Luanda, Meu Céu, Meu Inferno

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"Muito interessante. Revejo-me em imensas descrições. Gosto do modo como escreve.”, Lia L. “O tema do texto enquadra-se perfeitamente na realidade da vida de emigrantes pelo mundo fora. Com uma particularidade neste caso de Angola, o país sofreu uma terrível guerra civil, com todas as consequências (…) Quanto a mim … o inferno já foi no passado. Condução prudente… Angola está a seguir o seu percurso de desenvolvimento, rumo ao futuro.”, Alda C. "Gostei! Parabéns! Mas agora deixou-me com vontade (muita) de ler tudo!!!”, Andreia O. "Vivi na primeira pessoa uma história semelhante e venho para Angola, sim, sozinha... E fico contente porque aqui vou encontrar todos os outros, os que não desistiram…”, Luísa S. "Este início é comum a muitos portugueses/as que aqui estão (…) Cada dia é uma rica experiência, umas boas, outras menos boas, muitas vezes muito difícil mesmo (…) Amamos o povo, os amigos que fizemos, os cheiros, as cores, o falar, o pregão do candongueiro… Enfim, entendo-a muito bem. Desejo que continue e aguardo por mais.”, Carla C.

Confrontada com as dificuldades económicas dos pais, Isabel decide aceitar uma oportunidade de emprego em Luanda, mas nada a pode preparar para as reviravoltas que a vida em Angola lhe traz. Luanda - Meu Céu, Meu Inferno segue o processo de rápido amadurecimento de uma jovem portuguesa, forçada a enfrentar os seus medos e a questionar os seus valores. Entre Lisboa, Londres e Luanda, este livro retrata uma geração moderna e desapegada (a emprego, política, país ou religião), a quem as promessas de amor e dinheiro se apresentam como a solução máxima para todos os problemas. Baseada nas suas observações da vida em Angola e em entrevistas a portugueses e angolanos que viveram em Angola entre 2010 e 2014, a autora retrata nesta obra de ficção, de forma cândida e crua, uma das muitas realidades da vida em Angola no início do século XXI. Leitura obrigatória para quem vive, viveu ou gostava de saber como é viver em Angola. www.sitiodolivro.pt

Luanda - Meu Céu, Meu Inferno

Catarina Soares da Cunha

Alguns comentários de seguidores do livro, após leitura de excertos divulgados nas redes sociais:

Catarina Soares da Cunha

Luanda Meu Céu, Meu Inferno

Catarina cresceu nas Avenidas Novas, em Lisboa, e emigrou para Amsterdão aos 24 anos. Viveu também em Singapura, Nova Iorque e noutros cantos do planeta, onde encarnou os papéis de estudante de MBA, economista, consultora de gestão, fundadora de organizações sem fins lucrativos e voluntária, sempre fascinada com o comportamento humano e as suas diferentes manifestações. Aos 34 anos o Amor verdadeiro levou-a para Angola, onde viveu de 2010 a 2015. Após inúmeros diários, contos, blogs e relatos, foi em Luanda que escreveu o seu primeiro romance. Vive à data desta publicação na Vila de Oeiras, com o amor da sua vida e os seus dois filhos.



Luanda Meu Céu, Meu Inferno Catarina Soares da Cunha


Edição: Edições Vírgula® (chancela Sítio do Livro) Título: Luanda - Meu Céu, Meu Inferno Autora: Catarina Soares da Cunha Revisão: José Vegar, Mafalda Falcão Paginação: Paula Martins Capa: Paula Martins 1.ª edição Lisboa, dezembro de 2017 ISBN: 978-989-8821-58-4 Depósito legal: 432181/17 © Catarina Soares da Cunha PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.si�odolivro.pt


the loveliness is everywhere even in the ugliest and most hostile environment the loveliness is everywhere at the turning of a corner in the eyes and on the lips of a stranger in the emptiest areas with no place for hope and only death to invite the heart the loveliness is everywhere it emerges incomprehensible inexplicable it rises in its own reality and what we must learn is how to receive it into ours.  Kenneth White, “Walking the Coast�



Dedicatória A todos os que alguma vez se cruzaram comigo, pois de alguma forma inspiraram uma parte desta história. Aos que me incentivaram a escrever e depois a publicar o que começou como um desabafo, principalmente ao meu marido e ao meu pai. Aos que se deixaram entrevistar com total candura e em anonimato, partilhando detalhadamente experiências marcantes – este trabalho teria sido infinitamente mais pobre sem o vosso contributo. Aos amigos, aqueles com quem nos tentamos continuar a cruzar sempre que possível, a família escolhida - Teresa, Jorge, Filipe, Sofia, Vanessa, Tété, Elle, Sandrine, Jane. Amizade é Amor incondicional, para sempre. À Mãe, que me ensinou que capacidade e ambição não têm género, que nos podemos reinventar e que o mundo está à disposição para nos ensinar. Viajar, aprender, colecionar, este planeta é a nossa casa. Obrigada, depois de ser mãe é que percebi o quanto me deste, eternamente grata. Ao Pai, que me ensinou o livre-arbítrio, a generosidade, o gosto pela escrita, que não podemos parar de brincar e que sermos 7


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fiéis aos nossos princípios (e tê-los!) é o nosso legado. Obrigada, és o meu herói e inspiração, desde o primeiro dia, nunca deixarei de estar em dívida. Ao meu irmão João, que descoberta o Amor fraterno! Que os nossos filhos possam também viver esta dádiva, de coração aberto, sem lugar a ciúme, fãs e campeões um do outro. Obrigada por me teres dado mais um irmão e pelos meus sobrinhos, ter-vos perto é estar em casa. És um exemplo e um pilar, a minha rede, a minha ambição é ser a tua, és uma fonte inesgotável de generosidade e de amor, obrigada. Ao meu Amor, Rui, que me mostra a magia e o Amor neste Universo. Em cada momento, o privilégio e a sorte de vivermos o Amor verdadeiro. Não existe mais nada. Somos um. Aos filhos, encarnações desta magia! O vosso poder é infinito. À Luísa, tanto amor! És a minha essência, por ti melhoro o mundo. Observa, ouve, questiona tudo, sonha, acredita em ti, brinca, ama. A próxima geração vai liderar no feminino. Lembra-te meu amor que tu podes tudo, escolhe a direção do teu poder. Ao Tomás, tanto amor! És a minha alma, por ti expando o universo. Observa, ouve, questiona tudo, sonha, acredita em ti, brinca, ama. Tantos mistérios por resolver neste Universo, e tu tens uma chave meu amor. Usa-a bem. Aos Angolanos. Aos Portugueses. À Gail e à Quila. A todas as Mulheres. A todas as Meninas. Às crianças da Mamã Muxima, obrigada, obrigada, obrigada, ensinaram-me tão mais do que alguma vez vos ensinei. À Avó Suzette, que está em todos, e sempre em mim. A todos, pois somos Um. Ao Amor. 8


Capítulo 1. Tomada de decisão – Se atropelas alguém em Angola não paras, tens de continuar! – Interrompeu Luís Pedro, enervado. Tinha imaginado diversas reações do namorado, algumas até positivas, à ideia de ir para Angola, mas não tinha previsto esta indignação, tão aguerrida — Luís Pedro não era um rapaz de grandes emoções. A verdade é que tinha esperado muito mais do que deveria para falar com ele sobre o assunto, e agora reagia a quente, desprevenido. Tinham discutido bastante já na altura da proposta, foi por ter de ficar a trabalhar nela que teve de cancelar a ida à Polónia, onde iam ver o futebol. Luís Pedro não percebia como se faltava a um Europeu, a bola continuava a ter um papel central na vida dele, achava que devia ir pelo menos a um jogo de Portugal, mas a ela dizia-lhe pouco, cada vez menos, e não se importava de ficar — ficava com mais férias para gozar. A empresa devolveu-lhe o dinheiro do voo e os bilhetes dela dos jogos venderam-se com facilidade no eBay, até deu para fazerem lucro 9


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com a alteração de planos, mas ele não viu o lado positivo. O namorado esteve duas semanas na Polónia com os amigos, a seguir a Seleção, a correr de cidade para cidade. Margarida e um colega, Joaquim, demoraram cinco dias e duas noites a montar a proposta, fazendo promessas e acordando parcerias para garantirem os prazos impossíveis que o cliente pedia – mas, se ganhassem, ia valer muito a pena. Era um projeto enorme. *** Margarida trabalhava na ARNÊS – Consultoria e Formação, Lda., uma pequena empresa de engenharia especializada em Segurança e Higiene no Trabalho. Integrou a equipa inicial e foi na empresa que a começaram a tratar pelo primeiro nome. Margarida Isabel de registo e batismo, em Viseu sempre a chamaram de Isabelinha, e na Universidade foi Guida logo desde o primeiro dia das praxes. Para os amigos do ERASMUS era Izzy, um nome mais fácil em todos os sentidos, mas essa era uma faceta que só ganhava vida em Inglês. Foi aos vinte e cinco anos, quando começou a trabalhar sem ser para o pai, que assumiu a identidade e a responsabilidade do primeiro nome, Margarida. Nos primeiros tempos na ARNÊS ia muito às obras, corria o país todo com as botas de biqueira de aço enlameadas e o capacete branco no porta-bagagens, mas há um ano e meio que tinha ficado responsável pela área de Formação, e cada vez mais fazia trabalho de escritório. Independentemente do ambiente, era uma miúda num mundo de homens, o que nunca a tinha intimidado. No ano passado tinha recrutado uma recém-licenciada, a Filipa, que reportava diretamente a ela, e geria ainda cerca de vinte formadores independentes, em todo o país. A empresa há dois anos que não crescia, e não se viam perspetivas de recuperação no mercado nacional com o país cada vez mais entorpecido. O acionista principal, Salvador Sotto de Almeida, tinha decidido assumir um papel executivo na direção, e prometia 10


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um futuro de grande crescimento. A proposta para Angola tinha aparecido nesse contexto, e sabiam que, se conseguissem ganhar, as operações em Portugal passariam para segundo plano. Alguns na equipa andavam muito preocupados e excitados com o tema, previam grandes mudanças, mas ela não — we’ll cross that bridge when we get there. A notícia da adjudicação chegou ao escritório na segunda-feira, depois do almoço. Tinha ido almoçar com Mário e Joaquim ao shopping de Loures (às segundas feiras comiam meia de leitão com batatas fritas, uma água e um café, o menu fixo por seis euros e quarenta e nove cêntimos), e entraram no escritório de Santo António dos Cavaleiros ainda a rir do episódio que lhes acabara de contar no elevador: – Ficou tudo esclarecido na formação, percebem? E quando cheguei lá na manhã seguinte… apareceram-me três de capacete… e havaianas! – É muito bom, estes brasileiros dominam, – acrescentou Mário. Para além dos risos e suspiros dos três colegas, o open space estava aparentemente vazio, só a impressora do canto produzia sem parar. Maria Carolina, a office manager, apareceu de parte incerta e puxou-os para a sala de conferências: – Rápido, estão todos à vossa espera, – anunciou a senhora, normalmente tão composta, agora muito afogueada. – Vá, vão lá, o Dr. Salvador tem um anúncio a fazer! Entraram na sala, seis pares de olhos observavam-nos de baixo, fazendo-os sentir importantes. Mário sentou-se, juntando-se aos colegas à volta da grande mesa de madeira; Margarida e Joaquim encostaram-se à parede, junto à porta. – Desculpe o atraso, não sabíamos… – justificou-se Joaquim, enquanto mascava uma pastilha elástica de canela. – Pas de problème, reunimos agora mesmo, estava só a ver se chegavam para começarmos, – disse Salvador. – Queria que es11


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tivéssemos todos juntos neste grande dia, para vos anunciar que ganhámos a proposta da SinoAng! – Boa!!! – Reagiu alto Margarida, o punho direito cerrado, o braço forte erguido no ar, surpreendendo-se a si e a todos, a única reação na sala. O chefe olhou para ela com cumplicidade e um sorriso aberto, e continuou: – É uma nova era para a ARNÊS que começa hoje meus amigos, e quero dar os parabéns a toda a equipa, especialmente à Margarida e ao Joaquim, que tanto se dedicaram para que isto fosse possível. Maria Carolina, champagne! O silêncio era já um som do passado, com o arrastar das cadeiras e as palavras sobrepostas dos jovens engenheiros, que se reuniam agora em círculo à volta do gestor. Salvador radiava energia, uma aura ofuscante como a de um semideus, com a sua camisa azul clara ajustada ao corpo, o monograma SSA, dois botões abertos mostrando parte do peito bronzeado, as calças escuras perfeitamente engomadas, e o cinto a apoiar a pequena barriga, que desde os trinta e nove anos já não conseguia fazer desaparecer. Os sapatos eram pretos, de atacadores, e brilhavam como se tivessem acabado de chegar de Itália. Margarida e Filipa comentavam às vezes como podia este homem trabalhar tanto, ter uma grande família, e ainda ter tempo para andar sempre tão impecável. Idolatravam-no. Depois da confusão inicial, começaram as perguntas: – E quando vai começar, Salvador? Temos capacidade de resposta para um projeto tão grande? – Perguntou Nuno, o responsável pelo IT, que geralmente falava pouco. Salvador tinha instituído um ambiente bastante informal, e tinha feito questão que o tratassem pelo primeiro nome, mas sempre por você — não queria que confundissem informalidade com intimidade. 12


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– Bien sûr! Não faríamos esta proposta sem estar preparados, – assegurou. – Vamos fazer um brinde e sentem-se lá outra vez, quero mostrar-vos com mais detalhe como isto vai funcionar. Tratava-os como crianças e eles apreciavam. Ralhava, gritava, mas também lhes dava uma palmada nas costas de vez em quando, e um piropo educado às meninas, e sentiam-se em família. De vez em quando contratavam alguém que não o suportava, que o via como prepotente e arrogante, mas acontecia poucas vezes, já que entrevistava todos os candidatos e fazia transparecer o seu estilo desde o primeiro encontro. Passaram duas horas reunidos, de copo na mão. Grandes planos, muito dinheiro para todos, trabalho árduo! Riam-se dos desafios, eram fortes, sentiam o oposto de quando chegavam a casa e ao carro, todos os dias bombardeados com notícias de despedimentos, encerramentos e adiamentos de decisões. O país estava encalhado em dívidas e dúvidas, o desemprego nos quinze por cento com promessas de se agravar, mas a ARNÊS estava pronta a velejar, veloz, para longe do marasmo. Salvador projetou no ecrã a estrutura do projeto para que todos tivessem conhecimento, e anunciou os detalhes financeiros e logísticos. Iam constituir uma empresa em Angola, em parceria com um sócio local, e o próprio Salvador iria liderar as operações nos primeiros dois anos; Mário assumiria a liderança na ausência do diretor-geral. Uma vez que se tratava maioritariamente de ações de formação, Margarida seria promovida a gestora do projeto e da conta SinoAng, a tempo inteiro, e Joaquim e Filipa iriam estar envolvidos a tempo parcial, intercalados. Com este anúncio gerou-se uma salva de palmas espontânea dirigida a ela, e um brinde individual de Salvador, que lhe sorria com os olhos intensos, flute de plástico em riste. O futuro era dela, sentia-o, e não soube ter outra reação senão sorrir-lhe de volta, sorrir a todos, e beber mais um golo do champagne morno. Desejou ter escolhido 13


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outra roupa de manhã, em vez da túnica beige e das calças de ganga pretas, tudo assente nos mocassins gastos que a faziam sentir baixa. No fim da reunião, Salvador chamou-a ao seu gabinete. Tenho de começar a pôr maquilhagem todos os dias, não pode ser só para as formações e para sair à noite, tenho quase trinta anos… – Espero que nada disto seja uma surpresa, Margarida, sei que é uma grande decisão, mas a ARNÊS precisa de si, Margarida, para o sucesso da empresa. Tinha sempre gostado da forma como pronunciava o seu nome, pausadamente, olhando-a nos olhos, em dedicação absoluta. Estava sentado de perna cruzada atrás da secretária de vidro, uma Road & Track (“revealed… the fastest Ferrari ever!”) e uma Economist competiam pela sua atenção em cima de uma pilha de documentos, e uma chávena de café suja e um copo meio de água esperavam quietos junto ao Macbook Air. Sempre achou absurdo que só ele tivesse direito a loiça, e todos os outros tivessem de lidar com copinhos de plástico raquíticos, mas nunca tinha dito nada, Salvador podia não gostar… – Queria garantir-lhe que vai ter todo o meu apoio, e que estou convencido de que esta é uma excelente oportunidade para a sua carreira. Vai aprender muito mais nestes dois anos, Margarida, ou quem sabe até decide ficar mais tempo, do que poderia aprender aqui. Você tem crescido muito aqui, e tenho noção das responsabilidades que assume, mas em Portugal não temos mais desafios para lhe oferecer, nem grandes perspetivas de crescimento. Em Angola, para além do projeto da SinoAng, quero que assuma o papel de responsável operacional da ARNÊS Angola, nomeadamente nos Recursos Humanos, que é uma área fundamental. – Uau! – Sorriu. – E quantas pessoas vamos ter lá? Salvador endireitou o botão-de-punho prateado e expôs-lhe o plano das operações. 14


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– Para já seremos só nós os dois a full-time, e uma equipa de apoio — um motorista, um segurança e uma office manager/ rececionista. A Filipa e o Joaquim terão de ir e vir frequentemente, assegurando apoio na altura das formações. Mas em Angola temos muitos potenciais clientes, é um mercado enorme que precisa dos nossos serviços, e das suas competências, Margarida, e se se justificar, estou preparado para investir numa equipa maior, em permanência. Esse é um tema estratégico que teremos de ver juntos, quando lá estivermos. – Obrigada pela confiança, Salvador. É claro que vou considerar a proposta, mas primeiro preciso de falar com a minha família e com o meu namorado; é uma mudança muito grande. Quando é que eu teria de ir? E ia poder vir a casa quantas vezes? – Começou a pensar que podia mesmo ir para África, mas também não queria deixar de ir para a costa alentejana em setembro (é só uma semana, deve dar), tinham planeado uma viagem a dois a Nova Iorque nos feriados de dezembro (Nova Iorque é para esquecer), e, claro, o Natal, tinha de estar com os pais no Natal. O chefe bebeu mais um golo de água e voltou a fitá-la, pousando o copo. – Margarida, a ideia é começarmos a tratar já dos vistos. Aliás, quero que fale com a Maria Carolina ainda hoje para esclarecer o que é preciso. Como sabe, as eleições em Angola são no final de Agosto e há muito trabalho a fazer, daí a urgência dos prazos na proposta. Eu vou esta semana a Luanda reunir com o sócio angolano e assegurar a coordenação logística necessária. Espero que ele tenha conseguido fechar a contratação dos administrativos. E vou ver se o escritório também já está terminado, porque da última vez que lá fui ainda precisava de umas alterações. Diria que daqui a três semanas já tem de estar do outro lado. 15


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A sensação de flutuar começou a dar lugar a uma sensação de afogamento — cada vez menos ar, cada vez mais pesada, o imediatismo da coisa. Não posso ir para Angola assim, tenho compromissos, e a minha vida? Manteve-se em silêncio, sentada com as costas dobradas pelo peso da situação. – Também estive a ver a sua remuneração, e sei que já lhe estamos a pagar bem, mil e setecentos euros não é fácil de aumentar… – Tirou os óculos leves e pousou-os na secretária, os olhos claros bem abertos a fixá-la, a ler já o que ela ainda nem tinha pensado. Dá pouco mais de mil euros no fim do mês, pensou, quanto será que ia ganhar se fosse para Angola? – Como sabe, a proposta foi bastante boa em termos financeiros; o cliente está disposto a pagar bem a quem consegue assegurar qualidade em prazos apertados. A proposta que eu lhe quero fazer a si também é muito competitiva, porque eu quero que diga que sim, Margarida, – rodou ligeiramente na cadeira de pele preta, a mão a verificar mais uma vez o cabelo grisalho impecável, como se se visse ao espelho. Voltou a rodar para a frente, pausou, sorriu, levantou o seu caderno aberto e voltou a colocar os óculos. – Vamos passar a pagar-lhe mil euros brutos em Portugal, mantendo as contribuições para a Segurança Social e os encargos fiscais… e em Luanda vamos pagar-lhe mais dois mil dólares líquidos de vencimento, mais quinhentos dólares para alimentação. Se tudo correr bem como prevejo, vai ainda ter um bónus semestralmente, livre de impostos, a começar já neste Natal. Lembre-se que também não vai ter despesas com casa, porque, como é normal em Luanda, o escritório servirá também de guesthouse. E é em Alvalade, num dos melhores bairros da cidade, já deve ter ouvido falar, seguramente. E terá acesso permanente a carro e a um motorista, claro. O carro até já vem a caminho, tive de o man16


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dar vir do Dubai… Bom, mas a Maria Carolina vai-lhe enviar os detalhes da proposta por e-mail. Margarida cruzou as pernas e voltou a descruzá-las, os dois pés no chão davam-lhe equilíbrio e força para avançar com mais perguntas. – Obrigada, Salvador. Mas… e as tais viagens a Portugal? Com o semblante carregado, Salvador respondeu: – Pagamos duas viagens a Portugal por ano, o resto pode pagar com o seu próprio vencimento, uma vez que não terá praticamente despesas. Vai ver que pode tratar disso sozinha, ao seu critério, desde que as datas sejam previamente acordadas comigo, claro. O Diretor Geral frustrava-se com esta questão, que lhe parecia menor: C’est pas possible, estas miúdas são tão limitadas: como pode estar a pensar no namoradinho e na merda das viagens a Lisboa, quando lhe dou uma oportunidade destas? – E quando preciso de dar uma resposta? – Esta semana, quinta ou sexta-feira, au maximum. – Respondeu, sério. – Já? Mas é que eu preciso de ir a Mangualde falar com os meus pais no fim de semana, não dá p’ra ser p’rá semana? – Bon, segunda-feira, Margarida. Mas não pode passar disso, temos muita coisa a tratar. – Levantou-se, impaciente, voltou a tirar os óculos e deu-lhe um aperto de mão firme, fixando-a nos olhos: – Oiça, veja lá como consegue fazer isto funcionar, vai valer a pena. Estou a contar consigo. Vamos fazer a diferença na forma de as pessoas trabalharem, vai salvar muitas vidas e vamos fazer muito dinheiro. E vai-se divertir, garanto-lhe. Eu já conheço Angola, e acho que vai gostar — é um lugar sedutor, com oportunidade, esperança, onde cada ano é melhor que o anterior. É perfei17


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to para uma rapariga bonita e inteligente como a Margarida. Você tem potencial para muito mais do que estar aqui… acredite em mim, Portugal é bom é para passar férias… Margarida soltou um riso de menina envergonhada, muito atípico nela, enquanto mantinha a mão na mão do chefe. Olhava discretamente à sua volta, confirmando que estavam a sós no gabinete. Como é que este homem tem quarenta e sete anos? Ainda bem que és casado e com filhos, senão eras o meu fim. Apertou-lhe finalmente a mão de volta e prometeu, corando: – Segunda-feira dou-lhe uma resposta, e também espero que seja um sim. Voltou à sua secretária no open space mas não se conseguia concentrar. Apertou o cabelo moreno num rabo de cavalo, pronta para a ação, e ligou o Skype à procura de Inma, talvez a sua amiga do ERASMUS pudesse falar com ela. “Offline”, a palavra cinzenta a acentuar a distância da amiga. Como é que Londres era tão longe quando estavam offline, e parecia tão perto quando estavam online! Escreveu de qualquer forma, desabafando, “need to talk!”. Precisava de contar a alguém, recolher opiniões, queria ajuda para tornar tudo possível, mas não tinha coragem ainda para ouvir o som da realidade, falar ao telefone nem lhe ocorreu. Deixou o Skype e abriu a página do Facebook — na sua página tinha mais algumas fotos que Luís Pedro tinha partilhado, da estadia no Euro 2012, cachecol de Portugal ao pescoço, cara pintada, rindo com os amigos. Tinha voado de regresso esta madrugada, e ido direto para a obra no Alentejo, sem sequer passar por casa. Só se iam ver na sexta-feira, mas não podia esperar tanto tempo para falar com ele, ele ia-se passar. Escreveu-lhe uma SMS com a rapidez do hábito: “grandes novidades, amor, ganhámos a proposta de Angola, ai!!!”. Apagou o amor, e o ai, e rescreveu “grandes novidades, ganhámos aque18


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la proposta enorme, para Angola. Temos de falar”. Leu e releu, apagou, alterou, e acabou por enviar “conseguimos o projeto em Angola! sou capaz de ter de ir uns tempos... Falamos logo?”. A resposta tardava e como a produtividade era baixa, falou com Maria Carolina para lhe enviar tudo por e-mail e foi para casa cedo, ainda nem eram seis da tarde. No trânsito consultava sucessivamente o telefone, sempre presente no banco do lado do seu primeiro e único carro, um VW Golf amarelo, que os pais lhe tinham oferecido há quatro anos. O telefone era o seu companheiro — de viagem, na cama, no trabalho, era a sua janela para o mundo. Nada. Verificou o som, não fosse estar por engano no silêncio, e aumentou para o máximo, não queria arriscar perder uma mensagem ou um telefonema do Alentejo. Mas Luís Pedro trabalhava no terreno, e era muito mais dado a conversar do que a teclar. Via os e-mails de manhã e à noite, e tratava o telefone como um instrumento de trabalho. Que chato! Será que recebeu a mensagem e ficou chateado?. Conduziu até casa, um T1 na zona norte do Parque das Nações que tinha arrendado em 2008, quando conseguiu o emprego na ARNÊS. Pagava seiscentos e cinquenta euros de renda, e o namorado dava-lhe cento e cinquenta para ajudar, uma vez que só dormia lá em casa aos fins de semana, e nem todos. O dia estava enorme, um dos maiores do ano, o céu claro por cima dela, e observava a Gare do Oriente, obra de Calatrava que desafiava as regras; era uma floresta branca de ferro à beira do rio, e a estação de acesso à Europa. Lembrava-se bem da primeira vez que a tinha visto, e tirado fotografias. Tinha-se perdido de amores por essa zona de Lisboa com quinze anos, tinha ido visitar a Expo 98 com os pais, um calor insuportável, filas intermináveis e um constante quebrar de regras — a mãe a comer sandes com maionese sentada num banco, pés descalços, o pai a oferecer-lhe uma imperial, 19


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de que não gostou nada, deitarem-se tarde e acordarem tarde. Era uma Lisboa nova, encostada ao rio Tejo, pronta a abraçar quem estivesse disposto a largar as raízes da cidade. Na Expo até as árvores eram novas, a história ainda estava por escrever. Tinha decidido estudar arquitetura depois dessa viagem, mas o pai conseguiu convencê-la a enveredar pelas engenharias. – Os arquitetos são uns artistas, não fazem nada, é gente esquisita, filha. Os engenheiros fazem o que os arquitetos fazem, mas o contrário não é verdade, acredita em mim que já vi muita coisa e já construí muita coisa, e se fosse só arquitetos estavam as casas todas a cair! Em 2001 começara a estudar Engenharia Civil no Técnico para grande orgulho dos pais, e só soube que partir para Lisboa era a coisa certa no dia em que conseguiu lugar nas residências de estudantes Engenheiro Duarte Pacheco, precisamente no Parque das Nações. Parada no semáforo, quase a chegar a casa, pensava agora nessa grande mudança, em como tinha tido receio de deixar Mangualde, em como tinha pensado em não ir para Lisboa, agora a sua casa, e sentia uma confiança crescente de que deveria aceitar a proposta para Angola. Estacionou à porta, raramente precisava de pôr o carro na garagem. Quando chegou a casa, no terceiro andar do edifício, tirou os sapatos, abriu a última gaveta do móvel branco da sala e tirou um maço de Marlboro Light e um isqueiro, os dois sempre ao serviço para os momentos de grandes emoções, boas ou más. Apreciou os resquícios do incenso ainda no ar, tinha importado o cheiro da Holanda, e punha sempre tudo em perspectiva. Tirou uma Super Bock mini do frigorífico e foi sentar-se na cadeira de plástico preto na varanda, a olhar para o enorme relvado que circundava o edifício. Estava ansiosa. Olhou para o telefone: Inma já estava online no Skype. 20


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– Que te pasa, ¿guapa? – Puedes hablar? Had a job offer today, may have to move to Africa!!! – No, can’t talk, just write. Meeting. Tell me more. Sounds exciting??? – Yes, big $, awesome work, a promotion. In Angola. – WOW, congrats, you deserve it, guapa. – Talking to Luís tonite. – Is he going with u? – No no, don’t think so. – Pensou como deveria ser fácil para Luís arranjar emprego em Angola. Afastou o pensamento. – He’s never home anyway. U know what I think about distance. And about Luís ;) Inma tinha estado presente na única grande crise da sua relação com Luís, em Delft, no ERASMUS. Foi a única vez que o traiu, reconsiderou tudo, acabou com ele por duas semanas mas ele nunca teve de saber porquê. Quando voltou a Portugal, adoraram rever-se, tinham saudades, ele já estava a trabalhar, numa obra perto de Aveiro, ela começou a trabalhar na empresa do pai e viam-se com frequência. Ficava às vezes com ele no hotel, foram tempos animados. Só quando foi para Lisboa trabalhar é que começou a vê-lo só aos fins de semana, sempre na expetativa que fosse colocado mais perto, mas passados quatro anos continuavam à espera. Luís Pedro era de Beja e a obra em que estava agora era conveniente para ele, tinha voltado a viver com a mãe, e regredido em muitos sentidos. Cada vez falavam menos no futuro, e há quase um ano que não a pedia em casamento, talvez já cansado das desculpas, dos adiamentos, do “ainda temos muito tempo para filhos, quero fazer outras coisas antes”. – Izzy? – Sorry. Here. Lots on my mind. 21


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– Go for it, guapa. If u don’t like it, u can always come back. If u don’t go, u will always wonder… “Se não gostares, podes regressar. Se não fores, vais ficar sempre a pensar como teria sido…”. O telefone tremeu com a entrada de uma SMS. – Love you, gotta go. If I go, I will try to fly via London! – :) <3 – <3 Pousou o telefone, deitou a garrafa vazia no caixote da reciclagem e apanhou outra cerveja. Sentou-se e abriu as mensagens: “Boa! Ligo qd chegar a casa. Bjs amor” Tão querido, era este o Luís Pedro que amava, contra todas as críticas. Era carinhoso, compreensivo, tão boa pessoa, punha sempre o seu bem-estar em primeiro lugar, era o seu melhor amigo. Seguramente iria apoiá-la, talvez até pudesse ir com ela, quem sabe começariam a família que ele tanto queria em África? Tudo iria correr pelo melhor. *** Estava a jantar no sofá quando o namorado lhe ligou. Tirou o tabuleiro de cima das pernas e poisou-o no chão para poder falar com ele plenamente, gesticular, argumentar, convencer. Apertou o elástico que lhe prendia o cabelo. Sentiu o coração acelerado, num misto de excitação e ansiedade. Luís Pedro começou a conversa com assuntos do trabalho dele, quis ainda contar-lhe algumas coisas da Polónia e, finalmente, Margarida não teve coragem de contar a história toda, ficando adiada a conversa. Era segunda-feira, tinha uma semana até ter de dar uma resposta a Salvador. Às terças e quintas o namorado jogava futebol até tarde, nunca conseguiam conversar, e quarta-feira dessa semana Portugal foi eliminado pela Espanha, pelo que também não conseguiu abordar o assunto, e a decisão de partir que estava praticamente 22


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tomada… Avisou os pais de que iria a casa no sábado, a mãe já lhe tinha pedido que fosse às festas de S. Tomé, e queria que ela falasse com o pai, andava preocupada com ele. – Sabes que ele não fala destas coisas, Isabelinha, tens de ser tu a vir falar com ele. A empresa não está nada bem, ele anda muito em baixo, nem parece o mesmo. A mãe também não parecia a mesma, desde o diagnóstico de espondilose aguda, que a tinha forçado a deixar de trabalhar. Entre dores e barbitúricos, a personalidade da enfermeira carinhosa e capaz tinha sofrido grandes alterações. Tudo tinha acontecido por altura da saída de casa da filha para Lisboa, e a solidão nunca ajuda quem precisa. – Sábado estou aí à hora de almoço, mãezinha, contem comigo. Almoçamos, conversamos, temos muito que falar. E este ano vamos mesmo às festas, não quero desculpas. – E ficam cá para domingo? Posso preparar o quarto? – Desta vez sou só eu, mãezinha, o Luís Pedro tem de voltar para Beja no domingo muito cedo, combinou ver lá a final do Euro com os amigos. Mas sim, eu fico até domingo. Sexta-feira encontrou-se com o namorado no centro comercial Vasco da Gama, no andar de cima, na esplanada de uma cervejaria. Estava mais um dia aberto de sol e queria que estivessem de frente para o rio quando lhe apresentasse a aventura que se aproximava. Tinha saído cedo do escritório, tomado um duche e vestido uma roupa sexy e informal. Calças de ganga brancas justas que lhe realçavam as ancas largas, o rabo cheio, e as pernas compridas e fortes que sempre tinha tido, apesar de não fazer exercício. Escolheu um top bordeaux de tiras ao longo das costas e umas sandálias cinzentas, altas. Sentia-se confiante, sedutora, e, só mais tarde o percebeu, independente. Luís Pedro veio direto da viagem, e trazia-lhe de presente um cachecol do Euro 2012. 23


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– Então, outra vez essa porcaria? Beijos com cheiro a tabaco não quero. – Oh, desculpa, amor, não digas isso… Estava aqui sozinha a beber uma cerveja fresquinha… e apeteceu-me. É sexta-feira! – Vá, conta lá a história do emprego. Vais ter de ir quanto tempo para Angola? Não esperava esta abordagem e esqueceu-se do sonho que lhe ia vender — ela podia ir primeiro e ele depois, podiam ter uma casa grande cheia de filhos a correrem lá fora, descalços, como no Alentejo, como ele queria. – Bom, o Salvador fez-me uma proposta espetacular, amor. Mil euros mais dois mil e quinhentos dólares, casa e carro com motorista. É para ficar à frente do projeto grande. E bónus de seis em seis meses! Eles precisam mesmo de mim, é quase só formação que vamos fazer lá! – “Vamos fazer”, mas já decidiste ir? Mas espera, é para ires viver para lá? – Não decidi nada, não me estás a ouvir, – acendeu outro cigarro. – Sim, é para ir viver para lá. O Salvador disse que eram dois anos, com opção de voltar ou de ficar mais tempo, se estiver a correr bem. Vai montar a ARNÊS Angola, que só com este projeto já vai faturar mais do que aqui! – Ouve, tu não estás bem, não podes ir viver para Angola. Guida, aquilo é horrível. Tu já ouviste as histórias da minha mãe. – Isso era dantes, agora já não é nada assim. O Salvador disse que… – Eh pá, o que o Salvador disse eu quero lá saber, vê lá se o Salvador também vai deixar a família e a casinha em Cascais para ir viver para Angola! – Vai vai, amor, ele também vai, vou eu e ele, e há mais três que vão e vêm. 24


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– Ah boa, vais tu e ele. Fixe. Parece que já está tudo definido. Tu não estás é boa da cabeça. – Amor, calma. Não é nada disso que eu estou a dizer. A empregada aproximou-se e Luís Pedro pediu uma Coca-Cola com gelo. Margarida apagou o cigarro no cinzeiro de alumínio e pegou nas mãos do namorado. – Ouve-me. Ouve-me até ao fim. Luís Pedro suspirou e fez um esforço para escutá-la, escondendo os pés irrequietos debaixo da cadeira. – Primeiro, a ideia é ir com um visto de trinta dias, e depois logo se vê. Há eleições em Angola no fim de agosto, e temos de fazer muito trabalho em julho... – Mas... é para ir já? O namorado soltou as mãos, em desafio, e bebeu um golo do refrigerante. – Ouve-me, amor, ouve-me. – Continuou, firme e sorridente – A ideia é ir ainda em julho, sim, ficar trinta dias e depois logo se vê. Se for tão mau como tu dizes, claro que me venho logo embora, não me podem obrigar a ficar. Fiquei de dar uma resposta na segunda-feira, mas posso perguntar se o meu emprego em Portugal continua lá para o caso de eu querer voltar, se as coisas não correrem bem. De certeza que sim. E não está nada decidido que fique muito tempo – mentiu, com naturalidade. Não queria que ele desistisse dela. Queria tudo. – E, se for tão incrível como ele diz, cheio de oportunidades, pensei que talvez eu pudesse ir à frente, ver como é Luanda, e tu podias pedir uma transferência... Luís Pedro arregalou os olhos, olhando-a agora de frente, incrédulo. – E por que não? Estão sempre a chatear-te para ires para Angola! Pensa bem, podíamos começar uma vida lá, juntos, sem ser só ao fim de semana… 25


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A perspetiva de realização dos seus sonhos acalmou o rapaz, que se ajeitou na cadeira, relaxando a postura. A sua voz também se alterou e respondeu-lhe com pesar. – Ai, Guida, se fosse outro sítio… mas Angola?! Acabou a bebida antes de continuar, desta vez mais decidido. – Há malária lá, sabias? Tu nem gostas de acampar, quanto mais ires para África! E não são só as histórias da minha mãe, são as histórias dos meus colegas, são as coisas que dizem, aquilo não é um sítio normal, não há segurança, não podes andar à vontade, matam portugueses a tiro, percebes? Aquilo não é para toda a gente. Se atropelas alguém em Angola não paras, tens de continuar! *** – Que exagero, – interrompeu. – Isso também era dantes… – Não, não, não estás a ver, Guida, é mesmo assim, ainda agora! Pelo menos em Luanda. Não dá para viver num sítio assim, não dá para gente como nós. Gente como quem? Começou a irritá-lo este rapaz ali sentado, de t-shirt pólo verde escura debotada por anos de uso, calças de ganga da Levi’s que vestia quase todos os dias, exceto quando vestia os calções do futebol. Começou a não o reconhecer. Acendeu outro cigarro, ciente de que isso iria interromper a conversa. - Eh pá, mais um, a sério? Olha, ao menos em África não se fuma, a minha mãe já me disse. Só liamba! Tu se calhar também ias gostar disso! E cá estava, a referência ao semestre na Holanda, um espinho sempre cravado no coração dele, uma temporada em que a namorada desabrochou numa mulher que ele não conhecia. Izzy, não Guida. E agora, passado tanto tempo, eis que Izzy brotava novamente, descansada da sua longa clausura, pronta para novas paragens, sequiosa de um destino tropical. De cigarro na mão. 26


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Margarida gostou de ver Izzy, abraçou o seu regresso como se abraça uma amiga. A Guida desaparecia, cada vez mais distante, já só Luís Pedro a parecia ver. Nessa noite não voltaram a falar de Angola. Dividiram uma pizza, comeram gelados, e foram ao cinema ver o Transformers no centro comercial, escolha de Luís Pedro, incontestada. Iam poder desligar os cérebros. Do cinema foram para casa, diretos para o quarto onde, cansados, fizeram amor. Não se viam há duas semanas, não aguentavam mais, e acreditavam que assim iriam repor o equilíbrio. Assim foi. Faziam amor quase sempre da mesma forma, ele chupava-lhe os seios e acariciava-lhe as coxas, até que entrava nela com um dedo, depois dois, depois três, e depois quatro. Quando lhe dizia que tinha quatro dedos lá dentro ficavam os dois tão excitados, que mal tinham tempo para ele subir para cima dela e a penetrar. Ele ejaculava logo, e ela às vezes também se vinha, mas ele não dava pela diferença. Nessa noite Margarida teve um orgasmo muito forte, excitada com a vida e com as possibilidades do seu corpo. Estava excitada há mais de uma semana, até a dormir tinha orgasmos, precisava de sexo desta vez bem mais do que o namorado. Sentia um elo muito forte a este rapaz a quem se tinha entregue há oito anos, um alentejano que tocava viola na Tuna, jogava bem futebol e tinha uma pronúncia muito suave. Ele era um rapaz do campo, cada vez mais. Ela não. Sentia-se tão confortável com ele dentro dela, abraçados, nus, sentia-se em casa. Olhava para o papel de parede que tinham comprado e colado juntos, e sorria. Sabia que ele tomaria sempre bem conta dela, que não a trataria mal, que nunca lhe mentiria. Luís Pedro começou a adormecer ainda em cima dela, estava exausto. Empurrou-o com delicadeza para o lado, foi à casa de banho, vestiu o roupão turco castanho de homem e foi para a va27


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randa, de regresso à sua cadeira da IKEA. Acendeu mais um cigarro clandestino, e pensou que o melhor era mesmo não ir, não queria deixar a vida que tinha. Sentiu-se aliviada. Nunca se tinha sentido tão bem como com Luís Pedro, sempre confiara nas decisões dele, geralmente acertadas, e ele parecia ter uma opinião forte sobre este assunto. Pensou na vida privilegiada que levavam, a jantar fora com os amigos, a passear a pé sem medo de nada, pensou nas noites no Bairro Alto de copo na mão, a rirem bem alto, pensou na casa que adorava, nos passeios de bicicleta que faziam junto ao rio, e pensou nesse rapaz que a adorava e que a aceitava, independentemente das suas ideias malucas. Pensou no quanto ele queria ter filhos, na vontade de ter uma grande família, filho único e órfão de pai desde os doze anos, e lamentou não querer ter filhos, continuava à espera do instinto maternal, nada instintivo no caso dela. Estava uma noite quente com vento, o cigarro fumava-se quase sozinho, e justificava fumar mais um. Depois de lavar os dentes e bochechar duas vezes, vestiu umas cuecas de algodão brancas e voltou a deitar-se. Ele abraçou-a, adormecido. Observou o seu corpo nu, seco e alto, sorriu do seu bronzeado das obras, os braços escuros a contrastarem com o peito pálido, frágil. Gostava de o ver sem óculos, assim a dormir, os pelos da barba curta faziam-no parecer tão crescido, quase um homem. Via-o como um rapaz, não um homem, talvez por se terem conhecido numa idade em que as mulheres querem ser iguais aos homens. Agora, com vinte e nove anos, sabia que não era nem queria ser igual aos homens. Todos diferentes, todos iguais, uma porra. Todos diferentes. E ainda bem. A vida dela era boa, tinha de falar com Salvador segunda-feira para pensarem numa alternativa, talvez pudesse ir e vir de vez em quando. De manhã tomaram o pequeno-almoço juntos e anunciou a Luís Pedro a sua decisão de não ir. Ficaram os dois aliviados, e fizeram um brinde com sumo de manga de pacote. 28


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– Somos muito malucos, amor, ia ser um montão de dinheiro! – Não ia nada, Luanda é a cidade mais cara do mundo, ias ter de gastar quase tudo lá, nem penses mais nisso. Estou mesmo contente, ainda me assustaste, tu. És muito doida. Gosto muito de ti, – deu-lhe um soco no braço, ao de leve, como colegas da escola, e foi lavar a loiça para a cozinha. – E eu de ti! – Gritou. Acabou rapidamente de preparar a mala e a mochila do computador e passou na cozinha antes de sair. – Vá, tenho de ir, amor., Amanhã ainda te apanho em casa? – Não, tenho de ir cedo, disse à minha mãe que ainda jantava com ela. Mas para a semana só vou para baixo na segunda-feira, temos três noites. – Que bom! Trocaram um beijo. – Ligo-te quando chegar. – Boa viagem, vai com cuidado. Foi uma grande parte do caminho a ouvir música, bem-disposta. Na rádio as notícias deprimentes sobre a economia — a OCDE previa uma recessão no país ainda mais severa do que as estimativas da Troika. Salvador e o pai tinham razão, Portugal só estava bom para passar férias, até o Passos Coelho tinha encorajado os desempregados a emigrarem! Na área de serviço ligou o 3G e tentou aceder ao Skype mas não conseguiu encontrar Inma. Ainda devia estar a dormir, a recuperar da noite de sexta-feira em Londres, provavelmente com um novo troféu na sua cama, tão doida esta catalã, sempre à procura do amor verdadeiro. Margarida não acreditava na perfeição no amor, o mais importante era a amizade e o respeito, e podia haver muitos amores, tinha era de se escolher um, e ela tinha escolhido o dela. Pensou na leviandade com que o namorado tinha reagido essa manhã, não tinha ficado 29


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nada surpreendido com a sua decisão de não ir. Nunca achou realmente que eu conseguisse ir para Angola. E pelo visto tinha razão. Ficou desiludida consigo própria, e pensou que Inma também iria ficar, tinha de lhe explicar os problemas da insegurança em Angola, certamente que ela iria compreender a decisão. Não tinha decidido não ir por causa do namorado, simplesmente ele alertou-a para um tema fundamental e que ainda não tinha considerado. A amiga ia concordar com ela mal lhe dissesse que havia malária cerebral em Angola e que nem se podia andar na rua à noite! À medida que se aproximava da casa dos pais cumprimentava caras familiares nas ruas da aldeia e começava a sentir-se uma adolescente. Uma parte de si adorava essa sensação, de pertença, de tomarem conta dela, de poder relaxar, sentar-se a comer e a contar histórias, dormir sestas. Mas desta vez ninguém a parecia esperar. A mesa não estava posta, e a mãe tinha-lhe aberto a porta sem grande festa, dois beijos e uma reviravolta para a cozinha. Era a maior casa da freguesia de Cunha Baixa, a cinco quilómetros de Mangualde, uma vivenda moderna com cinco quartos e cinco casas de banho, um enorme terreno, horta, jardim, e uma cozinha como as do cinema. Tinha nove anos quando se mudaram para esta casa, e foi a única que conheceu até ter saído da aldeia, aos dezoito. Pousou a mala e a mochila em cima da mesinha da sala, ao lado da lareira, e foi atrás da mãe para a cozinha. Sentou-se num banco alto e perguntou-lhe: – Está tudo bem? – Não, Isabelinha, não está. Eu estou cada vez pior, mas nem te quero falar nisso, ando preocupada é com o teu pai, filha. A empresa vai mesmo fechar… – Mas então o pai disse-me que estava a conseguir controlar a coisa, que os bancos tinham perdoado uma parte das dívidas depois de o Jorge Miguel ter fugido. 30


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– Nem fales no primo à frente do teu pai, Isabelinha, nem fales nesse nome cá em casa. Os bancos não perdoam nada a ninguém, pior que eles só o Estado. O teu pai há cinco anos que anda a meter dinheiro nosso na empresa, a pagar às pessoas, a tentar não deixar ninguém ficar mal, sabes como ele é, mas já não dá mais... Agora estamos nós cheios de dívidas, e ele sem trabalho. – Sem trabalho? – Sim, filha, fechou mesmo, a Vassalo e Companhia já não existe, abriu falência e foi toda a gente para casa. Também já não havia muito trabalho… Mas o pior é que o teu pai sem ter para onde ir parece que anda meio doido, às vezes fica aí comigo a ver novelas, eu até fico assustada quando o vejo ali sentado tanto tempo. E acho que ele me anda a tirar medicamentos, Deus me perdoe, acho mesmo, Isabelinha. – Oh, mãe, mas e não me diziam nada? – Oh, filha, tu andas cheia de trabalho, tens a tua vida, e achámos melhor dizer-te quando viesses cá. Não pensei que estivesses tanto tempo sem vir. Sentiu-se culpada, egoísta, inútil. Nesta altura chegou o pai, bem-disposto, o seu herói de toda a vida. Mário Vassalo era um exemplo de honestidade, trabalho, dedicação, genuinamente um bom homem, de braços sempre abertos a qualquer necessidade. – Isabelinha, finalmente, pensei que te tinhas esquecido da Cunha Baixa! Então, vamos às festas logo à noite? E esse almoço, mãe, está tudo pronto? Posso pôr a mesa? Há anos que o pai fazia quase tudo lá em casa, desde fazer as camas a lavar a loiça, pôr a mesa, tudo o que envolvesse estar dobrado ou esforçasse as costas. Era de uma dedicação extrema a Isabel Maria, por quem se tinha apaixonado aos vinte e cinco anos, quando estava já casado, num casamento sem amor e sem filhos. Isabel Maria fora a enfermeira da sua mãe, e amaram-se 31


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desde o primeiro dia em que a viu levantar a senhora da cama nos seus braços e fazê-la rir. Todos os dias se amaram em silêncio, sem se tocarem, até ao dia em que a sua mãe morreu, cinco anos mais tarde. Nessa altura divorciou-se, casaram, e no mesmo ano nasceu a sua única filha. Ao almoço o pai expôs-lhe a situação, estava verdadeiramente revoltado, a angústia cada vez mais destapada com cada copo de vinho tinto. Não se lembrava de o ver beber assim. Uma vida inteira a trabalhar no duro, as rugas vincadas no rosto, e tinha sido assaltado, primeiro pelo primo, que roubara dinheiro da empresa e tinha fugido para Moçambique, e agora pelo Estado, que o obrigava a contribuições que já não conseguia suportar. – E esse gajo lá deve estar no bem bom, numa ilha qualquer, aí com uma preta em cada braço, e eu estou aqui quase sem conseguir pagar as consultas do osteopata da tua mãe, que me pede trinta euros de cada vez que ela lá vai, não é comparticipado, e ela continua a dormir numa tábua, quando não é no chão! E cortaram a pensão da tua mãe, já lhe contaste, Isabel, que esses gajos te cortaram a pensão? – Oh, Mário, não digas essas coisas à miúda, vamos falar agora de outra coisa um bocadinho. Isabelinha, e tu, que contas? Como está o teu trabalho? – Ela já não é uma miúda, tem quase trinta anos! Eu deitei fora o meu cartão do partido, e não tenho medo de o dizer, cambada de vendidos, só querem é saber dos seus tachos... – Mas connosco corre sempre tudo bem, não é, pai? – Perguntou sorridente, mão sobre a dele, poisada sobre a toalha bordada. – Já não sei, filha, já não sei, – duvidou o pai, derrotado, retirando a mão e pegando mais uma vez no copo. Sentiu um aperto enorme ao ver o pai assim, cheio de dúvidas, raivas, parecia-lhe mais pequeno, ou mais gordo, ou talvez 32


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apenas mais velho. Sempre tinha contado com a força dos pais, mas parecia ter de ser ela cada vez mais forte. Ainda bem que não ia emigrar, iam precisar que estivesse por perto. – Bom, eu recebi uma proposta para ir trabalhar para Angola, o Salvador convidou-me para ir com ele mas... – Ai, que bom, filha, ai se eu tivesse a tua idade nem pensava duas vezes, ora aí está finalmente uma boa notícia! Este país não está para se trabalhar, acho que fazes muito bem, vais ganhar dinheiro pelo teu trabalho, em vez de estares aqui a trabalhar para pagar a gatunos. – Bom, eu ainda não decidi se hei de aceitar, sabes que aquilo não é um sítio fácil, tem bastantes problemas de segurança, e tem a malária... Não sei, o Luís Pedro acha que eu não deva ir. – O Luís Pedro? Ele é que devia ir também, tem boa idade para isso, e aposto que tinham lá trabalho para ele, e bem pago! Isso da insegurança é verdade mas olha que é mais para quem vai assim sozinho, sem condições, para quem vai à caça de oportunidades. Tu para ires ias com o Dr. Salvador, que é um homem de negócios muito experiente, deve ter lá montes de conhecimentos, imagino, não ias correr riscos nenhuns, eu cá aposto que até te dava um motorista se tu pedisses! – Sim, a proposta inclui carro com motorista… Conversaram o almoço todo, e no fim da refeição já não havia razões para não emigrar. Os pais contaram-lhe que tinham posto a casa à venda, estavam mesmo mal de finanças, e ela percebeu que tinha de os ajudar. Sempre lhe deram tudo, motivação, amor, dinheiro, emprego, até o carro; estava na altura de crescer e retribuir. Fez algumas contas e viu que lhes ia conseguir mandar mil dólares todos os meses, sem qualquer esforço, e ainda ficar com mais poupanças do que tinha até agora. Os pais falaram-lhe de muitos amigos e família lá da terra que estavam por Angola, mu33


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lheres inclusivamente, e que se estavam a dar muito bem. À tarde ligou a Luís Pedro, mas o telemóvel estava desligado. À noite, a mãe teve uma crise de dores e decidiram ficar em casa, o costume. Tinha saudades de quando era pequena, divertiam-se tanto os três! Deitou-se cedo no seu quarto de princesa, cheio de folhos e fotografias de amigos que não via há muito tempo. Pegou numa fotografia com Luís Pedro que tinham tirado na Euro Disney, havia poucos anos, os dois despreocupados, como as crianças à volta deles. Lembrou-se da discussão que tinham tido no restaurante nessa noite, a primeira vez que lhe dissera que talvez não quisesse ter filhos, e a primeira vez que o tinha visto chorar. Apagou a luz e chorou também, por ele, pela relação que não lhe conseguia dar, e pelo fim da relação que já adivinhava. Ia para Angola em menos de um mês. No domingo, pediu desculpa aos pais por não ficar para a festa de São Tomé e saiu cedo para Lisboa: – Quero ver se ainda apanho o Luís Pedro, preciso de dar uma resposta amanhã na empresa, e preciso de falar com ele antes. Tenho de ver se o convenço! – Claro, filha – compreendeu o pai, que começava a transpirar no fato escuro e gravata que tinha vestido para caminhar na procissão. – Olha, ele se quiser falar com alguém que está por lá já faz muito tempo, alguns até com a família, ele que me ligue, talvez isso ajude. – Obrigada, pai; obrigada, mãe. Tenho os melhores pais do mundo. Vão ver que vai correr tudo bem, e podem contar comigo para vos ajudar também. Beijos! – Boa viagem, linda! – Mais beijos, são o casal mais lindo da Cunha Baixa! – Disse, soprando um beijo à mãe que continuava, apesar de tudo, a ser uma mulher muito bonita e delicada, naquele dia especialmente 34


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arranjada, no seu vestido cor de rosa, lenço de flores e sapatos beiges de salto baixo. – Liga quando chegares, – disse a mãe, com um aperto no coração ao ver a filha cada vez mais longe, o carrinho amarelo já ao fundo da rua de pedra, os primeiros passos no seu caminho até África. O marido apertou-lhe o ombro e apoiou-a, os dois juntos contra o mundo. Margarida ligou a Luís Pedro mal chegou à auto-estrada, queria pedir-lhe que ficasse até mais tarde, precisavam mesmo de falar. Ele já tinha passado a ponte sobre o Tejo. – Não dá, o Alentejo já está à minha espera. Temos de ir preparar a derrota dos Espanhóis com Itália! Esse Alentejo onde nunca se passa nada, que chatice, é o oposto do que eu quero, tu não vês? Mas ele não via. – Amor, os meus pais estão super mal, têm dívidas, mal têm dinheiro para pagar os médicos, têm a casa à venda. Vou ter mesmo de aceitar, nem que seja uns meses, um ano, não sei. – Calma, Guida. Pensei que tínhamos falado sobre isto, estás-te a precipitar. Eles estão bem, têm aquele casarão, precisam lá de uma casa tão grande só para os dois. Se for preciso podem vender a casa, mudar para um sítio mais pequeno, ou assim… – Ouve, tu estás doido? Esta casa é nossa, é a casa que o meu pai construiu, não vão vender coisa nenhuma, nem acredito que estás a dizer isso! Olha, estamos a conduzir, o melhor é mesmo falarmos mais tarde, – desligou. Sentiu um enorme alívio por ele ter dito um disparate tão grande, uma coisa com que fundamentalmente discordava. A dor no peito tirou-lhe a dor de barriga, o ódio que fomentava anulou toda a tristeza que sentia. Era este o caminho, era assim que ia poder ir para Angola. Ia concentrar-se nesta zanga, sugerir que era ele contra os pais dela, e pensar no facto de não querer ter os filhos dele. Sentia-o cada vez mais lon35


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ge, como se conduzisse não para o Alentejo mas para o além-tudo. Como se ela conduzisse não para Lisboa mas já para África; o calor do verão era já uma previsão do que iria sentir em Angola. Daqui a um mês. Daqui a menos de um mês. Em casa enviou uma SMS, não queria mais conversas “tens de compreender a minha situação”. Ele respondeu “estás a precipitar-te, falamos sexta, descansa”. Ela revelou “tenho de dar resposta amanhã, e já decidi. Tem mesmo de ser”. Sentiu novamente o alívio e a libertação de ir e de ter uma boa desculpa, excelente desculpa, para ir. Os pais precisavam que ela fosse. Os pais morriam se sonhassem que não queria ir, que o fazia por eles, mas a verdade é que no fundo queria ir. Izzy queria ir, já. A resposta do namorado, mais alterado do que nunca “pensa bem nas consequências, eu para Angola não vou”. Imaginou-o a chorar, na sua cama de adolescente, no quarto despido e quente, em casa da mãe. E ainda por cima Espanha tinha ganho, era campeã da Europa. No dia seguinte foi trabalhar cedo, conduziu mais depressa que o habitual, atravessou o estacionamento e o hall do edifício com o passo acelerado. Subiu no elevador em silêncio e com o olhar fixo na porta, os olhos castanho-escuros bem abertos, movida pela sua decisão. Falou com Salvador logo de manhã, aceitou a proposta, e tudo se precipitou. Começou a tratar dos papéis para o visto, que afinal iam pedir com caráter de urgência e talvez assim saísse mais cedo. Nessa semana jantou com as amigas da faculdade, Maria e Susana, e comemoraram o grande passo. – Tens de começar um blog! – Sei lá fazer isso, – disse, descartando a ideia. – É básico, vês no Google. Tens de fazer, para ires contando as aventuras! E vais deixar a casa, não? – Não tinha pensado ainda nisso. – Não faz sentido estares a pagar a renda e não estar lá ninguém, estás louca? Deixas as coisas em casa dos teus pais. 36


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Falou com Luís Pedro durante o dia, precisava de saber o que deviam fazer em relação à casa. – Desculpa, amor, mas preciso que penses se queres ficar com a casa, tenho de começar a tratar de tirar as minhas coisas, se vou cortar as despesas não posso manter a casa... – Tu não estás bem. Não sabes que estou a trabalhar a esta hora? Depois falamos. A dor na voz dele. Sentia-se cruel. Passadas umas horas veio a SMS “não quero a casa, já não vou fazer nada a Lisboa nos fds”. Chorou muitas lágrimas, e a partir desse dia chorou todos os dias até ao dia da partida para Luanda. Deu o pré-aviso de quatro meses ao senhorio, e ficou combinado deixar a casa antes de Outubro. Nesse fim de semana, Luís Pedro não foi três dias a Lisboa; não foi dia nenhum. Ela andou ocupada a levar vacinas, a assinar papéis em notários, a ouvir conselhos sobre a vida em Angola e a fazer compras, tudo para preparar a partida. Trabalhava todos os dias até tarde, também na ARNÊS havia muito a tratar. Acordou as prioridades para o seu trabalho em Luanda — ia ser um enorme desafio! Tinha de terminar o processo de recrutamento da rececionista, acabar de decorar a casa e o escritório e, mais importante, tinha de estar presente na reunião de kick off com a SinoAng. Após alguns adiamentos, a reunião acabou por ser antecipada, e o fim de semana seguinte tornou-se afinal no seu último em Lisboa. Passou os dois dias na cama com Luís Pedro, abraçados na sombra das persianas corridas do quarto, as janelas de vidro abertas para enganar o calor de Lisboa. Alternaram sexo molhado de suor e lágrimas com discussões estéreis. Prometeram-se amor eterno, e na evidência do inevitável, o namorado concedeu considerar oportunidades em Angola, e Margarida jurou permanecer apenas o tempo mínimo, o indispensável. Mentiras plenas, mas que surgiam como verdades na magia daquele momento, tão 37


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puro, tão frágil, sem espaço para problemas. Fizeram sestas impossíveis, fugindo da consciência, e no domingo despediram-se — o Alentejo voltava a chamar o jovem engenheiro. Margarida viajava sozinha para Luanda daí a três dias, a dezoito de julho de 2012. O pai veio de Mangualde de véspera, para a ajudar e a levar ao aeroporto de manhã. Ajudou-a com as malas, jantaram no restaurante italiano da vizinhança, beberam vinho verde para enganar o calor, e andaram de mão dada na rua, como não faziam há muito tempo. Era uma mulher e era uma criança, segura pelos dedos gordos da mão calejada do pai. No dia seguinte madrugou, mas quando chegou à sala o pai já estava a arrumar o sofá-cama e já estava pronto para sair, sempre despachado, sempre eficiente. Guardou na mala o gato de peluche que Luís Pedro lhe tinha oferecido quando começaram a namorar à distância, para lhe fazer companhia, e partiram para o aeroporto, o pai sentado atrás do volante do pequeno carro amarelo, transpirando, dando-lhe instruções, ela no banco do lado com uma mochila na mão, como no primeiro dia de liceu em que a levou, em Mangualde. – Vai correr tudo bem, pai? –Corre sempre, filha, connosco corre sempre. – A aventura da filha renovava ao pai a esperança na vida. Nessa manhã, Margarida chorou muito no aeroporto. Tinha o coração e a bexiga apertados, e dores de barriga, a ansiedade ocupava muito espaço dentro dela, magoava-a por dentro e empurrava lágrimas cá para fora. Chorava por Luís Pedro, pelas dores da mãe curvada, pelo sofrimento do pai, chorava por não ter visitado os pais mais vezes quando podia, e por não os poder visitar agora, que queria tanto. Já tinha saudades dos pais. Queria a mãe, o conforto do colo da mãe. Chorava, e estava nervosa, entusiasmada e contente, tal e qual como no dia em que os pais a tinham deixado na residência universitária. Lembrava-se de como 38


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Miguel, o seu namoradito de liceu, tinha insistido para irem os dois para Lisboa, e ela não queria, queria ir para Coimbra, mas lá aceitou candidatar-se. Ela entrou, ele não, e ela foi à mesma. Tinha-se sentido assim, como hoje, e tinha sido tão boa a mudança. Já na porta de embarque acedeu ao Facebook, não sabia quando voltaria a ter internet. Mandou mensagem – “já estou no gate, ligo-te logo. Obrigada por tudo, amor”. – “boa viagem, amanhã falamos. Ainda hoje estão aqui a falar de obras em Angola”, respondeu. – “A sério? Que bom!”, mentiu. – “Quem sabe, quem sabe, bjs amor”. Foi à casa de banho, chorou com força uma última vez, um luto por Guida, a estudante de engenharia que aqui ficava. Lavou a cara, ajeitou o cabelo com as mãos, respirou fundo, e sorriu — já havia espaço para Izzy, senhora do seu grande nariz, pronta para tudo. No avião enviou duas SMS: uma aos pais e outra a Inma. A primeira dizia “tudo a correr bem, já no avião, muitos beijos!” e a outra dizia “Here I come, Africa, que sera, sera!”. Desligou o telefone, pediu mais um cobertor, apertou o cinto e interiorizou: Vou viver para África!

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