Passagens Revoltas 1970-2012

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Passagens

REVOLTAS Alberto Melo

1970-2012 40 anos de intervenção por ditos e escritos

Associação



40 anos de intervenção por ditos e escritos

Associação


Edição: Associação In Loco Título: Passagens revoltas - 40 anos de intervenção por ditos e escritos Autor: Alberto Eduardo da Silva e Melo Paginação: Marco Martins Capa: Marco Martins 1.ª EDIÇÃO LISBOA, Julho 2012 Impressão e Acabamento: Publidisa ISBN: 978-972-8262-07-5 Depósito Legal: 346112/12 Publicação e Comercialização: Sítio do Livro, Lda. Lg. Machado de Assis, porta C — 1700-116 Lisboa www.sitiodolivro.pt


ALGUMAS EXPLICAÇÕES, ADVERTÊNCIAS E MODO DE UTILIZAÇÃO

Comecemos, pois, pelo título suficientemente ambíguo e plurifacetado para permitir diversas interpretações. Para ver mais claro, procurei o Dicionário Houaiss de Sinónimos e Antónimos. Eis uma obra que, devido ao acréscimo de tempo livre oferecido pela situação de aposentação, abri pela primeira vez. E ali encontrei os seguintes sinónimos para cada uma destas duas palavras. “Passagens”: bilhetes, corredores, cursos, episódios, acessos, mudanças, passadouros, tarifas, transferências, trechos, excertos e outros ainda. “Revoltas”, como adjectivo: desgrenhadas, desalinhadas, envolvidas, furiosas, revolvidas, retorcidas, tumultuosas, agitadas, além de mais. Quer isto dizer que esta colectânea de textos se poderia também chamar “Mudanças Desalinhadas”, “Trechos Furiosos”, “Episódios Agitados”, “Excertos Desgrenhados” e por aí fora ao capricho das combinatórias possíveis. E é isso tudo também. As mudanças desalinhadas de espaço de vida e de situação socioeconómica, como as passagens, em 1963, de uma Lisboa onde nada acontecia para um Paris onde sucedia de tudo, até um mês de Maio vivido nas ruas; ou, em 1969, entre esse Paris e um emprego bem remunerado na OCDE e a vida algo boémia e no limite da subsistência de um estudante de pós-graduação, com “bolsa de estudo” auto-atribuída (a Gulbenkian disse não), na cinzenta mas bem-humorada Manchester de então; ou ainda a passagem-regresso, o salto de uma vida calma e profissionalmente compensadora em Milton Keynes e a sua Open University para o Portugal de 1974 que tudo prometia mas nada assegurava. E são muitos os trechos furiosos, nascidos da irritação com a prepotência, com a estupidez, com a ignorância ou indiferença arrogante, com a cumplicidade com que decisores e seus vassalos condenam os seres humanos e as suas sociedades a uma existência de incertezas e angústias, num contexto de carência geral e programada, para que uns poucos, e cada vez menos, possam acumular poder e riqueza à custa dos restantes 99%. Episódios agitados também os houve, desde as contestações estudantis e cívicas nos três países onde vivi até às sucessivas lutas institucionais para construir, a partir de dentro, isto é, do Ministério da Educação, um edifício coerente e apropriado de Educação de Adultos para o nosso país. E excertos desgrenhados é o que se aqui se oferece, nas mais de 500 páginas que se seguem. Para não parecerem tão desgrenhados, arrumei estes 70 ou mais excertos em cinco categorias: Educação e (sobretudo) Educação de Adultos, EDU; Conflitos Políticos e Laborais, CPL; Animação Territorial e Desenvolvimento Local, ATDL; Cidadania Activa e Democracia Participativa, CADP; Crítica da Economia Dominante, CED. Os textos estão ordenados cronologicamente, mas o indicador inicial permite desde logo identificar a temática central, o que facilitará uma leitura mais selectiva. Naturalmente, não se trata de uma colecção exaustiva de trabalhos. Estão aqui os que foram encontrados e, dentro deles, os que não estão excessivamente datados.

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Foram ainda omitidos relatórios e estudos de missão, por conta de organismos internacionais ou programas europeus, e ainda aqueles artigos que se tornariam demasiado repetitivos relativamente aos que foram inseridos. Aliás, apesar de um certo cuidado na revisão, encontram-se aqui certamente parágrafos, citações e referências em duplicado, nos casos em que a sua eliminação prejudicaria a clareza ou coerência da exposição. Por outro lado, relativamente aos extractos que foram eliminados, optou-se por não os referenciar com o habitual (…) por motivos estéticos e de fluidez de leitura. Para os leitores interessados, a versão integral dos artigos está disponível através da referência indicada em nota de pé de página. Não reivindico a originalidade ou a autoria exclusiva destes trabalhos, que resultam muitas vezes de apontamentos e notas durante leituras ou seminários. Por isso o chamado “direito de autor” me parece sempre tão injustificado, pois nada do que produzimos, afinal, nos pertence e sempre se enraíza no que outros disseram, escreveram e fizeram antes de nós. Tudo isso aqui deixo transcrito, na esperança de inspirar a quem leia novas utilizações e, muito provavelmente, com diferentes interpretações. Uma advertência ainda para sublinhar que nunca encobri, por detrás de uma pretensa objectividade científica ou neutralidade ideológica, a postura filosófica ou o projecto de sociedade que deram corpo e alma a tudo o que disse ou escrevi. Ao compilar estas passagens, dei-me conta de uma evolução bem visível, desde a forte inspiração marxista dos anos 70 até às convicções humanistas e, mais tarde, “animistas” ou “panteistas”. Um só texto destoa dentro desta transparência ideológica e só o facto de tratar um tema inteiramente diferente de todos os outros, abrindo assim novos horizontes de interesses e preocupações, levou à sua manutenção. Refiro-me a “Clausewitz, o duelo atómico e a teoria dos jogos” (CPL 01), um dos primeiros trabalhos produzidos, que se limita a documentar factos, opiniões, decisões, teorias em que assentavam as estratégias nucleares de parada-resposta elaboradas e aplicadas pelos “Dois Grandes” (EUA e URSS) durante a chamada Guerra Fria. A frieza com que se estimavam perdas humanas, as próprias e as do inimigo, e o cinismo com que se recomendavam primeiros ataques de destruição maciça, pareceram-me ilustrar tão claramente o desprezo pela vida, pelo bem-estar, pela felicidade, que dispensaram comentários pessoais em “voz off”. A “espada de Dâmocles” era então, nos anos 70, essa ameaça permanente de destruição física, pela multiplicação de Hiroshimas por todo o planeta, tal como é hoje a destruição moral, social e material levada a cabo pelos “novos conquistadores” ou “corsários da finança”. É de sublinhar também que cada texto é tratado como uma peça autónoma e dado que alguns deles continham em anexo uma curta ou extensa bibliografia, esta está incluída imediatamente após a comunicação a que se refere e não na parte final da publicação, como é usual.

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ÍNDICE 1970-1974: Estudante de pós-graduação na Universidade de Manchester > assistente de investigação na Open University, Milton Keynes (Inglaterra) - A INGRATIDÃO DOS ALUNOS, Março 1970 (EDU 01)

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- CLAUSEWITZ, DUELO ATÓMICO E TEORIA DOS JOGOS, Abril 1970 (CPL 01)

20

- GRÃ-BRETANHA: REINO DESUNIDO, Maio 1971 (CPL 02)

34

- A MARÉ DA PARTICIPAÇÃO… ou como a Inglaterra começou a vogar em 1972, Janeiro 1972 (CPL 03)

43

- A RESPOSTA AO DESEMPREGO, Fevereiro 1972 (CPL 04)

45

- IRLANDA: AS RAÍZES DA IRA, Fevereiro 1972 (CPL 05)

47

- EDUCAÇÃO E AUTOGESTÃO, Abril 1972 (EDU 02)

51

- PORQUÊ A CRISE DOS FERROVIÁRIOS INGLESES? Maio 1972 (CPL 06)

58

- TEMPESTADE NAS DOCAS, Junho 1972 (CPL 07)

62

- ESTALEIROS À DERIVA, Agosto 1972 (CPL 08)

67

- INGLATERRA: UM INVERNO CONGELADO? Novembro 1972 (CPL 09)

73

- UMA CERTA ECONOMIA POLÍTICA DA EDUCAÇÃO RECORRENTE, 1973 (EDU 03)

77

- A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES EM EDUCAÇÃO. AUTÓPSIA DE UM CONCEITO “MADE IN USA”, 1973/1974 (EDU 04)

83

1975-1984: Director-Geral de Educação Permanente > Conselheiro na Delegação Permanente de Portugal junto da UNESCO > Professor convidado na Universidade de Southampton > Professor (Categoria A) na Universidade de Paris IX - Dauphine - EDITORIAL “VIVA VOZ”, Junho 1976 (EDU 05)

90

- EDUCAÇÃO POPULAR EM PORTUGAL (1974-1976), 1978 (EDU 06)

91

- CONCEITOS E PRÁTICAS DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS, Novembro 1978 (EDU 07)

102

- A EDUCAÇÃO DE ADULTOS NOS PRIMEIROS 5 ANOS DO PORTUGAL DEMOCRÁTICO, 1978/1979 (EDU 08)

114

- A FORMAÇÃO DO CIDADÃO (Ensaio sobre Educação Política), 1979 (EDU 09)

126

- EDUCAÇÃO POPULAR NÃO É EDUCAR O POVO, Outubro 1980 (EDU 10)

139

- ASSOCIATIVISMO, EDUCAÇÃO POPULAR E ESCOLA: QUE RELAÇÕES, QUE PERSPECTIVAS? Fevereiro 1981 (EDU 11)

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1985-1997: Professor Coordenador na Escola Superior de Educação de Faro > Coordenador do Projecto RADIAL > Co-fundador e Presidente da Direcção da Associação IN LOCO - O QUE É O PROJECTO RADIAL, Março/Abril 1986 (ATDL 01)

157

- E AGORA, RADIAL? ANO E MEIO DE PROJECTO, Abril 1987 (ATDL 02)

161

- QUE ABERTURA PARA UMA UNIVERSIDADE ABERTA? Maio 1988 (EDU 12)

164

- O DESENVOLVIMENTO LOCAL COMO PROCESSO EDUCATIVO (auto-entrevista), Novembro 1988 (ATDL 03)

169

- EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL, 1989 (EDU 13)

175

- PARA UMA REDE DE DESENVOLVIMENTO LOCAL EM PORTUGAL, Setembro/Outubro 1990 (ATDL 04)

187

- A EUROPA CONNOSCO? Fevereiro 1991 (ATDL 05)

189

- O ESTADO AO SERVIÇO DOS DONOS DO DINHEIRO OU DO INTERESSE GERAL? Julho 1991 (CADP 01)

192

- CABE A VEZ E A VOZ AO MUNDO RURAL, Novembro/Dezembro 1991 (ATDL 06)

196

- UM GRITO DE VIDA, Abril 1993 (ATDL 07)

199

- REFLEXÕES E ASPIRAÇÕES DE UM GRUPO LOCAL “LEADER”, Junho 1993 (ATDL 08)

201

- NO TEMPO DA MORTE DE TODOS OS DINOSSAUROS, Dezembro 1993 (ATDL 09)

205

- QUE EDUCAÇÃO DE ADULTOS PARA UMA SOCIEDADE EM MUTAÇÃO? Abril 1994 (EDU 14)

209

- A SERRA JÁ ENTROU NO MAPA, Maio 1994 (ATDL 10)

214

- HISTÓRIA DE NATAL, Dezembro 1994 (ATDL 11)

216

- POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS CULTURAIS PARA O DESENVOLVIMENTO LOCAL, 1995 (ATDL 12)

218

- ENTRE A RODA DA SORTE E A RODA DOS ENJEITADOS, Janeiro/ Março 1995 (CED 01)

229

- O ELOGIO DO PEQUENO, Março 1995 (ATDL 13)

233

- ISTO ASSIM É QUE NÃO VAI CONTINUAR…, Julho/Agosto 1995 (ATDL 14)

236

- O DESENVOLVIMENTO LOCAL NUM CONTEXTO DE ECONOMIA MUNDIALIZADA, Novembro de 1995 (ATDL 15)

238

- QUE 1996 SEJA MESMO UM ANO NOVO! Dezembro 1995 (CED 02)

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ÍNDICE - HOMENS AO LIXO EM SOCIEDADES DE LUXO, Março 1996 (ATDL 16)

247

- PARA TER DIREITO AO RECADO, É PRECISO TER SUADO, Julho 1996 (ATDL 17)

249

- DEZ ANOS DE DESENVOLVIMENTO LOCAL EM PORTUGAL, Outubro 1996 (ATDL 18)

251

- EM MANIFESTAÇÃO, EM FESTA, Novembro 1996 (ATDL 19)

258

- EDUCAÇÃO PARA A SUSTENTABILIDADE … SOB A FORMA DE CONTO DE FICÇÃO, 1997 (EDU 15)

260

- EDUCAÇÃO PERMANENTE OU MATERIALISMO CRESCENTE? Janeiro 1997 (EDU 16)

265

- SERVIÇO PÚBLICO: OS QUE SERVEM E OS QUE SE SERVEM, Abril 1997 (ATDL 20)

269

- EDUCAÇÃO DE ADULTOS VISTA POR ALBERTO MELO, Julho/ Setembro 1997 (EDU 17)

271

- A PROPÓSITO DAS ELEIÇÕES AUTÁRQUICAS: ALGUMAS PÉROLAS DE SABEDORIA ORIENTAL, Dezembro 1997 (ATDL 21)

280

- UMA APOSTA EDUCATIVA NA PARTICIPAÇÃO DE TODOS, Dezembro 1997 (EDU 18)

281

1998-2012: Encarregado de Missão do Grupo de Missão para o Desenvolvimento da Educação de Adultos > Técnico Superior na Universidade do Algarve, Coordenador de programas europeus (ERASMUS, etc.) > Delegado Regional do IEFP no Algarve> Aposentado da Função Pública - DO CENTRALISMO PRODUTIVISTA À DESCENTRALIZAÇÃO CÍVICA E EDUCATIVA, Janeiro 1998 (EDU 19)

286

- DO GLOBAL AO LOCAL: 20 TELEGRAMAS A PROPÓSITO DAS ASSOCIAÇÕES DE DESENVOLVIMENTO LOCAL, Março 1998 (ATDL 22)

292

- O MEU PERCURSO NA EDUCAÇÃO DE ADULTOS, Novembro 1998 (EDU 20)

297

- AGIR LOCALMENTE, PENSAR GLOBALMENTE. TESTEMUNHO DE UM PERCURSO INSPIRADO EM PAULO FREIRE, Maio 1999 (EDU 21)

309

- EM PORTUGAL, A EDUCAÇÃO DE ADULTOS AINDA É A GATA BORRALHEIRA, Janeiro/Março 2000 (EDU 22)

315

- A ACÇÃO LOCAL DOS CIDADÃOS COMO MEIO DE RESISTÊNCIA À NOVA VAGA DE COLONIZAÇÃO GLOBAL: O CASO DA ASSOCIAÇÃO IN LOCO NO SUL DE PORTUGAL, 2000/2001 (ATDL 23)

320

- A PARTICIPAÇÃO DOS CIDADÃOS: CONTRA A APATIA POLÍTICA, UMA POLÍTICA DE EMPATIA, Novembro 2001 (CADP 02)

350

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- A EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO AO LONGO DA VIDA COMO VIA PARA A INCLUSÃO: ASSIMILAÇÃO OU AUTONOMIA? Novembro 2002 (EDU 23)

372

- O DIREITO E O DEVER DE SABER MAIS, Maio 2003 (CADP 03)

377

- A AUSÊNCIA DE UMA POLÍTICA DE EDUCAÇÃO DE ADULTOS COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL E ALGUNS PROCESSOS DE RESISTÊNCIA, 2004 (EDU 24)

382

- PARA UM PACTO SOCIAL EM PORTUGAL ENTRE O ESTADO, A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E AS ORGANIZAÇÕES CÍVICAS E SOLIDÁRIAS, Março 2005 (CADP 04)

402

- A MINHA LEITURA DE “EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DA LIBERDADE”, 2005 (EDU 25)

406

- PARECER GLOBAL SOBRE AS PROPOSTAS PARA UM REFERENCIAL DE COMPETÊNCIAS CHAVE PARA EQUIVALÊNCIA AO 12º ANO DE ESCOLARIDADE PARA PESSOAS ADULTAS, Fevereiro 2006 (EDU 26)

412

- EXISTE UM DIREITO AO DESENVOLVIMENTO? Outubro 2006 (CED 03)

424

- DA SERRA ALGARVIA À SECRETÁRIA DO MINISTRO, Outubro 2006 (EDU 27)

436

- O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES DO 3º SECTOR NA APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA, 2007 (CADP 05)

448

- PARA A FESTA DOS XX ANOS DA IN LOCO, Novembro 2008 (ATDL 24)

465

- A ECONOMIA DOMINANTE É INSUSTENTÁVEL, Setembro 2009 (CED 04)

467

- EDUCAÇÃO-FORMAÇÃO DE ADULTOS: CAMINHOS PASSADOS E HORIZONTES POSSÍVEIS, Julho 2010 (EDU 28)

489

- A EDUCAÇÃO PERMANENTE, GUIA DE VIDA E MANIFESTO POLÍTICO NAS ENCRUZILHADAS DA HUMANIDADE, Janeiro 2011 (EDU 29)

499

- A EDUCAÇÃO DE ADULTOS AO LONGO DA VIDA, PELA E PARA A AUTONOMIA, Julho 2011 (EDU 30)

509

- É POSSÍVEL VIVER NA TERRA E DA TERRA, Janeiro 2012 (ATDL 25)

518

- NOVAS OPORTUNIDADES E VELHAS ENORMIDADES, Maio 2012 (EDU 31)

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A INGRATIDÃO DOS ALUNOS 1 EDU 01

Do Guardian de 12 de Janeiro, sob o título “Um teach-in ajudará a combater o vandalismo” (o teach-in consiste numa sessão plenária de alunos, professores e mais convidados, onde, durante várias horas e com a participação de diferentes especialistas, numa perspectiva pluridisciplinar e por meio de diversos meios de comunicação – especialmente palestras e filmes – se tenta esgotar um determinado tema): “Será organizado em South Shields um teach-in dedicado ao vandalismo, dado que se está a braços com uma conta anual de dez mil libras (700 contos) provocada por tais actividades. Entre os participantes, contar-se-ão polícias, directores de escolas, padres, funcionários da tutória e um juiz. A ideia proveio do Clube de Rotários da cidade e teve o apoio do município. O anúncio desta realização coincidiu com dois novos ataques – um contra uma escola, onde 30 janelas foram quebradas, e outro contra um parque escolar, onde uma estufa ficou danificada e valiosas flores destruídas”. Este género de vandalismo constitui um fenómeno relativamente recente, pelo menos na assustadora frequência actual, em que não passa uma semana sem que se verifiquem vários ataques a escolas, e isto tanto em Inglaterra como em França (e certamente nos demais países industrializados). Quando descobertos, os autores são invariavelmente reconhecidos como alunos das escolas em questão. E os ditos ataques, por vezes, não se limitam a uma quebradela de vidros. No ano passado, em Montpellier, no sul de França, dois alunos (um de 8 e outro de 10 anos), que se consideravam injustamente punidos pelo professor, atacaram a escola durante um fim-de-semana, não deixando uma carteira nem uma secretária inteiras. Como estes maus exemplos têm sempre tendência a generalizar-se e os ingleses são conhecidos pela preocupação de prevenir em vez de remediar (até porque às vezes já nem há remédio), certas medidas de prevenção estão hoje a ser tomadas; como, por exemplo, a guarda das escolas durante a noite e aos fins-de-semana, o que não deixa, portanto, de onerar o orçamento escolar. É realmente desconcertante, para as autoridades inglesas, que, após um arranque tardio (a educação universal só foi reconhecida em 1870), conseguiram um século mais tarde alargar a educação a todos os jovens dos 5 aos 15 anos, verificar hoje como os tais agitadores (isolados ou em pequenos bandos) se infiltram por toda a parte, seja na universidade ou na escola primária. 1

O Tempo e o Modo, Março de 1970 e Escola e Sociedade. Colecção Textos Pedagógicos, Instituto de Tecnologia Educativa, Ministério da Educação e Investigação Científica, Lisboa 1976, pp. 7-19.

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Na universidade, porém, trata-se, apesar de tudo, de interlocutores válidos. Mas, nas escolas, como tratar com estes vândalos de 8, de 10 ou de 12 anos? É para ver isto, perguntam a si próprias as autoridades trabalhistas, que nós tanto lutámos contra os elitistas conservadores, a fim de lhes arrancar o direito para todas as crianças deste país se banharem livremente na grande piscina do conhecimento? Que grande ingratidão contra as nossas boas intenções de sempre: é afinal deitar pérolas a porcos (ou margaritas ante porcos, como dirão, preferentemente em latim, aqueles que passaram pelas escolas dedicadas às elites, onde se cultivam as clássicas). Pois é, mas nestas coisas como em tudo há sempre os mal-intencionados, que não perdem a pitada em qualquer ocasião para dar a sua beliscadela e, no meio desta indignação geral (outcry, em inglês) arriscam uma atrevida réplica: “Lá haver banho livre na piscina do conhecimento, há; o pior é que entre os banhistas há os que sabem nadar e os que não sabem; desta maneira, a piscina só serve para permitir a escolha dos que flutuam (vivos), a quem será dado futuro agasalho e duche morno; não admira que, para os que não sabem nadar, a saída esteja em esvaziar o ralo da tina – é mesmo a única maneira de se não deixarem afogar (é que já nem há tempo para aprender a nadar)”. Seja como for – respondem os primeiros – a escola é um edifício público, que presta um serviço da maior utilidade pública e já se viu alguém atacar os hospitais (salvo em tempo de guerra) e, em particular, já se viu os doentes atacarem os seus próprios hospitais? (É esta umas das opiniões geralmente formuladas, especialmente sob a forma correntemente institucionalizada das “Cartas ao Editor”). Os “amigos dos vândalos” ainda não ficam calados e respondem que, aceitando a analogia, a escola seria assim como um hospital – muito original – que só conserva os bons de saúde e vai expulsando periodicamente todos os que estão doentes: primeiro, os mais graves e os outros pouco a pouco e na razão inversa do seu nível de sanidade. É difícil ver claro no meio destas controvérsias passionais. Vários estudos têm sido dedicados ao papel social da escola, mas que oscilam entre a escola-fonte-de-virtudes, distribuidora de saber para toda a gente, juiz imparcial do “a cada um segundo o seu mérito” e a escola-de-classe, onde “ou te conformas com os nossos princípios ou não sais da cepa torta”. Farejando os textos do século passado, facilmente se verifica que a chamada classe dirigente estava “profundamente dividida” num sério debate sobre a educação generalizada ou educação não generalizada. “O projecto de dar educação às classes pobres trabalhadoras seria de facto prejudicial à sua moralidade e felicidade; ensiná-los-ia a desprezar

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a sua sorte nesta vida, em vez de os tornar bons servos na agricultura e em outras tarefas laboriosas a que os destinou o seu lugar na sociedade; em vez de aprenderem a subordinação, torná-los-ia facciosos e insubmissos, ao permitir-lhes ler folhetos sediciosos, livros viciosos, publicações contra o cristianismo; torná-los-ia insolentes para com os seus superiores”2. “Os rapazes pobres, lançados para o mundo sem princípios fixos, podem tornar-se membros perigosos da sociedade em consequência de terem sido ensinados a escrever e a ler”3. “Entre todas as invenções loucas e instrumentos da nova vaga para arruinar o país, ensinar os pobres a ler é o pior de todos!”4. “Um pouco de educação ajudaria a formar muitos hábitos benéficos e de natureza permanente: hábitos de submissão e de respeito para com os seus superiores”5. “Se as classes superiores forem incapazes de disseminar inteligência entre as classes inferiores, haverá sempre quem esteja pronto a aproveitar-se da sua ignorância; se as classes superiores não procurarem ganhar a confiança das classes inferiores, outros virão que se aproveitarão da sua desconfiança … a miséria, o vício e os preconceitos das classes inferiores surgirão como elementos vulcânicos cuja violência explosiva poderá até destruir a estrutura da sociedade”6. Após décadas de controvérsia entre a educação-repressão e a educação-integração, a Lei de 1870 (Education Act) veio enfim reconhecer o princípio defendido por esta segunda – a “altruísta” – escola de pensamento. Após um período de transição, requerido pela construção de novos edifícios e pela formação de novos professores, pode dizer-se que, no fim do século, se encontrava em vigor um sistema generalizado de educação, cujo acesso estava aberto a todas as camadas da população. Este sistema geral de educação apresentava, e apresenta, a forma comum a todas as instituições burocráticas: a pirâmide ou o funil. Quer isto dizer que, à medida que passam os anos, aumentam as eliminações, isto é, um processo de selecção é levado a cabo dentro do organismo e provoca uma erosão contínua e progressiva – pela liquidação dos que são menos mais-capazes. O prémio final para os que finalizam a maratona do ensino é aqui chamado o Degree, que começa já aliás a ser considerado apenas uma pré-meta, dada a existência e o desenvolvimento dos cursos postuniversitários que conduzem ao Master’s Degree e ao Ph. D. (Doctor of Philosophy). Davies Giddy, Presidente da Royal So ciety (correspondente à nossa Academia das Ciências) na Câmara dos Comuns, em 13 de Julho de 1803. 2

Sarah Trimmer, A Comparative View of the New Plan of Education Promulgated by Mr. Joseph Lancaster, 1853. 3

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Hannah Mare, em The Sunday School.

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Mr Sharp, Câmara dos Comuns, Londres, 24 de Abril de 1807.

J. P. Kay, The Moral and Physical Condition of the Working Classes Employed in the Cotton Manufacture in Manchester, 1832. 6

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“Muitos serão os chamados e poucos serão os escolhidos”. À falta de números à mão sobre a Inglaterra, exemplifico o dito funil com dados fornecidos pela Hungria em 1964-657 (para o caso, é o mesmo): - Escolas primárias: 1 096 000 - Escolas secundárias: 417 400 - Escolas superiores: 91 900 Ora, o que objectaram os críticos à imparcialidade da escola-juiz foi que, enquanto a distribuição dos efectivos nas escolas primárias é um reflexo da divisão sócio-profissional existente na população total do país, já no que diz respeito aos efectivos no ensino secundário, e especialmente aos efectivos no ensino superior, é manifesto um desequilíbrio que favorece os filhos dos já favorecidos e desfavorece os filhos dos já desfavorecidos. Assim, por exemplo, em Inglaterra, em 1961-62, os estudantes provenientes de famílias de trabalhadores manuais (especializados ou não) correspondiam a 25% do total dos estudantes universitários, contra portanto 75% que provinham de famílias de profissões liberais e outros empregos que pouco utilizam os músculos. Ora, se virmos bem, a proporção destas duas categorias de profissões – as manuais e as não manuais – na população activa inglesa é precisamente a inversa: uns 6 milhões de profissões liberais, administradores, gestores, empregados de escritório, comerciantes, entre 24 milhões de pessoas desempenhando uma ocupação directamente produtora. Este fenómeno, digamos à laia de parêntesis, não é específico da Inglaterra. Voltando à Hungria, vemos que, em 1963, os trabalhadores representavam 33% da população universitária e 56% da população activa, enquanto os não manuais contavam 56% de universitários e 18% de população activa. Se um filho de trabalhador agrícola tinha na Hungria, em 1930, uma probabilidade mínima de entrar na universidade (1 em 1320), ainda hoje tem uma probabilidade vinte vezes menor que a do filho de um funcionário superior. Digamos que em França essa proporção é de 1 para 80 nos tempos que correm. Em Itália, os filhos de trabalhadores são 13,5% dos estudantes na universidade e 8,1% dos licenciados. E muitos mais números se poderiam apresentar e que só viriam confirmar a permanência e universalidade do fenómeno, aqui maior, menor além. Foi a observação de tais desequilíbrios que levou aqueles mesmos críticos da escola-árbitro a perguntarem-se o que haveria de intrínseco à instituição escolar para criar tais deformações e favoritismos. Um país então integrado no chamado Bloco Soviético e apostado explicitamente na liquidação das classes sociais (Nota de 2011). 7

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Voltando à Inglaterra, há que notar que a Lei de 1870 não tinha resolvido todas as questões assim do pé para a mão. A ideia de igualdade de oportunidades em educação tinha uma forma bizarra (como a guitarra de que canta o fado): o sistema de educação destinava-se a criar oportunidades de educação diferenciadas e apropriadas ao lugar de cada um na sociedade e esse lugar era o presentemente ocupado pela família do dito cada um. Parafraseando Georges Orwell, em Animal Farm, se os estudantes eram todos iguais, havia uma minoria entre eles que eram mais iguais do que os outros. De qualquer modo, esta “batota” do século XIX tem sido desde então objecto da maior vigilância e hoje muito boa gente acredita que não há já razão de queixa e que todos têm a sua oportunidadezinha de mostrar o que valem para o sistema – desde que a saibam aproveitar. Eternos insatisfeitos, certos críticos voltam à carga e querem que o Estado se encarregue precisamente de permitir a todos “o saber aproveitar”, como se isso não fosse fruto de certa habilidade individual mas sim o resultado de um condicionalismo social. E diz um desses críticos, muito “gastronomicamente”8: “A palavra oportunidade tem significado, em regra, no passado, que certas facilidades se encontravam disponíveis, mas que competia ao indivíduo tirar vantagem delas. A noção é a do banquete oferecido, em que o indivíduo se deve servir a si mesmo. A nossa preocupação actual com a dita igualdade de oportunidades parece querer introduzir um tipo mais elevado de moralidade, que diz que, quando a sopa está servida, àqueles a quem inicialmente foram fornecidos garfos (ou mesmo nenhum utensílio), deviam ser servidas colheres”. Será então porque sentem a falta da colher que os nossos jovens vândalos se dedicam a escaqueirar as carteiras e as secretárias onde é servida a sopa? É neste sentido que se orientam muitas das críticas formuladas hoje à escola inglesa. O simples facto das diferenças linguísticas entre camadas sociais é apresentado como a tal diferença entre garfo e colher. O argumento é que as crianças da classe operária, munidas de uma linguagem de sintaxe rígida e uso limitado de possibilidades estruturais na organização da frase (por exemplo, falta de orações subordinadas), estão assim atreitas a uma perda de capacidades – tanto cognitivas como sociais – que são estratégicas para o êxito educacional e profissional9. Mosteller, Design of Experimental Field of Additional Survey Studies, in Questions Raised and Excerpts from the Analysis, Harvard Faculty Seminar on the Coleman Report – unpublished progress report, 1966-67, p. 4). 8

Basil Bernstein, Social Class and Linguistic Development, a Theory of Social Learning, in Education, Economy and Society, Halsey Floud & Anderson (eds.), 1968. 9

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Outros, mais terra a terra ou mais mal intencionados, dizem desaforadamente que os livros de ensino são feitos em linguagem da classe média, por autores da classe média, para serem ensinados por professores da classe média e servir de base aos exames que são classificados por examinadores da classe média. E que, nessas condições, não admira que os alunos da classe média sejam em grande escala os favorecidos do sistema, os “meninos bonitos” que estão “em casa” na escola; e que, pelas razões simétricas, os alunos da classe não média dificilmente consigam atingir a dita média (nos exames). Até faz pensar no episódio que conta Margaret Mead, a célebre antropóloga americana, sobre uma tribo de peles vermelhas na América do Norte: os Omahas formam uma sociedade rigidamente estratificada, cuja classe dirigente é constituída pela “Sociedade dos Feiticeiros”. A admissão nesta Sociedade é, em princípio, aberta a todos. Os jovens candidatos têm apenas de deixar a aldeia, durante um certo tempo, viver sozinhos nas montanhas ou no deserto e, após o regresso, apresentarem-se perante uma assembleia constituída pelos feiticeiros e contar-lhes a “visão” que tiveram durante tal recolhimento. Todos os jovens da tribo são elegíveis para tentar a experiência, mas ninguém sabe como distinguir uma “visão verdadeira” de uma “visão falsa”, ninguém, a não ser os próprios feiticeiros, claro. Como resultado deste estado de coisas, sempre houve uma coincidência singular: quando um candidato tem parentes entre os feiticeiros, a sua visão é das verdadeiras; no caso contrário, invariavelmente, a visão é das falsas e o jovem não pode ser admitido entre a elite. Mais um caso de carisma transmitido pelos genes... Que os professores têm os seus quês não se pode negar; eles são humanos, como toda a gente. Um teste “à conto do vigário”, efectuado por dois psicólogos americanos10, obriga-nos a meditar sobre a objectividade dos professores. Numa escola de São Francisco, os alunos foram sujeitos a testes por parte destes dois investigadores, testes que, segundo eles, eram perfeitamente reveladores das “capacidades escondidas” nas crianças. No princípio do ano escolar seguinte, lá reapareceram os nossos psicólogos a apontar aos professores, em segredo, aqueles alunos com quem (segundo os resultados infalíveis do teste-maravilha) se podia contar para um progresso espectacular. E, no fim desse ano escolar, tais alunos tinham realmente progredido mais do que os restantes colegas. Resta acrescentar, para finalizar, que os tais alunos apontados a dedo pelos psicólogos eram o resultado de um simples sorteio feito perfeitamente ao acaso e que nada tinha a ver com o dito teste. R. Rosenthal & L.F. Jacobson, Teacher Expectation for the Disadvantaged, in Scientific American, Abril de 1968. 10

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O que tinha a ver, isso sim, era um particular interesse dos professores neles, dada a sua expectativa condicionada. Seria caso, porém, para os outros alunos – os postos de parte – começarem a partir janelas? A fim de obstar a estas e outras críticas, quanto à objectividade das classificações dadas pelos professores, tanto nos Estados Unidos como na Inglaterra, passaram a utilizar-se, desde há largos anos, os muito técnicos e científicos “testes de inteligência” como prova real de quem é que tem miolos. Aqui em Inglaterra, a criança era levada ao teste de IQ (Intelligence Quotient) aos 11 anos. Consoante os resultados, entraria para uma Grammar School (mais ou menos o nosso liceu) – caminho directo para a universidade - ou entraria para uma Secondary Modern School (mais ou menos as nossas escolas técnicas ou comerciais) – caminho directo para o trabalho aos 15 anos (ou para o desemprego). Pois nem estes pobres testes escaparam à foice acerada da crítica. Para começar, dizem alguns que, ao chegar aos 11 anos, já as crianças estão alinhadas em três turmas distintas, segundo a opinião dos professores (A, B e C) e que, portanto, umas já estão socializadas para o êxito e outras socializadas para o falhanço. E que isso seria comprovado pela experiência seguinte de três psicólogos americanos11: aos alunos de certa escola foi dado um teste de 6 perguntas, em que após a resposta competia ao aluno accionar um de três botões que se encontravam diante dele: Bom, Mau e Não Sei; dando assim a própria opinião sobre o valor das suas respostas. O teste era de uma simplicidade extrema e todos o resolveram correctamente, sem diferenças de maior, mas já no que diz respeito aos botões (isto é, às auto-apreciações, às auto-imagens), a coisa muda de figura: apenas 3 entre os 17 bons alunos tinham usado o botão Mau numa ocasião ou noutra; mas, entre os 19 maus alunos, esse botão tinha sido usado por 16 deles. Quer isto dizer que, por volta dos 10 anos, já as crianças tinham interiorizado um efectivo mecanismo de auto-desencorajamento, válido para qualquer ocasião e, especialmente, para os testes de IQ, que já nem são tão simples, dado que são preparados precisamente para estabelecer diferenças. Outros críticos, menos sofisticados, dizem que os próprios testes são estruturados de tal forma que facilitam aqueles que podem beneficiar de certos meios socioculturais. Por exemplo, num teste de semelhanças, pergunta-se em que é que se parecem uma laranja e uma banana. Se responder “são ambas fruta”, tem direito a 2 pontos. Se responder “comem-se”, só recebe 1.

Irwin Katz, The Socialization of Academic Motivation in Minority Group Children, in D. Levine (ed.) Nebraska Symposium on Motivation, Lincoln, Neb: University of Nebraska Press, 1967. 11

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Daí que uns quantos não percam a ocasião de dizer que as crianças que têm a oportunidade de ouvir todos os dias a mamã e o papá dizerem “ó Maria, traga a fruta para a mesa, que maçada” e vêem a Maria trazer ora bananas ora laranjas, ou ambas as espécies, se encontram em vantagem sobre aquelas que só vêem essas coisas do outro lado da vitrina da loja e lambem os beiços à distância, a sonhar que isso é para comer (vá lá, que um pouco de realismo também nunca fez mal a ninguém – nem bem). Em resumo, o que dizem estes é que nada é mais injusto do que tratar igualmente os desiguais e que, através destes testes objectivos, são objectivamente as famílias, e não os indivíduos, que acabam por ser avaliados. Há ainda quem se atire, não apenas à distinção entre culturas de classes, mas entre culturas regionais. Por exemplo, as crianças das comunidades rurais do Kentucky (Estados Unidos) têm a reputação generalizada e pouco invejável das “mais estúpidas crianças brancas americanas”. Pressey12 cita a experiência de um investigador a braços com a incapacidade de abstracção entre os “brancos pobres do Kentucky”, tal como é requerida pela aritmética correntemente ensinada nas escolas. Tratava-se do clássico problema: “Se vais à loja comprar 6 tostões de rebuçados e dás 10 tostões ao merceeiro, de quanto será o troco?”. Um dos jovens respondeu: “Nunca tive 10 tostões na minha vida e, mesmo que os tivesse, não os ia gastar em rebuçados e em todo o caso isso de rebuçados as mães fazem em casa”. O examinador tentou uma segunda experiência e reformulou o problema: “Se levares 10 vacas a pastar, para ajudar o teu pai, e se seis se perderem, com quantas ficas para trazer para casa?”. A criança respondeu: “Não temos 10 vacas, mas se as tivéssemos e eu tivesse perdido 6, nunca mais me atrevia a voltar para casa”. Não se dando por vencido, o examinador fez uma tentativa última: “Se houvesse numa escola 10 crianças e 6 ficassem em casa com varicela, quantas restariam na escola?”. A resposta desta vez foi ainda mais pronta: “Nenhuma, porque as outras teriam medo de apanhar também as bexigas”. As impressões deste examinador, uma vez de regresso a Nova Iorque, não terão sido irrelevantes para a tal triste reputação das crianças de Kentucky... Ora tudo isto, se ainda não me perdi, diz respeito à tal falta de colher para comer a sopa. Mas outros vão já mais longe e perguntam: só se dá pela falta da colher porque há sopa no menu; se houvesse perna de galinha, a colher não serviria para nada e o melhor seria mesmo comer à mão. Se fossem, portanto, as próprias crianças a escolher o menu, é certo e sabido, para quem as conhece, que não haveria o raio da sopa à mesa. Para quê perder então tanto tempo a fabricar colheres ou a trocar garfos por colheres? Sirva-se-lhes o banquete que encomendarem. 12

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Pressey, S.L. Psychology and the newer Education, 1933.


A este nível se coloca a controvérsia entre educação directiva ou autoritária e educação não directiva ou libertária ou entre educação programática e educação a pedido. O primeiro tipo é ainda de longe o mais espalhado em Inglaterra. Uma experiência de educação anti-autoritária é a da Escola de Summerhill, dirigida há já muitos anos pelo pedagogo octogenário inglês A.S. Neill, discípulo do sexólogo alemão Wilhelm Reich. É o que se pode chamar uma experiência perfeitamente isolada, levada a cabo sem qualquer apoio oficial e mesmo sujeita a estreita vigilância, “para evitar orgias”. Segundo Neill, a sua escola está feita à medida da criança e não a criança à medida da escola 13. Houve uma renúncia total a qualquer disciplina, direcção, sugestão, formação moral, instrução religiosa. A escola é residencial; as aulas são facultativas (para os alunos, mas não para os professores). É princípio geral que as crianças, tal como os adultos, aprendem mesmo (e aprendem só) aquilo que querem aprender. (Há pois uma distinção a fazer entre o aprender de uma forma estável e o memorizar para passar um exame e esquecer de seguida). Diz Neill: “Em minha opinião, impor o que quer que seja por autoridade é errado. A criança não deve fazer nada até chegar por ela própria à opinião – a sua própria opinião – de que isso deve ser feito”. Acrescente-se que os alunos são aceites desde os 5 anos de idade. Todavia, há uma escala de responsabilidades, segundo a idade ou a maturidade; e dá-se a cada criança aquele nível de responsabilidade que ela pode aceitar consoante o seu desenvolvimento. Se a criança tem, por exemplo, um acesso de febre, não se pergunta se quer ou não sair para a rua à chuva. As recompensas e castigos foram banidos. “As recompensas tornam as outras crianças ciumentas. Recompensas e castigos tendem a lançar a criança numa via interesseira”. As escolas oficiais inglesas, porém, estão bem longe deste modelo e, a julgar pelo desabafo de uma boa alma (“Não temos amigos, só temos rivais”)14, a competição entre os alunos15 não é feita para criar amizades ou espírito cooperativo. Esta contradição entre solidariedade e cooperação (que, na opinião de Jackson e de Marsden, são valores generalizados entre crianças da classe operária) e a competição, rivalidade e êxito individual – valores exigidos por uma escola que castiga a cooperação, sob o nome infamante de “copianço”, enquanto estimula o brilharete do cavaleiro solitário – é também apresentada por alguns como mais um handicap para as crianças oriundas de camadas sociais inferiores. 13

A.S. Neill, Summerhill: a Radical Approach to Child Rearing, 1960.

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B. Jackson & D. Marsden, Education and the Working Class. Pelican Books, 1966, p. 102.

Aos 7 anos, para as turmas A, B ou C ; aos 11 anos, para o eleven plus, aos 15 anos, para o Ordinary Level; aos 17 ou 18, para o Advanced Level. 15

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À laia de mais um parêntesis, note-se que o espírito de competição não faz parte da chamada “natureza humana”. Por exemplo, entre os Hopi do Novo México, as crianças – como relata Kennard 16 - nunca praticam jogos de competição. No mesmo sentido, Ash (na mesma obra) declara que os estudantes Hopi não rivalizam uns com os outros e que todos os esforços dos professores para os levar a adquirir tal espírito têm falhado redondamente. Conta ele o caso de uma professora que, numa derradeira tentativa para os classificar hierarquicamente, colocou todos lado a lado diante do quadro preto e lhes deu a mesma operação aritmética a efectuar, dizendo-lhes que, à medida que fossem terminando, deviam voltar imediatamente as costas ao quadro. Qual não foi o espanto da pobre senhora ao verificar que, durante toda a execução dos cálculos, os alunos Hopi se espiavam mutuamente, escrevendo o mais lentamente possível até todos terem terminado, para se voltarem triunfantes, simultaneamente… É um facto que a sopa actualmente oferecida às crianças não corresponde exactamente ao menu predilecto dos alunos. Eis a conclusão a tirar de um inquérito lançado pelo hebdomadário Observer, em 1967, onde se perguntava aos jovens ingleses qual o género de escola que gostariam de frequentar17. “A escola que eu gostaria de frequentar deveria ter professores compreensivos (que são de longe poucos, de facto), que tentariam compreender as dificuldades dos alunos e não os olhar de alto, como sub-humanos analfabetos. Os alunos deveriam também ser tratados como indivíduos e não como um rebanho de carneiros, como se todos tivessem o mesmo propósito na vida… Os professores deveriam trabalhar em conjunto e não pensarem que o professor de matemática é superior ao professor de educação física ou demasiado importante para conviver com os assistentes do laboratório. Os alunos deveriam ser de todas as nacionalidades e de todos os credos: rapazes, raparigas, judeus e muçulmanos. Isso os ajudaria mais tarde a não ter preconceitos de cor e a saberem que nenhuma nacionalidade ou credo é melhor que outro. A escola (e o mais que se segue) deveria ser uma sociedade de uma só classe: ninguém rico, ninguém pobre...” (um rapaz de 13 anos). “As escolas têm geralmente uma coisa em comum: são instituições de hoje governadas por princípios de ontem” (uma rapariga de 15 anos). “Já estou farta de ouvir que a esperança do nosso país é a minha geração. Se me sujeitam, enquanto criança, à mesma doutrinação, como é que podem esperar que eu vá ser diferente de vocês?” (uma outra rapariga, de 15 anos). 16

In Otto Klineberg, Social Psychology, p. 129.

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Edward Blishen (org.), The School that I’d like. Penguin Education Special.

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“Quando olhamos para as nossas escolas de hoje e os políticos nos dizem que temos um dos melhores sistemas educativos do mundo, damo-nos conta da pobreza do nível de ensino que deve existir nos outros sítios. Porque é que vamos à escola? Para aprender quanto é dois mais dois? Para aprender a jogar à bola? A ideia de ir para a escola não será antes a de aprendermos a dar-nos com as outras pessoas. A de aprendermos a partilhar e a ajudar, a de aprendermos a apreciar e a sentirmo-nos estimulados e satisfeitos? Certamente que o facto de sermos castigados por falar não ajuda a alcançar tais resultados. Na escola que eu gostaria de ter, a relação entre professor e aluno seria modificada. Em vez de ser o professor ensinar ao aluno, ambos iriam aprender juntos, criando entre si íntimas relações, uma compreensão clara e um entusiasmo pelo conhecimento. Nós sabemos que quem quer que seja, uma vez tratado como ser humano e não sempre sujeito a reprimendas por ter esquecido certas regras, poderá triunfar e triunfará! Neste tipo de escola, deveria existir expressão livre, pensamento livre, liberdade para trabalhar ao ritmo próprio de cada um. Nesta escola, as horas passariam agradavelmente e não haveria “aulas”, porque os alunos teriam tempo suficiente para encontrar o porquê, o quando e o como. Quem sabe, talvez entre os alunos de Inglaterra, um deles acabasse por ser o inventor de um método para alimentar os famintos da Terra… Seria isto a escola! Um lugar onde as pessoas aprendessem juntas a viver juntas e a amarem-se umas às outras, onde as pessoas aprendessem a raciocinar, aprendessem a compreender e acima de tudo aprendessem a pensar por si mesmo. A escola não foi inventada apenas para que as pessoas pequenas se tornassem no mesmo que as pessoas grandes, mas sim para que os alunos aprendessem como viver e deixar viver. Não é tanto o dinheiro que faz falta, mas o bom senso, e a escola de que eu gostava – de facto, a escola com que eu sonho – seria uma coisa do presente. Agora já!” (Judith, 13 anos). Perante a leitura destas e de outras opiniões de alunos (como o notável livro escrito por 4 rapazes de 15 anos, reprovados numa escola italiana, e dedicado à professora 18), certos críticos da pedagogia oficial inglesa vão até ao ponto de menosprezar as intenções de permitir às crianças a escolha do menu, para se perguntarem se o melhor não será mesmo serem os próprios alunos a cozinhar o banquete, com a assistência técnica (quando requerida) de auxiliares mais experimentados – os chamados professores ou animadores.

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Lettre à une maîtresse d’école par les enfants de Barbiana. Editions Mercure de France, 1968.

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CLAUSEWITZ, DUELO ATÓMICO E TEORIA DOS JOGOS19 CPL 01

Não tem este artigo pretensão de originalidade. O que se segue é em grande parte uma montagem de textos de Anatol Rapoport sobre questões de estratégia politico-militar e de teoria dos jogos e ainda de vários trabalhos referentes à situação do duelo atómico em que vimos vivendo desde há cerca de 25 anos (ver Referências no final do artigo). A guerra é daqueles fenómenos sociais cuja complexidade proíbe qualquer estudo superficial e limitado. Uma análise que se proponha encontrar-lhe as causas teria de preencher numerosos volumes. Guardadas as proporções, têm-se apontado as seguintes causas à delinquência juvenil: (1) falta de iluminação nas ruas, (2) existência de becos, (3) imigração, (4) infidelidade conjugal, (5) associação diferencial, (6) manifestação neurótica, (7) divórcio dos pais, (8) distribuição desigual do rendimento nacional, (9) ausência de actividades alternativas com interesse, (10) publicidade e exposição das mercadorias, (11) incapacidade psicológica de ficar indiferente à vista de certos objectos de valor, (12) bairros de lata, (13) desorganização ecológica das cidades, (14) materialismo, (15) o seu oposto, (16) preocupação com o próprio valor como pessoa, (17) sistema legal, (18) absurdo da sociedade, (19) absurdo da condição humana, (20) necessidade de religião, (21) família nuclear, (22) sistema político, (23) escola, (24) perversidade do indivíduo, (25) … dos pais, (26) … dos avós, (27) sistema policial. E claro que cada um daqueles “factores causais” está por seu lado ligado, para os propósitos da ciência, a uma infinidade de outras causas. “Escolha conforme o seu gosto”, mas na escolha se encontra já um dos limites da dita objectividade científica. O que nos vai ocupar aqui não é porém uma tentativa de compreensão da guerra, mas sim as implicações, melhor, as interacções entre a situação actual de corrida às armas nucleares por parte dos “Dois Grandes” e o estado presente das considerações lógico-estratégicas. A tentativa agora, para variar, é a de apreciar o duelo atómico de um ponto de vista estritamente tecnocrático. Como é que “eles” vêem e prevêem este “ping pong” de golpe e contragolpe, de acção e reacção, de ataque e defesa. Mas, quando se fala de estratégia, há que falar de Clausewitz e uma curta digressão pelo passado sempre ajudou a melhor compreender o presente. Texto escrito em Fevereiro de 1970, baseado numa série de leituras sobre esta problemática. Apresentam-se aqui apenas alguns extractos de um trabalho bastante mais extenso que foi publicado em O Tempo e o Modo, nº 78, em Abril do mesmo ano. 19

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Várias têm sido, através dos tempos e das latitudes, as maneiras de conceber o fenómeno da guerra. Passatempo, aventura, única ocupação digna para um nobre, questão de honra, cerimónia, manifestação de impulsos agressivos, manifestação do “instinto da morte”, maneira natural de assegurar a sobrevivência dos mais aptos, costume de longa data mas destinado (tal como a escravatura) a desaparecer, um crime, um absurdo (como entre os Esquimós). Adoptando a sistematização de Rapoport, são três as principais filosofias da guerra: (1) escatológica, segundo a qual a História, ou pelo menos certa fase da História, culminará por uma guerra final que conduzirá à realização de um grande desígnio (divino, natural ou humano) – a esfera de co-prosperidade do Grande Este Asiático proclamada pelo Mikado nipónico, o renascimento do Grande Império Romano pregado por Mussolini ou o triunfo da raça superior anunciado no Mein Kampf de Hitler; (2) cataclísmica, em que a guerra é considerada uma catástrofe que pode tombar sobre o país em questão (versão etnocêntrica) ou que pode recair sobre a humanidade em geral (versão universalista); esta última está bem patente no último capítulo de “Guerra e Paz” de Tolstoi; (3) política, quando a guerra é considerada como um instrumento racional para levar a cabo uma determinada política nacional. Ora é aqui mesmo que entra o general Carl von Clausewitz, batendo os tacões. As repercussões da sua volumosa obra “Sobre a Guerra”, publicada em 1832, ainda hoje se fazem sentir, no Kremlin, como em Washington, no Eliseu como em Whitehall. Clausewitz vê a guerra como um instrumento racional de política nacional. “Racional”, “instrumento” e “nacional” são pois os conceitos chave da sua filosofia. A decisão de entrar em guerra tem de ser racional, baseada numa estimativa de ganhos e perdas; instrumental, com o fito de realizar determinado objectivo, estratégia e tácticas devem ser definidas em função de certo fim, designadamente a vitória; e a guerra tem de ser nacional, isto é, com o propósito de servir os interesses de um Estado-Nação. Clausewitz define a guerra como um acto de violência destinado a forçar o opositor a fazer a nossa vontade. Nestes termos, pode pois incluir-se a guerra dentro do conceito mais vasto de “influência”, isto é, a transacção interpessoal na qual um agente se conduz de maneira a modificar o comportamento de outro agente e de uma determinada forma. Os conceitos derivados da influência são controlo, poder e autoridade. O controlo implica que certo agente possui uma influência suficientemente forte para que o ciclo do comportamento desejado seja efectivamente completado e que quaisquer resistências e contra-influências sejam vencidas no processo. O poder, como o nome indica, refere-se a actos potenciais; trata-se da capacidade de exercer influência. Para exercer um controlo, o poder por si só não é suficiente,

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deve juntar-se-lhe a obediência daqueles sobre quem a influência se aplica. Veremos mais adiante que o problema estratégico número um, na era atómica, é a questão de saber como transformar em controlo o poder nuclear. Quanto à autoridade, trata-se já de um fenómeno extra--técnico, que pressupõe a aceitação de um determinado critério de legitimidade; pode definir-se como o poder legítimo, o que não tem qualquer significado na obra de Clausewitz, como genial tecnocrata que realmente foi. Napoleão ensinara-lhe uma grande lição: que a moeda corrente em política é o poder e que o poder reside na capacidade de produzir destruição física. Clausewitz utilizou bem os ensinamentos, de tal modo que na sua obra se faz a unificação de uma filosofia política com uma filosofia de guerra. A luta pelo poder, isto é, a combinação dos aspectos militar e político, não necessita de qualquer justificação, no espírito de Clausewitz, que parte do princípio de que tal luta é uma característica fundamental da condição humana. A luta pelo poder, à escala internacional, é levada a cabo pelos Estados, considerados como entidades autónomas e com interesses próprios. O jogo de todos contra todos, a que Clausewitz assistiu no seu tempo, era realizado ora pela diplomacia ora pela guerra e em ambos os casos através de estratégias ditadas pelos comandos supremos. Para que os Estados rivais (à imagem do “estado de natureza” de Hobbes, onde cada homem era inimigo de todos os outros) sigam a política mais racional (que passa então a ser a mais eficiente) há que mobilizar a totalidade dos recursos possíveis. Daí o lançarem mão da mobilização total dos recursos nacionais, em materiais, em homens, em ideologias. Dá-se a generalização da chamada democratização da guerra, que fora o “segredo” das vitórias napoleónicas e que representa a guerra como a acção de todo um povo em armas e não já de uma equipa de profissionais ou mercenários como acontecera até final do século XVIII. A democratização da guerra conduziu, paralelamente, aos massacres maciços da Guerra de 1914-1918 (ao beco sem saída da guerra de trincheiras reciprocamente defensivas) e igualmente às revoluções populares armadas a que a Europa e outros continentes assistiram neste século. Nem uma nem outra destas situações foram previstas por Clausewitz. Presentemente, dada a incidência planetária de toda e qualquer guerra, dados os exemplos catastróficos das duas guerras mundiais e, principalmente, dado o ilimitado poder destrutivo das reservas em armas atómicas, a opinião pública tem vindo a abraçar uma forte e generalizada concepção cataclísmica da guerra. Não se trata, contudo, de uma posição incontestada e uma certa corrente se vem fortalecendo, das universidades às secretarias de Estado, que procura reabilitar e readaptar à era atómica a filosofia da guerra de Clausewitz.

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No que diz respeito aos EUA, um dos protagonistas do duelo atómico, defendem os neo-clausewitzianos que o problema é preservar e aumentar o poder do país - visto como campeão do “mundo livre” contra um inimigo, permanente e implacável, que o desafia, não só pelo facto de possuir uma máquina militar comparável, mas também pelo facto de corromper as populações, induzindo-as a destruir a presente ordem mundial (a famosa “Pax Americana”). Um dos mais famosos neo-clausewitzianos é Raymond Aron. No seu livro “Paz e Guerra” (o inverso de Tolstoi, precisamente), apresenta-se ao público como um “ocidental”, preocupado com a herança preciosa da civilização ocidental. Desgraçadamente, neste mundo desprovido de lei, tal herança só pode ser defendida por um poder militar superior. Dado que são os EUA o único poder que quer e que pode sustentar a luta contra a subversão, factor essencial na defesa do mundo livre, a política global dos EUA deve contar com o apoio de todos os que igualmente defendem os valores da civilização ocidental. Daí que Aron passe a equacionar os objectivos da política externa norte-americana com a defesa da civilização ocidental. Um outro brilhante epígono do general von Clausewittz é Herman Kahn. Mas antes de passarmos à análise das suas ideias (ou mais exactamente, dos seus cálculos) – pelos quais lhe deveriam conceder merecidamente o Prémio Nobel da Tecnocracia – torna-se necessário fazer uma resenha histórica do que tem sido o armamento nuclear desde o dia em que Einstein segredou a Roosevelt que uma bomba atómica era cientificamente possível. Desde a Guerra de 1939-1945 até à aparição da bomba termonuclear, a violência dos explosivos militares foi multiplicada por um milhão de vezes. Além disso, o tempo requerido para o transporte intercontinental de armas de destruição maciça reduziu-se das 20 horas do bombardeiro B-29 (a 450 km/hora) para os 30 minutos do míssil balístico. Em 1960, a definição de uma guerra longa (segundo a RAND Corporation) era já a que durasse pelo menos 2 dias, o que difere um pouco dos “bons tempos” da Guerra dos Cem Anos... Entre 1947 e 1954, é de realçar a supremacia esmagadora dos EUA no campo nuclear. É o período da chamada “retaliação maciça”, estratégia elaborada por Foster Dulles e segundo a qual compete ao SAC (Strategic Air Command) atacar e destruir as cidades soviéticas em caso de guerra. Esta estratégia tinha então a função (defensiva) de evitar a possibilidade de um ataque pelas forças terrestres soviéticas contra a Europa Ocidental e a função (ofensiva) de obter o máximo possível de concessões políticas sob a ameaça de utilização da força nuclear. É um período em que parece simples traduzir em termos de controlo político e diplomático o existente poder atómico destrutivo. Em 1954, os EUA tinham em armazém mais de 1000 bombardeiros intercontinentais B-47.

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Do lado da URSS, as forças terrestres constituíam a única barreira contra o monopólio nuclear ocidental. A resposta à ameaça de ataque nuclear é a ameaça de ocupação da Europa por terra, o que justifica a manutenção de um exército soviético que contava em 1955 com cerca de 6 milhões de efectivos. Esta barreira foi, porém, considerada incompleta e contraproducente, dado que, por um lado, não ameaçava directamente os EUA e, por outro, forçava a solidariedade entre a Europa Ocidental e os EUA, impedindo o desenvolvimento de uma diplomacia de aproximação entre a URSS e a Europa capitalista. Foster Dulles morre em 1959, mas já em 1954 a sua doutrina de retaliação maciça fora abandonada, quando se constata que tanto o Oeste como o Leste possuem as suas bombas de hidrogénio. Por outro lado, a URSS dispunha já de uma esquadrilha de bombardeiros de longo alcance, aptos a transportar bombas H e, assim, pela primeira vez, os EUA sentiam-se vulneráveis a um ataque nuclear. É o início do chamado impasse nuclear ou equilíbrio do terror. Em 1957, dáse um passo em frente decisivo no rápido progresso tecnológico nuclear. As bombas de hidrogénio, de várias megatoneladas, podem ser já transportadas em mísseis balísticos intercontinentais (os ICBM). Na altura, ainda era praticamente impossível destrui-los em voo e, em resultado, o agressor nuclear teria de destruir todos os mísseis inimigos para evitar um golpe de represália. O conceito de “capacidade de primeiro golpe” entra em crise, pelo que se pode dizer que a aparição dos mísseis de longo alcance torna mais estável o equilíbrio do terror. A agressão passa a identificar-se com suicídio (feliz do canibal quando a pior vingança póstuma que tinha a esperar era a de uma mera indigestão). E, naturalmente, a existência dos ICBM vem exigir uma nova estratégia de guerra nuclear. Os planeadores militares, em qualquer dos lados, têm agora de reconhecer que o outro pode atacar primeiro. Para evitar tal ataque, é preciso assegurar a sobrevivência de uma proporção da sua própria força suficiente para lançar o ataque de represália. Mais, para que tal força seja efectiva como dissuasão de um primeiro ataque por parte do adversário, é necessário que a essa capacidade de sobrevivência seja patente aos olhos do outro lado. Em 1960, durante a campanha presidencial que levou Kennedy ao poder, o desnível em número de mísseis era apresentado pelo Partido Democrático como a questão de vida ou de morte para os EUA. Um cuidadoso programa de rearmamento é então prometido, a fim de afastar de vez a ameaça nuclear soviética e John Kennedy chama, em 1961, Robert McNamara para se ocupar a sério da questão. O inventário que este apresenta, em Novembro do mesmo ano, vem porém provar que tal desnível era meramente imaginário, uma simples isca para votos.

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Neste ano, a força nuclear dos EUA é composta por: 1700 bombardeiros intercontinentais (630 B-52, 55 B-58, 1015 B-47); várias dezenas de ICBM (McNamara não dá o número exacto para não desmentir o candidato); 80 mísseis Polaris em submarinos atómicos; 80 Thor e Júpiter (mísseis de alcance médio); 1000 caças supersónicos providos de ogivas de 1 megatonelada20 (isto é, com um poder explosivo equivalente a mil toneladas de TNT). Nessa mesma data, estimativas semi-oficiais provindas de Washington atribuem à URSS: 50 ICBM, 150 bombardeiros intercontinentais e 400 mísseis de alcance médio (capazes de atingir qualquer ponto na Europa, mas não nos EUA). McNamara dizia que a URSS possuía um arsenal operacional de ICBM deveras reduzido, mas tinha a capacidade tecnológica e industrial para o alargar consideravelmente nos anos seguintes. Como não havia qualquer certeza quanto às intenções dos soviéticos (assim se justificava McNamara), os EUA tiveram de se assegurar contra a eventualidade de a URSS levar a efeito um programa de produção em massa e foi dada ordem para uma importante encomenda de mísseis norte-americanos Minuteman e Polaris. É o que se pode chamar, já que estamos com a mão nos conceitos, a paranóia do estratego militar: não saber distinguir entre possível e provável. (É, por exemplo, possível que a minha sogra me queira envenenar, mas se passo a viver na expectativa permanente desse facto “possível” – embora, normalmente, não provável – estou a enveredar pelo caminho da psicopatologia... e a envenenar a minha existência). Do que ficou dito, constata-se a existência de, pelo menos, dois sistemas opostos de teoria militar nuclear: mínimo de dissuasão ou capacidade máxima de destruição. A estratégia de mínimo de dissuasão baseia-se na convicção de que nenhuma das potências nucleares pode utilizar a sua força destrutiva sem pôr em risco a sua própria existência, na medida em que nenhum dos lados pode esperar destruir completamente o sistema nuclear do outro. Esta política militar concretiza-se pela posse de força nuclear suficiente para um ataque de represália às cidades inimigas, mas insuficiente porém para anular inteiramente (num ataque preventivo) o sistema de transporte nuclear do adversário. Para levar a cabo esta política de dissuasão mínima, basta um número reduzido de veículos de ogivas; efectivamente, uma só bomba de hidrogénio lançada contra uma grande cidade matará milhões de pessoas.

Em 1962, as reservas americanas correspondiam a 30 000 megatoneladas. Cada megatonelada é também chamada, em calão militar, 50 Hiroshimas. Recorde-se que, em Hiroshima houve 100 000 mortos e que o total de explosivos utilizados em todas as guerras até 1964 foi de 10 megatoneladas. 20

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Por outro lado, este pequeno sistema tem de ser extremamente invulnerável para não tentar o inimigo a provocar um ataque preventivo que o anule. O segredo da sua localização é essencial à eficiência de todo o sistema. A segunda alternativa é a da capacidade máxima de destruição. Baseia-se no facto de a balança do terror não ser estável, nem sequer perante actos racionais de governos responsáveis. Desde que um governo esteja firmemente convencido de que adquiriu uma plena capacidade de primeiro golpe (destruindo num ataque surpresa a possibilidade de qualquer represália), o mais “racional” é efectivá-lo imediatamente contra o rival: o agressor, sem sofrer uma beliscadura, terá o inimigo à sua mercê, como quando o “cowboy”, com um tiro na mão do bandido, o consegue desarmar. Continuando com a analogia, suponhamos que o bandido, que é pior atirador que o “herói”, se vê forçado a servir-se da “rapariga” como escudo, ameaçando matá-la se o “cowboy” atirar. No caso de uma estratégia de dissuasão mínima contra uma estratégia de capacidade de destruição máxima, a “rapariga” é a população civil do país que adopta esta última teoria. Pode então suceder que o “cowboy” queira desarmar antes de mais o “bandido” para salvar a “rapariga”. Estamos perante um novo paradoxo do duelo atómico. O agressor vê como objectivos prioritários apenas as bases de mísseis, a destruição das quais lhe dará um controlo sobre o país em questão, mas aquele que pretender apenas defender-se, com um mínimo de armamento, tem de ameaçar directamente as populações civis e fazer o papel de “bandido”. Ora, o simples facto de possuir armamento nuclear dá a possibilidade a qualquer dos lados de optar por uma destas políticas e certamente ambas terão sido longamente discutidas, desde 1954, tanto em Moscovo como em Washington. Em Janeiro de 1960, declarara Krutshev o compromisso expresso da URSS de adoptar uma estratégia puramente de represália e afirmou então que a segunda força soviética (isto é, apta a sobreviver ao primeiro ataque) era suficientemente forte para varrer da face do globo o país ou países que atacassem a Pátria do Socialismo. Além de libertar recursos suplementares para o desenvolvimento económico, esta estratégia de mínimo de dissuasão, adoptada pelos soviéticos, evitou o maior perigo militar do momento, que era o de os EUA atacarem a URSS com o álibi de que esta se preparava para o fazer primeiro. Um certo equilíbrio fora então alcançado: o maior poder nuclear do Ocidente era contrabalançado pelo segredo geográfico das bases de mísseis na URSS. E Krutshev prometia uma redução de efectivos militares, que eram 5,8 milhões em 1958, para 2,4 milhões em 1961. A URSS precisava então de menos soldados, dado que a sua força de represália não assentava já num ataque terrestre contra a restante Europa e a diplomacia soviética ficava com maior margem de manobra para tentar uma aproximação com a Europa ocidental. Paradoxalmente, a ameaça directa de liquidar alguns

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milhões de citadinos nas maiores cidades do Ocidente permitia um progresso na direcção da coexistência pacífica. Contudo, 1961 é o ano do início do Grande Rearmamento para ambas as partes. Na URSS, a anunciada redução de efectivos é anulada, o orçamento militar é consideravelmente aumentado, reforçam-se as pressões sobre o estatuto de Berlim e sobre o reconhecimento das duas Alemanhas, enquanto recomeçam, no Outono, com grande intensidade, as experiências nucleares. Porquê? Os voos de reconhecimento dos aviões norte-americanos U-2 sobre território soviético tiveram uma importância decisiva nas atitudes dos chefes militares do Kremlin. Apesar da superioridade quantitativa das forças nucleares americanas, um factor vital que tornava demasiado arriscado um primeiro ataque dos EUA contra a URSS era o segredo absoluto quanto à localização das bases nucleares soviéticas (donde partiriam as represálias). Ora, um dos objectivos primordiais dos voos U-2 era precisamente o de localizar essas bases escondidas algures na Sibéria. Quando o primeiro U-2 foi abatido, na Primavera de 1960, os chefes soviéticos souberam que muitos outros voos o teriam precedido e que o segredo da localização já não era uma certeza. Para agravar as coisas, Eisenhower justificava esses voos como sendo essenciais à segurança dos EUA, o que implicava que a segurança dos EUA só podia ser assegurada se fossem capazes de impedir a URSS de exercer represálias; isso, na mente dos dirigentes soviéticos, traduziase na crença de que os EUA se preparavam activamente para lançar um primeiro ataque nuclear preventivo. Correspondendo às crises de Cuba e de Berlim, recomeçaram em Setembro de 1961 as experiências nucleares soviéticas, com ogivas de 60 megatoneladas. Já então o pessoal superior soviético começava a duvidar se seria adequada a sua posição de represália mínima perante a posição de destruição máxima aplicada pelos EUA. As possibilidades de espionagem, de deserções ou as grandes promessas no campo das telecomunicações dos recém-criados satélites aumentavam seriamente a vulnerabilidade do segredo das bases soviéticas de lançamento de mísseis. Pela mesma altura, ocorre o Grande Rearmamento norte-americano impulsionado pelos Democratas. Referindo-se a esta decisão, dizia McNamara em 1967: “O facto é que, se tivéssemos tido informações correctas sobre os planos dos estrategos soviéticos, não teria sido necessário construir um arsenal tão vasto como o que hoje possuímos. A decisão de 1961 não era injustificada na altura, mas simplesmente exigida pela falta de informação relevante... Nos anos mais recentes, os soviéticos aumentaram substancialmente as suas armas ofensivas. Os seus planeadores terão certamente pensado que, se a nossa própria produção continuasse ao mesmo ritmo acelerado, atingiríamos em dada altura uma muito credível capacidade de primeiro golpe contra a URSS. Essa não era, porém, a nossa intenção,

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mas sim a de assegurarmos que eles não iriam distanciar-nos. Mas claro que eles não podem ler o nosso pensamento, como nós não podemos ler os pensamentos deles. E o resultado foi que ambos construímos as nossas forças a um ponto tal que excede em muito o nível de uma capacidade de segundo golpe credível. Mas, apesar disso, ou por cause disso, nenhum de nós conseguiu adquirir uma capacidade de primeiro golpe contra o outro”. De facto, tanto a URSS como os EUA podem agora – em menos de 1 hora – provocar um ao outro mais de 120 milhões de mortos e a destruição de mais de 75% da capacidade produtiva, independentemente de quem atacar primeiro. Quer isto dizer que o conceito de “destruição assegurada21”, que não podia ainda ser aceite até meados dos anos 50 (dado o carácter aleatório do bombardeamento por avião) passou a ser um factor omnipresente em todas as construções estratégicas actuais. Com o desenvolvimento dos mísseis balísticos intercontinentais, não há dúvida que a URSS e os EUA atingiram uma capacidade de destruição assegurada mútua. Em 1967, portanto, um novo equilíbrio se estabelecia no duelo atómico, o que McNamara reconhecia: “Ambos construímos uma capacidade de segundo golpe a tal ponto forte que a capacidade de primeiro golpe para qualquer dos lados se tornou irrealizável. Nem os EUA nem a URSS poderão atacar o outro sem serem destruídos em represália. Tal situação fornece-nos a ambos o mais forte motivo possível para evitar a guerra nuclear”. São três as possíveis ameaças à “reconfortante” situação de “destruição mútua assegurada” existente em 1967: (1) a transição de um mundo bipolar, em que só os EUA e a URSS possuem um poder nuclear relevante, para um mundo multipolar; (2) um sistema efectivo de contra-força, isto é, um sistema que possibilite aos EUA ou à URSS liquidar num primeiro ataque as forças nucleares do outro, antes que ele as possa utilizar em represália; (3) uma efectiva defesa contra mísseis balísticos. Quanto à multipolaridade atómica, um dos objectivos das experiências subterrâneas efectuadas desde 1963 é desenvolver uma bomba de pura fusão, a “bomba neutrónica”. Teoricamente possível (as estrelas são sistemas de pura fusão, isto é, de transformação de hidrogénio em hélio), a sua realização tem-se mostrado de uma dificuldade extrema. Muito recentemente (Janeiro de 1970), tal possibilidade técnica foi revelada: o “laser químico” poria a bomba termonuclear ao alcance de todas as bolsas, a democratização da bomba H seria uma realidade. Para provocar o encadeamento das reacções de fusão não controladas que se desenvolvem numa bomba termonuclear, usa-se normalmente, Refere-se à capacidade de calcular de forma bastante rigorosa o número de vítimas e de danos materiais resultantes de um ataque nuclear, passando assim a “destruição assegurada” a figurar entre os factores determinantes da estratégia militar. 21

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como “fósforo”, uma bomba atómica clássica, cujo papel é de provocar uma fortíssima e rápida subida de temperatura, que provoca o arranque dos fenómenos de fusão. Ora, através do laser químico de grande potência, afigura-se possível provocar a emissão de neutrões de fusão. A partir desse momento, a bomba de hidrogénio, de potência ilimitada, está ao alcance de quase todos os Estados do mundo. A proliferação das potências nucleares poderá ser tal que nenhum cálculo fará sentido. Uma das condições chave para o jogo subtil da dissuasão, para o equilíbrio do terror, é a identificação imediata do agressor. Por outro lado, uma das ameaças para anular a capacidade de destruição assegurada, na posse do adversário, será a de construir uma capacidade efectiva de primeiro golpe, através de uma colossal força operacional de mísseis, cada um dos quais capaz de atacar diferentes objectivos, graças ao uso de ogivas múltiplas (MIRV, multiple independently targetable reentry vehicles). O presente projecto americano de equipar os mísseis Minuteman II e Poseidon com MIRV aumentará prodigiosamente as reservas de ogivas nos EUA, em 1975, que passarão assim para uma potência total de cerca de 10 000 megatoneladas (segundo McNamara, 400 Mtons eram já o bastante para destruir ¾ da indústria soviética e 1/3 da sua população). A defesa é também um dos factores de instabilidade na presente situação nuclear. Dado que o equilíbrio assenta na capacidade mútua de destruição, a possibilidade por uma das partes de desenvolver uma perfeita defesa antimísseis anularia completamente a força de dissuasão do adversário, expondo-o a um primeiro ataque contra o qual não poderia ripostar e ficando assim, em termos politico-militares, sob o controlo do inimigo. A única razão lógica para a construção de uma gigantesca força de destruição ser ia, pois, o outro lado estar prestes a adquirir uma protecção efectiva das suas cidades através de um sistema ABM (anti-ballistic missile). É este o argumento de que se serve o Pentágono para exigir os seus MIRV. De facto, a defesa contra um ataque termonuclear é praticamente impossível. A ofensiva pode preparar-se em poucos dias; a defesa tem de estar a postos dia e noite, permanentemente pronta a atirar. O atacante pode escolher os seus alvos; a defesa tem de tentar proteger todos os objectivos possíveis. O sistema “ligeiro” ABM foi apresentado em 1967 por McNamara à imprensa nos seguintes termos: “Todos os sistemas ABM até agora possíveis consistem em mísseis defensivos lançados contra ogivas ofensivas com o intuito de as destruir. Mas o que muitos comentadores esquecem é que tal sistema pode, mais que obviamente, ser derrotado por um inimigo que envie simplesmente ogivas em número superior ao dos mísseis defensivos.

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É este o ponto crucial do fenómeno de acção-reacção nuclear. Se desenvolvermos um pesado sistema ABM no nosso país, os soviéticos seriam fortemente tentados a aumentar a sua capacidade ofensiva, de tal modo que a nossa actual vantagem defensiva seria neutralizada. Decidimos, portanto, levar para diante o projecto de um sistema ABM limitado e exclusivamente orientado contra a recém-chegada capacidade nuclear chinesa”. O que há a reter, como uma das conclusões deste duelo atómico, é o facto de o poder militar dos EUA ter aumentado fulgurantemente desde a 2ª Guerra Mundial e, ao mesmo tempo, a segurança do pais ter diminuído na mesma proporção. Para já, foram recentemente publicadas nos EUA estimativas que garantem entre 25 e 50 milhões de mortos norte-americanos, se os americanos dispararem primeiro, contra 105 a 110 milhões, no caso de ser a URSS a lançar o primeiro ataque. Salvar cerca de 100 milhões de americanos graças a um ataque preventivo pode vir a ser o programa “humanitário” de um futuro dirigente americano. Onde encontrar uma racionalidade definitiva para decisões estratégicas neste duelo atómico? Os estadistas, nas sociedades modernas, estão preocupados sobretudo com conflitos de poder, quer nas questões militares, como nos negócios ou nas transacções políticas. A teoria dos jogos22 apresenta-se como uma ciência do conflito e daí que muitos políticos e estrategos militares se lançassem a este novo gadget como gato a bofe, na esperança de aí encontrar um critério absoluto de “racionalidade” que legitimasse as suas decisões e solucionasse os inúmeros paradoxos. O maior dos seus problemas, pelo menos no que respeita às potências nucleares, é o de traduzir em controlo efectivo o poder de destruição quase ilimitado que lhes é dado pelas reservas em ogivas termonucleares. A primeira reserva, porém, é que a teoria dos jogos não se ocupa da estratégia óptima para qualquer situação particular de conflito, mas sim de definir a lógica do conflito, isto é, a teoria da estratégia. Daí as forças e as fraquezas da teoria dos jogos: a força provém do poderoso e intrincado dispositivo matemático utilizável na análise estratégica de certos tipos de conflito; as fraquezas são inerentes às restrições quanto ao tipo de conflito a que tal análise se pode aplicar com êxito. A teoria dos jogos aplica-se a conflitos em que o intelecto desempenha um papel essencial, em que há que considerar a soma total das alternativas, em que se incluem portanto as escolhas feitas pelo adversário ou pelo menos que se encontram à sua disposição. Foi em 1944 que John von Neumann e Oskar Morgenstern publicaram a famosa Theory of Games and Economic Behavior, uma nova perspectiva no campo da análise de decisão que abriu realmente um novo campo de decisão mas não exactamente como os políticos esperavam. 22

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A situação no póquer é bem característica do jogo; aparece, porém, neste caso um jogador invisível, a Sorte, cujas escolhas se encontram algures dentro dos 1068 arranjos possíveis no início de cada partida. Aqui, o jogador racional é normalmente vítima de desastre, decide estritamente em função dos trunfos que tem na mão, nunca recorre ao bluff e aposta sempre na proporção das suas expectativas de ganho. Deste modo, se desmascara perante os adversários, que passarão a utilizar tal informação contra ele. Já o jogo do xadrez é um algoritmo23: tecnicamente, a solução existe e ganhará sempre quem começa (como nas damas). O jogo estratégico militar estará até mais perto do póquer do que do xadrez, dado que este é um jogo de informação perfeita, não há segredos e tudo está em cima da mesa às claras. Já o póquer não é um jogo de informação perfeita, pois nenhum jogador está ao corrente da situação completa. Por outro lado, ambos são jogos de soma-zero: aquilo que um jogador ganha o outro ou os outros perdem necessariamente. Mas nem todos os jogos são deste género e um erro fundamental que conduz a caminhos sem saída, é encarar como jogos de soma-zero situações que trariam vantagens a todos os protagonistas se fossem operacionalizadas como jogos de soma-um. Para ilustrar, de forma pitoresca, as desvantagens trágicas de ignorar que não se devem jogar todos os jogos como sendo de soma-zero, Rapoport cita o drama da Tosca de Puccini. Segundo o libreto, o chefe de polícia, Scarpia, condenou à morte Cavaradossi, amante de Tosca, mas está disposto a libertá-lo em troca dos favores dela. Tosca consente, em princípio, e o acordo faz-se na base de uma pretensa execução, com cartuchos secos. Ora acontece que cada um procura enganar o outro e o resultado final é que Tosca apunhala Scarpia enquanto o pobre Cavaradossi recebe balas muito a sério que o mandam para o outro mundo. Tanto Tosca como Scarpia procuraram obter o proveito máximo e que o adversário tivesse o prejuízo máximo: Tosca pretendia não se submeter ao chefe da polícia, ver-se livre dele e salvar o seu amante; Scarpia queria possuir Tosca e fuzilar mesmo o rebelde e rival Cavaradossi. Dado que ambos faltam à promessa feita, ambos perdem, mas não tanto quanto teria perdido um deles se fosse o único a cumprir o prometido. Por outro lado, se ambos tivessem cumprido, ambos teriam ganho, mas não tanto quanto um ganharia, se fosse o único a enganar o outro. Se ambos tivessem acreditado um no outro, ambos teriam ganho algo. O jogo não era, portanto, de soma-zero, mas foi jogado como se o fosse. Um algoritmo é constituído pela descrição precisa dos processos de cálculo com o fim de encontrar as soluções de um dado problema. Na prática, porém, dado o número astronómico de possibilidades de lances, está fora de questão prever todas as alternativas até ao fim. H.A. Simon e Allen Newell, do Instituto de Tecnologia de Carnegie, fizeram em 1959 a previsão de que antes de 1970 o campeão mundial de xadrez seria um computador electrónico e enganaram-se rotundamente. 23

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Os neo-clausewitzianos consideram, com efeito, qualquer luta pelo poder e controlo, incluindo o duelo atómico, como jogo de soma-zero, e daí os paradoxos e os impasses que ocorrem. Por outro lado, a teoria dos jogos também nos revela que a racionalidade em situações de conflito não leva necessariamente à melhor solução, nem sequer por vezes a uma solução. É o que nos mostra o exemplo seguinte – da coligação. António, Bento e Carlos pretendem dividir entre si 100 escudos: a decisão sobre a forma de proceder à divisão tem de resultar de um voto maioritário e é permitido fazer alianças. A e B coligam-se então para votar que C seja excluído da partilha. Nesse momento, C contacta B e oferece-lhe 60% para que votem conjuntamente a exclusão de A (é melhor 40 escudos que nada). Mas A vem oferecer 70 escudos para fazer uma coligação com B ou com C e excluir o terceiro… Tanto o jogo Tosca versus Scarpia como o jogo da divisão dos 100 escudos revelam que, em certas ocasiões, as decisões baseadas no proveito pessoal máximo conduzem ao desastre ou não levam a lado nenhum. Há que encarar a possibilidade de os mais importantes conflitos que afectam a espécie humana não serem jogos de soma-zero mas entrarem na categoria dos dramas. E, nestes casos, não há argumento racional que possa ser dirigido a um ou a outro dos adversários. Só um argumento dirigido a todos e ao mesmo tempo (um imperativo moral?) pode ter a sua força. Só uma racionalidade colectiva, só uma regra social pré-existente poderia travar a ratoeira das aldrabices recíprocas e convencer A, B e C a guardarem cada um 33 escudos e oferecerem 1 escudo para o Natal do Soldado ou então prepararem uma refeição em conjunto com esse dinheiro ou qualquer outra solução que não seja a da busca do maior lucro individual possível, o que impossibilita justamente o encontrar uma solução. A teoria dos jogos tem a vantagem de mostrar como uma análise de “cabeça dura” dos conflitos conduz a becos sem saída, cujas conclusões paradoxais não podem ser evitadas, a menos que a situação seja reformulada num outro contexto e amenos que outros conceitos (exteriores à teoria) sejam invocados. O conhecimento da teoria dos jogos deveria pois revelar que o jogo do póquer não é o mais geral nem o mais sofisticado dos modelos de conflito, contrariamente ao que pretendem os estrategos profissionais da actualidade. Para Clausewitz, não havia situações de jogo que não fossem de soma-zero. A definição que dá de guerra é clara e exclusivamente a de um jogo deste tipo: “O que quer que seja que dê vantagem a um lado é feito em desvantagem do outro”. Contra os neo-clausewitzianos, estão os que não aceitam a situação internacional como um combate pelo poder, que rejeitam portanto o carácter de soma-zero do jogo internacional e que apelam para formas de cooperação a nível mundial em que ambas as superpotências se empenhariam em prosseguir resultados

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