguém cá em casa. Perante a atitude decidida da rapariga, Matilde, embora insatisfeita, não insistiu mais no assunto. Entrou para a sala de estar, sentou-se e, como sempre fazia, olhou em redor como se efetuasse uma vistoria. Pretendendo quebrar aquele tipo de controlo, informou: - O Júlio saiu muito cedo. Anda a fazer os voos para a Tailândia. - Sim, ele disse-me. Eu vim foi para falar contigo. - Comigo? Sobre o quê? - Essa tua incapacidade de engravidar está a deixar-me muito preocupada! Lídia, chocada com aquela frontalidade, de certa forma cruel, apenas abriu a boca para tentar defender-se, mas nada conseguiu dizer... - Sim, - continuou a mãe de Júlio – não faças esse ar espantado… Sabes muito bem que não é normal, na tua idade, ter tanta dificuldade para ficar gravida. E depois, vocês, as mulheres de hoje, andam para aí de um lado para o outro, em cima de uma moto, armadas em homens! Será possível que o teu médico não te dê nenhum conselho? - Matilde, a minha médica já me fez todos os exames, e ao Júlio também...
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- O meu filho sempre foi muito saudável. Com certeza que o problema não é da parte dele! Cada vez mais irritada com a atitude arrogante daquela mulher, a jovem levantou-se do sofá e enfrentou a sogra no mesmo tom: - Como é que sabe que não é? Talvez seja um motivo psicológico. - Psicológico? O que é que queres dizer com isso? - A forma castradora como trata o seu filho, pode estar a prejudicá-lo. Foi a vez de Matilde ficar abismada com a acusação. - Nem acredito que estejas a falar dessa forma comigo... - Aliás, - continuou Lídia – essa sua pressão constante já está a dar cabo dos meus nervos também. Você não sabe o que é querer tanto um filho, chegar mesmo a sentir todos os sintomas de gravidez, chegar até a senti-lo dentro de mim, para depois, no final de cada mês, morrerem todos os sonhos... - Não sei?! – Matilde pôs-se também de pé e o seu olhar chispava de raiva - Sei muito melhor que tu e que qualquer outra pessoa no mundo! Eu fiz tudo, escuta bem, tudo, para conseguir ter o Júlio! Lídia olhava para aquele rosto transtornado, espantada com o que acabava de saber. - Quer dizer que... - Sim, passei pelo mesmo que tu. Mas lutei pelo que queria. E era até capaz de matar, para ter um filho! Estremeceu. Seria impressão dela ou aquela mulher estava obcecada pela ideia da maternidade? Parecia louca. Apercebendo-se do seu descontrolo, ela ajeitou o casaco, Chanel verdadeiro, pegou na mala de mão que pousara sobre o sofá e dirigiu-se para a saída, acrescentando de uma forma já muito mais calma: - É claro que hoje em dia, as mulheres já não são o que eram, nem dão a verdadeira importância à família. – e abrindo a porta, despediu-se: - Bem, esperemos que saibas o que estás a fazer. Eu para a semana volto a passar por cá. E bateu a porta sobre aquela promessa de vigilância. Lídia teve vontade de gritar. ‘Será que esta mulher não pode deixar-me em paz?!’ Nos últimos dias tentara construir uma força dentro de si, como quem constrói um muro, tijolo a tijolo, como se cada nova dificuldade que surgisse, fosse o antídoto da anterior. Mas naquele momento sentiu a derrocada dessa força. O seu muro tinha sido atingido no ponto mais fraco. Encostou-se à parede e deixou-se escorregar para baixo. Sentada no chão, a sua dor perdeu-se no peito, o seu olhar no infinito e duas lágrimas rolaram-lhe pelo rosto, acabando também por se perderem. 24
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Sentiu ódio do mundo, raiva de todos aqueles que a rodeavam e até de si própria. Queria ter coragem para fazer as malas e voltar costas a tudo. Que se lixasse a Matilde e as suas paranoias, Afonso e os seus segredos e Júlio com as suas desconfianças! Júlio... Não era coragem que lhe faltava para abandoná-lo. Faltava-lhe, isso sim, frieza, desprezo, desamor. Apesar de toda aquela distância, da falta de diálogo, da falta de carinho, ela continuava a amá-lo. Muito. Demais. Aquela indiferença que simulava para com ele, não passava de teatro. Falava-lhe de forma fria, já não o beijava quando ele chegava a casa, já não lhe preparava o pequeno-almoço e, acima de tudo, já não o procurava na cama. E ele? Porque não se aproximava dela? Como era possível passarem tantos dias seguidos de costas voltadas? Lídia recordou-se dos tempos de namoro. Nunca tinham ficado tanto tempo sem falarem um com o outro. Era ele que geralmente a procurava, por vezes levava uma flor, e a reconciliação era tão ardente e apaixonada... Agora parecia não se preocupar com aquele clima, nem com a duração da zanga. Não fazia qualquer tentativa de aproximação, pelo contrário, falava-lhe de forma agressiva e depreciativa. Quando à noite ele se deitava ao seu lado, embora fingisse dormir, ela ansiava pelos seus carinhos, desejava que a abraçasse, que a cobrisse de beijos, que a amasse... Mas ele limitava-se a voltar-lhe as costas e a adormecer. Quantas vezes olhava para ele com vontade de esquecer tudo, de o tocar, de se abandonar aos caprichos do seu coração... Mas presa por ‘palavras que ele disse’, ‘gestos que ele fez’, não conseguia vencer o orgulho. Há quanto tempo não havia um beijo de boa noite? Ou um simples ‘até amanhã’? Será que ele já não sentia atracão por ela? O som do telefone, que tocava já há algum tempo, fê-la acordar daquela letargia . Pensou que fosse Júlio, no entanto a voz era outra: - Miguel?! – exclamou surpreendida. - Sim, sou eu. Então, como tens passado? Miguel era o editor da revista Paisagens, para a qual ela trabalhava. Com tantas pressões, especialmente da mãe do seu marido e dele como consequência, ela tirara umas pequenas férias pois, insistiram, a agitação diária podia não facilitar a sua tentativa de engravidar. Aceitara, mas contrariada. - Mal, muito mal. Preciso de trabalhar. Tens alguma coisa para mim? Ouviu uma gargalhada do outro lado. - Eu já sabia! – exclamou, satisfeito – Não estava mesmo nada a ver-te fechada dentro de casa a pensares no que é que podes ou não fazer. - Estava a tentar ser uma ‘menina bonita e obediente’ mas não sirvo para 25
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isso. Se não sigo as minhas próprias convicções aí sim, é que eu fico doente! - É assim mesmo! Mostra-lhes quem é que manda! – incentivou o editor, que conhecia quais os motivos das férias da fotógrafa e não concordava que essa fosse a melhor escolha, tendo em conta a personalidade ativa dela. Imaginava-a agora como um tigre preso numa jaula. - Vá, deixa-te de rodeios, e diz-me qual é o trabalho. - Isso é que é ansiedade! E eu aqui a lutar com a minha consciência, não sabendo se havia de telefonar-te ou não. Bem, é que isto é mesmo a tua ‘cara’. Sabes que Sintra acabou de ser aceite como Património Mundial? - Sei, ouvi ontem no telejornal. Na categoria de ‘Paisagem Cultural’, não foi? - Sim. Por causa disso, a diretora vai dedicar uma série de publicações a toda a região que a envolve. E como eu sei que adoras essas paisagens... - É verdade, Miguel. Esta serra fascina-me. E do que é que precisas primeiro? - Isso quer dizer que aceitas? – questionou, ainda um pouco incrédulo. - Claro que sim. Mas tu tinhas dúvidas? Esquece as minhas férias e diz-me por onde começo. Ele gostou de a ouvir falar com mais entusiasmo. - Olha, começa por fotografar o castelo e os palácios e palacetes. Tenta mostrar os ângulos mais imponentes e algumas das melhores vistas que proporcionam. - Queres interiores? - Uma sala ou outra, que vejas que é mais significativa. - Um ‘cheirinho’ a História de Portugal? - Sim, sim, era ótimo. - Ok, conta comigo. E... obrigada por te lembrares de mim. – agradeceu ela, com sinceridade. - Ora, eu é que agradeço a tua disponibilidade. E não te preocupes com prazos. Tens muito tempo. Essas fotos só vão sair daqui a uns meses. Mais satisfeita com o mundo e com ela própria, Lídia despediu-se do editor e desligou o telefone. ‘Salva pelo toque do gongo!’, pensou a rapariga. Ainda bem que alguém a fizera lembrar-se que ela era muito mais que ‘a mulher de Júlio’ ou a ‘mulher que não conseguia engravidar’. Existiam coisas que sabia fazer muito bem e existiam pessoas que gostavam dela e apreciavam o seu trabalho. Deparou com a sua imagem no espelho. Detestava ver-se assim. O cabelo desalinhado, os olhos esborratados do eye liner, olheiras avermelhadas... 26
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Dirigiu-se para o lavatório da sua casa de banho e lavou bem a cara com água fria. * Apesar de muito entusiasmada com o novo trabalho fotográfico sobre Sintra, Lídia decidira não o iniciar sem que Júlio chegasse. A Matilde não devia qualquer explicação, mas ao marido, embora tivesse plena consciência que aquela atividade não a poderia prejudicar, julgava ser mais correto comunicar-lhe a sua decisão antes de a iniciar na prática. Sabia que, no fundo, ele também não era um apologista assim tão determinado, daquela ideia da sua mãe, mas apoiara-a julgando que esta apenas pensava no bem-estar da sua esposa. No entanto, a jovem começava a suspeitar cada vez mais dos verdadeiros motivos da sogra, que parecia mais querer controlá-la do que estar preocupada com a sua falta de descanso. Deveria contar a Júlio a conversa que as duas tinham tido? Talvez não. Ele ficaria muito aflito com a saúde mental da mãe, ou, possivelmente, nem acreditaria nela. Da maneira que andava, o mais natural era mesmo pensar que ela inventara aquilo tudo para o virar contra Matilde! Voltou a sentir-se triste. Não era aquele companheiro que queria ter a seu lado, mas alguém que acreditasse nela cegamente. Estaria a pedir o impossível? Julgava que não, pois sabia que merecia aquela confiança absoluta. Mas seria algum homem capaz de confiar totalmente numa mulher? Calculando que tão cedo não teria tempo para as tarefas caseiras, resolveu deixar de lado aqueles pensamentos e dedicar o resto do dia à limpeza da casa. Queria pô-la reluzente e muito bem perfumada, para a chegada de Júlio. Limpou cada divisão como se da sua alma se tratasse. Não queria mais poeiras antigas, nada de teias de aranha em cantos inacessíveis. Queria esquecer dias amargos e criar o ambiente certo para mais um recomeço. Foi no quarto que dedicou mais atenção aos pormenores. Fez a cama com lençóis de cetim, em azul pálido, e sobre estes colocou um leve édredon que misturava tons de cinzento, rosa e azul pavão. Borrifou as lâmpadas dos candeeiros com algumas gotas do seu perfume, para que, ao acendê-los, o ambiente se tornasse mais quente e aromático. Para o jantar resolveu preparar um dos pratos preferidos de Júlio: canelones com espaguete à bolonhesa, acompanhados por um bom vinho tinto da região do Douro. Para sobremesa, uma bavaroise de morango. Estava Lídia a terminar de pôr a mesa, quando ouviu a chave de Júlio rodar na fechadura da porta. ‘Que atitude iria ele tomar em relação a ela?’ 27
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Apesar da expectativa e de sentir o seu coração aos saltos no peito, fez por parecer estar perfeitamente segura de si, não parando com o que estava a fazer. Por alguns segundos, ele ficou à entrada da sala, à espera da iniciativa dela. Como não obteve qualquer atenção, murmurou apenas um ‘boa noite’ e dirigiu-se para o quarto. Ela arrependeu-se de imediato da sua atitude indiferente, mas não soube como a emendar, limitando-se a esperar que ele viesse para a mesa e percebesse, através de todo o ambiente que ela criara, a sua forma de reconciliação. Depois de desfazer a mala e tomar um duche morno, ele vestiu o roupão e sentou-se à mesa, em silêncio. ‘Seria impressão sua ou o quarto estava agradavelmente perfumado? E o jantar... Fizera-o para lhe agradar, ou seria apenas coincidência? Até parecia já não estar com aquele ar zangado... Mas seria mesmo?’ Aqueles dias, longe de Lídia, tinham custado muito a passar. Sentira uma saudade angustiante, principalmente porque se tinham separado de uma forma tão fria. Jurara a si mesmo que a primeira coisa que faria, assim que chegasse a casa, seria abraçá-la com muita força e, depois de um longo beijo, prometer-lhe que nunca mais teria desconfianças ridículas em relação a ela. No entanto, ali estava ele, sentado ao lado da mulher que mais desejava neste mundo, olhando para o prato do jantar, que saboreava sem comentários. Tentando redimir-se do silêncio com que o recebera, Lídia resolveu iniciar o diálogo: - Os voos correram bem? Júlio, ao contrário do que ela temera, respondeu-lhe de forma agradável: - Sim, de maneira geral. Só hoje é que apanhámos uns poços de ar mais violentos, já perto de Lisboa - depois de dar um golo no vinho, perguntou também: - E tu, o que fizeste por cá? Ela hesitou: - O Miguel telefonou-me. Precisa que eu tire umas fotos, aqui pela zona de Sintra. – acabou por dizer, algo receosa da reação dele. - E tu, aceitaste? - Aceitei. – confessou, olhando-o nos olhos. - Nós combinámos... - Eu sei, Júlio, mas a verdade é que eu não consigo estar muito tempo afastada do meu trabalho. E, além do mais, sei que isso não irá prejudicar-me. - Sim, pensando bem, julgo até que te fará melhor. – acabou ele por concordar, acrescentando: - Precisas de estar ocupada e não de estar sempre a pensar no mesmo 28
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Espantada com aquela concordância do marido, que se mostrava tão sensato, não conseguiu esconder a visita de Matilde, que ainda a atormentava. E depois de servir a sobremesa, resolveu puxar o assunto: - A tua mãe esteve cá. - Mas ela sabia que eu não estava... - Sabia. Veio falar comigo. Apercebendo-se do tom grave com que Lídia falava, perguntou-lhe de imediato: - Falar sobre o quê? - Sobre a minha dificuldade de engravidar. - E então? Respirando fundo, confessou: - Não gostei da forma obsessiva com que ela me exigiu que engravidasse! - Exigiu?! – admirou-se ele. - Sim, isso mesmo. Exigiu. Júlio, ela está demasiado obcecada com isso. Chega até a assustar! Primeiro a sua expressão refletiu preocupação, depois incredulidade, acabando por concluir: - Coitada... Esta separação do meu pai deixou-a muito transtornada. - Isso não é desculpa. Não é motivo para estar a pressionar-me tanto! - Coitada. - ‘Coitada, coitada!’ É só o que tu sabes dizer? - Se calhar está com medo de morrer e já não conhecer o neto... - Quem?! Ora, a tua mãe deve ter mais vida que eu e tu juntos! - Está bem, eu falo com ela. Mas agora deixa-me ir descansar. Estas diferenças horárias dão cabo de mim. Ajudou-a a levantar a mesa e dirigiu-se para o quarto. A jovem, embora um pouco irritada com a atitude condescendente do companheiro, lavou a louça rapidamente, arrumou a cozinha o mais depressa que foi capaz, e entrou no quarto, cheia de ideias românticas. Mas foi grande a deceção quando se apercebeu que, já deitado na cama, Júlio dormia profundamente. Depois de tantos preparativos, era assim que terminava a sua noite... Sentiu-se magoada. No entanto, não foi capaz de o acordar. E só depois de várias voltas de baixo do lençol é que acabou também por adormecer. * Os raios de sol entravam já pela janela, enfeitando as paredes do quarto, como que querendo despertá-los para mais um dia que nascia. 29
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Lídia andava ainda perdida entre o sonho e a realidade. Sonhava com Júlio. E nessa fantasia voltava-se para ele e abraçava-o. Ele correspondia, abraçando-a também, acariciando-lhe as pernas, beijando-lhe os seios e...de repente apercebeu-se que tudo aquilo era real demais para um sonho e que estava efetivamente a acontecer. Os seus lábios soltavam gemidos de prazer, ele murmurava palavras de paixão... Deixou-se invadir por aquela sensação de magia, que não conseguia sequer entender como acontecera. Queria apenas entregar-se ao seu amante, fazer amor e alcançar a lua... * Algumas horas depois, quando Lídia se levantou, sentia ainda os efeitos daquele acordar tão especial. Vítima da felicidade que sentia dentro de si, ainda um pouco inconsciente, dançava pela casa toda, enquanto preparava o seu banho. Escolheu um disco, um dos mais antigos, e pô-lo a tocar, com o som bem alto, ao mesmo tempo que cantarolava algumas frases no duche. O seu marido levantara-se mais cedo, no intuito de visitar a mãe e, como prometera, falar com esta sobre a pressão que andava a fazer sobre a nora. Mas antes de sair, levara-lhe o pequeno-almoço à cama, num tabuleiro. Duas torradas com manteiga, um copo de leite com chocolate e – surpresa – um guardanapo com uma mensagem escrita que dizia: ‘Amo-te muito’. Lembrou-se de um conselho que um dia recebera de uma amiga: ‘Enquanto as coisas boas forem superiores às coisas más, fica com ele.’ E eram... Como calculou que Júlio ainda iria demorar algum tempo na casa de Matilde, resolveu aproveitar o resto da manhã para tirar algumas fotos que Miguel pedira. Escolheu uma roupa prática. Calças de ganga, uma t-shirt vermelha e uns ténis confortáveis. Ainda se recordava da última experiência na serra de Sintra e jurara a si própria, nunca mais ser apanhada, naqueles terrenos acidentados, com saias justas e sapatos de salto alto. Colocou uma bolsa à cintura, onde guardou os documentos pessoais e algum dinheiro, pegou na sua máquina fotográfica e deixou a casa. Pouco tempo depois, estacionava a sua moto frente ao Palácio Nacional, que escolhera por, na sua opinião, despertar interesse artístico e cultural. Antes de iniciar o seu trabalho, dirigiu-se à rececionista, para conseguir a devida autorização. No entanto, Miguel já fizera o seu trabalho burocrático: 30
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- Sim, sim. Estava a contar com a sua visita. Telefonou para cá um senhor da vossa revista, falou com o diretor e este deu-me ordem para ajudá-la em tudo o que fosse preciso. – respondeu de imediato a jovem. - Vou fotografar principalmente o aspeto exterior do edifício, a não ser que uma divisão ou outra, despertem a minha atenção... - Eu vou mostrar-lhe as salas mais bonitas e importantes. – disponibilizou-se ela, simpaticamente. – Vai ver que tem de as fotografar! Dirigiram-se para a sala dos Brasões e seguidamente para a dos Cisnes, onde Lídia não hesitou em concordar com a sua guia. Esta sugeriu também: - Mas se é Historia que procura, tem de ver o Terraço de D. Sebastião, onde consta que Luís de Camões leu Os Lusíadas ao nosso Rei. Depois de fotografar aquele ambiente mítico, e de conhecer ainda a sala das Pegas, agradeceu a atenção da rececionista, e saiu do Palácio para fotografá-lo do exterior. Satisfeita com os belos ângulos que registara daquele edifício, resolveu aproveitar a manhã, e passar ainda na Capela de Nossa Senhora da Piedade, onde recordava ter visto uns belos azulejos do século XVIII que, sobre o arco triunfal representavam a Ultima Ceia de Cristo. E assim fez. Encontrava-se já a terminar aquelas fotografias, quando ouviu uma voz atrás de si: - Este lugar tem magia, não tem? Voltou-se surpreendida. Deparando com aquela figura, apenas conseguiu imaginar que, por encanto, entrara num filme da Walt Disney, e tinha à sua frente a Bruxa Má. - Magia? A velha, toda vestida de preto, com um lenço da mesma cor, que lhe cobria a cabeça e parte do rosto, observou-a de alto a baixo, pousando o seu olhar na barriga da jovem. - Sim, deves saber o que isso é. Também estás enfeitiçada. – e dizendo isto, estendeu a mão, muito pálida, trémula e enrugada, em direção a ela. Lídia recuou, protegendo a barriga instintivamente: - Quem é você? A estranha mulher apenas sorriu, mostrando uma boca desdentada e de traços cruéis, o que realçou ainda mais o seu nariz pontiagudo. Ela não esperou pela resposta. Voltou costas àquela pérfida figura e correu para a sua moto. Arrancou com toda a velocidade de que foi capaz e, mesmo sem olhar para trás, sentiu aquele olhar maléfico cravado nas suas costas, até dobrar a primeira curva. 31
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Só quando entrou em casa e fechou a porta atrás de si, é que se sentiu realmente em segurança. Respirou fundo. ‘Que sina! Ultimamente só me aparecem mulheres loucas pela frente!’. O som do toque do telefone, veio interromper-lhe os pensamentos: - És tu, amor?... Nem sabes o que me aconteceu... – tentou ela desabafar. Mas ele não estava com vontade de ouvir desabafos: - Onde estavas? Estou farto de ligar para aí! - Estive a fazer umas fotos. – respondeu, já num tom mais frio, não gostando da forma como ele falava. - Umas fotos... Sei... Notando desconfiança na sua voz, ela perguntou: - O que é que se passa? - Não se passa nada. É só para te avisar que vou almoçar aqui na casa da minha mãe. E, sem esperar resposta, desligou o telefone. ‘Estúpido!’, pensou Lídia, ‘Mas o que se passa com aquele homem?’ Resolveu não dar muita importância ao caso. Se começasse a ligar a tudo o que lhe faziam, mais dia, menos dia, também ela pertenceria ao rol das mulheres loucas! Optou então por usar um bocadinho de psicologia, e transformar aquela adversidade em vantagem para si. Aproveitaria a tarde livre para fotografar. Descongelou uma pizza de queijo e fiambre no micro-ondas, para o almoço, acompanhou-a com uma cerveja fresca e voltou a sair. Dirigiu a mota serra a cima, parando apenas quando chegou ao Palácio da Pena. Adivinhando que Miguel já tratara da respetiva autorização, começou, desta vez, por fotografar o exterior daquele edifício, que fora outrora, no tempo de D. Fernando II, a vanguarda do figurino romântico. Depois de falar com a pessoa responsável pelas visitas da imprensa que, tal como ela supusera, estava já devidamente informada, deu uma larga volta pelo interior do palácio. Gostou particularmente da cama de bilros, onde a rainha Dª Amelia passou a última noite antes de partir a caminho do exílio, e que estava agora vestida com dossel, cortinados e cobertura de tecido de padrão da época bem assim como os pendentes das duas janelas. Fotografou também o trem de cozinha exposto, de cobre maioritariamente, constituído por peças adquiridas em Paris. De entre elas destacavam-se as formas de doces e pudins, na vitrina, e a coleção de chocolateiras, sobre o armário. 32
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No entanto, o que acabou por atrair mais a sua atenção foi o parque que rodeava o imponente monumento. Já fotografara muitos jardins e estufas, mas nunca tinha visto uma flora arbórea tão variada e exótica. Um velho jardineiro confirmou-lhe que estava num dos mais famosos arboretos da Europa. Eram quase seis horas da tarde quando entrou em casa. Maravilhada com a beleza daquele parque, esquecera-se das horas. Júlio já lá estava, sentado de frente ao écran da televisão. - Só agora? – perguntou de imediato, mal a jovem entrou na sala. - Fui ao Palácio da Pena, tirar mais umas fotos. – explicou ela calmamente, procurando evitar mais uma discussão. - E foi preciso demorar tanto tempo? - Nem dei pelas horas passarem. O parque natural é tão bonito! Tens de ir lá comigo, vais... - Por favor, não inventes histórias! – interrompeu ele, não acreditando numa palavra do que ouvia. - Historias? Não percebo... O que se passa contigo? - Comigo? Nada. E contigo? - Tu estás louco?! Quando saíste daqui estava tudo bem connosco, depois telefonas-me de casa da tua mãe a falares daquela maneira... – quebrou o seu discurso, apercebendo-se onde estava a explicação: - Isto tem tudo a ver com a tua mãe, não tem? Ele não respondeu. - O que foi que ela te disse? Hesitou um pouco, acabando por dizer: - Que não te pressionou de forma alguma. Que apenas procurou dar-te bons conselhos, e tu levaste isso a mal. - Ah, sim?! E tu achas que eu faria isso? - Talvez... Com os nervos com que andas. - Os nervos que me fazem! – corrigiu Lídia – Mas apesar disso, nunca iria reagir mal se me dessem apenas ‘bons conselhos’! - Não sei. Já não te conheço. Desiludida com o que ouvia da boca do seu próprio marido, ela insistiu, adivinhando que as coisas não tinham ficado por ali: - E já não me conheces porquê? Ele franziu os lábios, como se procurasse impedir as palavras de se soltarem, mas ainda deixou escapar: - Tu deves saber muito bem porquê. Aliás, tenho muita pena que já não sejas a pessoa sincera que eras e que não sejas capaz de enfrentar as situações. 33
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- O que é que estás a dizer? – olhava-o estupefacta, não fazendo a mínima ideia aonde ele queria chegar com aquela acusações. - Não te faças de desentendida. Eu sei muito bem porque é que não queres ter um filho meu! - Não quero?! - Ora, Lídia! Chega de teatro, sim?! E ela viu-o sair porta fora, sem sequer dizer para onde ia. * No dia seguinte, mal foi acordada pelo sol, reparou que Júlio não dormira na cama. Foi procurá-lo à sala, mas esta também se encontrava vazia e sem sinais de que alguém tivesse pernoitado ali. A princípio ficou preocupada, lembrando-se até de telefonar para casa de Matilde, mas o seu orgulho acabou por concluir que não devia procurar por quem não queria ser encontrado. Além do mais, não sentia vontade alguma de ouvir a voz daquela senhora. Afastava-se já do telefone, quando este tocou. - Estou? Lídia, sou eu. Por pouco, não tinha reconhecido a voz do sogro: - Afonso? - Sim, sou eu. Como estás? - Mais ou menos. Mas porque estás a falar tão baixinho? - O Júlio está aqui a dormir na sala. Eu só queria avisar-te, para não ficares preocupada. Passou cá a noite... - Ah, sim? – respondeu ela, com simulada despreocupação – Pois por mim pode continuar por aí. - Não fiques assim. A culpa não é dele. – defendeu o pai, sem aumentar o tom de voz – Isto são coisas da Matilde. - Eu sei, e por isso mesmo é que é grave. Onde foi ele buscar tanta desconfiança em relação a mim? - Depois falamos. – cortou ele, não querendo responder – Agora tenho de desligar, antes que Júlio acorde. Era estranho que o seu marido tivesse ido procurar Afonso para desabafar, se fora a sua mãe quem lhe enfiara aquelas ideias na cabeça. No entanto, ficara mais satisfeita que assim fosse. Talvez o pai, mais sensato, conseguisse chamá-lo à razão. A pesar disso, nada a afastaria agora da decisão que tomara, mal o vira abandonar a casa, na noite anterior. Queria a separação. Pelo menos durante uns tempos. Não podia viver ao lado de alguém que suspeitava da sua integridade, muito menos podia querer ter um filho dessa pessoa. 34
O segredo da Serra da Lua
E era isso mesmo que iria dizer a Júlio, mal ele aparecesse à sua frente. * Depois do almoço e visto que não havia sinais do seu marido voltar tão cedo, Lídia resolveu sair, pelo menos para espairecer. Podia não sentir grande inspiração, mas pegou na máquina fotográfica quase por instinto e, do mesmo modo, montou na sua mota, que dirigiu sem consciência do seu destino. Foi quando deparou com um palácio neomanuelino, que se apercebeu de há quanto tempo vagueava pela estrada, perdida nos seus pensamentos. Parou para fotografar aquele edifício, que conhecia como sendo o mais espantoso exemplar revivalista do país e, apercebendo-se que estava no caminho para Seteais, resolveu parar lá. Quantos luares eu lá vi? Que doces manhãs d’Abril? E os ais que soltei ali Não foram sete mas mil’ Sem saber porquê, aquela quadra surgira-lhe no pensamento. E, ao recordar o poeta Alencar de Os Maias, lembrou-se também do maravilhoso quadro que Eça descrevera. Seria uma bela fotografia aquela... O Palácio da Pena, sob a ‘pesada moldura de pedra’, o arco de Seteais. Mas felizmente, e ao contrário do que o escritor relatara na época, o palacete já não estava votado ao abandono. O Palácio de Seteais era agora um luxuoso hotel. Mal entrou naquele edifício setecentista, o gerente reconheceu-a, acolhendo-a de imediato, de forma calorosa: - A menina Lídia, por cá?! Então como tem passado? E o seu esposo? A jornalista agradeceu o cumprimento, algo embaraçada por ter atraído as atenções de todos aqueles que ocupavam a entrada do hotel. - Ainda ontem falei com a dona Matilde. É uma senhora tão fina e simpática! Teodoro era um antigo apaixonado da sua sogra. Fora o primeiro gerente da sua estalagem, mas ela escolhera Afonso, naquela altura, um mero empregado. Teodoro nunca chegara a casar, e ainda ‘arrastava a asa’ à sua antiga namorada. - Ela esteve aqui? - Sim. Veio encontrar-se com um senhor que cá está hospedado. Uma reunião de negócios, claro está. Estranhou que Matilde estivesse a negociar com alguém que não ficasse 35
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na sua própria estalagem, no centro turístico de Sintra. No entanto, como o seu propósito ali era outro, não questionou mais nada, limitando-se a informar o gerente da razão da sua visita. Ele colocou-a logo à vontade para visitar o palácio, lamentando não poder acompanhá-la, pois precisava de atender um fornecedor. Assim, Lídia começou por dar um passeio nos magníficos jardins, fotografando um ou outro ângulo do hotel. O jardim de buxo era majestoso, o verdejante campo relvado frontal invejável e os inúmeros terraços, pombal, mirante e, ainda o famoso “Penedo da Saudade” definitivamente dignos de registo. Já no seu interior, procurou registar sinais mais evidentes da origem palaciana daquele edifício, explorando as suas salas, e alguns quartos vazios. A vista das janelas do lado norte era soberba! Os interiores, na sua maior parte revestidos de sedas e mobílias, apresentavam bom gosto, realçando-se os magníficos frescos do andar nobre, atribuído aos discípulos de Jean Pillement, ou até mesmo ao próprio pintor, dada a pureza das suas linhas. Na sala de jantar deslumbrou-se com a exuberante vegetação exótica, onde se debatem sereias e tritões. No salão menor, com as paisagens “rocailles”, onde brincam crianças, engalanadas por representações de reposteiros de estilo neo-clássico e por passamanarias ao gosto chinês. Antes de sair dirigiu-se à receção, procurando Teodoro para agradecer-lhe a hospitalidade. Foi quando reparou num jornal que se encontrava abandonado na parte de dentro do balcão. A sua atenção focou-se especialmente naquela foto. Aquele rosto... Um rosto de criança... - Posso ver esse jornal? – perguntou de imediato, ao rapaz da receção. Ele acenou com a cabeça, passando-o para as mãos da jovem. Esta observou com mais atenção aquelas fotos que exibiam na última página. Uma criança de quatro anos, do sexo masculino, estava desaparecida há dois meses. Os pais pediam, a quem a tivesse visto, que comunicasse com a polícia. ‘É ele! Não tenho duvidas nenhumas. É o menino que me pediu ajuda naquela estalagem!...’
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