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1. O Português L2 para alunos surdos: um desafio metodológico

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Prefácio

Prefácio

1. O Português L2 para alunos surdos: um desafio metodológico As diversas investigações que têm vindo a ser feitas, em termos internacionais e nacionais, mostram de forma inequívoca a relação bilateral entre consciência fonológica e decifração leitora. No caso português, o Plano Nacional do Ensino do Português (2005-2008) confirmou a importância do conhecimento explícito da oralidade para uma fluência leitora e escrita. Um treino precoce que leve as crianças a identificar, segmentar e manipular as unidades sonoras da língua prediz um futuro bom leitor e, consequentemente, ao compreender as relações não-unívocas entre fonema/grafema, um aluno capaz de uma ortografia escorreita. O Português, como língua opaca que é, precisa de um destro reconhecimento auditivo e uma afinada discriminação dos sons da língua para que o aluno seja capaz de transpor a forma sonora para a forma gráfica e vice-versa. Perante tal assunção teórica e didática, como ensinar uma língua oro-auditiva a quem não ouve? Se o reconhecimento fonográfico é imprescindível, como pretender que uma criança surda leia aquilo que não ouve e, em alguns casos, nunca ouviu? A resposta está longe de ser simples, porém, a nosso ver, não implica que seja Preview impossível. Em primeiro lugar, e contrariamente aos pressupostos que norteiam hoje o ensino de uma língua segunda, o Português só será sig-

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nificativo para uma criança surda se o seu ensino for mediado pela Língua de Sinais Portuguesa (LSP)1. Afigura-se necessário, antes de partirmos para a justificação desta nossa proposta didática, apresentar alguns conceitos, tais como os de língua de sinais portuguesa e língua portuguesa para alunos surdos. A língua de sinais portuguesa é um sistema linguístico composto por signos arbitrários, pseudo-icónicos e convencionais, sendo veículo de comunicação e expressão cultural da comunidade surda portuguesa (Amaral & Coutinho, 1994; Correia, 2009). Este idioma é pleno e independente do Português, que não é a sua língua-mãe, com que apenas mantém relações típicas de uma língua minoritária em contacto com o idioma oficial e maioritário do país (Correia, Santana & Silva, 2020). A LSP tem relações de proximidade com a língua de sinais sueca, nomeadamente no seu alfabeto manual, uma vez que o ensino da lecto-escrita em Portugal começou em 1823 pelas mãos de um professor de surdos, de nacionalidade sueca, Per Aron Borg (Carvalho, 2007). Todavia, ela emergiu naturalmente da convenção entre crianças e jovens surdos que, na escola que frequentavam, combinavam com os professores os sinais que representavam conceitos. “A aprendizagem dos signaes dispunha de mais duas horas. Todas as 4a feiras e sábados entre as 11h00 e as 12h00 para proceder à regula1 Usamos ao logo deste texto a designação Língua de Sinais Portuguesa, recentemente proposta, (Custódio e Correia, 2019 ao invés de Língua Gestual Preview Portuguesa, que é mais comum e que consta em documentos oficiais. A nossa opção assenta em critérios de história da língua portuguesa e terminologia, tendo sido explanada em artigo prévio. Para mais informações, consulte-se Custódio & Correia, 2019, pp. 59-72.

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rização de novos signaes. Tratava-se de signaes captados pelos discípulos e faziam referência ao novo vocabulário ministrado pelos mestres durante a semana.” (ANTT/MR/ Negócios Diversos/ “Negócios do Reino” mç. 1922) Como se pode inferir pelo acima exposto, o ensino da leitura e da escrita começou por ser mediado pela LSP, pois foi este o meio de contato possível entre mestre e discípulos. Esta abordagem designa-se método gestualista e, segundo fontes chegadas até aos nossos dias, foi proposto pelo Abade de L’Épée que, assim, instruía os alunos surdos no Instituto de Surdos de Paris. “Le seul but que je me proposai fut de leur apprendre à penser avec ordre, & à combiner leurs idées. Je crus pouvoir y réussir em me servant de signes représentattifs assujetis à une Méthode dont je composai une espece de Grammaire.” (L’Épée,1784, p. 9) Esta metodologia foi contrariada em 1888 aquando o Congresso de Milão que legitimou o método oralista puro, ou seja, implicou a proibição do uso de uma língua de sinais em quaisquer contextos, nomeadamente o do ensino da leitura e da escrita que era o preconizado pelo já mencionado Abade de L’Éppée e seus seguidores. Não cabe neste capítulo discorrer sobre o prejuízo que tal metodologia implicou em termos de identidade linguística, liberdade de comunicação e desenvolvimento de milhares de surdos. Felizmente, anos mais tarde, no designado congresso de Vancouver determinou Preview que não mais se usasse esta metodologia opressora, que proibia a livre expressão numa língua natural e plena obrigando a métodos de aprendizagem assentes na oralização pura e não na absorção de

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conhecimentos. Caminhava-se para o ensino bilingue, ou seja, o surdo deve aceder aos conceitos da língua oral do seu país através da sua língua de sinais natural. Avançando concretamente para o caso português, o reconhecimento da língua de sinais portuguesa, designada, como já dissemos em nota, estatutariamente por Língua Gestual Portuguesa, implica: “Proteger e valorizar a língua gestual portuguesa, enquanto expressão cultural e instrumento de acesso à educação e da igualdade de oportunidades” (Constituição da República Portuguesa, artigo 74.º, alínea h). Quase uma década depois, constitui-se no nosso país, a rede de Escolas de Referência para o Ensino Bilingue que o Dec. Lei 3/20082 legitima, advogando o estatuto das aprendizagens das duas línguas: “A educação das crianças e jovens surdos deve ser feita em ambientes bilingues que possibilitem o domínio da LGP, o domínio do português escrito e, eventualmente, falado, competindo à escola contribuir para o crescimento linguístico dos alunos surdos, para a adequação do processo de acesso ao currículo e para a inclusão escolar e social.” (Dec. Lei 3/2008 de 7 de janeiro, art. 23.º, ponto 1). Assim, o estudante surdo acede ao currículo através da língua de sinais portuguesa, regida por programas curriculares específicos3 , e aprende português como língua segunda. Três anos mais tarde, 2 À data deste texto, está já em vigor outro articulado legal, o Dec. Lei Preview 54/2018 de 7 de junho. Todavia, como ainda não estava aquando a elaboração do Programa de Português como Língua Segunda para Alunos Surdos, não o citamos. Acrescente-se que pugna também pelo ensino de ambas as línguas. 3 Programa Curricular de Língua Gestual Portuguesa para o Ensino Básico

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