Por terras da Galécia, a pé

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De Brácaro da Bisbaia

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TÍTULO:

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FICHA TÉCNICA

Por Terras da Galécia, a pé – Uma Aventura, um Desafio Brácaro da Bisbaia EDIÇÃO: Edições ex-Libris ® (Chancela Sítio do Livro) AUTOR:

PAGINAÇÃO GRÁFICA: ARRANJO DE CAPA:

Alda Teixeira Filipa Câmara Pestana

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1.a Edição Lisboa, junho 2019 ISBN:

978-989-8867-62-9 454149/19

DEPÓSITO LEGAL:

© BRÁCARO DA BISBAIA

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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Vedes aqueles Caminhos, Que fizeram nossos antanhos? Cuidai deles, sĂŁo pergaminhos Escritos hĂĄ anos e anos. Andai neles nos bocanhos.

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DO AUTOR:

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LEI DO JOGO – Anotada e Comentada Editor – Edições Almedina, SA Março de 2006 (esgotada desde novembro de 2006)

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ie w A MARIA DO SAMEIRO PINHEIRO

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A ALBERTO JOSร PINHEIRO

Quem quiser saber Tem de andar ou ler (Do Rifonรกrio)

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– Pelos Caminhos de Santiago – Pela Via Nova Romana, entre Bracara Augusta (Braga) e Asturica Augusta (Astorga)

Autor: BRÁCARO DA BISBAIA

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Províncias da Hispânia Romana, a partir do Imperador Diocleciano, finais do século III

À guisa de Introdução

De prosa, a obra. De fotos, a ilustração. Fizeram horas de sobra Dois homens desta nação, Galécia, assim chamada, Querida terra-mãe amada.

Galécia é a minha terra, a minha pátria longínqua, a Casa Comum da Irmandade Galeciana. Aqui, as gentes do Noroeste da Ibéria (bracarenses, 11

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lucenses e asturicenses, pelo menos) vivenciaram o espaço, criaram tradições, forjaram uma língua e sonharam melhores mundos. Já, no Monte Medúlio,1 – 22 a. C. – estávamos juntos, do mesmo lado da barricada, contra o invasor romano. Foi aqui que tudo começou. Lançaram-se os fundamentos, os caboucos, germinaram ideias, criou-se um substrato, um corpo de interesses próprios, individualizados, que vão robustecer-se, séculos mais tarde, com a ação de nomes cimeiros, como, Paulo Orósio, Martinho de Dume e Frutuoso de Montélios. Porém, a nação ficou à mercê de mãos alheias. Mesmo com os Suevos, os Visigodos e os Árabes, o gérmen continuava vivo. De tal maneira que, logo nos primeiros tempos da restauração da diocese de Braga, em 1070, a situação agudizou-se tanto que originou dois (arce)bispos vermelhos, que se rebelaram contra a hierarquia papal. Queriam reconquistar os resplendores do passado da Galécia, onde Bracara Augusta brilhou. Foram eles: D. Pedro de Braga (1070-1093) e Maurício Burdino (1109-1118), o antipapa Gregório VIII. A luta da afirmação nacional permaneceu latente pelos séculos, até que as vicissitudes históricas e políticas dos séculos IX a XI empurraram os povos para dois campos distintos. E Portugal formou-se incompleto. Essa separação acentuou-se com os tempos. Porém, o reencontro dos irmãos afastados é cada vez mais plausível, pois, os novos ventos que circulam pela Europa o favorecem, nesta época de horizontes abertos. Quer-se, agora, maior entrelaçamento, conhecimento e intercâmbio neste território que a mais ninguém pertence, senão aos povos, que, na antiguidade, lhe deram o ser e que os da atualidade querem desenvolver. Esta obra não é um Guia dos Caminhos de Santiago. É-o, também, porque dá minúcia à sequência de trajetos. Ela é, antes, no conjunto, um repositório de Caminhos Ancestrais, que foram tomando sempre, segundo os tempos, novas qualidades com celtas, gregos, romanos, suevos, visigodos, árabes, sem esquecer o homem moderno. Monte Medúlio – sítio onde se deu a última grande batalha, entre os unidos Calaicos, Cântabros e Ástures contra as legiões romanas, comandadas por Caio Fúrnio e Públio Carísio. No final da contenda, os indomáveis vencidos povos peninsulares preferiram o suicídio, pelo fogo, ferro (espada) e veneno de teixo, à escravatura. A sua localizaçao geográfica é controversa. 1

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Também, não é um Manual de Arte, apesar de comportar inúmeros comentários às peças de belo efeito que vão aparecendo nos Caminhos, muitas delas desfiladas nas fotografias. Ainda, não, um Manual de História, porquanto as informações são esparsas, sem fio nem meada, mas contundentes para a compreensão do todo. Muito menos, um Livro de Devoção Católica, com missas, benzimentos, rituais, rezas, lengalengas, beatices, santinhos, humilhações, confissões, comunhões, orações massivamente repetitivas, pagamentos de promessas, histórias da carochinha … Ele é, sim, um Livro de Viagens pontuado por fotografias. Crónicas, que relatam tudo o que vai aparecendo pela frente e se torna digno de nota. Um Livro Cultural. Um livro que quer pontilhar o mapa do noroeste peninsular com malha intersticial, onde releva, se bem que perfunctoriamente, os seus caminhos, subidas e descidas, os seus monumentos, igrejas, cruzeiros e palácios, a arte, as suas características, os seus costumes, as suas vivências, a sua gastronomia, cidades, vilas e aldeias, a sua história, a sua geografia, as paisagens, o tempo, as matas e florestas, a sua fauna, os seus rios, lagos e montanhas, os seus parques naturais, os seus vales e seus campos, as suas gentes, os seus heróis e todas as peripécias que vão acontecendo aos manos intervenientes, no porvir do dia a dia. E, ainda, o encontro de linguajares de muitos povos do mundo. Nele sobressai a viagem, não a permanência, não a demora. Daí uma certa superficialidade, simplicidade. Podemos dizer que o lema se enuncia, assim: passa, vê e segue em frente. Este livro tem o objetivo declarado de dar visibilidade aos panoramas grandiosos, majestosos e grandiloquentes, à beleza do trabalho das gentes, várias vezes milenares, que se manifesta neste nosso noroeste peninsular ibérico. Por ele e através dele, o autor pensa o que pensa, vê o que vê, sente o que sente e di-lo, sem rodeios. A escrita faz-se em tom coloquial. Ao decidirem palmilhar o território pretérito da Galécia, os dois manos, rapidamente, chegaram à conclusão de que o melhor método a seguir era 13

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percorrer os Caminhos de Santiago, legítimos herdeiros das vias ancestrais, em especial das romanas, com o espírito de conhecer a Casa Comum dos povos que, no antanho, habitaram o noroeste peninsular, o seu habitat natural, o substrato mais profundo das suas raízes multimilenares. Os diversos caminhos são um meio, um fio condutor, para eles chegarem aos sítios e urdirem toda a trama desta saga. Um deles, porém, foge à lógica dos restantes: A Via Nova Romana, que ligava Bracara Augusta (Braga) a Asturica Augusta (Astorga), pela Portela do Homem (Gerês). Capitaneada por uma equipa de arqueólogos da Universidade de Santiago de Compostela, esta Estrada vai demorar seis anos a completar. De bragas vestidos, tantas vezes, e mochilas às costas, sempre, os dois irmãos deram corda às botas e atravessaram montes e vales, ao sol, à chuva, ao vento e ao frio. Indagaram terras de vistas nunca vistas. E o resultado é aquilo que, nesta obra, se pode ler e ver. Em resumo, são estes os Caminhos percorridos:

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I – De Braga a Compostela – Caminho Português de Santiago II – De León a Compostela – Caminho Francês de Santiago III – De Chaves a Compostela – Via da Prata (também apelidado de Caminho do Sudeste ou Caminho Moçárabe ou Caminho Sanabrês ou Caminho Português do Interior) IV – De Oviedo a Santiago de Compostela – Caminho Primitivo – Património da Humanidade, desde julho de 2015. Ultreia (vamos mais além) et suseia (e mais acima)! V – De Gijón a Compostela – Caminho do Norte ou da Costa Norte da Península Ibérica VI – De Ferrol a Compostela – Caminho Inglês de Santiago VII – De Santiago de Compostela a Finisterra – Caminho de Finisterra VIII – De Braga a Astorga, pela Portela do Homem do Gerês – A Via Nova Romana inaugurada no ano 80 da nossa era (ou A VIA XVIII, na ordenação de Antonino Pio, ou, ainda, A ESTRADA DA JEIRA, na denominação medieval) BRÁCARO DA BISBAIA 14

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I – De Braga a Compostela – Caminho Português de Santiago2/3 PREÂMBULO – DE COMO TUDO COMEÇOU

Foi numa tarde soalheira de Domingo. 21 de agosto de 2011. Cumpria eu o costume de ir visitar minha mãe, de 86 anos, que vivia em casa da filha Eulália, em Amares, distrito de Braga.

“Cousa sabida é, que veio o glorioso Apóstolo Santiago pregar a Hespanha, como o tem a tradição antiquíssima, e é prova com a autoridade de muitos Sumos Pontífices, e autores gravíssimos, como diremos na vida de São Pedro de Rates seu discípulo, e primeiro Arcebispo desta Igreja de Braga. Veio o glorioso Apóstolo de Jerusalém por mar desembarcar em algum dos portos de entre Douro, e Minho, que então era da Província da Galiza. Demandou a cidade de Braga como mais principal, e cabeça de toda a Província, e aí começou a pregação do Evangelho, seguindo o exemplo de Cristo seu Mestre, e dos Apóstolos, que buscando as cidades mais populosas deram nelas princípio à publicação da Lei da Graça Cristo Senhor Nosso pregou em Jerusalém, e Cafarnaú, cidades principais da Judeia; São Pedro em Antioquia, depois em Roma; São Paulo em Damasco; São Marcos em Alexandria; São Lucas em Tebas; e outros em outras cidades semelhantes.” “O Apóstolo Santiago seguindo a mesma ordem pregou primeiro em Braga cabeça de Galiza, depois nas cidades mais principais de Hespanha, que com sua presença visitou. Converteu em Braga à Fé de Cristo alguns dos moradores, e fez aquele insigne milagre, que admiram os Judeus, e gentes, qual foi ressuscitar a São Pedro de Rates morto havia muitas centenas de anos, como em sua vida diremos.” (In HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DOS ARCEBISPOS DE BRAGA – I, de Dom Rodrigo da Cunha, Arcebispo e Senhor de Braga, primaz das Espanhas – Reprodução Fac-Similada – Braga 1989 – págs. 28 e 29) 3 Personalidades reais e episcopais que realizaram o Caminho, inter alia: Bispo D. Pedro, em 1075, para participar no concílio provincial; D. Sancho II, em 1244, e rainha Santa de Isabel (de Aragão), após a morte de D. Dinis, quando já reinava seu filho, D. Afonso IV (in Crónicas de D. Sancho I e D. Afonso II, Livros 12 e 13 da

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Estávamos nós, eu, minha mãe, minha irmã e meu cunhado Zé Vale, numa conversa despreocupada, debaixo duma ramada de kiwis, cuja sombra nos refrescava daquele dia calorento, quando, inesperadamente, chegou meu irmão Alberto. Palavra puxa palavra e a conversa foi-se prolongando tarde fora. Até que o Alberto começou a desfiar lembranças sobre o Caminho Inglês de Santiago, que havia realizado há cerca de um mês, com mais dois companheiros de ocasião. Relatou peripécias, dificuldades, encontros, belezas, agruras e mais uma série de ingredientes desses dias tão difíceis quão gostosos. Foi tanto o contentamento que o grupo, em chegando a Compostela, não perdeu tempo e resolveu continuar, de imediato, pelo Caminho do Cabo Finisterra, o único que se inicia em Santiago, porque todos os outros aqui chegam, no final. Revelou, ainda, ter já projetado nova aventura para inícios de setembro, agora, perpetrando o Caminho Português, a partir de Braga, e sozinho. A descrição de tamanhos feitos e o grande entusiasmo com que o fez, despertaram em mim a vontade da descoberta, do desafio e arrojo, enfim, estados de alma ligados a sentimentos, sítios e palavras, como, aventura, experiência, conhecimento, romantismo, bosques de carvalhos, regatos frescos, pontes romano-medievais, ermidas, cruzeiros, capelas, alminhas, conventos, florestas, matagais, montes, campos, vales, estradas romanas, miliários, albergues, enfim, uma parafernália de realidades, vistas sob vários ângulos. Porque não alinhar num programa estonteante de quase duzentos quilómetros e dizer sim, já ali, que estou pronto a seguir um programa como este, matutava eu, em segredo, comigo mesmo. E, de repente, os questionamentos começaram a sair em catadupa: então, o que é preciso levar, que comprar, que treinos fazer, como se come, como se dorme, que roupa, que calçado levar, em que dia iniciar, quanMonarquia Lusitana, de Frei António Brandão, edição atualizada com uma introdução de A. Magalhães Basto, Livraria Civilização – Editora, Porto 1945, p.28); D. Manuel I para agradecer a descoberta do Caminho Marítimo para a Índia (in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Série de História – Porto, 1970 – vol. I, p.24 – “No Quinto Centenário de Dom Manuel I”, por António Cruz). 18

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tos dias durará a viagem, quantos quilómetros por dia, quantas etapas…? E algumas respostas também não se fizeram esperar. Equipamento: mochila, cantil, chapéu, lanterna, bastões, um impermeável, um par de botas apropriado, material de higiene pessoal, incluindo sabão ou detergente para lavar algumas peças de roupa. E, ainda: 2 ou 3 calções, 2 ou 3 camisetas, 2 ou 3 cuecas, vários pares de meias, lenços da mão, um saco-cama, … Assim, ficou, logo ali decidido que a caminhada começaria no 1.º de setembro, uma Quinta-Feira. Restava-nos uma semana e meia para as compras, treinos e o mais que se quisesse e fosse necessário. Quanto a compras, elas estavam facilitadas. Há lojas que albergam tudo o que é necessário para caminhadas. E sobre treinos, as minhas corridas semanais (3 X 9 quilómetros) constituiriam a base, sem descurar que correr não é a mesma coisa que caminhar; os músculos a endurecer não são os mesmos nas duas modalidades. Neste entrementes, ainda dá para fazer uma caminhada pelo triângulo turístico de Braga com ida por Nogueira, Falperra, Sameiro, Bom Jesus, Variante da Encosta e Nogueira, de volta. O Alberto que já tinha a experiência dos Caminhos Inglês e Finisterra, sabia que precisávamos de uma credencial de peregrino para dar início ao percurso e ganhar o direito de albergagem, ou seja, o de frequentar os albergues. E como, ainda, não há em Braga um local onde se possa adquirir, ficou combinado dar um passeio de carro até ao Albergue de Ponte de Lima, onde é possível alcançá-la, embora tivesse de ficar expresso nela que o princípio do Caminho seria Braga4. E assim aconteceu. No dia 29 de agosto, Segunda-Feira, fomos à Vila mais antiga de Portugal tratar do assunto. Também ficou assente que, na Quarta-Feira, a seguir, no início da tarde, iríamos ao balcão da bilheteira do Museu do Tesouro da Sé de Braga colo-

Ainda não havia Albergue na cidade de Braga, que só foi inaugurado no dia 31 de agosto de 2013, passando a “Casa da Roda” ou dos Paivas, situada mesmo por detrás da capela-mor da Sé de Braga, na Rua de S. João, a dar guarida a 40 peregrinos que lá queiram pernoitar. Esta Casa é gerida pela Associação Juvenil Jovens em Caminhada. O Posto de Turismo de Braga também colabora no apoio aos caminheiros, nomeadamente, na aquisição e carimbo dos passaportes (credenciais). 4

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car o primeiro carimbo na credencial de peregrino, com a data do dia da partida. Convém dizer que uma credencial de peregrino é um folheto oficial, produzido pela organização da Catedral de Santiago, dobrado sobre si mesmo, onde se contém quarenta quadrados em cinco pequenas páginas, prontos a receber o carimbo de uma instituição (albergue, pousada, entidade administrativa civil, militar ou religiosa) ou casa comercial (café, restaurante, pensão, residencial ou hotel), que vão testemunhando, através de registo (carimbo), os passos que se vão dando ao longo da marcha. No verso, comporta mapas com os traçados dos vários caminhos, bem como outras indicações úteis. E na referida Quarta-Feira, à tarde, aposto o carimbo no primeiro quadrado da credencial na Sé de Braga, principiámos o Caminho Português para Santiago de Compostela até à Igreja de Prado, fazendo uma experiência neste pequeno tramo. Será que o Caminho Português de Santiago é mais velho do que a Sé de Braga? Penso que o ditado continua a ser verdadeiro, isto é, a vetustez do monumento suplanta qualquer realidade político-religiosa posta no terreno. Bastará recordar três datas cruciais, para o efeito: a primeira, em 715, onde a cidade de Bracara Augusta foi arrasada por incursões muçulmanas, comandadas por Abdelazim; a segunda, em 997, com a passagem aterradora de Almançor, general do Islão, até Santiago de Compostela, onde morreu Gonçalo Mendes, Conde de Portucale; e a terceira, em 1089, data da sagração solene da Catedral Metropolitana de Braga, cuja diocese havia sido restaurada em 1070, tendo por timoneiro o bispo D. Pedro. Mais tarde, com a Reconquista e Baixa Idade Média, dentro duma nova realidade, os peregrinos de Santiago, que procediam do sul do país, entravam na cidade de Braga por uma porta ou arco denominado, então, Postigo de D. Sebastião5/6 da muralha medieval, próximo da Capela de

Posticum D. Sebastiani, in Mapa de Bráunio de 1594. Segundo Frei Manuel da Ascensão em manuscrito do século XVII (in Memórias de Braga, de Senna Freitas – Tomo I, p.p. 27-28 – Braga, 1890). 5 6

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S. Sebastião e atual Largo Paulo Orósio, não longe da igreja paroquial de Santiago da Cividade que, até à última década do século XVIII, tinha a sua entrada principal virada para a rua de S. Tiago, o contrário do que acontece, desde essa altura. Ali ao lado, atestando o culto jacobeu, temos o Largo de Santiago, a Torre de Santiago (uma das portas da muralha medieval), e, ainda, o Seminário de Santiago, que pertenceu à Companhia de Jesus. Sem esquecer, porque imperdoável, o Hospital de São Marcos e o Mosteiro de Tibães, instituições que prestavam assistência aos peregrinos. A partir de 1597, Pedro da Grã, frequentador da corte de D. João III, mandou construir a Capela das Santas Chagas, na parede norte da referida igreja da Cividade, para sua sepultura, passando a ser mais um motivo de visita e atração dos caminheiros, por força da exposição duma Tabula do “De Fontibus Salvatoris” (Isaías 12, 3), onde o sangue de Cristo Crucificado jorra para uma tina, colocada por baixo dos pés cravejados. Esta forma de representar a crucifixão é muito rara e peculiar. Daqui, desciam as ruas de S. Tiago e de D. Gualdim Pais, que davam diretamente para o Largo da Sé (Praça do Pão), onde também se localizava a antiga Casa da Câmara.

Fachada Principal da Sé Catedral de Braga

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Vamos, então, agora, principiar a nossa rota jacobeia, a partir da Sé Metropolitana de Braga, entrando na rua do Cabido, lateral ao Museu da Sé, e, depois, virando à esquerda, na rua D. Diogo de Sousa, prosseguimos até ao Arco da Porta Nova, uma das passagens da muralha medieval. Já pelo exterior desta, o Caminho continua pela Rua dos Biscainhos, onde fixaram alojamento os trabalhadores especializados da Biscaia, daí o nome, no tempo do arcebispo D. Diogo de Sousa (1505 – 1532), que vieram reformar partes da Sé de Braga. Do lado esquerdo, podemos ver o muro dos jardins e Casa-Museu dos Biscainhos, um palácio senhorial do século XVII do conde de Bertiandos, transformado na primeira metade do século XVIII. Nos semáforos, flete-se à esquerda, contorna-se o edifício do Patronato de Nossa Senhora da Torre, Centro Social e Paroquial da Sé, e entra-se na Rua da Boavista, popularmente conhecida como rua da Cónega. A princípio, a descida é suave, mas à medida que se vai caminhando, acentua-se, e, por vezes, muito. Esta rua interrompe-se para o trânsito automóvel, depois do número de polícia 71, do lado esquerdo, e 122, do lado direito, por força da abertura da via rápida de cintura à cidade. O peregrino pode continuar nela, através dum túnel subterrâneo. Após este hiato na continuidade, a rua (re)começa com a Fundação do Bonfim, do lado direito, n.º 152. Alguns metros abaixo, do lado esquerdo, encontra-se a Capela do Senhor das Ânsias. Afinal, não é só a mãe de Cristo que possui milhentos nomes; também o Filho tem mil e um. É uma construção de 1735, com campanário, feita à custa dos devotos, como se diz no frontispício com letras gravadas na pedra. O descenso continua. Ainda do lado esquerdo, topamos com as “Alminhas de S. Tiago”, duma só pedra de granito, que “pedem” a todos os caminheiros: “Vós irmãos, que junto de nós ides passando, Rezai por nós a S. Tiago, porque estamos penando”.

Por detrás das “Alminhas”, há um espaço com mesas e bancos para descanso e um largo terreiro: é a Praceta de S. Tiago com uma Fonte do mesmo nome, e, ainda, uma pequena alameda ladeada de bancos, ao centro, e um lavadoiro público coberto, encostado à direita. A Fonte está 22

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integrada num mural, feito propositadamente, cujo espaço está assim organizado: na parte cimeira central, um nicho bordejado de pedra arredondada, com porta de vidro fechada a cadeado, e, lá dentro, a imagem do Santo Apóstolo Santiago, de barbas e chapéu, bordão e conchas vieiras, vestes abundantes e capa, uvas pretas e brancas; depois, um nível mais abaixo, as armas do mandante da obra, identificado noutra pedra epigrafada, em posição inferior, que fala assim: “D. SOVSA, ARCHIE.DO – ANNO SALVTIS: 1531”; por ordem, e ainda mais abaixo, temos a Fonte, propriamente dita, feita em carantonha de peixe, e, por último, assentado no chão, um tanque, a quase toda a largura do mural, que serve para encaminhar a água para o exterior do espaço. Mesmo depois de acabar a rua da Boavista, continuamos a descer. Aparece a placa indicativa da freguesia de Real. E, no primeiro entroncamento, flete-se à direita, obrigatório, hoje, independentemente de outras sinalizações, que só lançam a confusão no peregrino. Entra-se na rua da Feira. Até aqui, o trajeto que fizemos é comum ao oficial, isto é, foi o que fizemos realmente e é o que continua na nova versão do Caminho. Mas, a partir daqui, há uma divergência: o que nós executamos continua em frente, pela estrada nacional n.º 201 até à Ponte de Prado, sempre em alcatrão; enquanto que a nova versão, vira à direita, pela rua da Feira, em direção ao Mausoléu de S. Frutuoso de Montélios. Ver mais adiante. Regressando ao tramo que verdadeiramente fizemos, estamos, então, em Real, seguimos pela rua Costa Gomes e vira-se, à direita, na Calçada de Real. Esta rua é rica em marcas do catolicismo. Sensivelmente a meio, depara-se-nos um conjunto formado por um cruzeiro, umas Alminhas e uma Fonte. O cruzeiro é simples, sem figuras; as Alminhas são dedicadas ao Nosso Senhor da Boa Sorte; a Fonte tem a carranca de um diabo, a pia é funda e forma-se com os lóbulos duma concha unidos. Uns metros mais abaixo, há um pequeno oratório feito por um particular, em 1975. A Calçada de Real prossegue até à Fundação Vieira Gomes, onde se liga, novamente, com a rua Costa Gomes. No final da Calçada, há umas Alminhas a S. Jerónimo, cuja figura reza, despojado de vestes, perante a cruz, e um monumento com o busto do benemérito Vieira Gomes, em espaço ajardinado com água corrente. 23

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Prosseguimos na rua Costa Gomes até ao Largo da Capela de S. Jerónimo, onde esta sobressai como peça principal, mas no seu entorno, podemos apreciar as Alminhas, na parte da frente, e a estátua de S. Jerónimo com pedestal, na parte de trás. A rua Costa Gomes só termina na estrada que vai para Martim. Atravessa-se, primeiro, e depois, continua-se na rua do Feital, já depois da placa indicativa da freguesia de Frossos. Entroncamos na rua de Cima, onde está o Caminho, e segue-se sempre em frente. Depois de umas Alminhas, vem uma primeira pontelha sobre o rio Torto. Assim chamado porque, se ele aqui leva a direção da esquerda para a direita, mais à frente vai ser atravessado por uma segunda ponte de dois arcos, mas na direção contrária, da direita para a esquerda. Antes desta segunda ponte, do lado esquerdo, vemos a igreja paroquial de S. Miguel de Frossos, e mais adiante, do lado direito, a Capela de Santo António. Junto à Ponte de dois arcos sobre o rio Torto, na margem direita, há um moinho e espaço verde, no entorno. A placa de Merelim (S. Pedro)7 informa-nos que mudamos de freguesia, pela rua da Ramôa. Prossegue pela rua do Carmo até ao Largo de S. Brás, empedrado, um recanto amplo com bancos, onde se destaca a Capela de S. Brás, um cruzeiro, um ponto de água e a estátua de S. Brás do Carmo. A Capela foi mandada erigir pelo arcebispo de Braga D. Frei Agostinho de Jesus e Castro, no ano de 1602, e reconstruída em 1868. Comporta, na parede virada a sul, uma placa informativa, bem como as armas do arcebispo, em pedra. A rua do Carmo continua e, antes de encontrarmos a placa indicativa de Merelim (S. Paio), outra freguesia distinta da anterior, temos a Praça do Carmo, que ostenta a Capela do Carmo, feita de pedra robusta: no seu entorno tem um cruzeiro, umas Alminhas e uma Fonte com água corrente.

Merelim (S. Pedro) – esta freguesia inaugurou o Centro Cultural e Recreativo da Escola da Pateira, no dia 11 de dezembro de 2016, que incorpora também a valência de Albergue para os Peregrinos de Santiago de Compostela. É o segundo espaço no concelho de Braga a proporcionar Albergue. O outro é a Casa da Roda ou dos Paivas, por trás da cabeceira da Sé de Braga. 7

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A rua do Carmo não se interrompe até se ligar com a rua da Presa, onde conflui com o percurso oficial do Caminho, hoje, traçado, que vai descrito adiante. Pela Ponte de Prado do século XII, que comporta uma lápide comemorativa de uma reforma feita em 1676, por António de Castro de Ávila de Viana, chegamos à Praça do Comendador Sousa Lima, onde pontifica o Pelourinho da Vila de Prado.

Ponte Medieval de Prado

O Pelourinho constitui uma obra de arte datada do século XVI, que atesta um período histórico em que a Vila de Prado era sede do concelho com o mesmo nome, extinto no ano de 1855. Na parte cimeira do Pelourinho, depois do fuste, expõe-se o escudo real de D. Manuel (1495-1521), na frente; a esfera armilar, na lateral direita; e a pedra de armas dos Sousas, os senhores de Prado da época. No mesmo espaço ajardinado, acantona-se uma placa comemorativa dos 750 anos da Carta de Foral da Vila de Prado, concedida por El-Rei D. Afonso III, em 1260. O Caminho continua pela rua Costa Faria até ao Largo da Feira, onde, lateralmente, se pode apreciar as Alminhas de S. João. Mais acima, num 25

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lajedo confinante e sobranceiro, ergue-se a Capela do Bom Sucesso, um dos três templos da freguesia. Os outros são: a igreja matriz e a igreja paroquial.

O Pelourinho da Vila de Prado

Em sequência, vem a rua 4 – Bom Sucesso. Depois de atravessar a estrada principal (rua 3-Bom Sucesso), o Caminho prossegue pela rua 2-Bom Sucesso, lugar do Faial, até à igreja paroquial, de estilo moderno. Novo trajeto oficial de Braga a Prado – A partir de março de 2015, para fugir à estrada asfaltada, sempre perigosa para os peregrinos, foi implementado um novo trajeto do Caminho Português de Santiago, bem mais rico, sob os aspetos patrimonial, paisagístico e securitário. O tramo é igual ao descrito até à freguesia de Real. Acabada a rua da Boavista, desemboca-se na referida freguesia. Aqui, segundo a nova versão do Caminho, no primeiro entroncamento, depois da placa indicativa de Real, toma-se a direção de Montélios pela rua da Feira, que desemboca na variante de Real. Flete-se, alguns metros depois, à direita e prossegue-se, à esquerda, pela Travessa do Padre Manuel Guimarães que, através duma escadaria, nos transpõe para a rua com o mesmo nome. 26

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Segue-se, à direita, alguns metros, para logo se virar à esquerda, introduzindo-nos na Calçada do Anel, um Caminho Antigo que, a princípio, passa resvés entre o recreio da Escola Secundária EB 2/3 de Real e um espaço verde com bancos de madeira para piquenique e descanso dos moradores; depois, o Caminho afunda-se e corre, devidamente empedrado, entre dois muros altos de granito. O da esquerda suporta os terrenos dos recreios da citada Escola e do cemitério, dispostos em sequência; o da direita dá privacidade aos campos de cultivo. No fim, abre-se, perante nós, um espaço que nos coloca, repentinamente, noutros tempos de antanho. É um momento singular de visualizarmos um conjunto monumental inigualável: a igreja de S. Francisco, o Mausoléu (Capela) de S. Frutuoso de Montélios8, o Convento de S. Francisco, a Fonte de Santo António, o Cruzeiro do Largo de S. Francisco e um muro delimitador de espaços com arco.

Igreja de S. Francisco, Mausoléu de S. Frutuoso, Convento de S. Francisco, Fonte de Santo António, Cruzeiro e Muro

No sítio do Mausoléu e Convento de S. Frutuoso, teria havido um templo dedicado ao deus Esculápio, no tempo dos romanos; mas a certeza é maior quanto ao fato de ali ter existido a Torre Capitolina, porque semelhante ao capitólio de Roma. Efetivamente, el-rei D. Afonso II, o Casto, no ano de 868, fez a seguinte doação: “… Debaixo de colina damos a igreja de S. Frutuoso de Monte Modico, com as suas villas, a Torre Capitolina, que modernamente se chama collina” (In MEMÓRIAS DE BRAGA, de Senna Freitas, Tomo I, p. 20 – Braga, 1890). 8

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Não posso deixar de realçar as preciosidades que cada recanto destes contém, se bem que perfunctoriamente. A igreja, mandada construir pelo arcebispo D. Rodrigo de Moura Teles, na primeira metade do século XVIII, abriga, no seu interior, além da riqueza da talha dourada, as relíquias de S. Frutuoso devolvidas pela Catedral de Santiago de Compostela e alguma da história do Pio Latrocínio, perpetrado por Diogo Gelmírez, um arcebispo irrequieto e indomável de Santiago, no ano 1102; e, também, o Cadeiral Renascentista do coro alto, construído entre 1570 e 1580 por Frei José de Santo António Vilaça, que pertencia à Sé de Braga e, em 1739, foi transferido para aqui, dando lugar a um novo de estilo barroco, o existente hoje na Catedral. A fachada da igreja, além do traçado original, comporta três nichos com outros tantos santos: S. Francisco, à esquerda, S. Frutuoso, à direita e por cima, ao centro, Nossa Senhora; e, ainda um medalhão granítico, profusamente decorado: ao centro, os símbolos da Ordem de S. Francisco (cruz, braço de Cristo e braço com hábito franciscano), e na parte cimeira, um anjo com asas e um putto de cada lado; o resto é folhagem. No que toca ao Mausoléu de S. Frutuoso, data da segunda metade do século VII (S. Frutuoso morreu em 16 de abril do ano 665) e é uma joia da arquitetura peninsular. Reparar no arco toral de tímpano apoiado em três arcos em ferradura. No concernente ao Convento, é uma construção de entre os séculos XVI e XVIII e era pertença da Ordem Franciscana. Está em fase de preservação e restauro pela Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho. No que se refere à Fonte de Santo António, obra granítica, foi mandada construir em 1523 pelo arcebispo D. Diogo de Sousa, que deixou as suas armas incrustadas na parede, sobre a carranca de diabo com barbas, bigode e sobrancelhas acentuadas. A pia da Fonte tem decorações em baixo-relevo. Quando ao Cruzeiro do Largo de S. Francisco, data da mesma altura da Fonte, pois, comportava também as armas de D. Diogo de Sousa, apesar de restar apenas um resquício, na parte superior. O plinto afeiçoado é de granito ferroso e assenta em dois degraus. O fuste é franzino, feito de granito afeiçoado e carbonetado, secção octogonal, encimado por uma esfera e, sobre esta, uma cruz. Voltemos ao Caminho, que prossegue sob o arco de volta inteira do muro delimitador de espaços, e nos faz entrar nos 4 Caminhos. Acompanha a fachada do Convento e seu entorno e, depois, vem o muro protetor da Quinta 28

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Pedagógica de Braga – Centro de Formação e Experimental Ambiental. Ainda, nos 4 Caminhos, depara-se-nos o placar a anunciar a freguesia de Dume. Poucos metros à frente e à esquerda, entramos num carreiro de terra batida com gravilha solta por cima, por entre campos, e que alguns já lhe dão o nome de Caminho das Casas Novas. Entre os declives de Real e Dume, há uma linha de água, o riacho (ou a ribeira) de Gafos. Ultrapassamo-lo através duma ponte de ferro – Ponte de Gafos –, que já foi de pedra, mas uma enchente deitou abaixo. A palavra “Gafos” provém de gafaria (leprosaria) que existia no hospital de S. Lourenço da Ordem, na margem esquerda, dos lados da que foi a Quinta da Ordem. Ou seja, da Ordem dos Franciscanos, proprietários do Convento de S. Francisco de Montélios. O Caminho das Casas Novas prossegue, depois de atravessar a Avenida D. Eurico Dias Nogueira (arcebispo primaz de Braga/1932–2014), uma nova via de quatro faixas, que faz a ligação ao novo Estádio Municipal de Braga, um monumento premiado. No fim do referido Caminho, flete-se à direita pela estrada asfaltada de Dume9, que tomou o nome de Avenida 25 de Abril, e vai dar ao Largo de Carcavelos, onde está a Capela do Senhor das Angústias. Sai-se do largo pela esquerda, depois da Casa Senhorial de Chaves, continuando-se o Caminho pelas ruas do Cordeiro e José Silva Braga, antes de chegarmos ao Largo de Sobremoure, um entroncamento de estradas antigas. Em sequência, vem o Caminho da Ponte de Sobremoure (nome do lugar antigo), por entre campos, mas calcetada. Aliás, o Caminho, a partir daqui, sai do contexto urbano e entra em zona rural. Antes de passarmos pela rotunda da via rápida, pode, ainda, ser apreciada a Ponte de Sobremoure, dum só arco, feita de pedra talhada e por onde passava a estrada antiga, antes da atual, que foi desviada para o lado. A Ponte é uma obra de arte e devia ser

Como se viu atrás, D. Manuel I passou em Dume, aquando da sua peregrinação a Santiago de Compostela. Diz António Cruz, no “Quinto Centenário de Dom Manuel I”, in Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto – Série de História – 1970, volume I, p. 24: “Continuando a sua romagem a Compostela e depois de haver repousado na cidade do Porto, sabemos nós que D. Manuel esteve em Dume, também aí como peregrino e para recordar ou venerar os dois grandes prelados que foram S. Martinho e S. Frutuoso, encaminhando-se de lá, como se admite, para Ponte de Lima e Valença. Entrou na Galiza pela terra de Tui, tomando aí o caminho que ia direito à casa do Apóstolo”. 9

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valorizada, nomeadamente com sinalética. A cerca de cinquenta metros para a frente, acaba a freguesia de Dume, segundo a placa, e começa a de Merelim S. Pedro. Porém, segundo parece, o Caminho da Ponte de Sobremoure continua até ao próximo cruzamento de estradas. Aqui chegados, prosseguimos pela rua de Felgueiras. Acabada esta, não se entra no Caminho do Poço Negro ou Caminho Municipal 1282, e sim num longo caminho de terra batida, em continuação da rua de Felgueiras, cujo nome é precisamente “Caminho de Felgueiras”, que corre por entre campos e termina num carvalhal, junto do Campo de Aeromodelismo, próximo da parte sul do Circuito de Automóvel Vasco Sameiro e Aeródromo de Palmeira de Braga. O Caminho flete à esquerda, pela rua dos Combatentes, que faz demarcação entre a freguesia de Merelim (S. Pedro) e Palmeira. Poucos metros à frente, do lado esquerdo, deparamos com o Parque de Lazer da Bouça de Gerides, pertencente à freguesia de Merelim-S. Pedro. Depois, vem a rua do Senhor da Saúde, que se prolonga até à estrada municipal, prosseguindo na rua do Estremo, meio pavimentada, meio em terra batida. Esta rua, na parte em terra batida, faz um cotovelo e segue até a um ajuntamento de casas. Antes de entrarmos na Estrada Nacional n.º 201, Braga-Ponte de Lima, calcorreia-se a rua da Calçada. Em seguida, vira-se à direita, em direção à Ponte de Prado, pela rua da Presa, o que coincide já com o traçado que fizemos, realmente, do Caminho Português de Santiago.

No dia seguinte, recomeçaríamos, neste mesmo local, igreja paroquial de Prado, até Ponte de Lima, final da primeira Jornada. Serviria este pequeno trajeto (entre a Sé de Braga e a Igreja Paroquial de Prado) para testar o material (mochila com cerca de 10 kg de peso às costas), o físico e, ainda, encurtar um pouco o Caminho do dia seguinte.

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1.ª Jornada – De Braga a Ponte de Lima Dia 1 de setembro de 2011 – Quinta-Feira – 36 km

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Desde a Sé de Braga até à Igreja nova de Prado, o trajeto já tinha sido realizado, na tarde do dia anterior. O Caminho é sempre asfaltado, seguindo-se a estrada nacional n.º 201, que faz a ligação entre Braga e Ponte de Lima. A Sé de Braga10, monumento ímpar da arquitetura e história portuguesas, as ruas gastas e prédios escuros da Braga bimilenar e a medieval Ponte de Prado11 sobre o rio Cávado, que faz passagem para a outra margem do concelho de Vila Verde, são especificidades a assinalar neste tramo. Entretanto, ficavam para trás as freguesias da Sé, Real, Frossos, Merelim (a de S. Pedro e a de S. Paulo), todas do concelho de Braga, e Prado, do de Vila Verde.

Sé de Braga – A Sé de Braga corporiza um arcebispado que tem raízes nos primórdios do cristianismo, e que seria florescente, aquando do seu arrasamento pela ocupação árabe, no ano de 715. A planta inicial do monumento era de grandes dimensões e compreendia cinco naves. Porém, no século XII, D. Henrique e D. Teresa mandaram-na reduzir para um plano em cruz latina, com três naves, transepto e cabeceira tripartida. Originariamente, é um templo românico (muito do seu interior, a Porta do Sol … são testemunhos), mas que ao longo dos tempos foi absorvendo outros estilos, como, o gótico, na galilé, na capela-mor e na Capela dos Reis, e o barroco, na talha do coro alto, em especial, nas duas caixas do órgão. 11 Ponte de Prado – Sumário: “[1118-1128] – O arcebispo D. Paio Mendes doou ao hospital que a Ordem do Templo tinha em Braga os bens que possuía nesta cidade e no seu termo antes de ser eleito arcebispo, sendo a Ordem obrigada a dar dois terços dos frutos para a construção da ponte de Prado. O outro terço e, após a construção da ponte, os restantes frutos eram para cuidar dos pobres. Dispõe de outros bens em favor de diversas pessoas e do tesoureiro da Sé. D. João Peculiar confirmou aos Templários os bens que constam desta doação” (Liber Fidei, fl. 149-149 v., documento 560 – Ver Edição Crítica pelo Pe. Avelino de Jesus da Costa, Tomo II, Braga – 1978, pp. 359-360). Há, no entanto, quem ponha em causa esta versão, pois, uma inscrição epigráfica encontrada junto da Ponte do Porto (concelho de Amares) aponta que D. João Peculiar (1138-1175), sucessor de D. Paio Mendes (1118-1137), teria inaugurado a Ponte do Porto (Ver Mário Jorge Barroca in Epigrafia Medieval Portuguesa, Vol. II, Tomo I, pp. 199-200 – n.º 77).

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Enquanto a Ponte de Prado foi, ao longo dos tempos, a única que permitia o atravessamento do rio Cávado, os peregrinos de Santiago faziam seu Caminho pela cidade de Braga. Tal importância foi reduzida, aquando da feitura da Ponte de Barcelos, que é a mais utilizada na atualidade. Antes mesmo das oito horas da manhã, lá estávamos nós, na igreja paroquial de Prado, prontos e cheios de vontade, para arrancar com aquela empreitada a que nos propusemos. Alberto, de 51 anos, vindo de Caires, Amares; e eu, de 63, de Braga. Ei-los a fazer Caminho, de mochila às costas, cantil a tiracolo e chapéu pendurado no pescoço, repousando sobre o peito. E espontaneamente, o irmão mais velho chamou o irmão mais novo e disse-lhe: “Alberto, toma lá para o Caminho”. E os dois deram-se um abraço, proferindo palavras de marca indelével, que ali prometeram repetir no princípio de cada um dos Caminhos, como se fora uma liturgia: “Este abraço nos acompanhe sempre, dia e noite, e sobre ele descanse nossos corações”. E então, pusemos pés ao Caminho, que prossegue pela rua Padre Severino Pereira Fernandes (1933 – 2011), lateral à referida igreja paroquial da Vila de Prado e, logo a seguir, a própria via faz de passagem superior à Variante do Cávado, que vai para Braga. Ultrapassados os lugares da Murta e de Francelos, em piso de alcatrão, entramos, cerca de 150 passos mais, em terra batida, por entre campos. Na freguesia da Lage, voltamos à terra. E, depois de uma linha de água, à direita, lá está a igreja paroquial. Porém, as primeiras horas são feitas sobre estradas e caminhos, ora de macadame, ora de asfalto, ora de calçada, ora de cascalho. Tudo consistente. O progresso da densa população destas terras do Minho profundo, assim, o exigiu. E o rural já não é o que era! Não há terra batida, nem lamas, nem calçadas rudes. Antes de Atiães, e a pontear o Caminho, os cruzeiros de Santa Marta e de Santiago. Em Moure, lá estava de pé o tronco do eucalipto gigante, outrora frondoso, agora, hirto e seco. Pela rua do Côto, atravessa-se um pinheiral, que dá acesso a uma ponte sobre um ribeiro. E é, através da rua do Eirado, que chegamos à igreja paroquial de S. Miguel de Carreiras, donde se avista, lá no alto, a Torre de Penegate. Pela rua da Torre, que sobe e passa pelo cemitério local, em terreno asfaltado, aparece, em todo o 32

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seu esplendor, no cocuruto duma colina de elevada estatura, encarrapitada em grandiosa penedia, a já anunciada Torre Medieval de Penegate12/13, erigida pouco depois de 1322, de planta retangular e com ameias, na também referida freguesia de S. Miguel de Carreiras, concelho de Vila Verde. É uma domus fortis feita de cantaria com intuitos militares, pois o receio do senhor-dono era muito e sério. Séculos mais tarde, junto dela, foi construída uma capela com cabido, que, ainda, subsiste renovada.

Torre de Penegate ou de D. Egas Pais

NOBILIÁRIO DE FAMÍLIAS DE PORTUGAL, X VOLUME, p. 66, n.º 11, de Felgueiras Gayo, 3.ª Edição – Braga 1992: A Torre de Penegate (atual) é medieval e foi erigida por Mem Rodrigues de Vasconcelos (do Solar e Casa de Vasconcelos, em ruínas, de Ferreiros-Amares), cavaleiro de D. Dinis na guerra que opôs este monarca ao seu filho, o futuro rei D. Afonso IV. A autorização para a construção de uma domus fortis foi dada por D. Dinis, em documento datado de 5 de outubro de 1322, tendo em vista a proteção de Mem Rodrigues de Vasconcelos contra uma possível vingança do seu filho. Mem Rodrigues de Vasconcelos era, na altura, meirinho-mor de D. Dinis, na região de Entre Douro e Minho e Alcaide de Guimarães. A autoridade real era contestada por seu tio, Pedro Anes de Vasconcelos. Interiormente, a Torre está dividida em três pavimentos. 13 Esta Torre de Penegate (“penha”, “pena”), também conhecida como Torre de Egas Pais (fundador do Mosteiro beneditino de Santo André de Rendufe), valido do Conde D. Henrique da Borgonha, e primeiro fundador duma torre românica, ante12

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Cá em baixo, no sopé da Torre, há um cruzeiro, cujo plinto, já gasto, mantém a data de 1656. E é, à sua esquerda, pela rua da Quinta, que se entra na rua do Caminho de Santiago. Os quilómetros vão avançando. E com eles os pinhais, os quintais, os milheirais, os castanhais e os vinhais, sobremodo. Tudo é um regalo para a vista e paladar. O Alberto, sempre à frente. E, nos campanários, os sinos sobem o número das badaladas. Da última vez que os ouvi, contei doze batidas. “Ó Berto, no primeiro sítio que acharmos favorável, vamos fazer uma pausa para comermos”, gritei eu, para ser ouvido. “O. K.”, respondeu ele. Mas o Caminho teimava em não permitir. Não havia frescura, não havia verdura, nem recanto onde encostar. Enfim, junto a um estaleiro de construção civil, sobre o leito de um ribeiro seco, erguia-se um pequeno muro de tijolos de cimento. À frente deste muro, um tufo de erva verdejante. As sebes dos quintais, à volta, compunham o cenário. E foi aqui mesmo que fizemos o nosso primeiro momento de descanso, a valer. Que sensação de alívio, quando, depois de quatro horas e meia de caminhada, se tiram dez quilos de peso de cima das costas! Havia, ali, em frente a nós, uma placa de madeira que informava o transeunte que aquele estradão era a VIA XIX, Estrada Romana, que ligava Bracara Augusta (Braga) a Asturica Augusta (Astorga). E eu que havia acabado de ler duas obras, que versavam esta temática: “THESOURO DE BRAGA DESCUBERTO NO CAMPO DO GEREZ”, sobre a Via Romana do Gerês (Geira), de 1728, do Padre José de Matos Ferreira, e “MILIÁRIOS DO CONVENTUS BRACARAUGUSTANUS EM PORTUGAL”, 1895, de Martins Capella! Para o almoço, havia fruta, marmelão, bolachas digestivas e pão. A bebida era a do cantil.

cedente da atual, situa-se na freguesia de São Miguel de Carreiras, do concelho de Vila Verde. Está classificada como Monumento de Interesse Público (cf. Portaria n.º 164/2013, de 5 de abril – DR, II, n.º 67). 34

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Nem meia hora demorou o repasto e o descanso. No entanto, sentia-me bem para atacar de novo. Tínhamos pressa, estávamos ansiosos. E ala, que se faz tarde. Os cruzeiros iam ponteando o Caminho, que se ia fazendo. Dá a impressão que os povos, ao longo dos tempos, foram alindando, por brio e devoção, aqueles caminhos que, por tradição, tão frequentados eram por pessoas doutras terras. Às tantas, desembocamos numa estrada nacional e eu conseguia reconhecer a zona. Já vínhamos andando, há um bom bocado, em terras de Ponte de Lima. Estávamos próximos do Campo de Golfe. Antes de transpormos a porta de entrada, deparamos de novo com sinalização da Via Romana XIX, na ordenação do Itinerarium Provinciarum, de Antonino. Já vimos que fazia a ligação entre Bracara Augusta e Asturica Augusta, por Iria Flavia (Padrón) e Brigantium (Betanzos/Corunha). Continuamos o Caminho e, a cerca de cinquenta metros de distância, surpreende-nos um “Miliário”, com uma forma algo estranha, mais arredondado na base, mas retangular, quase todo. Epigrafado, mas ilegível, a olho nu. O Campo de Golfe aparta-se em duas metades: uma sobranceira, do lado direito; outra, em declive, do lado esquerdo. No percurso, roçam-se espaços senhoriais para, no final, desembocar-se na estrada que vem do monte e nos conduz à Ponte Medieval. Enfim, chegamos à vila mais antiga de Portugal. O relógio marcava quinze horas. Como o Albergue só abre às cinco da tarde, sentámo-nos na margem esquerda do rio Lima. Já sem botas e sem meias, refrescamo-nos nas águas do Letes, fizemos descanso ativo e curamos as mazelas. Do sítio onde nos encontrávamos, na margem esquerda, víamos os peregrinos14 que passavam na ponte. Era dia de feira. Nem no areal, nem na rua ribeirinha cabia mais uma barraca de negócio. As diversões já eram muitas. A data das Feiras Novas aproximava-se, a passos largos. Junto ao rio, um mar de carros. As conversas, as músicas, os cantares, os cheiros andavam no ar. Só a avenida dos

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Peregrino (L. peregrinus) – aquele que viaja por terras distantes, pelo estrangeiro. 35

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plátanos estava vazia nas suas sombras. Parecia um terreno sagrado que ninguém queria pisar. Cerca das dezasseis horas e trinta, rumamos ao Albergue, que se situa na margem direita, logo, logo, ao sair da vetusta ponte. Por fora, o edifício era amplo e bem tratado. A recuperação parecia ter sido bem conseguida. Sentámo-nos num banco do largo fronteiro, enquanto esperávamos que a porta abrisse. E foi aí que atendemos, num inglês de difícil perceção, um casal de asiáticos, de olhos rasgados na horizontal, e, também, uma senhora francesa. Entretanto, foram chegando mais peregrinos: grupos de alemães, mais senhoras francesas, uma caterva de ingleses, poucos portugueses e espanhóis, e, ainda, uma Estoniana (soubemo-lo, mais tarde, como veremos adiante). Às dezassete horas em ponto, a porta abriu-se. O amontoado de pessoas que se formou organizou-se numa bicha. Nós que fomos dos primeiros a chegar, éramos agora dos últimos a entrar. À esquerda, havia uma sala com uma secretária e, sentada, uma funcionária atendia peregrino a peregrino. Aquando da nossa vez, entregámos as credenciais, mais o bilhete de identidade para que os respetivos registos se fizessem. Pagámos três euros cada um. Saímos para o vestíbulo e esperámos que mais alguns se juntassem a nós. Então, um outro empregado, que fazia a distribuição dos peregrinos pelas camaratas, respirou fundo, ao aperceber-se que éramos portugueses. Confessou que tinha a sensação de estar em terras da estranja, tantas eram as línguas estranhas. É preciso dizer que este albergue de Ponte de Lima comporta sessenta lugares e tem três dormitórios e, ainda, receção, cozinha, sala de refeições, lavandaria, sala de convívio, instalações sanitárias com água quente, parque de bicicletas, acesso gratuito à internet, zona exterior com recantos mui românticos. Está disponível para todos os peregrinos a Santiago de Compostela, a Fátima ou a outro local de peregrinação e que sejam portadores da correspondente Credencial. Eu não me posso esquecer que é a primeira vez que me vejo nestas andanças e que, por causa disso, a curiosidade é muita e tudo me provoca sensações novas. E pensar eu que já lá vão sessenta e três primaveras!

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Homens e mulheres arrumam-se, indistintamente, junto da respetiva cama distribuída. Não há travesseira. Não há formalismos, nem moralismos. Cada um está entregue a si próprio. Quartos de banho e chuveiros, esses, são em separado: femininos, a um lado; masculinos, a outro. Começa a azáfama do peregrino: uns, vão ao banho, outros lavam roupas; vestem-se fatiotas lavadas; dão-se massagens e acariciam-se os dedos dos pés; muitos descansam (nem todos vêm do mesmo lugar: há quem faça a primeira paragem, como nós, mas há também quem venha de Lisboa, de Coimbra; a maioria vem do Porto). Põem-se roupas a secar, ligam-se os computadores portáteis, mandam-se mensagens, fazem-se chamadas de telemóveis … Porém, algo de curioso que eu noto é que a conversa nunca é muita. Todos estão alertados de que o Albergue fecha às vinte e duas horas. Existe um espírito em toda a gente que favorece o descanso dos guerreiros, interessados em preparar-se o melhor possível para as batalhas dos dias seguintes. Há quem se dirija à cozinha para preparar a refeição. A quase totalidade, porém, dos peregrinos aproveita para se deliciar com as iguarias da terra e, depois, passear, a passo de caracol. Eu e o Alberto saímos, à procura duma tasca. Transposta a porta da rua, virámos à esquerda, em direção à ponte medieval. Logo ali, na margem direita do rio, a montante, dois edificados nos enchem os olhos: a Igreja de Santo António da Torre Velha e a Capela do Anjo da Guarda, de estrutura gótica. Mais à frente, na mesma margem direita, porém, agora, a jusante, a estátua de um general romano, Decimus Junius Brutus, em pose de grandes gestos, virado para a outra margem, onde se encontravam os soldados da legião, clamava o nome de cada soldado, para lhes provar que este não era o rio Letes, ou seja, o rio do esquecimento: havia o entendimento de que todo aquele que o atravessasse perdia toda a memória. Os soldados, ao verem que o seu comandante se lembrava dos seus nomes, apesar de o ter transposto, puseram-se em marcha com as suas armas e os seus estandartes, sem qualquer receio de se esquecerem também do passado.

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POR TERRAS DA GALÉCIA , A PÉ

UMA AVENTURA , UM DESAFIO

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Já íamos conversando, a meio da ponte medieval, eu e o Alberto, quando me ocorreram imagens dum programa de televisão transmitido diretamente de Ponte de Lima, dias antes, e que remetiam para um restaurante cujo menu se encontrava recheado de “fodinhas”. E, ali mesmo, propusemo-nos buscá-lo. A ponte desemboca num largo, chamado de Camões, cujo centro é ocupado por um chafariz do século XVII. Estávamos nós a olhar, para um lado e para outro, à cata do referido “cujo”, quando passava um senhor de proveta idade, cabelos brancos e ar bonacheirão, ao qual perguntei: “Ó amigo, um dia destes, na televisão, deram notícia dum restaurante cujo menu estava cheio de fodinhas, aqui em Ponte de Lima, sabe-nos dizer onde é que é?” Ele sorriu-se e, dali mesmo, com o dedo indicador, respondeu: “Estão a ver aquela rua, lá ao fundo, é a rua do Rosário. É lá o restaurante “Os Telhadinhos”, também conhecido por “Tasquinha das Fodinhas”. Não ficava a mais de cinquenta metros. Atravessámos a praça, entrámos na rua, e lá estava, numa enorme tabuleta, o Cardápio da Márcia. Era assim mesmo que se chamava. Consistia numa listagem de cinquenta e um petiscos. Para se ficar com uma ideia, aí vão algumas das receitas: – Fodinhas Quentes na Rachinha – Escarrapachadas Quentes – Pinteilhos Roxos no Pito – Esquenta-me a Ponta – Chupões na Rachinha – Coninha de Andorinha – Pauzinho Bem Direito – Pingarelho Torto – Faíscas a Sair Quentes no Redondo – Cociguinhas Fritas à Mão – Pilas de Galo Assadas no Inferno – Quecona Grande – Putinha Pequena – Pega em Mim que te Consolo A esplanada, no meio da rua, convidava. Sem delongas, sentámo-nos. Veio o empregado de mesa e quisemos saber tudo. O que é que significava 38

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CAMINHO PORTUGUÊS DE SANTIAGO

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cada palavra. Fez uma completa tradução. E ficámos a saber que havia cacete aberto ao meio, salsichas, fêveras, malga grande de tinto verde, malguinha de vinho tinto, etc. etc. tudo petiscos. Como a larica era muita, dentre todas as sugestões, ignoramos as fodinhas e encomendámos cada nosso bom bife com dois ovos a cavalo, batatas fritas, arroz e salada mista. Para beber, cada nossa “Quecona Grande” da terra. Tinha boa pinta o marufo! Enquanto íamos comendo, vimos chegar um grupo de mulheres, que já tínhamos avistado no Albergue e que, pela cara, pareciam ser alemãs. E, ou porque nós lhes dávamos um selo de garantia, ou porque o sítio lhes agradou, sentaram-se, também, numa mesa à nossa frente. A seguir, chegaram mais duas francesas, e fizeram o mesmo. Estas últimas já eram nossas conhecidas, pois, antes do Albergue abrir portas, já tínhamos conversado com elas. À sobremesa, como estávamos em Ponte de Lima, quisemos queijo limiano, acompanhado duma “putinha pequena”. Um bálsamo para o palato! Depois do refastelamento, fomos dar um passeio até à Avenida das Tílias. Pelo caminho, vimos as marcas históricas dos níveis da água a que chegaram as cheias do rio, as paredes escurecidas e sujas pelo tempo da Torre da Cadeia Velha, o Pelourinho dos castigos físicos, a Igreja Matriz, a estátua do Cardeal Saraiva, as esculturas dos lavradores e do rancho folclórico e, ainda, o edifício do Mercado Municipal. O arraial continuava animado, no meio do areal do rio, e prenunciava as Feiras Novas. De volta ao Albergue, tivemos de estugar o passo. Uma chuva miudinha acossava-nos. Nenhum de nós tinha guarda-chuva. Nos metros finais, fomos mesmo obrigados a correr, se não queríamos ficar encharcados em água. Lá dentro, no dormitório, alguns peregrinos já descansavam, outros massajavam os pés. As roupas que tinham ficado a secar, no exterior, foram retiradas, por alguém, da chuva que continuava a cair e estavam amontoadas em cima duma cama. Retirei uns calções e uma camiseta. As meias continuaram penduradas, lá fora, no estendal. Peguei em tudo o que estava húmido e coloquei a secar num barrote que estava junto da minha cama.

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