Memórias de um Obscuro Sargento

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Figueiredo Luiz

Memórias de um Obscuro Sargento

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SOBRE O AUTOR

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Figueiredo Luiz nasceu em 1958, tendo exercido diversas actividades durante a sua adolescência e frequentado o curso de direito acabou no entanto por enveredar pela carreira de armas após a sua incorporação no corpo de tropas paraquedistas em 1979. A presente obra foi escrita após a sua passagem à reserva e reflecte a experiência e diversas situações vividas pelo autor durante mais de vinte anos ao serviço da instituição militar. www.sitiodolivro.com

Memórias de um Obscuro Sargento Figueiredo Luiz

SOBRE A OBRA Esta obra baseia-se em factos e personagens reais. A par de algumas virtudes e valores castrenses e inerentes à instituição militar e enaltecidas no seu contexto, revela tambem situações de prepotência, excessos e injustiças que o autor descreve ao longo de uma sucessão de episódios em que a seriedade e o burlesco se combinam.



MEMÓRIAS DE UM OBSCURO SARGENTO

Figueiredo Luiz


Edição: Edições Ex-Libris® (chancela Sítio do Livro) Título: Memórias de um obscuro Sargento Autor: Figueiredo Luiz

Paginação: Paula Martins Capa: Ângela Espinha 1.ª edição Lisboa, Janeiro de 2018 ISBN: 978-989-8867-14-8 Depósito legal: 433383/17 © Figueiredo Luiz PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

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Dedico esta obra à minha família e aos seguintes senhores que muito me apoiaram e estimularam ao longo da minha carreira: Sr. Coronel Dinis Sebastião; Sr. Coronel Saramago Pinto e Sr. Capitão Candeias.



Índice PREFÁCIO......................................................................................................................... 9 O BAPTISMO................................................................................................................ 11 FINALMENTE O ALVEJADO TROFÉU.................................................................... 23 “BEM VINDO À TROPA FANDANGA”................................................................... 55 ESCOLA PRÁTICA DE INFANTARIA OU O CLAUSTRO E OFICINA DOS INFANTES............................................................................................................... 79 O INÍCIO DA CARREIRA OU DA RODAGEM...................................................... 95 REGRESSO À ESCOLA DOS INFANTES.............................................................. 103 “OS SAUDOSOS ORIONS“..................................................................................... 117 O CURSO DE COMANDOS.................................................................................... 127 O BATALHÃO DE SERVIÇO DE TRANSPORTES OU O BATALHÃO DA SANTA TROPA.................................................................................................... 141 A CARREIRA DE TIRO PENITÊNCIA DOS INDISCIPLINADOS E INDESEJÁVEIS.................................................................................................. 169 OS SARGENTOS DA PEDRA OU OS ORIUNDOS DE UM CURSO FANTOCHE.......................................................................................................... 205 “AS MULHERES NA INSTITUIÇÃO MILITAR“................................................... 213 O EMGFA MORADA DOS DEUSES DA TROPA................................................ 221 SOB AS ORDENS DE UM OFICIAL DE ABRIL................................................... 231 A PREPOTÊNCIA PERSONIFICADA OU A LINGUAGEM DOS GALÕES.. 241 OS ANOS DERRADEIROS OU OS ÚLTIMOS FRAGMENTOS DE UMA CARREIRA............................................................................................................ 249 “CPAE A ÚLTIMA COLOCAÇÃO NO ACTIVO”.................................................. 269 EPÍLOGO...................................................................................................................... 281



PREFÁCIO Nesta obra auto biográfica, que decorre num período entre os primeiros anos a seguir à revolução de Abril e os alvores deste século, tentei descrever de forma simples objectiva e satírica as minhas experiências vivências e vicissitudes nos meios castrenses sobrevalorizados por uns, para outros não levados muito a sério e, para alguns um desperdício senão mesmo um dispêndio inútil no orçamento. Alguns valores e ideias bem como certos tipos de postura e conduta na Instituição Militar são o reflexo das diferentes interpretações de que, o regulamento e legislação Militar são alvos. Uma questão que surge com frequência. Serão realmente as promoções sempre apanágio de empenhamento, capacidades, e dedicação? Ou por vezes o resultado da maior subserviência e sabujice? Tentei também denunciar o lixo, a decadência e a falta de ética que por vezes toda a pompa, circunstância e aparato ocultam bem atrás dos bastidores. Quadro esse mais evidente e veemente no Exército o ramo maior e mais heterogéneo. Um dia certo Oficial perguntou-me ironicamente se eu me julgava um iluminado. Respondi-lhe que jamais me encarara a mim próprio sob essa óptica e perspectiva e, que apenas pretendia preservar a minha identidade e ser tratado com o mínimo de respeito e dignidade. Não desejava de forma alguma transformar-me num robot ou máquina cega pelos regulamentos. Jamais me esqueço das palavras de um veterano ao dizer com toda a sabedoria que, os regulamentos foram instituídos para os inteligentes compreenderem e os ignorantes ou tolos cumprirem a rigor.

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O BAPTISMO Manhã fria num remoto mês de Janeiro, eis-me transportado numa viatura militar em direcção a Tancos. Não estava só mas sim na companhia de uma vintena de rapazes ainda adolescentes que como eu sonhavam vir a pertencer a uma tropa de elite. Mergulhados num misto de curiosidade, ansiedade, entusiasmo associados a uma certa angústia pelo desconhecido. Decorrida uma meia hora depara-se subitamente e perante os nossos olhos maravilhados, a porta de armas que no seu brasão em letras bem grandes e legíveis anunciava a entrada da Base Escola das Tropas Paraquedistas. Os primeiros passos de um mundo bem diferente da vida civil a que todos estávamos habituados. Os contactos iniciais com certos pormenores e valores tais como a disciplina, o aprumo, a austeridade, a energia, a camaradagem castrense. Bem como a carranca de aço com que alguns militares nos observavam. Outros lançavam-nos um olhar num misto de ironia e condescendência. Quanto a nós, a par de um certo pesar e nostalgia pelos parentes, amigos e namoradas de quem nos havíamos despedido na véspera, éramos contudo invadidos pelo orgulho e vaidade de sermos acolhidos numa casa de semi Deuses. Ainda não Paraquedistas mas já envoltos na mesma casta e mito. O sonho começava a transformar-se em realidade. Devíamos assemelhar-nos àqueles recrutas com ar temeroso no filme “ Os rapazes da Companhia C “ no instante em que á chegada do quartel se apeiam do autocarro com as suas malas, antes da revista inicial efectuada pelo Sargento-ajudante durão e desdenhoso. No momento em que somos conduzidos com a nossa bagagem pessoal e integrados no que se poderia designar pelo esboço de uma formatura, cruza-se connosco um pelotão constituído por militares bem uniformizados e perfilados em marcha lenta precedidos pela banda militar da Unidade que entoava o hino dos Boinas Verdes. George Blonde escreveu num dos seus livros, que a música militar é uma droga que impede de reflectir. É distribuída às mãos cheias, destinada a submergir todas as razões. Se alguns já perguntavam a si próprios em que — 11 —


loucuras se tinham metido, esta música soava-lhes como uma martelada na vontade. As canseiras, as marchas fatigantes, o desconforto físico e psicológico, o respeito exacerbado pelos superiores, o quotidiano revestido em moldes espartanos, nada importava. Sobrepunham-se o orgulho e a honra de mais tarde envergar uma boina verde (Autêntico troféu). A alegria e presunção de pertencer à família Paraquedista. Um dos instrumentos mais eficazes da guerra colonial. Esses momentos que para nós recrutas nos pareceram séculos, são preenchidos por uma rotina de mil rituais, formalidades e exercícios num ritmo avassalador e que convém assimilar rapidamente. Saber conhecer e distinguir os postos hierárquicos, prestar a saudação ou continência a cinco metros de distância com o braço bem erguido (à boa moda nazi e ai do desgraçado que o esqueça), saber fazer a cama a branco, os movimentos de ordem unida, sobretudo aprender a marchar tal como determina o regulamento dos Páras. (o famoso passo de ganso) a barba sem a sombra de um pelo à vista. O atavio esmerado e a rigor, a limpeza dos quartos, saber o significado da execução das famosas completas. Séries de exercícios desgastantes exercidos inúmeras vezes durante o dia sob qualquer pretexto ou motivo. Qualquer graduado ou oficial quer seja instrutor ou não, impõe a quantidade de execuções e séries ao seu livre arbítrio e gosto à mínima hesitação por parte do recruta ou subordinado, a série aumenta para o dobro. Os exercícios sucedem-se cada vez mais intensivos. A deslocação para qualquer aula ou refeitório é sempre em passo de corrida ou marcha de ganso. O hino dos boinas verdes ou do” paraquedista que anda em terra” depressa são aprendidos e decorados. Decorridas as duas primeiras semanas de inferno, recebemos finalmente autorização para uma licença de dois dias durante o fim de semana, o que nos pareceu uma bênção e nos soube que nem ginja como é vulgo dizer-se. Mas antes é necessário ficar aprovado na revista o atavio e limpeza dos quartos. Após uma manhã atribulada de muito suor numa corrida de cinco quilómetros seguida de um percurso rastejante ao longo de um ribeiro cheio de lama, e águas estagnadas e geladas, regressamos sempre em passo de corrida às casernas, recebemos ordens para em dez minutos nos lavarmos e vestirmos o uniforme azul de saída. Alguns para disporem de tempo preferem pura e simplesmente com o uniforme camu— 12 —


flado meterem-se debaixo do chuveiro, e só depois vestirem o outro. É mais rápido e prático. Importa acima de tudo não chegar atrasado à formatura para o almoço, senão lá se vai o tão almejado e ansiado fim de semana. E é preciso não esquecer a limpeza de armamento, proporcionar brilho aos botões da jaqueta e deixar as botas engraxadas e luzidias como um espelho. Os compartimentos da caserna na respectiva companhia já estão limpos e encerados desde a noite de véspera. A inspecção é efectuada pelo comandante de companhia o Tenente Eurico dos Santos (um homenzinho baixo entroncado de olhar austero e expressão carrancuda com cerca de quarenta anos). Ele passa diante de nós e fita-nos a cada um com olhar perscrutador. O visado coloca - se imediatamente em sentido, após levantar bem os braços e distende-los com um ruído enérgico e vibrante. Bem esticados, mãos abertas lateralmente junto ás coxas. O recruta é invadido por um nervosismo intenso, o corpo contraído, expressão crispada, seguindo-se um súbito alivio quando o Tenente passa adiante observando o camarada ao lado sempre com a mesma expressão séria e hostil. O ritual repete-se. A um deles morto de medo, o Tenente Eurico adverte num tom ríspido que as mãos em sentido não se colocam atrás do cú mas sim ao lado das pernas. Finda a revista, o senhor Tenente de frente para a companhia, sempre mal encarado com o seu bigode encarniçado profere ainda algumas palavras com o seu vozeirão: — Meus senhores estou muito descontente convosco. Foi uma semana de constantes faltas e asneiras. Alguns indivíduos esquecem-se que as botas atrás também são botas e, como tal também têm de ser engraxadas atrás. Os botões da s vossas jaquetas necessitam mais brilho. Muitos chegaram atrasados às formaturas, outros mal barbeados. Estado de limpeza das casernas deplorável, camas mal compostas, muitos não respeitaram o silêncio após o toque de recolher etc. Após um rosário de críticas e acusações com os olhos fulminantes lança-nos um olhar carregado de desdém e superioridade, terminando a sua alocução, acrescentando que por terem sido as primeiras duas semanas de tropa, ele irá condescender. Mas a partir da semana seguinte terminam as concessões e quem prevaricar ficará de castigo no quartel durante o fim de semana seguinte, ocupado em serviços de faxinas. Por fim o grande homem deseja-nos um bom fim de — 13 —


semana mas adverte que todos imperecivelmente terão de se apresentar na unidade o mais tardar às 01h00 de segunda feira. E, atenção à nossa conduta durante o fim de semana. À ordem de destroçar, para grande alegria nossa, somos seguidamente encaminhados e já de bagagem na mão em filas para os camiões “Berliets”, sob o comando de Cabos e Furriéis. Vinte minutos depois nem queremos acreditar, estamos fora daquela espécie de presidio, daquele inferno ainda que, somente por um breve fim de semana. Mas o suficiente para sermos bafejados pela atmosfera civil, reencontrar os amigos, estar junto da família da namorada. Não cabemos em nós de satisfação durante o trajecto relativamente do comboio. Quantas histórias e episódios a contar. Quantas emoções a partilhar. O camarada que trocou o passo em ordem unida, o Sargento que acordou todos a meio da noite e os obrigou a formar na parada, o Furriel que mandou executar uma completa de cinquenta por não se terem levantado e prestar-lhe a continência, o Aspirante que só concedeu cinco minutos para o pelotão inteiro mudar de uniforme após terem chegado encharcados do ribeiro de água fétida onde haviam rastejado etc. Ainda estamos muito longe de ostentar a gloriosa boina verde. Por ora apenas no uniforme regulamentar e azul da Força Aérea de saída o crachá fixado ao peito com a transcrição” instrução dura combate fácil” que nos distingue dos outros militares da Força Aérea. De certa forma constituíamos um grupo homogéneo. Cabelo cortado muito rente máquina dois, uniforme bem aprumado, algo já havia mudado em nós. A par de um ar mais sério e fatigado, um subtil sentimento de vaidade e orgulho. Uma maior responsabilidade e determinação já começam a apoderar-se de nós. Ainda não somos Paraquedistas mas olhamos para os outros militares do Exército (os arre macho como são designados pelos Paras) e das outras especialidades da Força Aérea (os bicos) com altivez e superioridade. Os leitores que serviram nestes ramos não se sintam ofendidos. Tratam-se de tradicionalismos. Até porque anos depois vim também a pertencer ao Exército regular por razões explicadas mais adiante. De momento limito-me a exteriorizar a doutrina com que eramos embebidos. O culto do Pára - quedista comportava um sentimento generalizado. No mesmo nível que nós, com o mesmo valor e massa apenas aceitávamos os Fuzos. — 14 —


Os outros eram olhados de forma um tanto depreciativa incluindo os Comandos que embora merecessem estatuto de tropa especial, pertenciam ao vulgar Exército. Tratando-se se exageros ou presunção, a verdade é que éramos insuflados desta doutrina e antagonismo desde o primeiro dia que não significava que no Exército, Armada e Força Aérea não existissem bons militares, competentes dedicados ao serviço e com bastante perfil. Devo acrescentar no entanto, que por ser oriundo dos Páras, mais tarde viria a tornar-me alvo de discriminações, despeito e críticas por parte de alguns camaradas e superiores hierárquicos no Exército. É a chamada justiça poética e ironia do destino. Mas lá chegaremos num capítulo mais adiante. Na casa mãe em Tancos, no berço das tropas Paraquedistas as semanas alucinantes e bastante preenchidas iam-se sucedendo. Decorrido um mês e meio já constituíamos um pelotão mais sólido e uníssono. Começávamos também a sentirmo-nos mais adaptados àquela rotina e ritmo intensivos. Desde a alvorada até ao recolher. Frequentemente éramos brindados com instruções nocturnas. As corridas loucas de botas com o pesado camuflado e por vezes as mochilas atafulhadas de pedras. Regressávamos afogueados em suor. Dez minutos de intervalo e passávamos à instrução seguinte. Saber marchar sem trocar o passo, bem perfilados, perna esticada bem levantada sem dobrar pelo joelhão famosa marcha de ganso, em Portugal somente adoptada pelos Paras e que, provavelmente teve origem nas célebres e famigeradas SS de Adolph Hitler. Uma marcha vigorosa, viril e elegante. Mas quantas dores cansaço e suor para conseguir executá-la! Quantas horas de treino e ensaio! Também executávamos completas de dez, vinte, trinta, quantas o oficial ou graduado entendesse por tudo e por nada. Ao menor pretexto, erro ou incumprimento o recruta executava uma completa que, consistia numa série de exercícios compostos por uma sequencia de flexões de braços, saltos de canguru e pulos de galo. As séries nunca inferiores a dez repetições. Basta o recruta não integrado na formatura cruzar-se com um superior sem lhe prestar a continência à distância regulamentar de cinco metros. Desgraçado dele. Tínhamos treino de destreza e combatividade (em que valia tudo menos tirar olhos), pistas de obstáculos em que se evidenciava a famosa pista ver— 15 —


melha. Nesta pista de cerca de vinte obstáculos alguns de sério risco, foram vários os recrutas que ficaram gravemente lesionados. Tínhamos também entre outras aulas de armamento, socorrismo, explosivos e navegação terrestre. Recordo-me de alguns episódios pitorescos entre muitos. Certa noite durante uma instrução nocturna, o nosso pelotão saiu para o exterior a fim de efectuar um percurso de orientação com a bussola e cartas topográficas da zona. Foram constituídos grupos de quatro ou cinco elementos a quem foram distribuídas bussolas, cartas e indicados os respectivos azimutes. A finalidade destes percursos era preparar e familiarizar o militar no sentido de conseguir a pé alcançar lugares distantes mediante as coordenadas que lhe eram indicadas e naturalmente no menor tempo possível. No meu grupo também constava para minha alegria o grande amigo e camarada Reis, o melhor amigo que tive durante a minha permanência nos Paras. Nessa noite, por casualidade estávamos integrados no mesmo grupo. Os outros eram o careca, um rapaz de estatura baixa, cabelo rapado e teimoso como uma mula. Por último um moço franzino de uma fealdade inconcebivel, com um bigode maior que o seu rosto. Por esse motivo era apelidado de “bigodes“. Quanto a mim, pela minha robustez, força e por revelar uma certa impulsividade e descoordenação era conhecido durante a recruta pelo “ matacão “. Em suma um belo grupo. Os leitores que foram incorporados no mesmo turno e companhia certamente estarão recordados destas personagens com um sorriso divertido. É claro que, muitos dos nomes aqui mencionados são meros pseudónimos como é óbvio a fim de evitar ferir certas susceptibilidades. As personagens são porem autênticas e as situações reais. Seria impossível ou fastidioso referir todos os pormenores. Contudo em alguns casos, não vejo necessidade de alterar os nomes. Tenho consciência de não estar a cometer qualquer transgressão ou violação na dignidade e privacidade dessas personagens, cujo nome verdadeiro eu cito. Voltemos ao tal grupo original nessa noite inesquecível. Dir-se-ia que tínhamos sido escolhidos a dedo, pois éramos bastante novatos, uns verdadeiros nabos em topografia. A vontade e motivação para efectuarmos o percurso em passo acelerado ou de corrida também não eram muitas. Para quê apressarmo-nos? Perguntava o Reis sereno e tranquilo. Se for preciso, temos a noite toda. O careca, esse teimava que estávamos na direcção errada. O bigodes — 16 —


dizia o contrário. Que aquele era o azimute certo. Eu abstive-me de comentários, apenas sendo de opinião que devíamos ir em passo de corrida, pois caso não terminássemos a prova num determinado tempo limite, decerto seríamos castigados. No que tocava ao uso da bússola, naquela fase também podia considerar-me um aselha. Com todas estas discórdias e hesitações, tinham decorrido duas horas sem que, ainda tivéssemos alcançado a primeira estação das cinco a atingir. Estávamos pois bastante atrasados em relação aos outros grupos que já haviam alcançado pelo menos duas estações. O nosso grupo original deambulava à deriva, praticamente perdido no seio do bosque e na imensa escuridão quando subitamente fomos avistados pelos ocupantes de um jeep militar que subia por um atalho de terra batida e ladeado por pinheiros. Do jeep, saltou imponente o Tenente Serrano, o adjunto do comandante de companhia, e sendo também um oficial oriundo de Sargento. Mal humorado saltou do jeep e mandou-nos parar com o seu vozeirão, aproximou-se de nós e ficou surpreendido ao aperceber-se do nosso atraso em relação aos outros grupos e num tom alterado insiste para nos empenharmos mais e recuperar. Para nos estimular deu-nos uma dica acerca da localização do primeiro posto. Mas o casmurro e imprudente do careca, atreveu-se a discordar dele afirmando que o tal posto ficava noutra direcção contrária. O Tenente como reacção vibrou-lhe irado sobre a sua cabeça protegida pelo capacete um golpe com uma vara que trazia consigo e chamando-lhe asno em simultâneo. E o careca uma vez mais aprendeu que o silêncio é de ouro. Prosseguimos com o exercício caminhando em direcção ao tal posto, que foi o único que conseguimos alcançar naquela noite e, mesmo assim graças ao empurrãozinho do Tenente Serrano. Horas depois já todos tinham terminado o seu percurso excepto os quatro cromos. De novo por entre a escuridão surgiu o mesmo jeep. O Tenente Serrano mandou perfilar-nos, apontou-nos a lanterna e ao reconhecer o careca que se atrevera a contestá-lo (desafiando assim a cólera dos Deuses) convenceu-se num ápice que o insucesso do grupo se devia a ele, e sem mais percas de tempo ou diálogos brandiu várias vezes a lanterna sobre a cabeça do careca enquanto lhe chamava besta. Só então entrou irritado no jeep e nos mandou regressar ao local de partida, — 17 —


não sem avisar num tom da ameaça que no dia seguinte ajustaríamos contas. Lá regressámos constrangidos e envergonhados. O careca não recomposto do tratamento humilhante e desagradável a que fora submetido, rogava pragas, dizendo que lamentava no momento em que fora agredido, que não tivesse uma munição real no carregador da G3. Mais um episódio pitoresco entre outros. À medida que os treinos se tornavam cada vez mais intensivos, aumentava de semana para semana o número dos desistentes e eliminados por inaptidão, incapacidade física lesões ou excesso de faltas na instrução. Os doentinhos crónicos engrossavam de dia para dia o pelotão dos doentes inscritos para o médico da Unidade. Alguns deles apenas padeciam desse terrível mal que se chama ronha ou baldas. Recordo-me que eu próprio numa ocasião fui forçado a inscrever-me na consulta médica do dia. Pela simples razão de que, não suportava a camisola regulamentar de lã e de gola alta, que me causava uma terrível irritação na pele e desconforto. Logo no segundo dia de recruta pedira ao Aspirante do nosso pelotão permissão para prescindir dela. Mas o Aspirante Martins informou-me que tal não era possível. Somente com autorização médica. Felizmente para mim o Doutor mostrou-se compreensivo e flexível assim eu fui talvez dos poucos recrutas senão o único que, ao longo de toda a instrução em pleno Inverno andava sem camisola de lã. Apenas camisa interior sob o camuflado, nada mais. O que espantava a todos e a mim próprio. No que me dizia respeito era o facto de nunca ter sucumbido a uma gripe ou pior ainda, a uma pneumonia. A licença inicialmente teve uma duração de quinze dias. Quando da sua renovação defimitiva, ao regressarmos à companhia integrado no pelotão dos doentes e sob as ordens do graduado de dia, cruzámo-nos com um Sargento dos veteranos que perguntou ao graduado: — Que se passa com estes caramelos? Cada vez são em maior número os que vão ao médico! Alguma epidemia a espalhar-se pela Unidade? O Furriel riu-se encolhendo os ombros e abanando a cabeção Sargento ainda proferiu estas palavras desprezíveis: — Realmente com este espírito e falta de vontade não vamos longe. Voluntários do vosso calibre jamais deveriam pôr os pés nesta casa. Esses recrutas findas as dez faltas à instrução seguidas ou interpoladas, eram defimitivamente excluídos, tornando-se depois o alvo de chacota ou riso — 18 —


dos outros. Sentiriam na pele a desonra e humilhação de irem pertencer ao pelotão dos “bicos“. E iriam desempenhar tarefas degradantes tais como limpeza de retretes e faxinas. Um certo Capitão, que chefiava o posto médico e enfermaria ao ver aquelas caras já habituais na sua área perguntou com um ar depreciativo e reprovador a um recruta: -Você está doentinho? Qual o seu mal? Coitadinho. Na minha opinião é excesso de ronha. A sua cara de sorna não engana ninguém. Eu pessoalmente fiquei bastante feliz e aliviado, por me livrar da maldita camisola que me incomodava de verdade. O juramento de bandeira aproximava-se, e numa dessas sextas feiras antes da saída para o cobiçado e precioso fim de semana, o Tenente Eurico durante a revista inquisitorial do atavio perguntou indignado a um dos Aspirantes comandantes de pelotão, o nome de determinado recruta franzido constrangido e inibido que se encontra na sua frente. Após obter o nome diz vociferando: -Anote o nome deste bazaroco, pois da próxima vez que se atrever a integrar-se na formatura de botas mal engraxadas, ficará três fins de semana seguidos de castigo. Ele que vá gozar com a tia ou com quem quiser, mas nesta casa tem de mostrar-se digno de pertencer a ela. Após o solene juramento de bandeira, começa o curso de Paraquedismo. Agora é mesmo a doer. A hora da verdade. De manhã cedo até ao entardecer sempre extenuados, afogueados em suor. Somente na curta hora de almoço e a partir das dezoito horas dispúnhamos de tempo para descanso e alguma recuperação. Corridas eliminatórias de dez km desde o quartel até Benfica do Ribatejo próximo do castelo de Almourol onde também se efectuavam provas de rappel e slide. Essas corridas eram executadas com camuflado e bota. Treinos de pesos em circuito, a pista de cordas (composta por uma dúzia de obstáculos em cordas), sessões intermináveis de toros e calistenias em terreno arenoso e rochoso e, sob todo o tipo de condições meteorológicas. Frio, lama, chuva e calor. As célebres sessões de toros e calistenias em que sob as ordens de um Sargento instrutor executamos em terreno arenoso todo o tipo de exercícios exaustivos e dolorosos. Os graduados da companhia a controlar para ninguém se esquivar ou baldar. O Sargento berra sobre o pequeno estrado a cinco metros do solo e onde se encontra posicionado: um, dois, três, quatro. Um, dois, não ouço nada. um, dois parecem velhos. Um, dois, isto é que é bom. — 19 —


Nós repetimos a cantilena sempre em acção e movimento. Os Sargentos Paraquedistas, autênticas máquinas operacionais, incutiam um respeito temor e admiração fora do comum. Os recrutas eram tratados com grande rudeza por estes técnicos, estes treinadores e campeões de pedagogia militar. Autênticas cavilhas base do funcionamento do Corpo. A sua autoridade directa e sem réplica, encontrava uma realização perfeita na aplicação integral do regulamento. O instruendo era submetido a uma preparação física e psíquica bastante rigorosas. E também a uma formação moral que ia da engomadura bastante esmerada do uniforme, às tradições e à catequização histórica das façanhas dos Paraquedistas. Julgo importante referir que nessa época, os Sargentos de carreira nos Páras, na sua maior parte, permaneciam ligados à instrução até aos quarenta anos ou mais revelando sempre uma excelente forma física e psíquica. Ao contrário do que acontecia noutros ramos e tropas consideradas de elite com excepção talvez dos Fuzileiros. Nos três ramos poderiam haver Sargentos na instrução mas apenas no que dizia respeito a matérias técnicas e teóricas em que a componente física era irrelevante ou mesmo excluída. Menciono também um pormenor importante. Naquele tempo um candidato aos Páras tinha pela frente um longo caminho espinhoso a percorrer até ganhar a boina verde e considerar-se um verdadeiro pára quedista. Começando por uma selecção rígida e minuciosa que consistiam em dois dias de testes físicos, psicotécnicos e uma inspecção médica que nada descurava. De cerca de oitenta candidatos, no final de dois dias restavam cerca de quinze ou dezasseis. E mesmo desse número, alguns ao longo da recruta, curso de Paraquedismo e curso de combate decerto iriam desistir ou ser eliminados por incapacidade física ou inaptidão. O resultado era que segundo as estatísticas e em média em cem apenas oito ganhavam a boina verde e, aguentavam o que ainda estava para vir de pior. O tal curso de combate de que entrarei em pormenores mais adiante. Presentemente o panorama modificou-se bastante. Algumas tradições foram preservadas e mantêm-se em vigor e funcionamento mas nada que se compare com o rigor e exigências dessa época. O declínio principiou derivado às decisões dos políticos e chefias quando o corpo transitou da Força Aérea para o Exército nos anos noventa Voltemos ao curso de Paraquedismo que prosseguia no seu ritmo exaustivo aproximando— 20 —


-se do fim. Os exercícios e treinos cujo grau de dificuldade e resistência atingiam o limite. As cantilenas dos graduados: Um, dois, três, quatro. Um, dois é a calistenia. Um, dois parecem velhos, um, dois canta mais alto. Gritava sobre o estrado em tronco nu e na sua voz rouca de bagaço o safado e divertido Sargento Lixivia. Cambada de cabrões, sem ofensa cabeçal, mais genica. Gritava ali próximo para outros grupos em instrução durante uma sessão de toros o grandalhão do Sargento Calhau. O curso de Paraquedismo militar, como já devem ter percebido era praticamente ministrado e exercido pelos Sargentos de carreira eram os verdadeiros protagonistas e avaliadores. Os oficiais apenas supervisionavam raramente interferindo, jamais desautorizando, confiando plenamente na eficácia e competência daqueles profissionais. Eu tinha por hábito dizer à laia de brincadeira que um Sargento Paraquedista desfrutava de mais autoridade e importância no seio das Tropas Paraquedistas que um Major no Exército ou Força Aérea. O Director de curso, obviamente um oficial quase só era visto de manhã pelo início da instrução e ao entardecer quado terminava mais um dia de suor e fadiga. Raro era o dia durante o decorrer do curso, que não era saldado por dois ou três eliminados que antes de abandonarem o curso depositavam na formatura das 17h45 e na presença dos seus camaradas e instrutores os seus capacetes e executavam seguidamente uma completa de trinta séries de exercícios. Só depois deste ritual humilhante, se retiravam para ir engrossar os pelotões dos bicos destinados às limpezas de latrinas e serviços de faxinas. Recordo-me de um episódio caricato e divertido em que um instruendo foi excluído por ter recusado lançar-se da torre com o arnês suspenso. Motivo? No último instante, segundo as suas palavras ouviu uma voz misteriosa do além advertindo-o para não saltar da torre. Findo aquele dia de instrução, após a eliminatória, o Major director de curso mandou-o embora em termos desprezíveis e voltando-se para as duas companhias perfiladas e proferiu em tom irónico que até o curso atingir o seu termo, esperava que mais ninguém voltasse a ouvir vozes. Nas célebres e famigeradas calistenias, o exercício mais temido e odiado era o designado reza árabe, uma espécie de exercício abdominal executado em terreno arenoso e rochoso. por vezes também molhado e enlameado. — 21 —


O instruendo sentado inclinava totalmente as costas com os braços esticados até contacto com a superfície do solo e ficando de papo para o ar. Em seguida dobrava o tronco sempre com os braços esticados até tocar os dedos dos pés e sem dobrar os joelhos. O cóccix á força de tantos contactos e pressão sobre o terreno rústico, ficava dolorido por vezes sangrando no fim de oitenta ou cem repetições. Muitos de nós para aguentar a dor sem vacilar já conhecíamos o truque ensinado pelos mais antigos. Quando regressávamos de fim-de-semana trazíamos de casa Prova dos Paraquedistas pensos higiénicos que de forma dissimulada, a coberto das vistas dos instrutores e graduados, introduzíamos os pensos ou quico no interior das calças sobre o rabo naquela parte onde termina a coluna e à guisa de almofadeira. Tal como já referi, estes truques e estratagemas eram ensinados e transmitidos pelos “ velhinhos “ de incorporação para incorporação. Ao entardecer, todos derreados exaustos e ofegantes, mas satisfeitos por contarmos com mais um dia no papo e menos um para o fim do curso, regressávamos em passo de corrida ou marcha em passo de ganso para as casernas entoando o hino dos boinas verdes: “ lá do céu com valentia, descem sempre de noite ou dia, são soldados desconhecidos, boinas verdes são destemidos....“ só então o banho, algum repouso, o jantar a formatura do recolher e nada mais até ao dia seguinte.

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FINALMENTE O ALVEJADO TROFÉU As semanas de curso Paraquedismo aproximam-se rapidamente do fim, mas antes de recebermos a cobiçada boina verde, falta ainda cumprir o ritual mais importante, os seis saltos de avião efectuados ao longo de uma ou duas semanas consoante as condições meteorológicas. Nesse último fim-de-semana antes dos saltos de Paraquedas, fomos para casa envoltos num manto de entusiasmo, ansiedade e expectativa. Algumas questões e pensamentos consomem-nos num misto de curiosidade e inquietação. Qual a sensação? Conseguiríamos estar à altura e superar o medo pelo desconhecido, o respeito pela grande altitude e lançarmo-nos para o espaço aéreo? Pessoalmente ocultei cautelosamente à minha querida velha. Mãe é sempre mãe. Decidi que só iria saber quando lhe aparecesse em casa orgulhoso e feliz já com a boina colocada na cabeça. Quis poupá-la ao natural sentimento de angústia e aflição. Na segunda feira seguinte após um fim de semana em que quase não pregámos olho derivado à ansiedade, eis-nos equipados com os

respectivos Paraquedas na pista de aterragem da Base Aérea n.º3 onde aterravam os aviocars e cc130 que nos transportavam para a largada a cerca de 500 metros de altitude. Os saltos operacionais eram efectuados a 250 metros em voo rasante. O nosso primeiro salto foi de um aviocar, uma aeronave que não transportava mais que catorze militares prestes a saltarem para o imenso vácuo. Tinha chegado a hora da verdade. Mas ninguém entrava no avião sem que fosse previamente inspeccionado por um dos instrutores a fim de comprovar se os Paraquedas e equipamento estavam em ordem e bem ajustados. Trata-se obviamente de uma grande responsabilidade por parte desses graduados e oficiais pelo que, tais procedimentos têm de ser respeitados e observados ao pormenor. Antes desse primeiro salto reinava nas fileiras um natural nervosismo aliados à inexperiência e, nessa manhã quase todos cometemos erros e aselhices para grande desespero dos instrutores supervisores. Cada grupo de vinte homens era examinado por um instrutor diferente. A mim coube-me um Sargento-ajudante grisalho na casa dos cinquenta que já saturado e irado de corrigir tantas deficiências e asneiras ao passar na — 23 —


minha frente a fim de comprovar se o equipamento e paraquedas estavam em ordem, constata que o paraquedas de reserva ou ventral estava muito erguido a um palmo inferior do meu queixo, e resmunga irritado: - Raios, que diabo este Paraquedas não é ventral é queixal. Que paciência é preciso para estes camelos! Afaste lá as mãos-Diz ele mal humorado enquanto me compõe e ajusta o paraquedas. No grupo atrás ouve-se a voz irónica do primeiro Sargento Pontes observando um camarada nosso que ao contrario de mim tinha o paraquedas de reserva bem próximo do baixo ventre- Olhem o deste é colhoal. Naquela hora critica de tensão e inquietação, aqueles episódios burlescos e cómicos fruto do nervosismo contribuíam para descontrair. Vamos lá mijar o medo antes de entrarem no avião. Diz outro Sargento, enquanto a nossa secção de catorze homens se encaminha para o interior daquele pássaro metálico com o seu ruído ensurdecedor. Um pensamento comum nos aflige. Agora já é tarde para recuar ou vacilar. Perguntamos a nós próprios em que aventura arriscada nos viemos meter. Subitamente o avião começa a descolar na pista prestes a subir, enquanto todos somos invadidos por uma sensação de sobressalto e angustia o que é lógico e natural. Aliás se me perguntarem qual mo estado de espírito de qualquer Paraquedista nos minutos que antecedem o salto de avião, eu direi que jamais estão absolutamente tranquilos e descontraídos mesmo que já contem na sua caderneta com mais de cem saltos de Paraquedas. As grandes altitudes causam sempre pavor por entre a sua majestosa e imponente beleza. Existe sempre o risco de algo correr mal não só quando nos lançamos do avião como também no que toca à recepção quando tomamos contacto com o solo o que, constitui talvez a parte mais perigosa. Durante um salto podem ocorrer várias anomalias ou acidentes tais como: Duplas calotes, o que designamos por velas romanas ou arrastamentos após o embate no solo. Ou mais grave ainda quando, o vento nos prega uma partida e aumenta de velocidade de um momento para o outro. Numa largada de paraquedistas, derivado a esta súbita mudança, podem alguns militares eventualmente aterrarem bem longe da zona de aterragem prevista depois de previamente reconhecida que tem de ser essencialmente plana e sem obstáculos. Se por infelicidade o militar sob a pressão de ventos — 24 —


adversos, cai sobre o telhado de uma casa ou por entre as copas de uma árvore as consequências podem ser desastrosas. Se para cúmulo do azar os ventos o impelirem para um lago ou rio, pior ainda. Representa quase sempre a morte do infortunado. A menos que seja socorrido de imediato por gente ali próxima. No meu turno recordo-me precisamente do fim trágico de três desgraçados que durante uma largada em Castelo Branco fora a desviados pelo vento e cair no centro de uma lagoa de águas profundas e estagnadas tendo-se afogado de imediato. De nada adiantava saberem nadar pois o peso do uniforme, botas, equipamento e paraquedas, impelia-os para o fundo. Voltemos ao nosso primeiro salto em que no interior do aviocar em que com os nossos sentidos em alerta e o ritmo cardíaco acelerados, ouve-se subitamente a voz vibrante dos graduados responsáveis por aquele grupo. De pé, toca a engraxar -os primeiros aproximam-se das portas laterais, uma pancada seca aplicada pelos largadores nas costas de cada um, e quase somos absorvidos, tragados pela atmosfera. Em breves segundos parece que penetramos num túnel de circunvoluções, que entramos numa outra órbita e dimensão. Breves segundos que parecem intermináveis, repentinamente aquela deliciosa quietude e sensação de paz, quando sob a cúpula majestosa do céu azul e iluminação dos raios solares, quase ficamos imobilizados, olhamos para cima quase com gratidão e reconhecimento, observamos a calote do paraquedas bem aberta em forma de cabeça de cogumelo enquanto se efectua a descida gradual ao sabor do vento e em direcção ao solo. Por uns instantes sentimo-nos uns semi Deuses, senhores do Universo e nunca o céu e natureza se nos afiguraram com tanta beleza, o sol tão radiante como naquele primeiro salto. Após ultrapassada a angústia e medo iniciais, desejaríamos permanecer mais tempo no firmamento celeste flutuando e desfrutando enquanto olhamos em redor e vemos as figuras minúsculas que em baixo vão aumentando de dimensões e formas, em redor e não muito distantes outros camaradas vão descendo suspensos pelos respectivos Paraquedas, gritamos cheios de júbilo e alegria uns para os outros. Começamos a aproximar-nos do solo como se este nos atraísse como um íman, preparamos logo a posição da queda consoante a direcção dos ventos, uns segundos depois o contacto brusco com o solo — 25 —


seguido da cambalhota para logo nos erguermos e começarmos a dobragem sumária do Paraquedas. Para o primeiro salto à excepção de algumas mazelas tudo decorreu bem. Nessa noite reina a euforia, a boa disposição contagiosa, após o jantar invadimos o bar de praças num verdadeiro arrebatamento de júbilo e emoção, parecemos uma tribo de índios desenfreados. Por toda a parte comentários sobre o que cada um sentiu e a forma como viveu o episódio nunca experimentado antes. Até encerrar o bar, muito depois da meia noite, ainda estávamos quase todos bem despertos. Noite memorável em que o vinho, a cerveja e o whisky disputaram lugar nos quatro cantos daquele bar considerado o melhor de praças a nível nacional. Grandes borracheiras tiveram lugar mas, os graduados souberam condescender desde que certos limites não fossem ultrapassados. Todos já tinham sentido o mesmo. Naquele bar superior a muitos bares de Sargentos e Oficiais existia uma imensa esplanada, um espaço interior avantajado onde não faltavam mesas de bilhar, ping pong e matraquilhos. No andar superior localizava-se o museu do Boina verde. Nessa noite entre os muitos episódios em que quase todos foram protagonistas, recordo-me de um que mais evidenciado. Um certo instruendo Algarvio já estava bastante enfrascado começando a determinado mo mento sob os efeitos da bebida a tornar-se agressivo e incómoda para os camaradas da mesma companhia. Alguém para evitar o pior, foi alertar o Sargento de dia á unidade. O graduado que era um Furriel mandou chamar de imediato á sua presença o tal Algarvio que ameaçava provocar desacatos. Minutos depois este apresentou-se mal se aguentando em pé, tresandando a álcool e num discurso incoerente, disparatado e num tom exaltado. O Furriel ordenou que ele se calasse imediatamente e que se fosse deitar. Ordem essa que não foi acatada. Então o graduado tomou a medida que se impunha desferindo um murro magistral no Algarvio que, se estatelou completamente no piso da companhia. Os vestígios da embriaguez desvaneceram-se num ápice. E, o militar ainda cambaleando lá se encaminhou para o seu quarto enquanto chorava dizendo em tom lastimoso que já não queria ser Paraquedista. Que preferia ser bico. Numa manha solarenga de Maio e após mais cinco saltos de Paraquedas, cumpriu-se uma vez mais esse ritual místico, solene e emocionante. A — 26 —


imposição de boinas. Primeiro o discurso proferido pelo comandante, o célebre Coronel Lousada um dos “ pais “ dos Paraquedistas e estando as tropas perfiladas na parada. É ao General Kaúlza de Arriaga que se deve a criação este Corpo de elite detentor das mais altas condecorações e feitos em combate durante a guerra colonial. Contudo, foram homens como o Coronel Lousada, o Coronel Durão, Coronel Terras Marques e uns poucos mais, que se forjou e cultivou ao longo de décadas esse espirito de corpo e para o seu prestígio. Tudo exigiam aos seus subordinados mas nada que não lhes pudessem também dar. Oferecendo amiúde com o seu exemplo nas longas marchas forçadas caminhando na vanguarda dos batalhões, ou executando com os seus homens os intensos exercícios, transposição de obstáculos etc. Transmitiam a imagem de que um paraquedista nunca desiste. Homens austeros, ásperos, desdenhosos mas também quando necessário humanos e generosos. Muitas vezes perante uma falta ou infracção desde que não fosse muito grande, optavam por chamar o infractor ao seu gabinete, aplicar-lhe uma reprimenda e um castigo particular tal como proibir o militar de sair durante duas semanas do quartel ou mandar escalar o mesmo para três fins de semana seguidos de serviço. O famoso Coronel Durão um homenzarrão de um metro e noventa e mais de cem quilos, cabeça rapada (lembrando muito os comandantes legionários durante a guerra colonial pelas possessões Francesas no norte de África) preferia aplicar um calduço ou um safanão no indisciplinado, raramente havia uma participação evitando assim os resultantes efeitos disciplinares e permitindo assim ao militar a oportunidade de se redimir sem que ficasse com uma nódoa nos seus documentos e caderneta que um dia levaria para a vida civil. A vergonha e arrependimento ao serem admoestados e tratados com rudeza por aquelas velhas glórias, autênticas lendas, era tal que geralmente não reincidiam. Nas tropas regulares, especialmente no Exército ao mínimo deslize segue quase sempre uma participação que culminava geralmente numa punição e outros efeitos disciplinares em indivíduos muitas vezes dedicados ao serviço e responsáveis mas que mercê de um impulso errado ou momento de fraqueza eram irremediavelmente punidos e frequentemente com um rótulo negativo. Muitos tornavam-se de ali em diante o oposto do que tinham sido anteriormente e antes da falta cometida. — 27 —


Transformando-se nuns revoltados e desmotivados senão mesmo abandalhados o que era lamentável. Seria possível evitarem - se certas medidas drásticas se o infractor fosse ouvido e levasse um puxão de orelhas ou fosse alvo de um castigo interno não oficial ou publicado em ordem de serviço. Geralmente o prevaricador aprendia a lição e raramente reincidia na mesma falta, tornando — se amiúde mais empenhado e grato por uma segunda oportunidade. No exército regular, usava - se e abusava-se das participações. Participava-se por dá cá aquela palha o que não impedia que fosse encarado ou considerado o Ramo mais abandalhado onde pululavam o maior número de bardinas. Certo de que se trata do Ramo com mais efectivos mas mesmo em proporção e comparação com outros Ramos, segundo as estatísticas no Exército sempre predominaram os processos disciplinares. Um certo Capitão do Exército oriundo da Academia militar, disse-me todo empertigado e altivo que durante a guerra colonial o Exército enviou para as frentes de combate um número de homens dez vezes superior em relação aos Páras. Que grande novidade! Respondi -lhe sem hesitar e com uma pitada de ironia que a qualidade sempre foi preferível à quantidade. Por cada contingente ou incorporação de 1600 mancebos admitidos no Exército, recebiam os Paraquedistas cerca de cem homens. Perante esta desigualdade de números, que esperava o ilustre e inteligente Capitão? Voltemos a esse dia de imposição de boinas tão solene e especial. Fimdo o discurso do excelentíssimo comandante, os instrutores perfilaram - se defronte das duas companhias de instruendos e, à ordem do comandante do Batalhão começaram num grande alarido e euforia a colocar-nos as boinas sucessivamente ao longo das fileiras não dispensando felicitações e elogios. Alguns ainda nos estreitaram num caloroso e enérgico abraço. Muitos de nós já com as boinas recém colocadas a muito custo controlávamos a emoção e entusiasmo. Alguns esboçando um sorriso tímido e triunfante em simultâneo. Outros incapazes de reprimirem uma lágrima furtiva. O almejado troféu fora alcançado apesar do suor derramado, as canseiras, as intempéries, os riscos, os abandonos, quantas vezes vontade em desistir, não importa. Tudo foi superado. Agora já pertencemos à família. Á ordem do Comandante gritámos em uníssono e bem alto os lemas mais conhecidos: — 28 —


“que nunca por vencidos se conheçam”, “honra-se a Pátria de tal gente”. O Comandante, o distinto Coronel Lousada proferiu com satisfação que a família fora enriquecida com cento e cinquenta novos boinas verdes, que honrássemos aquelas boinas. Seguidamente iniciou-se o desfile ao som da banda da unidade, marchando com garbo e vaidade e erguendo as cabeças altivas. O sonho transformara-se em realidade. Nesse fim de semana em casa, quantos não teriam dormido com a boina? Quanto a mim na companhia de familiares e amigos só despi a farda para dormir. enverguei o uniforme durante o fim de semana por todos os cantos de Sintra onde residia naquele tempo. E claro com a boina sempre bem vincada. Os leitores mais novos devem ser informados acerca de alguns factos relevantes. Quando da minha incorporação, vivíamos um período pós guerra. Haviam decorridos uns escassos anos desde o fim da guerra colonial. Felizmente para os da minha geração e respectivas famílias, não fôramos arrastados para essa guerra fruto da ditadura graças á revolução do 25 de Abril em 1974. Mas com excepção de alguns milicianos, os nossos instrutores oficiais e sargentos tinham prestado serviço no Ultramar. Tinham sentido e vivido por entre o capim, nas profundezas das selvas e nesses cenários macabros os horrores e traumas próprios das guerras. Esses homens tentavam transmitir-nos ao pormenor toda uma vivência e experiência que não se aprendem nos manuais ou estabelecimentos militares. Foi pois um privilégio recebermos instrução e treino por parte desses veteranos que haviam conhecido o violento contacto com as duras realidades em teatro de operações. Conheciam todos os truques e segredos da guerrilha. Outro pormenor a referir a respeito daquela época, eram as componentes como as tradições, a preparação física e psíquica, a audácia e espirito bélico que caracterizavam as tropas de elite conferindo - lhes uma auréola mítica reforçada pelo manto de heroísmo e bravura. Pese algum exagero acerca das façanhas, histórias e testemunhos que se ouviam dando lugar por vezes á especulação. Alguns zaragateiros e brigões ganharam fama notória tais como o china e o célebre oitenta com uma natural tendência para o exibicionismo o que, contribuía para denegrir em certa medida a imagem dessas tropas. Não confundir coragem e garra com rufiagem e escumalha. Mas é indubitável que naquela — 29 —


época, um Comando, um Pára ou um Fuzo eram olhados com um certo receio ou inquietação mesmo durante os tempos conturbados do início da democracia. Pessoalmente, modéstia à parte eu fora considerado o melhor instruendo do meu pelotão embora fosse um nabo trapalhão e descoordenado em ordem unida que, nunca foi o meu forte mesmo durante os longos anos que se seguiram ao longo da minha carreira militar. Já tínhamos ganho a boina mas não era tudo. Ainda nos aguardava uma fase de instrução talvez mais exaustiva e desgastante. Ainda havia muito suor para derramar, muitas horas para penar. Tínhamos ainda pela frente o curso de combate ou estágio de atiradores que consistia em cerca de dois meses de exercícios quase inteiramente no campo. Dormindo quase sempre em tendas outras vezes ao relento somente com os cobertores ou sacos de cama. Ao longo desse período, aprendemos e aplicámos na prática técnicas de guerrilha, contra guerrilha, guerrilha urbana, principio tácticos de deslocamentos, emboscadas, assim como técnicas de slide, rappel, transposição de obstáculos e cursos de água. Habituámo-nos também às longas marchas forçadas e extenuantes com botas, camuflado capacete e equipamento pesado enquanto entoávamos a marcha da ponte do rio Kwai e os hinos mais populares entre os Páras. Ninguém desistia ou ficava para trás. Os mais resistentes ajudavam os mais fracos. Abriam-se excepções obviamente para quem se lesionasse e que, seria recolhido pelo jeep que encerrava a coluna. Sob o meu ponto de vista, essas semanas foram mais penosas que o período de instrução antecedente à imposição de boinas. No início da semana, às segundas bem cedo partíamos do quartel em viaturas militares para o local onde estava instalado o bivaque no campo e na orla marítima. Estávamos em finais de Maio. Durante o dia suportávamos temperaturas elevadas, ao anoitecer e em parte mercê da brisa marítima, verificava-se um acentuado arrefecimento a par de uma intensa humidade. Durante a semana nenhum horário definido. Instrução dia e noite, arbitrariamente sem condicionalismos e completamente à mercê das condições atmosféricas. Calor, frio, humidade, chuva, tudo suportávamos e sem o conforto de um leito para dormir, um duche reconfortante e muitas vezes sem uma refeição quente. Andávamos sebentos, estafados, sem muda de roupa enfim, mais nos parecíamos com uns bandidos. Somente à sex— 30 —


ta pelas 16h00 desmontávamos as tendas e regressávamos à unidade. Mas antes da saída para fim-de-semana ainda havia a limpeza de armamento a seguir inspeccionada minuciosamente e por último a formatura para revista ao atavio. Só então partíamos para o tão merecido fim-de-semana que voava num ápice. Segunda de manhã pelas 08h00 o início de mais uma semana diabólica. A carga de componente psicológica de um curso desta natureza era levada a extremo. Na recruta e no curso de Paraquedismo militar éramos submetidos essencialmente a um treino físico exaustivo destinado a desenvolver a destreza os reflexos, a resistência à fadiga e as capacidades atléticas. Mas sabíamos qual o horário estabelecido e que, pelas 18h00 antes do jantar no refeitório dos praças tomávamos o nosso duche agradável de água quente. E, por muito derreados que estivéssemos, depois da formatura do recolher dormíamos entre lençóis das nossas camas reconfortantes no nosso hotel cinco estrelas. Com excepção de uma ou outra noite durante a recruta quando tínhamos instrução nocturna. No curso de combate, pelo contrário os objectivos eram bem diferentes. O que pretendia agora era alcançar outra performance. Interessava forjar o militar física e sobretudo psicologicamente no sentido de condições adversas e não importando o seu estado em geral, estar preparado para cumprir as missões que lhe fossem atribuídas, mesmo as mais difíceis e espinhosas. E nunca perdendo o controle emocional e sabendo além disso tirar proveito dos conhecimentos tácticos adquiridos. Combater a sede, o cansaço, o sono acumulado, o desconforto, suportar longas marchas em tempo recorde, noitadas quase sem pregar olho, o mesmo uniforme no corpo durante dias fedendo a suor poeira e sujidade, e mesmo assim não vacilar mantendo sempre o moral elevado, não era fácil. Mas tratavam - se de ingredientes necessários para transformar um militar normal num operacional preparado para os diversos tipos de missão envolvendo elevados riscos. Sentíamo-nos um tanto desmotivados e desapontados. Era suposto que, uma vez obtida a boina teríamos direito a outro tipo de tratamento e estatuto por parte dos superiores hierárquicos. A verdade é que não constatámos grande diferença. A Instrução prosseguia ainda que em moldes diferentes. Quando algo decorria mal ou não obedecíamos de — 31 —


imediato a uma ordem, os graduados e oficiais não nos poupavam àquele desagradável praguejar numa mistura de berros com obscenidades. Quanto àqueles que estavam convencidos poderem baldar-se ou desenfiar-se por já usarem a boina verde, depressa se desiludiam. Eram todos previamente esclarecidos no início do curso, que caso não se empenhassem nem atingissem minimamente as metas estabelecidas no programa poderiam ser excluídos e perder a boina. O brevet não. Mas a boina só estaria definitivamente assegurada quando terminassem com aproveitamento o curso de combate. E, mesmo depois estaria sob avaliação em relação a certos itens por um período de três meses. Por aqui se pode concluir que a formação de um atirador paraquedista, só estaria completa decorridos oito ou nove meses após a data de incorporação. O nosso estágio de atiradores terminou em apoteose com uma semana de exercícios finais no auge do calor em fins de Julho. A área escolhida foi na zona de Alcácer do sal no Alentejo. Efectuamos um salto operacional numa planície onde abundavam chaparros, vegetação rasteira e muita poeira. Uma zona bastante árida em que não se descobria um poço num raio de cinco Km. Uma grande escassez de água para nosso infortúnio. Até ali, jamais suportara tanto esse terrível martírio da sede. Apenas nos distribuíam um cantil de água por dia. A água transportada no camião cisterna estava racionada e bem guardada. Nas raras ocasiões em que tínhamos a sorte de passar perto de um poço, a coberto das vistas dos graduados, atávamos os cantis a um cordel suficiente comprido. Posteriormente o cantil era suspenso através do interior do poço até entrar em contacto com a água (esse truque como é lógico só resultava quando a água era potável). Depois do cantil repleto, rapidamente era içado pelo mesmo cordel. Na terceira noite que pernoitámos naquelas bandas, incapazes de conciliar o sono derivado à sede abrasadora, eu e uns quantos camaradas erguemo-nos silenciosamente dos nossos cobertores e com toda a cautela, em pezinhos de lã de forma a que os graduados e oficiais não se apercebessem, afastámo-nos cerca de três Km em direcção a uns terrenos cultivados onde era suposto encontrarmos água. Fixámos bem o local onde a companhia estava instalada a fim de, não nos perdermos o que, representaria uma grande bronca, um bonito sarilho. Mas — 32 —


felizmente fomos bem sucedidos. Descobrimos um pequeno açougue para além das hortas e de águas refrescantes e saborosas. Após saciarmos a sede, enchemos os nossos cantis e, apressámo-nos a regressar ao acampamento. Para além da sede, durante aqueles dias fomos vítimas de outro tormento. Esse horrível flagelo que são os mosquitos e que, quase não nos deixavam pregar olho. As tendas não estavam montadas e como tal, apenas dispúnhamos dos cobertores que pouca protecção nos conferiam em relação às melgas. Em pleno Verão numa zona seca e poeirenta em pleno Alentejo, podem imaginar o incómodo causado por aqueles malvados insectos. Na véspera de regresso à nossa querida unidade e com o curso já concluído, desfrutámos do enorme prazer de nos deslocarmos em helicópteros por patrulhas num treino de Heli assalto. Algumas personagens relacionadas com essa fase de instrução permanecem inesquecíveis. Algumas cómicas e pitorescas. Outras um tanto sinistras e imprevisíveis. O então nosso comandante de companhia o Capitão Roque era um verdadeiro tratado. Um homem relativamente alto e seco. Cabelo rapado, bigodes à Pancho Vila, não se podia considerar um celerado. O seu grande defeito era a dose de elevada impaciência com que lidava connosco. Também tinha um fraco pela bebida e vida boémia. Ali no campo afastado da messe de oficiais e vida citadina, do bulício e movimento da capital, sentia-se privado de satisfazer os seus vícios, e acompanhar-nos nos exercícios do campo constituía um grande frete para ele. Era um solteirão crónico aos 38 anos de idade, e constava-se que também era um mulherengo de marca. Não sendo prepotente, recusava-se contudo muitas vezes a escutar as reclamações e justificações dos praças que se encontravam sob o seu comando o que dava azo a um sem número de abusos e injustiças. Ficou famosa uma afirmação sua que proferia a todo o instante quando se irritava ou não queria escutar alguém. — Oh pá, vai dar uma fódinha — Dizia ele todo empertigado e altivo quando algum dos praças no seu entender-lhe tentava passar a perna. O seu vocabulário bastante obsceno deixava muito a desejar no que tocava à etiqueta e boa educação. Entre nós também era conhecido pelo capitão speed, pois as suas ordens eram sempre proferidas a toda a pressa quase sem pausa — 33 —


especialmente durante a revista na formatura da Companhia antes do fim de semana. Provavelmente porque ele seria o mais interessado em pôr-se a milhas do quartel. Numa dessas formaturas perguntou a um soldado com o cabelo um tanto crescido: Sr Porto, estas pintelheiras não se cortam porquê? A um soldado tipo betinho que era conhecido pelo “fome” ou pelo “punk”, um daqueles meninos caprichosos de papá e mamã residente em Cascais que gostava de fumar os seus charros, o Capitão favorecia-o sem motivo aparente e explicação. Pois nunca punira esse individuo apesar dos seus inúmeros defeitos. Inclusivamente o fulano já fora apanhado a fumar umas passas. Deveria existir qualquer pacto ou conivência entre ambos. Tínhamos também no pelotão um certo Sargento conhecido por “cobra cuspideira”. Ele devia esse apelido nada elogioso ao hábito que tinha de lançar uns perdigotos com a língua saliente antes de nos dirigir a palavra. Era um graduado bastante impopular pela sua presunção e trato rígido e austero para connosco. Mantinha as distância e sentia uma secreta alegria em castigar-nos sempre com um sorriso trocista e cínico. Curiosamente em relação a mim, sempre revelou uma certa simpatia e afinidade. Talvez porque embora eu tivesse cultivado algumas amizades sólidas, derivado ao meu caracter reservado, também não era considerado um camarada muito popular. O protótipo do militar paraquedista obedecia a certos requisitos tais como, ser beberrão, utilizar uma linguagem rude e obscena, jogar às cartas nas horas de lazer, frequentar bares e não fugir às zaragatas. Refiro-me mais aos praças com um grau de instrução e cultura inferiores. O que não significa que entre os Oficiais e Sargentos não se encontrassem indivíduos que se poderiam considerar verdadeiros cepos. Especialmente no seio daqueles que haviam combatido na guerra colonial apesar da sua bravura experiência e valores incontestáveis cujas provas já tinham revelado no Ultramar. O seu mal era, exteriorizarem um comportamento rústico e grosseiro em que a falta de diplomacia, subtileza e pobreza de vocabulário eram notórios. O clássico tipo de brutamontes que também abundava entre os incorporados após o movimento revolucionário que pôs termo à ditadura. Naqueles tempos, predominava uma mentalidade um tanto deformada. Um Paraquedista que evitasse o álcool, não alinhasse em certos programas e empregasse — 34 —


uma linguagem muito intelectual era apelidado de “ tótó “ ou menino fino. Quanto a mim, apesar de ser um dos melhores classificados na avaliação física e técnica, praticamente não bebia naquela época nem me interessava por jogos de cartas. Nas horas livres eu preferia entregar-me a um dos meus passatempos predilectos. A leitura. Outras vezes assistia à programação televisiva no bar de praças. Quando recebemos a boina, muitos de nós, entre eles eu fomos transferidos para a antiga e extinta BOTP 1 localizada em Monsanto. Quando terminou o curso de combate, eu e muitos camaradas residentes na área da grande Lisboa e arredores, obtivemos permissão para pernoitar em casa nas noites em que não estivéssemos de serviço de escala ou instrução. É evidente que na manhã seguinte não podíamos chegar atrasados à formatura. Eu aproveitava essas saídas após o toque de ordem para me encontrar com a namorada, amigos meus e estar com a família no doce lar. Já era meu propósito reunir condições para abraçar a carreira militar. Uma carreira que me fascinava desde que fosse numa tropa especial. Obviamente mostrava-me disciplinado, sóbrio e dedicado ao serviço. Enquanto que a maioria da mesma incorporação, apenas pretendiam cumprir o serviço militar obrigatório (cerca de 17 meses naquela altura) e voltar aos seus empregos ou actividades na vida civil. Por conseguinte apenas se contentavam em atingir as tabelas mínimas, estando -se nas tintas para o resto. Muitos apenas ansiavam por findar aqueles meses e passar à peluda, termo característico empregado no meio castrense quando da passagem à disponibilidade. A minha situação era diferente, se queria seguir tinha toda a vantagem em cultivar uma imagem favorável sem castigos e repreensões, ficar bem visto perante a hierarquia. As boas informações seriam fundamentais para mais tarde ser admitido ao curso de Sargentos do quadro permanente. Eu era obediente e cumpridor, sempre educado e disciplinado mas jamais subserviente ou servil. Nunca suportei toda essa corja de graxas, sabujos e lambe botas que, se fosse necessário até as calças despiam e se inclinavam para a frente a fim de agradarem aos superiores. Apesar do meu esforço e zelo não evitei um episódio desagradável ocorrido entre mim e um Sargento. Eu entretanto fora promovido a Cabo após frequentar o respectivo curso com — 35 —


aproveitamento. O tal Sargento que estava de serviço, durante a sua permanência no refeitório enquanto o pequeno almoço era servido, exaltou-se e excedeu-se comigo por motivos fúteis e decidiu expulsar-me do refeitório dos praças, quando eu me preparava para tomar o pequeno almoço. O mais grave é que ele teve a infeliz ideia de num gesto agressivo me agarrar o braço e tentar empurrar-me. Semelhante tratamento ofensivo e humilhante eram demais mesmo para o meu bom senso paciência e ponderação. Não podia ficar impassível e de braços cruzados. Fiquei ferido no meu orgulho dignidade e amor próprio e, numa reacção de revolta incontestada perguntei-lhe se seria capaz de agir assim comigo fora do quartel sem testemunhas e as divisas de permeio. Quem interveio imediatamente e salvou a situação foi o Capitão Roque que, estando ali próximo e observando a cena se adiantou rapidamente e com dois berros me mandou sair dali. A sua atitude. deixou-me aturdido e confuso mas obedeci prontamente e lá me afastei controlando a minha ira. Mais tarde compreendi a reacção do Capitão. O seu intuito fora ajudar-me livrando-me duma boa enrascada. Percebeu que os ânimos estavam demasiado exaltados e decerto iria suceder o irremediável sobrando o pior para mim. Embora me assistisse a razão moral, a verdade porem era que, o Sargento participando de mim, talvez eu acabasse por ser punido e, as minhas aspirações em seguir a carreira militar seriam goradas. Em princípios dos anos oitenta, as probabilidades de conseguir um emprego de futuro eram escassas. Eu possuía o 11.º ano de escolaridade (antigo 7.º ano) mas o mais importante eram as qualificações técnicas e experiência profissional. Embora eu antes da tropa, já tivesse trabalhado em muitos ofícios, a verdade é que não me especializara em nenhuma profissão. Na época pós 25 de Abril 1974, a experiência e valorização profissionais eram essenciais. Um bom mecânico ou electricista a título de exemplo, eram mais facilmente admitidos numa empresa mesmo possuindo somente a 4.ª classe (escolaridade mínima obrigatória naqueles anos) que outro candidato com o 11.º ano mas sem profissão alguma. Motivo esse que impelia muitos a tentarem a sorte nas Forças Armadas ou nas Forças de segurança. No meu caso não se tratava somente de uma questão monetária mas também de vocação. O — 36 —


que não significava que consentisse em ser tratado como lixo ou como um cão raivoso. Considerava-me um militar consciente dos meus deveres, respeito, disciplina e exacto cumprimento das ordens mas, sem cair no extremo de rastejar e anular a minha personalidade e identidade. Apesar da minha solidariedade para com os meus camaradas, não tinha obrigação de me encharcar na bebida e cometer certas transgressões somente para ficar bem visto aos olhos deles. Nem de ser indisciplinado para demonstrar que era um durão. Tinha uma imagem a preservar mas sem aceitar que me humilhassem. Ao enfrentar aquele Sargento autoritário e ríspido demonstrara que os tinha no lugar. Recordo-me de uma ocasião que fui escalado para serviço de Cabo da guarda ao tribunal militar. Um serviço de 24horas que nessa década era assegurado alternadamente pelos paraquedistas e fuzileiros. O antigo tribunal militar funcionava no bairro de alfama em Lisboa num edifício antigo bem próximo da estação de Santa Apolónia. Todos os dias eram escalados um Sargento, um Cabo e seis Soldados. Após cerca de seis meses de instrução e intensa actividade física, seguiu-se um período monótono e rotineiro para os Paraquedistas colocados na antiga BOTP1. Durante uma temporada foi um fartote de serviços na Unidade e no exterior. Durante algum tempo a operacionalidade e instrução foram relegados para um segundo plano derivado aos serviços que nos absorviam quase o tempo todo. Escalas bastante sobrecarregadas em que nos tocava um serviço de três em três dias. Famosos pelas peripécias rocambolescas e singulares ficaram os serviços ao exterior. Entre dezenas destes episódios menciono apenas dois pois seria quase impossível incluir todos. Num belo dia, estava de serviço ao tribunal uma equipa comandada pelo cobra cuspideira. Naquele posto apenas o Sargento e Cabo da guarda dispunham de um relativo raio de acção e movimento. Á entrada do tribunal duas sentinelas que eram rendidas de duas em duas horas e estavam armadas com a velhinha G3. O tribunal encerrava após o horário de expediente. A partir dessa hora o tribunal ficava por assim dizer exclusivamente por nossa conta, e nem mesmo funcionários civis e militares do Exército a prestarem serviço no tribunal podiam entrar salvo raras exceções. Também não eram permitidas às viaturas civis estacionarem num espaço assinalado e defronte da porta princi— 37 —


pal. Nesse dia e àquela hora estava de sentinela na porta principal, o Soldado Jorge um moço mestiço e magricela a quem chamavam o chico escuro. O Cabo da guarda chamado Pardilhó caminhava em passo lento na área circundante. Subitamente um automobilista estacionou no espaço proibido O Cabo dirigiu-se ao condutor e advertiu-o que não podia estacionar ali, quando um transeunte residente no velho bairro de Alfama e conhecido do condutor aproximou-se a seguir vociferando pragas e insultos para os militares ali presentes e para os militares em geral. A determinado instante injuriou o Cabo directamente chamando-lhe filho da puta. O Cabo Pardilhó que não era flor que se cheirasse, homem habituado às brigas de rua, um veterano e frequentador assíduo do Bairro Alto, reagiu de imediato à ofensa desferindo uma contundente cabeçada no provocador o bastante para que uma turba de moradores locais numa enorme algazarra se aproximasse em passo rápido e com gestos ameaçadores, provavelmente familiares e amigos do comparsa agredido. Pareciam um bando de Apaches furiosos com o propósito evidente de se lançarem ao Cabo mas, o Soldado Jorge interveio e puxando rapidamente o manobrador da culatra à retaguarda apontou a arma ao grupo enfurecido intimidando toda aquela gente de braços erguidos a encostarem-se à parede de um edifício no lado oposto da rua. Os outros camaradas alertados pelo alarido, desceram de imediato e saíram para a rua. O Sargento solicitou de imediato a presença de autoridades civis e militares que anotaram a ocorrência e interrogaram algumas pessoas. O incidente acabou por ser encerrado e esquecido. Eu próprio num desses serviços recordo-me de um episódio caricato em que fui o interveniente principal. Estava eu de costas para a porta do tribunal observando o trânsito, quando subitamente ouvi o ruído característico de uma porta a fechar-se por trás de mim. Olhei i vi dois civis que tinham acabado de fechar a porta que me pareceu a do tribunal. Fiquei fulo e perplexo pois sabia que depois do expediente terminado, ninguém podia encerrar a porta que se mantinha aberta até à meia-noite. Era tamanha ousadia, perguntei aos dois civis num tom firme e enérgico reforçado pelo uniforme camuflado que envergava e a pistola Walter colocada no meu cinturão: — Então os senhores atrevem-se a fechar a porta? Porque carga de água e por ordem de quem? Os interpelados olharam surpreendidos e espantados — 38 —


para mim. Um deles um sujeito na casa dos cinquenta perguntou-me o que tinha de errado em fechar a porta. Nesse preciso instante antes de responder apercebi-me num ápice que postados na porta mesmo ao lado os meus camaradas observavam divertidos a cena e riam a bandeiras despegadas. Só então constatei o ridículo da situação. Eu confundira distraído a porta do tribunal com a porta ao lado pertencente a um armazém, cujos proprietários decerto eram aqueles homens. Envergonhado com a minha atitude apressei-me a apresentar desculpas aos senhores que ainda me fitavam atónitos Grandes touradas e berbicachos se verificavam com frequência durante esses serviços ao exterior. Era o excesso de adrenalina que aliado a um certo protagonismo e exibicionismo e, que por vezes culminava no ridículo e excessos. O tal culto da boina. A ideia de que éramos quase uns super homens e que tínhamos de ser respeitados. No meu pelotão constava um tal Moreira uma figura singular e inesquecível magro, lânguido e pachorrento, também muito branco de pele e quase sem pelos no rosto e com mais de 1,80m. Era o sorna do pelotão sempre bocejando e sonolento. Era sempre o último a levantar-se da cama pela alvorada e o último a chegar à formatura Com aquela apatia despreocupação e tranquilidade ninguém percebia como havia ele conseguido ganhar a boina e chegar ao fim da instrução com aproveitamento. Sendo também muito impaciente e macambúzio, revelava uma evidente indisposição para escutar os camaradas que por vezes tagarelavam com ele. Por vezes também era acometido por crises de mau génio. Raramente perdia as estribeiras, mas quando tal sucedia não ficava nada bom de se assoar. Sendo por norma sereno e de poucas falas e aparentemente inofensivo, não era no entanto sujeito que se amedrontasse ou se deixasse intimidar facilmente. Eu sentia de certa forma alguma admiração por aquele rapaz que parecia destituído de emoções nem parecia interessar-se ou importar-se com nada. Embora não se notassem nele quaisquer inclinações duvidosas, a verdade é que também não queria saber de mulheres e futebol. Apenas duas paixões lhe conhecia o cinema e o vinho. Ele adorava ver filmes aos fins de semana no bairro de alvalade onde residia. Os seus actores favoritos eram o Al Pacino e o Robert de Niro. O seu gosto imoderado pelo vinho levava-o muitas vezes a embriagar-se mas qua— 39 —


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