Deixem a guerra em paz

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No convés do navio que os transportava de regresso a Lisboa depois de terminados os dois anos de guerra na Guiné, estava sentado um grupo de alferes milicianos.

PROSA - CAMBANÇA – Guiné: morte e vida em maré baixa - Contos com encontros - Parições & aparições - Cambança final – Guiné/guerra colonial

Quando a conversa voltava a serenar, parecia que tinham chegado, finalmente, a acordo, mas, logo a seguir, voltavam a elevar-se as vozes e a quezilar de novo. Quem olhasse de longe acharia que, dentro de pouco tempo, chegariam à agressão física, o que nunca aconteceu. De uma porta do convés saiu um outro alferes que acenou para o grupo, em forma de cumprimento. - Olá, doutor. – retribuíram alguns. O médico parou e, antes de seguir o seu caminho para o lado contrário, disse-lhes em tom elevado: - DEIXEM A GUERRA EM PAZ !

- Filhos d’outrem ou d’algures

Todos se voltaram na direcção da voz. Do meio deles saiu o, ainda, alferes Félix. Avançou dois ou três passos na direcção do médico e respondeu-lhe:

- Por século e meio

- Oiça! Não sei se posso ou se sou capaz. Não sou médico nem estive lá como escriturário. Não fiz uma guerra santa.

- Sótão, rés-do-chão e outras vidas C

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POESIA - Sobre Vivências - Quasoutono?!

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DEIXEM A GUERRA EM PAZ G u e r r a c o l o n i a l - G u i n é

OUTRAS OBRAS DO AUTOR:

Conversavam. Por vezes elevavam a voz, levantavam-se das cadeiras, sentavam-se de novo. Interrompiam-se continuamente uns aos outros. Observados de longe, parecia que estariam em discordância completa em relação aos assuntos de que falavam, mas não era o que estava a acontecer. Falavam sobre operações militares em que tinham estado envolvidos, por vezes conjuntamente, no mesmo terreno e ao mesmo tempo, a poucos quilómetros de distância.

Alberto Branquinho

REGRESSANDO A CASA

Alberto Branquinho

DEIXEM A GUERRA EM PAZ Guerra colonial-Guiné Novela

O AUTOR É natural do denominado “Douro Superior”. Esteve na guerra colonial, na Guiné. Tem publicações sobre esse tema em blogues e em livros. Terminado o serviço militar, voltou a Coimbra. Vive em Lisboa desde 1970. Depois de várias andanças e cambanças, acabou sendo advogado, envolvido em relações e contratos internacionais. Publicou romance, livros de contos e poesia.


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DEIXEM A GUERRA EM PAZ


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título:

Deixem a Guerra em Paz – Guerra colonial – Guiné Branquinho edição gráfica: Edições Partenon® autor: Alberto

Paulo S. Resende Ângela Espinha

paginação: capa:

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1.ª edição Lisboa, junho 2019 isbn:

978­‑989-8845-28-3 454874/19

depósito legal:

© Alberto Branquinho

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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei. publicação e comercialização

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500


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ALBERTO BRANQUINHO

DEIXEM A GUERRA EM PAZ

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Guerra colonial – Guiné


Prosa:

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OBRAS DO AUTOR

– CAMBANÇA - Guiné / morte e vida em maré baixa

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– CONTOS COM ENCONTROS

– CAMBANÇA FINAL - Guiné (guerra colonial) – FILHOS D’OUTREM OU D’ALGURES - POR SÉCULO E MEIO

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- SÓTÃO, RÉS-DO-CHÃO E OUTRAS VIDAS

Poesia:

–  SOBRE VIVÊNCIAS

(identificado como Alberto Abrunhosa)

– QUASOUTONO?!


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AS GUERRAS

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A guerra, ela mesma, é composta de outras muitas guerras, que também causam baixas: É a guerra entre as hierarquias, a guerra com as hierarquias, a guerra de militares com aspirações políticas, a guerra entre os que planeiam as guerras e os que têm que as fazer, a guerra entre os que fazem a guerra e os serviços de apoio ou de retaguarda, etc.. Muita gente procurando a sua promoção pessoal e outros tentando fazer o seu melhor, apesar das... tantas guerras dentro da guerra.

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ADVERTÊNCIA

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Com excepção das referências a “Bissau” e ao “Rio Geba”, todos os lugares, espaços e ambientes são pura ficção, assim como os nomes e as personagens aqui referidos não têm nem tiveram correspondência com qualquer realidade.

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Planeamento operacional

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Alguém batia à porta da sala de trabalho do Oficial de Operações. A sala tinha as paredes inteiramente “decoradas” com mapas da zona de intervenção do Batalhão, cobertos com plásticos quase totalmente marcados com pontos, riscos e anotações em várias cores. - Entre. - Bom dia, meu major. - Ó capitão, podemos falar mais tarde? - Como queira, meu major, mas é coisa rápida. É só entregar. - É que eu tenho o planeamento quase acabado. Falta-me fixar os locais de cobertura e apoio a noroeste, como já falámos. E estou, também, a ultimar a definição exacta dos itinerários… Apoio aéreo e PCV ainda não estão confirmados. Depois, falo consigo antes de apresentar ao nosso comandante. - Mas isto é rápido, meu major. - Nã… Olhe lá, capitão, diga-me uma coisa. Você, que está por aqui desde o Batalhão anterior, antes de nós chegarmos, que confiança lhe merece o homem da PIDE? - Afinal, também é disso que lhe vinha falar, meu major. Recebi uma mensagem de Bissau a avisarem que iam enviar informação classificada. Chegou e o meu pessoal esteve 11


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a trabalhá-la até agora. Tenho-a aqui. Deixo-lhe tudo para sua apreciação. - Está bem. E você já leu? - Sim, meu major. - Tem matéria que possa bulir com este planeamento? - Talvez, meu major. - O quê? Diga. - Ao que parece, o homem da PIDE, quando consegue material importante da nossa zona não nos transmite nada e manda tudo para Bissau para mostrar serviço. Foi isso que eles me enviaram. - Olha o filho da puta! E terá informação com interesse para este planeamento? - Acho que sim, meu major. - E o Governador? Ele deve ter muita informação. Não costuma falar com ele? - Ó meu major, ele é capaz de estar mais para lá do que para cá. É cabo-verdiano, é homem já de alguma idade e do tempo de alguns deles. - Muito me diz. Sente-se, sente-se. Deixe cá ver.

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Lugar de cambança

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Anoitecia. A coluna de guerrilheiros do PAICG, de cerca de quarenta homens, caminha seguindo o serpentear do curso do rio, evitando as zonas lodosas. A maré já começou a vazar há algum tempo. Encaminham-se para um ponto de cambança para montante, onde o rio aperta. Nesse lugar, em maré baixa, é possível passar a pé da outra margem ou para a outra margem. Aí vão aguardar um outro grupo que os irá reforçar, para uma acção conjunta. Chegados ao ponto de cambança, instalaram-se pelo terreno, aproveitando as árvores de maior porte ou pequenos relevos. Enquanto uns poucos ficam a olhar o rio para fazerem o contacto com aqueles que vêm a caminho, outros colocam-se virados para a retaguarda e, também, para os lados montante e jusante do rio. A água do rio vai baixando lentamente, ao mesmo tempo que anoitece. Pouco depois é noite. A espera já vai demorada. Um assobio agudo veio da outra margem. O comandante levantou-se, chegou-se mais ao rio e assobiou do mesmo 13


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modo. Na outra margem viu-se um foco de luz, que logo desapareceu. O que esperava berrou para o outro lado: - Mané! Cuidado! Tem lagartu. - É? Muito? - Algum. Vai granada. Poucos segundos depois o sossego da noite foi rasgado pelo rebentamento de uma granada de mão dentro do rio, no lado dos que esperavam. Dentro de água houve um reboliço de crocodilos em fuga. Depois, na outra margem, outro rebentamento. Os homens foram atravessando o rio em pequenos grupos e colocavam-se na retaguarda dos que tinham esperado. Havia cumprimentos rápidos em silêncio, batendo mão contra mão, quando se reconheciam na noite. Passaram todos. Mantiveram-se deitados, descansando, falando baixo e mascando cola. O comandante que chegara cumprimentou o outro, descalçou as botas e pendurou-as nos galhos de uma árvore. Tirou as meias, torceu-as para sair a água e colocou-as ao pé das botas. O outro esperava sentado no chão, encostado a uma árvore. Ficaram sentados, juntos, com as Kalash entaladas entre as pernas, a conversar em voz baixa.

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Hora da saída

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O jantar foi antecipado e, de imprevisto, logo a seguir, foi dada ordem para ajuntamento de todo o pessoal da companhia junto à porta norte, preparado para uma operação de dois ou três dias. No escuro da noite, diminuído pelas réstias de luz das lâmpadas do arame farpado mal dirigidas para o exterior, o furriel Xavier, ao mesmo tempo que olhava em redor, corrigia o aperto do cinturão, a posição dos carregadores e da faca de mato. Olhando em volta, tentava localizar o pessoal da sua secção, fazendo a contagem dos homens para, dentro de momentos, os fazer entrar no lugar certo da coluna, integrados no seu pelotão. Daí a pouco ouviu-se a voz do capitão que acabava de chegar e difícil de localizar no escuro: - Está tudo, nossos alferes? Bazucas, metralhadoras, morteiros? Está tudo? Pessoal está todo? Esperou os OK. dos alferes e depois: - Vamos embora, pessoal ! Força na verga e que se foda a taça, que é de papelão! A companhia começou a sair para o exterior pelo chamado “cavalo de frisa”, entretanto aberto pelo sargento da 15


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guarda. À frente seguia o guia negro, que fora aprisionado na zona para onde se dirigia agora a tropa, amarrado, pela cintura, ao cabo Nunes. Iam saindo, pelotão a pelotão, fazendo a linha por um, respeitando a ordem rotativa anteriormente estabelecida para cada operação. O capitão integrou-se no pelotão que ia em segundo lugar , seguido pelo operador rádio, com o aparelho às costas. Mais adiante iriam, talvez, separar-se em dois grupos, seguindo caminhos diferentes, consoante a sua missão no terreno, embora actuando em consonância. Cada homem segue à vista o homem que o antecede para que a coluna se possa manter junta e contínua no escuro da noite.

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Quando a coluna entrou na mata, o capitão começou a testar os rádio-banana individuais, chamando, um a um, os alferes: - Cobra 2, cobra 2, cobra 1 chama. Escuto. - Cobra 2 à escuta. - Cobra 3, cobra 3, cobra 1 chama. Escuto. - Cobra 3 está e… estará à escuta. - Deixe-se de flores. Cobra 4, cobra 4, cobra 1chama. Escuto. - Cobra 4 à escuta. - Cobra 5, cobra 5, cobra 1 chama. Escuto. - Cobra 5 à… à… à escuta. - OK. Todos em escuta permanente até ordem em contrário.

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Dois estouros ao longe

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(Ora, aqui vou eu, o herói de mim mesmo, combatente de África, caminhando no escuro das noites africanas, defendendo as fronteiras da Pátria alargadas para as bandas do sul, dono, por enquanto, de capacidades físicas para aguentar chuvas e marés que entram pelos corpos até aos ossos das virilhas e até aos neurónios mais profundos.) - Pararam. Andamos, de novo. Que foi? (Era uma porca de mato e as suas crias. Fogem do herói da G3 apontada. Já não podem dormir na terra onde nasceram. Javali é noutras terras. Lá, na santa terrinha. Javali não é, propriamente, macaco-cão, não anda em cima das árvores, nem é porco das estepes. Já não se pode pastar nem dormir em sossego no meio dos capins das áfricas imensas. Pastar em desassossego em terras de guerra? Melhor vida tinha a D. Inês até que… “Estava D. Inês posta em sossego”… quando os gajos das guerras desses tempos chegaram e…acabou-se-lhe o sossego. E, se bem me lembro, ela também já tinha crias. Pois, pois tinha. E foi por causa disso.) (Morrer, morrer. Morrer devagar, às prestações, é “lixado”. Pum! Morreu, já está! Assim seja, se assim tiver que ser. Mas morrer devagar, davagarzinho, como aconteceu com 17


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o Montemor, com as pernas desfeitas… Assim é fodido! Ali, a regar com o sangue o chão de pó, empapado, até… que o enfermeiro lhe garrotou as coxas com as borrachas. Foi-se… a chamar pela mãe e cada vez mais baixinho.) (Mas eu, o herói das bolanhas e dos tarrafos, penetrador das matas, eu não, nós! Nós os filhos…) - Cobra 3, cobra 3, cobra 1 chama. Escuto. (Oh! É a “gaita” que está a falar.) - Cobra 3, cobra 3, cobra 1 chama. Escuto. - Aqui cobra 3. Escuto. - Que é que se passa? Isto não anda? - Anda, anda. - Vamos lá andar, Sant’ Antoninho! - Não. Não é o Sant’ António. É o lodo. Lodo! Estamos dentro de lodo. Até aos joelhos. - Faça alto à coluna. (Como é que eu vou parar isto aqui?) - É pá! Passa palavra para a frente, passa palavra: PARAR. (Olha que situação! Agora o pessoal vai ficar aqui com o “chispe” de molho, dentro de mousse de chocolate, até aos joelhos). Mas, pouco depois: - Cobra 3, cobra 1 chama. Escuto. - Aqui cobra 3. OK. Estamos parados. - Cobra 3, estamos próximos, muito próximos do rio. Demasiado próximos. Transmita guia para torcer à esquerda, sair zona de lodo. - OK, cobra 1. Entendido. - Cobra 3, espere! Depois sair lodo, virar à direita e seguir mesma direcção. Diga se correcto. Escuto. 18


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- Entendido, cobra 1. (Caraças! Agora tenho que ir lá à frente falar com o cabo que leva o guia) - Chega para a esquerda, pá. Deixa-me passar. Deixa passar, deixa passar. Onde é que está o cabo? Segura aí a G3, pá, que já volto. O Nunes, o Nunes? - Quem, meu alferes? - Fala baixo, pá. O Nunes e o guia? - Estão ali. (Ó caraças! Parece que o lodo me está a chupar para dentro. Ainda me ficam lá as botas.) - Ó Nunes! - Hum? Ah! Diga, meu alferes. - Diz aí ao gajo para virar à esquerda para sair desta merda do lodo. Depois de sair, segue na mesma direcção em que vínhamos. O gajo está a complicar para a atrasar a gente. Quanto mais para a direita a gente for mais próximo ficamos do rio e mais lodo há. - Já percebi, meu alferes. Vou apertar com o gajo. - Vamos. A coluna retomou a marcha. - Cobra 1, cobra 3 a chamar. - Transmita. - Correcção feita. Marcha retomada. - OK. cobra 3. - É pá, és tu que tens a G3? - Tenho, meu alferes. - Então, dá cá. - Então e eu fico sem arma? - Segue. Não chateies. 19


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- Tens a minha G3? - Não, meu alferes. - Tens a minha G3? - Tome lá, meu alferes. - Obrigado, pá.

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(A minha G3 é a minha amante. Dorme sempre comigo todas as noites no meu quartinho, mas não dorme na minha cama. É uma amante muito dura, cheira a óleo e a muito uso. Antes de mim quantos homens a tiveram? Não sei. Só sei que tem um ar de muito uso e é por isso que ela sabe funcionar bem quando é preciso. Quem é que se lembra de fazer guerras com esta escuridão? Nem paz, quanto mais guerras!) (Fosse eu o herói de mim, consagrado nos futuros livros da História de Portugal, lutando pela salvação das pátrias e eu seria um guerreiro do caraças! Mas as minhas guerras seriam sempre à luz do dia para ser possível a transmissão em directo pela televisão. As guerras deviam ser proibidas durante a noite. Proibidas durante a noite, no Verão e em terras muito quentes. Onde se viu uma guerra no Verão, numa praia cheia de gente? Com toda aquela gente no mar e em terra, barraquinhas de praia e…) Ouviu-se um estouro. Todos estacaram e alguns deitaram-se no chão. (Que foi isto? Não deve ser connosco. Mina lá à frente? Não, não foi por a…) Outro rebentamento, um pouco mais longe. (Porra! Já nos viram.) - Cobra 3, cobra 3, que aconteceu? - Cobra 1, aqui nada. Foi longe de nós. Bastante longe. 20


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- Cobra 3, cobra 2, cobra 4 e 5, instalar. Cobra 3, coloque bazuca à frente, metralhadora a bater o lado esquerdo e prepare o morteiro. Todos Cobra em posição defensiva. Maioria dos homens sobre a esquerda do movimento.

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Transmitiu à frente e mais atrás as ordens recebidas. Falou com os furriéis. Depois voltou à sua posição e deitou-se no chão. (Que foi? Que será? – perguntou o alferes ao dedo mindinho da mão esquerda. Da noute nunca vem cousa boa, dizia o meu avô.)

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O Oficial de Operações

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O Oficial de Operações estava aboletado, juntamente com o Oficial de Informações e o de Transmissões (este, alferes miliciano), na vivenda abandonada que fora habitada por um comerciante português e pela família. Encostado à vivenda e ocupando o que, anteriormente, fora a parte comercial, estava instalado o Posto de Transmissões. Era uma hora da madrugada e o Oficial de Operações não conseguia dormir. A companhia que estava instalada no mesmo quartel saíra, pela hora de jantar, para uma operação (que ele planeara), em articulação com três pelotões de uma outra companhia também dependente do Batalhão, sediada a cerca de quinze quilómetros, para Norte. Ele necessita de um sucesso retumbante (que não poderá deixar de ser atribuído somente à excelência do seu planeamento!), pois os últimos planeamentos não tiveram grandes resultados. Custava-lhe imaginar que o comandante da companhia (também oficial do quadro permanente) estivesse a evitar ir… até LÁ, ao objectivo, por ele definido e de acordo com o seu planeamento. Segundo as informações recolhidas, tratava-se de instalações da guerrilha, muito bem guarnecidas, 23


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com uma arrecadação de material de guerra, no subsolo, devidamente camuflado, impedindo a observação aérea. Tinha feito cruzamento de informações entre o “material” que recolhera com outras informações. Esta é a razão que não o deixa dormir. Se tiver sucesso, será recebido em Bissau com abraços e mais abraços de felicitações. E virá a desejada promoção (e a, não menos desejada, transferência). Não percebe como pode ter acontecido tudo aquilo. Em Angola acumulou prestígio e louvores fazendo planeamento operacional. Agora, na Guiné, são só “tiros de pólvora seca”. Esperava a todo o momento, que o pessoal do Posto de Transmissões ou o oficial responsável lhe batessem à porta. Decidiu levantar-se e ir tomar um duche. Colocou-se debaixo do chuveiro e abriu a torneira. Saiu água durante pouco tempo, que passou a pingo a pingo. Ficou irritado. Não sabia se devia esperar ou puxar da toalha. Depois lembrou-se que o carro da água só a partir das cinco horas começava a “mangueirar” água para os “bidons” colocados em cima do telhado. Limpou-se. No quarto, com outra toalha, secou o cabelo. Vestiu os calções e, enquanto abotoava a camisa, dirigiu-se ao Posto de Transmissões. - Bom dia. - Bom dia, meu major. - Estejam à-vontade. Alguma novidade? - Nada de especial. O nosso capitão reportou que fizeram um alto de menos de meia hora. Depois retomaram a marcha. - OK. E já há alguma informação da hora a que chega o PCV? 24


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- Não, meu major. - Se houver alguma novidade, chamem-me. Eu estou no meu quarto.

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O cabo Nunes

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- Cobra 3, cobra 3, cobra 1 chama. Escuto. - Cobra 3 à escuta. - Cobra 3, retomar a marcha nas mesmas condições. - Cobra 1, entendido. O alferes Costa ciciou para o homem à frente dele: - Eh pá! Passa palavra à frente, ao Nunes para continuar marcha na mesma direcção. E, depois, para trás: - Tu, passa palavra para a retaguarda dizer que vamos andar. - Nunes, nosso alferes diz para andares outra vez. - Vá, Mamadu, vamos! Nô bai. Então? Nô bai! Nô bai! Demorou quase um minuto até que a coluna começasse a deslocar-se. (Queres ver que o gajo pensava que ficávamos aqui.) - Eh, Mamadu, donde bô bai na goss-goss? Devagar, pá!

(A mim chateia-me dar um estalo no gajo, que é mais velho do que eu, mas se me dá outra vez um esticão assim, leva. Porque é que o capitão me deu este petisco, a mim? Tem a mania que eu falo bem crioulo. Qualquer gajo que ande na 27


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tabanca, fala. Tem que falar se quiser safar-se para não andar sempre a entreter-se com a menina dos cinco dedos. Isto, à noite, é uma porra. O gajo não deve ver nada e eu népias! Às vezes nem o vejo bem a ele. Mas se tenta fugir, leva uma rajada nas pernas. Precisava de perguntar ao alferes se isto é para andar a noite toda. Mas não deve ser. Acho que vamos parar lá para as bandas de Camabol, ao pé da bolanha de Cadabu para esperar que comece a clarear e, depois, seguir. Acho que saímos do quartel àquela hora para o pessoal da tabanca não cocar para que lado fomos e ir algum gajo avisá-los. Pois. Quando nascer o sol já vamos longe. Porra! Mas não explicam nada. É sempre surpresa. Às vezes bem me apetecia desenfiar-me.) - Ó Mamadu! Donde bô na bai, porra! Chegou-se ao ouvido do guia: - Esso aqui têm manga di lama. Bai p’ra lá. – e apontou para a esquerda. (Parece que o gajo quer ir para o rio. Para quê? Quando um gajo é piriquito anda sempre com o coração aos pulos, quando já é velhinho, pensa que sabe tudo e anda à balda. Agora, com a peluda à vista, volta o cagufo. Onde é que este cabrão vai? Numa mata destas um gajo quase não se pode mexer. Lá atrás devem andar uns em cima dos outros. Pois é, um gajo é velhinho, já viu muita coisa, coisas de mais. E pior que lerpar é ficar sem uma perna ou as duas ou outra coisa assim. Com’ó Montemor. Porra! Estou a ficar com sono. No quartel já tinha dormido umas merdas. Se a gente parar um bocado para poder “passar pelas brasas” digo ao Vasco agora tu e, depois, eu. Olhas-me 28


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aí pelo gajo. Assim, amarrado à cintura se o gajo der um esticão, acordo logo. E fodo-lhe os cornos.) - Ó Nunes, Nunes. Alto. Manda o nosso alferes. - Pára, Mamadu. Para aí. Depois da ordem para a coluna parar, o alferes Costa, seguindo as ordens do capitão, veio à frente da coluna dispor o pessoal de modo a fazer uma frente de fogo no sentido do movimento. Colocou aí a bazuca e metralhadora. Outra frente idêntica foi montada na retaguarda. Descansar até novas ordens. Depois deslocou-se para junto do capitão, assim como os outros alferes, para receber indicações. O cabo Nunes deitou-se, deixando o guia à sua direita e pediu ao Vasco que se deitasse à direita do guia. Combinaram descanso alternado, com o guia colocado no meio dos dois. - Vá, Vasco, tu primeiro. (O Vasco é um gajo porreiro. Somos quase da mesma terra, mas não o conhecia. Assentámos praça no mesmo dia em Santarém. Tive pena de ele não ser cabo, até porque o gajo me disse que, quando passar à peluda, quer ir para a Polícia. Eu não fiz nada para ser cabo e fui e ele, que queria mostrar serviço… A vida é assim. Eu, polícia, não, mas era capaz de ir era para a Guarda Fiscal. Tratar com contrabandistas é que me dava gozo. Nunca gramei a bófia nem a Guarda. Tínhamos um pó ao guarda que andava atrás de nós só porque jogávamos à bola na rua. Tinha uma ponta-e-mola e, quando apanhava a bola, cortava-a às postas. Filho da puta!. Deixa ver como está o gajo. Não abriu o pio o tempo todo. Muito mastiga o gajo. Deve ser cola. Deixa-o estar. Deixa-me 29


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