OLÍMPIO FERNANDES
O AR ESTÁ IRRESPIRÁVEL E DURVAL VEM ARMADO Este livro é uma sucessão de histórias ficcionadas para divertir o leitor. O protagonista estreia-se na função de transporte de passageiros na sua cidade, e nessa actividade vai vivendo acontecimentos, ora banais, ora surpreendentes. A acção acontece, por vezes, no limite do entendimento das personagens, onde não falta a incompreensão do protagonista perante as transformações sociais e económicas que o estão a afectar a ele próprio. Um grupo de delinquentes, que ao longo da história se lhe vai opor tenazmente, dedica-se a actividades incendiárias. A viatura que conduz é o cenário de variadas peripécias e enredos que envolvem as pessoas que transporta. Imprevistos nos quais, por vezes, ele se envolve enquanto se defende como pode dos ataques dos malfeitores incendiários que pretendem tirar da sua posse um misterioso gadget. Ao longo da acção desfilam pessoas de diversas partes do mundo. São utentes da cidade que por vezes transportam o dramatismo, a indiferença ou a angústia dos pequenos dramas individuais, e também a sua perplexidade face aos problemas que afectam a cidade, a Humanidade e o Planeta Terra, tais como a poluição do ar, os incêndios florestais, a mudança climática, a imigração e os refugiados. Os incêndios florestais assumem na narrativa uma terrível ameaça, a ponto de, no final, parecer que só um acontecimento assombroso poderá neutralizar os incendiários. www.sitiodolivro.pt
METAMORFOSE NA PRAÇA
METAMORFOSE NA PRAÇA
OLÍMPIO FERNANDES
META MORFOSE NA PRAÇA O AR ESTÁ IRRESPIRÁVEL E DURVAL VEM ARMADO Romance
OLÍMPIO FERNANDES Nasceu em 1950. Desde muito jovem teve oportunidade de conhecer e de se familiarizar com uma Lisboa já saudosa, em particular com o pequeno comércio, as pessoas, ruas, praças e bairros. Nela viria a trabalhar como escriturário e bancário. Mais tarde, em 1992 concluiu uma licenciatura na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, e veio a mudar de profissão ao ocupar um lugar de engenheiro do ambiente no qual se dedicou a assuntos da floresta e prevenção de incêndios florestais. Fez uma pós-graduação em Cidades Sustentáveis na mesma faculdade e, no GEOTA — Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, efectuou trabalho voluntário.
META MORFOSE NA PRAÇA O AR ESTÁ IRRESPIRÁVEL E DURVAL VEM ARMADO
Título: Metamorfose na Praça, o ar está irrespirável e Durval vem armado ©2018 Olímpio Fernandes
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Edição: Edições Vírgula (chancela do Sítio do Livro) Autor: Olímpio Fernandes Revisão: Mafalda Falcão Composição gráfica: Alice Brida Capa: Kayla / Fiverr 1.ª edição: Maio de 2018 Depósito legal n.º 439110/18 ISBN: 978-989-8821-70-6 Reservados todos os direitos PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO: www.sitiodolivro.pt
Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor. Reprodução proibida por todos e quaisquer meios. Por vontade expressa do autor, a presente edição não segue as regras do Acordo Ortográfico de 1990.
OLÍMPIO FERNANDES
META MORFOSE NA PRAÇA O AR ESTÁ IRRESPIRÁVEL E DURVAL VEM ARMADO Romance
Dedico este livro ao JoĂŁo Manuel
ÍNDICE Capítulo 1
Acontecimento pirológico ..............................................................
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Capítulo 2
Emissários .......................................................................................
19
Capítulo 3
Nova vida e estilhaços de granada ..................................................
26
Capítulo 4
O Gadget inacreditável ....................................................................
34
Capítulo 5
A revolução e a boa mesa ................................................................
46
Capítulo 6
Durval e os exo-planetas .................................................................
55
Capítulo 7
A mulher do passado .......................................................................
59
Capítulo 8
Silvi e outras peripécias ..................................................................
66
Capítulo 9
Hotéis e confusões ..........................................................................
73
Capítulo 10
Aventura em Madrid .......................................................................
78
Capítulo 11
Novamente Silvi ..............................................................................
85
Capítulo 12
Rotinas, transformações e perplexidades .......................................
100
Capítulo 13
Viagem no tempo ............................................................................
116
Capítulo 14
Olívia, aldrabões e coisas alucinantes ............................................
131
Capítulo 15
Pessoas em apuros e Angelino de volta ..........................................
148
Capítulo 16
Recordações intensas .....................................................................
158
Capítulo 17
Marinheiros em terra ......................................................................
168
Capítulo 18
O ar está irrespirável e Durval vem armado ....................................
177
Capítulo 19
Diário ...............................................................................................
194
Capítulo 20
Final ................................................................................................
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PREFÁCIO Conheci o autor nos anos noventa do século passado, quando desempenhava funções na área do ambiente, no Município de Loures. Naquela época, o Município de Loures estava a promover a florestação de terrenos incultos, sobretudo com o objectivo de criar uma alternativa à pressão urbanística que, de forma frequentemente não planeada, se fazia sentir em toda a Área Metropolitana de Lisboa. O autor empenhou-se e deu continuidade a este projecto no qual também concretizou as suas preocupações com as questões ambientais e do desenvolvimento sustentável. Nesta obra, através de pequenas e engraçadas histórias narradas pela figura de um motorista de táxi de Lisboa, estão bem reflectidas as suas preocupações sociais e ambientais. Nesta ficção leve e divertida, de leitura agradável que proporciona bons momentos de descontração e reflexão, com base na experiência de um curto período da sua vida e em pequenas viagens pelo quotidiano de Lisboa, o autor presta também homenagem aos Profissionais de Praça que, dentro das suas viaturas, são um verdadeiro barómetro da vida e dos problemas de uma grande cidade e do pulsar dos seus habitantes. Como nota final gostaria de deixar a mensagem que os incêndios florestais, em Portugal, se devem menos a Arlequinos, Angelinos e outros malfeitores semelhantes que andem por aí mas, sobretudo, a atitudes e actos negligentes e à tradicional falta de cultura de segurança do nosso país, competindo a todos nós contribuir para que haja uma vontade de mudança, muito mais cuidado ao fazer lume e no uso do fogo e envolvimento na gestão e protecção das florestas. Rui Victorino Queirós Eng.º Silvicultor
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Prefácio do autor Há uma cidade que, como todas as outras, está sujeita a transformações que têm uma parte mais visível para os seus utentes: as obras nas suas avenidas, praças, ruas e edifícios. Todavia, a cidade não existe por si só. Está ligada de muitas formas ao resto do território, fazendo com que até o protagonista deste livro acabe por constatar como o ar se encontra “irrespirável” devido ao que se acontece dentro e fora dela. A acção passa-se em Lisboa num tempo em que as civilizações estão ameaçadas por uma severa mudança climática que, se não for eficazmente enfrentada, provocará alterações tais ao nosso habitat que não se sabe que mundo resultará. Dar-se-ia uma “metamorfose do mundo”, assim chamada pelo sociólogo Ulrich Beck. Contudo, esta “Metamorfose na Praça” é bem menos ambiciosa e apenas pretende, em primeiro lugar, divertir, e, em segundo, assinalar um momento de transformações da cidade. Para isso recorre-se a uma ficção inspirada no desempenho, esforçado, de um trabalho que, como muitos outros, é duro, ingrato e muito exigente a nível técnico. Se se pode divergir da visão social e económica nela expressa, já as preocupações ambientais nela contidas, apesar de estarem longe de serem enumeradas por completo, merecerão sempre ser recordadas, até para estimular a acção tenaz contra aquela ameaça.
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Capítulo 1
Acontecimento pirológico Era madrugada de Verão em pleno Agosto e uma brisa seca subia o vale. Um caminho de terra batida seguia paralelo ao ribeiro que, na realidade, era um curso de água tipo intermitente, com as suas margens dominadas por silvas onde, aqui e acolá, surgia um arbusto lenhoso, algumas oliveiras ou até um ou outro freixo. Nesta altura do ano, o ribeiro estava completamente seco. As hortas nas suas margens, em processo de abandono, já nada produziam na época por falta de água. Não havia habitações por perto nem iluminação pública. Apenas a lua cheia iluminava a paisagem deixando antever uma figura humana que, em tons pardacentos, àquela hora tardia, seguia devagar numa bicicleta eléctrica, silenciosamente e com determinação. Por vezes, o piar dum mocho fazia contraponto com o ruído ritmado e sibilante das pás dos aerogeradores que dominam o vale. Era um homem magro que carregava às costas uma mochila pesada. Mais para nordeste, subindo ao longo do vale encontra-se uma mancha densa de pinhal bravo. Aí chegado, deita a bicicleta ao chão, segue a pé com a sua mochila e, penetrando pelo meio das árvores onde a escuridão não o assusta, puxa de uma lanterna. Com a luz que dela jorra, procura e encontra o ponto mais apropriado para proceder à ignição: amontoa caruma, depois lenha miúda e, por cima, lenha grossa. Fixa uma vela de estearina cuidadosamente, junto à fracção mais miúda do combustível, para que a chama se propague através da fina e seca biomassa em apenas alguns minutos. Repete a operação em mais três pontos, e depois desloca-se mais uns vinte metros para o interior do pinhal, derramando uma vasilha de gasolina um pouco ao acaso sobre a vegetação do sub-bosque. Retrocede e faz o percurso inverso, acendendo as velas pelo caminho com o auxílio de um isqueiro. Depois, afasta-se rapidamente montado na sua bicicleta, e desce o caminho do vale para chegar à estrada onde deixara a viatura. Aí, abre a bagageira, dobra a bicicleta, pega nela e coloca-a lá dentro. Deixa novamente o carro e segue a pé estrada acima, inflectindo por um
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caminho municipal até ao miradouro, de onde começa a assistir ao espectáculo que montara. Tudo estava a decorrer conforme previsto: as labaredas estavam cada vez mais violentas. Progrediam encosta acima e em todas as direcções, prometendo um grande acontecimento pirológico. Como estava emocionado ao ver uma área já tão vasta a arder… Continuava a contemplar a cena enquanto pensava na segunda fase do plano: ligar para o 112. Depois de contactar os bombeiros, como se de um trausente se tratasse surpreendido por um qualquer incêncio, ainda não dava por terminado o seu plano. Agora era a altura de ver tudo sem ser visto. Volta então ao carro. Percorre dois quilómetros serpenteando a serra e chega a uma casa situada no extremo da aldeia mais próxima. Abre o portão, arruma a viatura, volta de bicicleta para o miradouro. Esconde-a debaixo de uns arbustos, sobe até um ponto mais alto e fica à espera. Quando os meios de combate chegaram, já o fogo alastrara e consumia grande parte do pinhal. As forças da natureza confrontavam-se agora com as forças do homem, e este debatia-se bravamente num combate violento e tóxico. Um guarda da GNR e um bombeiro chegam de carro ao miradouro e ficam a observar. Ele fica à espera que eles saiam dali. À medida que o tempo passa e o fogo abranda começa a sentir-se desapontado. O espectáculo começara a perder qualidade... Chateado, volta no seu velocípede à casa abandonada onde deixara o carro. Carvalhos frondosos dão ao local uma escuridão que o obriga a ligar a lanterna que transporta na mochila. Despe o fato-macaco e veste uma camisa branca, um blusão vermelho fino e umas calças pretas. De repente, no pátio acendem-se os faróis de outros dois carros que rasgam a escuridão, tudo seguido de uma grande algazarra que os seus amigos fizeram logo que o rodearam. — Muito bem Arlequino! Agora vamos todos entrar e proceder à cerimónia! — disse Angelino. A casa estava iluminada com lâmpadas incandescentes onde predominava o vermelho. Numa parede sobressaía um cartaz em tons vermelhos e amarelos exibindo um grafismo que representava o que parecia ser um globo terrestre em tons de azul e verde. No meio do globo estava estilizada uma chama com nuances de vermelho e amarelo. No resto da decoração havia imagens de fogos florestais com carros de bombeiros, helicópteros de combate em acção, aviões a lançar água sobre florestas
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Metamorfose na Praça, O ar está irrespirável e Durval vem armado
incendiadas, carros e casas ardidas, árvores carbonizadas, cinzas e até pessoas mortas com rostos queimados. Angelino prosseguiu: — Foste fantástico, Arlequino! Nós saudamos o teu desempenho heróico! O Bandofinis é a modernidade mais original, a verdadeira expressão de protesto, a genuína forma de exercer o poder da vingança! E a vingança é a mais nobre forma de impor o poder dos corajosos e é uma demonstração de grande coragem face a quem ouse ou tenha ousado afrontar-nos. A Terra não é para todos, vai ser só para os eleitos. E nós fazemos parte desses eleitos. Depois de ardida toda a floresta, eles hão-de cair às nossas mãos: teremos então o poder para controlar todo o sistema de apoio de vida e seremos poderosos como deuses! Angelino olhou para todos, um a um, e depois continuou: — És bem-vindo ao nosso Bandofinis! A partir de hoje vais poder gozar da minha amizade e de todo este coeso e audacioso grupo. O grupo respondeu em coro: “Bem-vindo sejas ao nosso Bandofinis. És acolhido no seio desta comunidade espiritual para a servir sob a protecção do seu grande mestre e sábio Angelino”. Arlequino respondeu com solenidade, lendo de um papel: — É graças a ti, Angelino, que me guias para servir o Bando que tanto engrandeces, para te servir a ti e para atingir a plenitude do novo mundo, que juro servir o Bandofinis. Foi a vez de Angelino proferir então: “Agora, meus amigos, atenção ao que tenho para vos dizer, juro que é a verdade mais fundamental: A mudança climática é muito mais do que uma simples alteração, é uma metamorfose: o planeta passará a ser uma coisa nova e diferente de tudo o que conhecemos! Àqueles que agitam a bandeira da mitigação e da adaptação às alterações climáticas, nós dizemos: nada mais inútil! Numa coisa eles terão razão, mas de nada lhes servirá: tal processo está mesmo em aceleração. Por isso, ainda vamos viver a metamorfose. O processo é imparável e inevitável. Até lá, vamos ver a criação humana extinguir-se tal como a conhecemos pelo fogo, pela desertificação e por fenómenos extremos. Os homens vulgares desaparecerão — infelizmente para eles. Todavia, para nosso benefício, uma minoria há-de sobreviver para nos servir. Sim, para nos servir a nós, a mim, Angelino; a ti, Arlequino, e a vocês todos: Adolfo, Eduardo, Sandrita, Jasão, Semião, Teodato, Ervilina e Rosália.
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Vai ser uma catástrofe, sim, mas não para nós! Porque dali sairá um mundo novo e esse mundo novo será o nosso. Pelo caminho vão ficar milhares de milhões de cadáveres, mas, nós, os que aqui estamos, não faremos parte desse necrotério, porque seremos salvos! Porque é a elite que terá acesso ao novo mundo! Entretanto, cabe-nos acelerar, promover a mudança climática, tudo fazendo para colocar mais gases com efeito de estufa na atmosfera, anular tudo o que faça fotossíntese para conquistar o direito a ter o nosso lugar no mundo que aí vem. Uma das formas de o conseguir consiste em fazer ignições tão bem sucedidas quanto possível no meio da floresta! Neste caminho, ser-nos-á permitido aproveitar para executar a vingança, onde quer que ela se justifique, seja contra quem for!” Angelino fez este horripilante discurso numa entoação como quem comunica a alguém que o seu bilhete da lotaria foi premiado com o prémio máximo. Ouviu as palmas e os gritos de vitória e voltou a falar: “Agora, no caminho de regresso às nossas casas, vamos ver a continuação do espectáculo. Daqui a vinte minutos vamos assistir ao fogo de artifício. Nos nossos carros havemos de passar pela estrada panorâmica a tempo de o ver, bem como às derrocadas!” Na encosta do pinhal manso, os bombeiros continuavam a sua luta contra as chamas. Mais tarde, ouvem-se duas explosões. Pouco depois, as suas viaturas tinham o caminho de regresso bloqueado por pedras na estrada. Várias novas frentes de incêndio tinham ocorrido em simultâneo estendendo-se para lá da cumeada e da área já ardida. No miradouro, as figuras sinistras sentiam um enorme prazer por aquilo que viam e pela perspectiva do dinheiro vivo que lhes ia chegar às mãos.
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Capítulo 2
Emissários Lúcio, o protagonista desta história, e Angelino tinham-se conhecido numa tertúlia no extinto Grande Café Nacional, onde chegaram a rivalizar no bilhar. Nesse tempo, frequentavam também o Parque Mayer, onde havia uma sala de jogos com uma jukebox, a que não faltavam discos de alguns fadistas desse tempo. Ali ouviam também Pat Boone, Elvis, Rita Pavone, Jacques Brel, Sylvie Vartan, Johnny Hallyday, Shadows e os inevitáveis Beatles. Por vezes jogavam matraquilhos. Lúcio ganhava amiúde os jogos, o que não agradava à vaidade de Angelino. Como o tempo é fugaz, mais tarde os seus caminhos haveriam de divergir. Adoptariam diferentes filosofias de vida. Poucos anos depois, Lúcio haveria de escapar à Guerra Colonial, para isso se valendo de ter feito constar que fugira clandestinamente para França, quando na verdade esteve a viver na clandestinidade, a ganhar a vida como camponês, lenhador e resineiro. Depois da queda da ditadura, voltaria para a cidade. Angelino esteve nessa guerra. Mas, nas cidades onde se esmerou na lavagem ao cérebro dos nativos, aplicava a estratégia social conhecida por “psico”, que consistia em tentar convencê-los de que eram portugueses, que todos éramos portugueses e que assim é que estava certo. A psico era um instrumento de domínio. Mais do que uma propaganda, era um recurso do regime destinado a anestesiar e a confundir a raiva e a animosidade dos nativos contra os portugueses. Aprendera técnicas de persuasão, formas subtis de fazer o negro sentir-se “tu cá, tu lá” com os colonos, e fazê-los esquecer a subalternidade humilhante em que viviam. Tudo isto era coisa fácil para quem passara a vida a iludir toda a gente. Para melhor pintar o retrato de Angelino, é importante referir que ele tivera a infelicidade de ficar órfão quando ainda era criança. Filho de mãe solteira, desaparecera-lhe a figura materna aos dois anos. Depois, foi brutalmente maltratado pelos tios, que o espancavam sem cerimónia, a ponto de ter tido, por várias vezes, não só equimoses como ainda
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braços e costelas partidas. Desde então, decidira que ele próprio seria digno do melhor: mas não podia confiar nos adultos. Ao crescer, teve de recorrer permanentemente à mentira, à dissimulação, a manobras e a manipulações de todo o tipo, enganando-os para lhes agradar e para sobreviver. Experimentara tantos maus-tratos que encontrou apoio no ódio que sentia, o mesmo ódio que viria a ser a sua força vital mais tarde. Este era o que o fazia ser duro e cruel. Todavia, era genial a disfarçar esse ódio que o animava: fazia-o sob a máscara de uma tal polidez e sedução que cativava a maioria dos que o rodeavam. Passava a vida a olhar para dentro de si, sem ser capaz de assumir a sua própria responsabilidade, numa atitude de “a culpa é sempre dos outros”, num cretinismo moral que lhe justificava todas as manobras mais sujas e subtis, toda a crueldade, toda a falta de escrúpulos contra os alvos escolhidos para destruir. O volume e o peso do seu ódio tinham aumentado com a idade, bem como as suas boas maneiras, alimentando secretamente a ambição de praticar crimes perfeitos. Lúcio sabia bem que Angelino desprezaria qualquer ideia segundo a qual uma qualquer pessoa pudesse ser impecável. Ai da pessoa contra a qual ele embirrasse, porque lhe faria milhares de coisas para a prejudicar! Os dois voltariam a encontrar-se depois da Guerra Colonial e da queda do regime ditatorial — quando um voltara de África e o outro do país rural — e ambos haviam aceite, por diferentes vias, o seu convite para integrarem um movimento denominado Alfernalha: Oficina Política de Acção, cujo objectivo era angariar um número crescente de militantes com a finalidade de formar um partido político e tomar o poder. O grande cérebro deste grupo era aparentemente um tal Adriano, mas depois de algum tempo tornara-se evidente para Lúcio, que quem manobrava na sombra era Angelino. Angelino desde há muito que dispunha e manipulava um grupo de lacaios que o adulavam e lhe obedeciam cegamente a troco de lisonjas e do privilégio de o seguirem. Clésia era a companheira deste e frequentemente faziam exibições de casal perfeito, o que não seria necessário se houvesse perfeição, até que um dia ela se apercebeu que entre o seu companheiro e Adriano existia muito mais do que um interesse comum sobre cultura, política, filosofia ou a concepção do mundo: existia uma cúmplice amizade, uma relação secreta, só dos dois, da qual ela estava excluída. Uma vez, já ela inteirada disso, Lúcio e Juvenal encontraram-na num bar quando se juntavam para comemorar um resultado futebolístico (nessa altura, Lúcio
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ignorava que ela era a esposa de Angelino), e viram-se os dois convidados para ir a sua casa ouvir um disco do Jacques Brel. “O meu marido está no estrangeiro mas está lá em casa a minha professora de guitarra”, dissera-lhes Clésia. Quando chegaram, a tal professora já não se encontrava lá. Juvenal, que entretanto se despedira, deixou Lúcio sozinho com Clésia. Estava ele no sofá quando esta lhe aparece e se senta a seu lado completamente despida, mas a despropósito e sem mostrar qualquer sinal de querer intimidade. Nesse momento entra Angelino, e Lúcio fica paralisado sem saber o que fazer. Este limitou-se, então, a olhar para Angelino, fingindo o ar mais natural e inocente que conseguiu. Sem ter conseguido dizer nada, balbuciou uma despedida e saiu a correr. Ainda assim, deteve-se do lado de fora da porta e pôs-se à escuta na expectativa de ouvir uma enorme discussão entre os dois. Como não ouviu nada foi-se embora dali. Clésia acabou mais tarde por deixar Angelino e, para grande surpresa de Lúcio, passou a ser vista com Juvenal. Entretanto, com Angelino tudo parecia correr normalmente. Nunca ninguém lhe vislumbraria qualquer sinal de desgosto ou de contrariedade. Se alguém dentro do movimento tivesse aspirações que não fossem as de ficar sob o controlo apertado de Angelino, este opunha-se ferozmente a qualquer veleidade e recorria à intriga para sabotar as suas iniciativas. Um dos truques que usava era o de enviar emissários junto das famílias de qualquer um desses. Os emissários secretos de Angelino faziam-se passar por militantes dum qualquer partido bem colocado no poder, conforme ele achasse que lhe era mais conveniente. Este era o processo de minar os seus adversários: levava às suas famílias grandes promessas de favorecimento, como a de progressão de carreira profissional e de protecção pessoal; tudo isto a troco apenas do voto nesse partido nas eleições, mas com mais uma pequena condição. Uma condição muito simples: não dar a conhecer esta combinação a certo elemento da família — que era sempre aquele que Angelino queria neutralizar — e de quem diziam os emissários, coisas do tipo: “por sinal ele até é uma pessoa excelente, de quem gostamos muito, de grande valor, mas tem certas simpatias e ideias políticas que, nesta conjuntura, não se enquadram no objectivo do partido que nos leva aqui neste momento, portanto não necessita de saber de nada. E seria bom até, parece-nos aconselhável, precaverem-se para evitar certos problemas, porque por certo ele não
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deixará de vos pressionar para vos trazer para o campo político dele; não é que estejamos contra ele, não, até o temos em elevada consideração, nada disso, mas de outro modo o partido não pode levar adiante esta combinação”. O resultado desejado seria o de, depois disso, que a vítima de intriga fosse sendo confrontada com um decréscimo de confiança face a qualquer iniciativa junto dos familiares. A ideia era esta ficar marginalizada dentro da própria família. A receita seria, ainda, complementada com outras acções semelhantes, junto dos próprios colegas de trabalho, e junto de grupos cívicos como, por exemplo, de actividades culturais, comissões de trabalhadores, ou grupos paroquiais. A vítima seria então confrontada com dificuldades crescentes em todas as suas áreas de actuação. A dada altura, a família de Juvenal fora alvo do truque dos emissários, mas a família dele não caíra na manobra. Isto foi o que se passou: um dia, a mãe de Juvenal foi contactada pelos lacaios de Angelino, no seu papel de emissários. Fizeram uma reunião com ela, o irmão e o avô. Vieram então as promessas: podiam proteger a carreira do irmão, com promoções, boa reputação e dinheiro quando possível; o partido iria, ainda, favorecer a atribuição de pensão ao avô. Só era necessário votar sempre naquele partido. Quanto a Juvenal, embora não o tenha hostilizado, o partido fez questão de não o manter a par do que estavam a combinar, pois era preciso que tudo permanecesse em segredo, já que afinal se tratava de uma guerra de partidos, e as coisas eram mesmo assim. Quanto ao resto, teriam de evitar as iniciativas políticas que viessem de Juvenal, pois estas não se enquadrariam nas opções do partido à data, sendo prematuras. Mesmo assim, o partido não faria nada contra Juvenal, e tentaria, discretamente, influenciar positivamente a sua vida profissional. Despediram-se dos aldrabões com bons modos e depois trataram de contar tudo a Juvenal que, na altura, não conseguiu descortinar de onde vinha verdadeiramente aquela manobra. Todavia, outras maquinações contra Juvenal parecem ter resultado noutras áreas, a ponto de ter suportado tais hostilidades que quase enlouqueceu, tendo tido grande dificuldade em superar as armadilhas perante as quais fora colocado; em razão do que, mais tarde, acabaria por se afastar da Alfernalha. Um dia desapareceu. Comprara uma quota de uma empresa média de metalo-mecânica. Mas Angelino e o seu bando
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Metamorfose na Praça, O ar está irrespirável e Durval vem armado
continuaram a minar em todas as frentes. E tudo aparecia sabotado. Por fim, Juvenal viu-se só e com um monte de dívidas. O despiste de automóvel que mais tarde o vitimou pode ter sido na verdade um suicídio. Algo parecido parece ter acontecido em relação a Lúcio. A partir de certa altura era frequente vê-lo ficar mal colocado, fosse em que circunstância fosse. Usando os seus inúmeros lacaios, Angelino colocava-lhe ratoeiras para ele cair e iniciou uma campanha de calúnias junto de pessoas que se relacionavam com aquele e que começava sempre assim: “é muito bom rapazinho, gosto muito dele, mas...” Um dia, três indivíduos apareceram em casa de Lúcio. Era um casal simpático de vizinhos do prédio, sempre muito activos em termos cívicos, que vinham acompanhados de um tal Arlequino. O que se passou a seguir foi esquisito. Enquanto a mulher do vizinho colaborava na cozinha, Arlequino estava altamente interessado no que Lúcio fazia, o que pensava, que hobbies praticava, o que lia. E, satisfeita a curiosidade, tratava de o ridicularizar com piadas estúpidas em que este era sempre o alvo, mesmo nas suas barbas. Lúcio não queria acreditar no que estava a acontecer. Acolhia o amigo do casal vizinho para ser assim gozado? Puxou dum cigarro, foi à varanda, aspirou uma fumaça e ficou um tempo a reflectir no que estava a acontecer. Pouco depois chamou à parte o vizinho e disse-lhe: — Meu caro, não sei porquê mas este gajo que trouxeste veio a minha casa para me insultar. Vais levá-lo lá para fora já, ou eu corro-o à porrada. A ele e a ti também. O vizinho então convidou o tal Arlequino a saírem ambos para comprarem umas garrafas de cerveja. Arlequino percebeu a ideia e o vizinho voltou pouco depois sozinho e de mãos a abanar. Por essa altura, Lúcio já se apercebera da campanha contra si, com tudo a correr cada vez pior na Alfernalha e a ficar exposto a comportamentos hostis e estranhas indiferenças: as suas propostas não eram discutidas, os seus relatórios não eram lidos e as suas intervenções eram acolhidas com silêncio. Os seus supostos amigos evitavam-no, num processo cumulativo de contratempos. Entretanto, houve uma reunião para fazer o balanço de uma campanha de angariação de fundos que havia sido coordenada por Juvenal e Angelino não esteve presente. O relatório era muito positivo; a campanha tinha chegado a mais de dez mil pessoas singulares que tinham dado bons contributos, mas o mais substancial dos contributos tinha vindo de um número elevado de empresas
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que concederam fundos muito generosos. A receita final tinha ficado muito acima do estimado, somando uma autêntica fortuna. Mas quando foi aberto o cofre foi uma enorme decepção: estava vazio. Logo de imediato Adriano acusou Juvenal de ter desviado toda a receita da campanha. Lúcio, que confiava neste e acreditava na sua inocência, pensou que não seria necessário mostrar que estava do seu lado: seria remar contra a maré. Não se manifestou. Pensou que teria sido coisa fácil descobrir o segredo do cofre e subtrair-lhe o numerário. Na véspera, por mero acaso, dera com Angelino a conduzir um carro de luxo, o que não estaria de certeza ao alcance do orçamento deste. Lúcio conhecia o director bancário ligado à Alfernalha, tinha sido seu colega de escola. Como achou que era o homem colocado no sítio certo para tirar certas dúvidas, recorreu a ele para ver se era possível discernir algum indício de desvio de dinheiro, procurando em cheques já descontados à ordem do stand de automóveis da marca conduzida por Angelino. — Há milhares de cheques, Lúcio, como queres que eu descubra? E o sigilo bancário? — Talvez se consiga. É só vasculhar pelas importâncias e pelas datas mais prováveis — respondia-lhe este — até pode ser fácil. Por fim conseguiram localizar dois cheques da Alfenalha assinados por Angelino depois do fim da recolha de fundos. A soma deles perfazia exactamente o dinheiro que faltava. Conseguiu cópias desses cheques e foi espalhá-las em mesas, gavetas e arquivos da organização. Na reunião seguinte da comissão executiva, à qual Lúcio não comparecera, não houve escândalo algum, nem o assunto foi abordado: já não estava ali ninguém para contradizer Angelino. Lúcio nunca mais voltou à Alfernalha. Quanto a Angelino, fez logo constar que as provas contra si haviam sido forjadas. Os acontecimentos desfavoráveis a Lúcio tornavam-se cada vez mais frequentes, fazendo-o ficar perturbado, tenso e sempre à espera dum próximo ataque que não sabia de onde viria, nem quando, como, ou de quem. Acordava de noite com pesadelos indescritíveis e ameaçadores. Um dia em que se sentia como que totalmente desconectado, atravessou uma passadeira no vermelho, foi atropelado e hospitalizado com fracturas. Antes de ter alta foi visitado por Juvenal. Isto aconteceu numa fase em que este já se afastara da Alfernalha e estava a passar por sérias dificuldades. O que não o impediu de trazer consigo uma extraordinária esperança que terá salvo Lúcio, mas que por ironia do destino não o conseguiria salvar a ele próprio.
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Metamorfose na Praça, O ar está irrespirável e Durval vem armado
— Obrigado pela visita, meu amigo. — Não tens que agradecer, mas como as coisas estão, mais parece que não há amigos, nós é que temos de nos safar sozinhos no meio destes filhos de puta. Conversaram e Lúcio deu por si a desabafar. Contou-lhe tudo o que lhe estava a acontecer. E, de repente, só por ter desabafado, sentiu que via as coisas com mais clareza. O visitante pareceu compreendê-lo e, para controlar a raiva que sentia, após ouvir o relato deteve-se longamente em silêncio. Depois, respirou fundo e aconselhou-o com sabedoria dizendo-lhe: — Fica tranquilo, acalma-te. Não se pode ficar à mercê dos inimigos, nem podemos esperar vencê-los quando eles têm mais munições que nós. — Que faço, junto-me a eles? — Não, porque isso seria uma aliança com o mal. Evita o confronto. Muda de vida. Fez outra pausa, olhou-o e sentenciou: — Quando te acontecer algo estranho, tens que perceber com lucidez o que te aconteceu. Se és o responsável, tira daí a lição. Se não és o responsável, tira daí a lição. Mas não deixes nada por clarificar. Afirmou tudo isto de uma forma ao mesmo tempo calorosa e tão categórica que Lúcio finalmente sentiu que alguém estava consigo, percebeu que estava de volta toda a sua energia. Foi a última vez que viu Juvenal.
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Capítulo 3
Nova vida e estilhaços de granada Na procura de uma nova vida, Lúcio mudou de residência para outra cidade, mudou de emprego e de profissão, passou a diversificar os seus interesses e procurou viver da forma mais serena possível, preenchendo a sua vida sem perder nada que fosse excitante ou educativo, almejando pela felicidade pessoal. Procurou a companhia dos melhores, intensificou a sua formação, leu o mais que conseguiu, procurou novas amizades. Frequentou bibliotecas, universidades, espectáculos e museus; conheceu pessoas interessantes. Aprendeu o que foi capaz, tanto com as pessoas mais ricas do ponto de vista humano e intelectual, como com os mais humildes. Aprendeu com os inimigos, dedicando-lhes até a sua reflexão, sem deixar de os evitar, mas procurando manter-se alerta face às suas investidas. Esqueceu-se daqueles amigos que não se comportavam como tal. Se alguém precisava de ajuda, tentava ajudar a remover os obstáculos que se lhe opunham. Colaborou em grupos cívicos e filantrópicos. Se algo lhe corria mal, procurava ver o que havia para aprender com isso. Aprendeu a responder aos ataques traiçoeiros com mais elegância e inteligência, apesar de por vezes não poder evitar feridas dolorosas. Esteve quase uma década a trabalhar numa empresa importadora de electrodomésticos. Formou-se em gestão, foi gestor numa rede de empresas do ramo das máquinas agrícolas e depois numa unidade fabril dedicada a componentes para aviões. Os problemas da Terra, do território e das cidades sempre haviam prendido a sua atenção e dedicava-lhes cada vez mais do seu tempo e do seu estudo. Quando foi convidado para gerir uma empresa que se ocupava de trabalhos florestais e jardinagem, aprendeu a importância extraordinária da floresta. Ao fim de dois anos, adquiriu a empresa e passou a geri-la segundo a sua vontade. Dedicava-se à prevenção de incêndios e à reflorestação, o que é mais do que um trabalho rotineiro, é um trabalho criativo e científico. Com colaboração universitária orientava as suas equipas a fazer diagnósticos do terreno rural e florestal, para daí aplicar estraté-
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gias a fim de materializar povoamentos florestais respeitadores do Ambiente, ao mesmo tempo rendíveis, menos vulneráveis a incêndios e mais úteis para a sociedade. Nesse tempo, começava o seu dia cedo. De manhã, no seu escritório, gostava de observar através da janela, para lá do Tejo, o dourado sol que lhe batia no rosto a nascer sobre a planície e que lhe dava uma sensação deveras estimulante. Um vez, quando reflectia sobre o trabalho que iria fazer nesse dia e sobre como conseguiria dar início a um projecto de reflorestação já aprovado sem que para isso fosse necessário recorrer a um crédito bancário, reviu o plano financeiro e escreveu umas notas para si próprio com um pequeno número de medidas que lhe permitiriam atingir esse desiderato. Sofia chegou nesse momento: — Bom dia. Continuas a madrugar, Lúcio. Ontem saíste tarde, não sei a que horas, pois eu já estava a sair muito depois da minha hora e tu ainda ficaste — disse ela. — Obrigado, Sofia. Tens sido um extraordinário apoio para esta empresa que muito te deve. Não devias fazer sacrifício familiar, mas sei que se eu não existisse, eras capaz de geri-la sozinha. Ela interrompeu-o: — Quando pegaste nesta empresa que estava falida, eu estava incrédula quanto ao sucesso que daí viria. Mas reuniste-te de pessoas aparentemente vulgares, acreditaste nelas, valorizaste-as. Elas retribuíram-te, como eu própria sempre tento fazer. É certo que algumas foram ingratas de mais, mas no fim de contas ganhaste a tua aposta. E hoje ela tem solidez técnica e financeira, e tu tens gente motivada à tua volta. Não se trata de me sacrificar, mas de trabalhar naquilo em que acredito e de sustentar a minha família. Lúcio olhou-a, fez um silêncio e retorquiu: — Sabes que muito me satisfaz ver as pessoas felizes à minha volta, do meu lado. E a empresa a crescer de forma segura. Neste momento, a minha inquietação pessoal, a minha maneira de ser, o meu ponto fraco – ou forte, não sei – exerce sobre mim uma força tal que me impele a partir para outros horizontes. Por isso, vou pôr à venda a minha quota. Vendeu-a, não pelo melhor preço, mas a quem entendia que tinha a maior vontade, a um jovem diligente, estudioso, sociável e trabalhador, que continuou o seu trabalho. Decidira que o mundo ainda lhe reservava aventuras novas para viver, mas na realidade a idade já começava a pesar, a sua energia já não
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era a mesma de antigamente. Aproveitou para viajar por Londres, Madrid, Barcelona, Roma, Veneza, Florença, Paris, Hamburgo, Helsínquia, Estocolmo, São Petersburgo, Praga, Moscovo, Kiev, Istambul, Atenas. Fez muitas vezes férias na praia e grandes viagens de carro. Apesar de tudo continuava a sentir a falta de acção e aventura. Foi por isso que, para se manter activo, acabou por aceitar uma oferta para um tempo parcial num negócio de imobiliário. Um dia recebera um telefonema de alguém que estava interessado em comprar um apartamento tipo T1 no concelho de Sintra, bem localizado, com muita luz natural, orientado para um parque urbano, com vistas de arvoredo de perto e de moradias mais ao longe. Ficava a pouca distância de lojas, transportes públicos, farmácia, igreja, escolas, piscina, pavilhão desportivo. Na rua havia um alinhamento de carvalhos frondosos e canteiros verdes. Ficava ainda próximo de monumentos. Tudo num prédio novo e num bairro bem frequentado. O candidato iria estar no local dali a uma hora, mas Lúcio, que não queria perder esta oportunidade de negócio, encontrava-se em visita ao Museu Militar, junto a Santa Apolónia, em Lisboa. Para ir a Sintra teria de andar a pé, utilizar o metro e o comboio. Mas como dispunha apenas de uma hora, percebeu que o tempo era escasso para tanta modalidade de transporte. Para fazer uma viagem mais confortável, directa e em menos tempo, dirigiu-se à praça de táxis da estação ferroviária ali perto e, entrou num táxi cor de marfim, um antigo Citroën Xantia. — Bem-vindo, Lúcio — assim foi recebido pelo motorista. Era Joaquim, um comparsa e conterrâneo. — Grande amigo. É uma enorme satisfação ver-te, ao fim de não sei quantos anos, Joaquim, décadas, talvez. Foram festejando e conversando ao longo da viagem. — Vou deixar este táxi, arranjei um patrão que me paga melhor — comunicou-lhe Joaquim. Pouco depois, Lúcio acabou por encontrar-se com o cliente e correu tudo como previsto. Mostrou-lhe a casa e fez-se o negócio. Quando chegou a casa, atendeu o telefone. Era Miguel, o dono do táxi que o transportara, patrão do Joaquim. — O Joaquim explicou-me que o Lúcio tem competências que lhe permitiriam ser um extraordinário taxista. Que sabe inglês, tem bons modos, é educado com as pessoas. Quer trabalhar para mim? É uma profis-
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são boa, cada dia é uma surpresa, ia gostar. Pelo que ele me contou de si, como é conterrâneo dele, sei que é uma pessoa em quem posso confiar. Lúcio acabou por aceitar o desafio. Tratou de obter os documentos necessários, fez a formação, cumpriu a burocracia, estava em condições físicas perfeitas e eis que num dia de Outono começou a trabalhar. De início, Lúcio interrogava-se sobre quem iria entrar no carro e para onde. Nas praças onde parava, os intervalos davam para conversar com os colegas taxistas que falavam com naturalidade de peripécias, da ingratidão do trabalho, das horas intermináveis necessárias para levar para casa o dinheiro tão necessário à vida e queixavam-se que agora havia pouca clientela. Mas receberam-no bem e conheciam Miguel. O que mais lhe interessava era o desafio humano que o trabalho continha. Por vezes, aconteciam-lhe coisas completamente inesperadas, como se o interior do táxi fosse o palco onde as personagens mais surpreendentes entravam e saíam e onde, por vezes, os enredos eram os mais intrincados, apesar de ele perder quase sempre o desenlace deles. Os dias de trabalho decorriam ora serenos, ora agitados, alguns monótonos e até os acontecimentos mais singelos podiam ser fascinantes. Por vezes, durante as pausas maiores nas praças, ele tomava notas do que ia vivendo, observando e interagindo com os passageiros. Porém, quantos mais passageiros tinha a transportar, e portanto mais coisas aconteciam, menos tempo tinha disponível para escrever: quanto mais serviços fazia menos escrevia. Mesmo assim conseguiu escrever algumas notas. Num dia morno de Outono, sem vento, nem chuva, nem temperaturas extremas, estava Lúcio parado numa praça, quando vê pelo retrovisor um homem de meia idade a atravessar a rua vindo lá de trás na sua direcção. Olha-o directamente e percebe que ele arrasta com dificuldade o seu corpo esguio, dentro de um enorme sobretudo preto. Tenta ajudá-lo a entrar, mas este diz com humor: — Não, não, não é preciso. Isto é só costelas partidas e estilhaços de granada... Lúcio sorriu. O passageiro acomodou-se, disse para onde ia e mostrou simpatia para com o motorista. Fazia perguntas sobre a situação política, os táxis, a Uber e acerca de tudo um pouco que um taxista pode ter opinião ou saber. Ouviu-o falar sobre a falta de moral na política, a desmoralização que vai na sociedade, a desorientação das pessoas. Dali passou para a prostituição, associada a certos jornais, dizia ele, a quem
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as prostitutas pagam uma comissão, e sobre isso acrescentou: — São toneladas de esperma que se descarregam todos os dias em Lisboa nesses hotéis. Nesta altura o taxista começou a interrogar-se sobre o carácter da pessoa, todavia ele parecera-lhe normal até aí. — A cidade está minada de invasores vindos de todas as partes do Mundo — continuou ele — e os bairros antigos, transformados numa gigantesca unidade hoteleira, vêem os seus moradores mais genuínos desenraizados para fora deles. A revolução sexual que, para além ter proporcionado níveis de prazer gloriosamente mais elevados, fez baixar a população de cultura portuguesa genuína. O planeamento familiar não foi acompanhado pelo planeamento da população. Nunca houve tantos idosos para tão poucos jovens. Agora temos uma invasão de povos provenientes do Oriente e de África que vêm ocupar o espaço livre em resultado das derrotas catastróficas dos espermatozóides europeus face ao escudo defensivo dos meios contraceptivos. Uma civilização cujos indivíduos não se reproduzem morre. No meio disto, as mulheres conquistaram a sua independência. Tudo bem. Pelo menos no que diz respeito a Igualdade e a Liberdade, o que não é pouco. Mas a reprodução também diz respeito à espécie, não só ao género. Lúcio retorquiu: — Não sei se tenho a mesma perspectiva. Afinal, a revolução sexual foi paralela a imensos avanços sociais, políticos, económicos… — Ó meu amigo, então não vê os invasores a afogarem-se no Mediterrâneo? Veja-os também nos campos de concentração da Hungria e da Turquia. Ei-los já nesta cidade ao virar da esquina nas lojas de kebab, telemóveis, ou frutarias: a lutar para viver, a ganhar para os filhos deles que são como que nossos netos virtuais e que se encontram na China, Índia ou Roménia. Em tanto lado. — Penso que há muitos deles que estão é a fugir da fome, da seca e da guerra. Nos seus países de origem as condições são cada vez mais hostis para a vida humana, tais os problemas ambientais que os afectam. Penso que temos capacidade de os receber com regras muito claras, definidas e categóricas: tirar partido, aproveitar a onda, a oportunidade. Aplicar políticas globais mais solidárias — retorquiu Lúcio — temos de nos adaptar à realidade e ter uma melhor estratégia futuramente. Sei lá. Há aqui também a grande metamorfose que o mundo está a ter. Guerras, mudança climática e escassez de recursos. É a história a rodar...
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— Isso não sei — respondeu o passageiro — mas o senhor nem suspeita o que vai por esse mundo. As notícias que nos chegam são apenas a ponta do iceberg. Eu estou atento às pequenas coisas do dia-a-dia, para ler as transformações em curso. Foi falando dos líderes políticos, do terrorismo, da situação no mun-do. Confidenciou que era agente secreto a trabalhar para serviços de inteligência da China e do Reino Unido. Falou duma jovem que conhecia, estudante em Bruxelas, que estaria numa equipa a desenvolver um trabalho frenético no campo da informática e internet no sentido de enfrentar e derrotar o Estado Islâmico. No final da viagem mais uma vez se lhe tornou difícil mover-se, e mais uma vez recusou ajuda: — Não se preocupe. Isto é só estilhaços de granada, costelas partidas e balas de metralhadora… Noutra ocasião, ao fim de algum tempo a aplicar a sua estratégia de busca de passageiro, no Campo Grande entra no táxi uma mulher nos seus quarenta anos, vestida de castanho e verde, que parecia um pouco atarantada: — Olá, bom dia. É para a estação dos barcos do Terreiro do Paço. Vão falando de coisas banais. Depois ela mostrou-se preocupada em chegar a horas. E comunicou: — Estão lá à minha espera, tenho quinze minutos. Podia ter apanhado o Metro mas não é preciso. Uma mulher vestida de negro e lenço preto na cabeça leu-me as linhas das mãos e explicou-me a razão de ser da minha maldita má sorte e está à minha espera para depois irmos fazer uma reza e entregar-me um dinheiro que sobrou do que lhe emprestei para velas. O trânsito estava um pouco difícil, como era habitual. Lúcio não encontrou tempo suficiente para pensar o que lhe devia dizer e entretanto chegaram sem ele encontrar as melhores palavras. Ela saiu, olhou em volta e exclamou: — Olha, não está! Tinha ficado de me pagar o táxi. Tome lá. Doutra vez ele fora levar uns franceses a Belém e, como a praça mais próxima estava a abarrotar, quis voltar para a Praça do Comércio pelo percurso que passa pela Rua da Junqueira e o Centro de Congressos de Lisboa. Pelo caminho, dois homens e uma mulher jovem fizeram sinal. — Boa tarde. Leve este meu primo. É já ali, desculpe ser tão perto. Ele está convalescente, levou uma facada e também é taxista.
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Quem assim se expressava era a mulher, que se sentara no banco de trás ao lado de um homem dos seus cinquenta anos, forte, de nariz achatado, a lembrar um pugilista. O outro sentou-se ao lado do chofer, disse para onde era a viagem exactamente e acrescentou: — Desculpe lá ser para tão perto. Lúcio pensou como era estranho transportar um taxista que tivera a sua vida em perigo, situação que é talvez mais frequente do que ele julgaria, e ouvir dizer, como se viesse dele, que a viagem é curta, coisa que é normal desagradar aos motoristas. Retorquiu assim mostrando boa disposição: — Só paga o que anda e o que o taxímetro marca. Quem me dera fazer muitas bandeiradas, de preferência todas a seguir umas às outras. — Então colega, como lhe está a correr o dia? — perguntou o passageiro atrás. Lúcio sentiu uma certa simpatia pelo homem ferido e resolveu confidenciar: — Hoje ainda pouco fiz, para dizer a verdade. Estamos numa altura do ano fraca de trabalho e esfalfo-me a andar por estas ruas à procura de clientes. Estou neste trabalho há pouco tempo. Por vezes é divertido, mas é trabalho duro a ponto de até sonhar com ele. Esta manhã acordei dum sonho estranho com bagagens, traços contínuos, sinais de proibição, multidão de peões e ultrapassagens. Tinha a língua enrolada, seca. Levantei-me cambaleante. Recuperei ao poucos e lá voltei às ruas de Lisboa à procura de passageiros. Uma hora depois, estava na Estrada de Benfica, perto do mercado, e daí transportei uma dona de casa para o Bairro da Boavista, ali para os lados do Estádio Pina Manique, já a penetrar o Parque Florestal de Monsanto. Na ida tinha avistado uma idosa que, pelo menos a julgar pela linguagem corporal, estava à espera de um táxi do lado de fora duma paragem de autocarro. Entreguei a dona de casa e, como era perto, voltei à mesma paragem e a outra ainda lá estava. Levei-a até ao Calhariz de Benfica, enquanto ela, tal como vocês, pedia desculpa por o percurso ser curto, mas para mim, como já vos disse isso não é problema. A meio desta conversa já tinham chegado ao destino, o homem a seu lado pagou e ficaram ainda um pouco a conversar. Lúcio quis saber mais do colega: — Então levou uma facada, meu amigo? — Fui assaltado, tentei reagir mas eles eram dois e não foram nada
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meigos. Deixaram-me ali a esvair-me em sangue, levaram-me o dinheiro todo. O que valeu foi ter sido socorrido rapidamente. — Que coisa tão triste. Espero que possa voltar cedo ao trabalho, colega. — Sim, tenciono voltar — anuiu — se você for à praça de Algés, fale de mim aos nossos companheiros. Certo dia parecia que a praça onde se encontrava endoidecera, já que esvaziava de táxis com uma rapidez que ele nunca presenciara. Chegada a sua vez, ficou perante uma família de três gigantes, homem, mulher e filho. Teria sido sensato chegar a acordo com eles para escolherem um dos táxis maiores, de sete lugares, que se encontravam na praça, embora a tarifa fosse um pouco mais alta, mas não o fez porque lhe cheirou a potencial divertimento. Optou por atendê-los com toda a simpatia, pois pareciam ser pessoas boas e interessantes. Pegou nas malas gigantes que traziam, e à segunda mala já a bagageira estava cheia. Fechou-a e colocou a terceira mala no banco da frente, do seu lado direito. Eles já se encontravam no interior do carro quando deu por uma quarta mala para transportar, que acabou por ser colocada ao colo do adolescente gigante. Com isso ficaram todos bastante encolhidos. Mas Lúcio viu que estavam demasiado divertidos para se incomodarem com a falta de espaço. Falam inglês, querem ir para um conhecido hotel no Estoril. E entre ir pela Estrada Marginal ou pelo Auto-estrada, preferiram a Marginal. O GPS foi desnecessário, pois a cada cruzamento o homem, que já tinha estado no Estoril e queria oferecer uns dias de férias ali à família, foi dizendo sempre por onde queria seguir e chegaram ao destino triunfantes. Nem tudo é simples e singelo. Ou até dramático. E o capítulo que se segue é inacreditável, vai acontecer algo que pode, esperemos, trazer a Lúcio a aventura que ele ambiciona para dar mais imprevisto à sua vida. Irão todavia desencadear-se inúmeros perigos para a sua integridade física, a menos que a realidade entretanto se altere radicalmente. Nesta história, ele e o seu táxi velhinho que já atravessou muita coisa e que com o passar dos anos tem muito que contar, ainda vão presenciar acontecimentos mais extraordinários, por vezes alucinantes, vividos, sonhados e fantasiados pelo protagonista que é um viajante inquieto e irrequieto que se move num mundo em permanente e definitiva mudança.
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Capítulo 4
O Gadget inacreditável Um dia, ao entardecer, quando a cidade estava iluminada com aquela luz misteriosa, melancólica e nostálgica, quatro anjos encarnados em outras tantas mulheres jovens e lindas dizem a Lúcio que as leve ao Universal Seven Star Hostel, situado numa recôndita travessa dum bairro antigo. Falavam entre si antes de iniciarem a viagem e mostravam-se comunicativas com o motorista. Eram todas muito diferentes. Uma delas tinha o cabelo curto, encarapinhado, tez escura, nariz côncavo, olhos verdes. Outra era parecida com a Yoko Ono, tinha cabelos pretos lisos, olhos escuros e ar misterioso. Na face branca de feições perfeitas da terceira beldade havia um ar calmo; tinha cabelos ruivos e voz melodiosa. A quarta sentou-se ao lado do motorista, retirou o lenço branco que lhe tapava os cabelos, fez os cabelos louros soltarem-se de forma provocante sobre os ombros. Olhando Lúcio com os seus olhos claros, foi fazendo perguntas sobre coisas tais como o significado do nome da rua onde se encontravam. Ele foi respondendo no seu melhor inglês, falou-lhe da Rua do Alecrim, que se diria “Rosemary Street”. Apresentou-lhes a Igreja de S. Roque e o Museu do mesmo nome. Acabaram por falar dos melhores locais da cidade para visitar. No banco de trás as restantes estavam em grande galhofa e elogiavam o taxi driver. — Estamos assim mais alegres que o habitual porque estivemos a beber — disse Alexa. A loura era assim que se chamava, Alexa, e interessou-se pelo funcionamento do taxímetro. Falava como se nada conhecesse de tal dispositivo. Ele explicou-lhe que o instrumento calculava o custo da viagem, a todo o momento, equacionado em termos de tempo e de espaço. Nisto, depois de tirar da mala uma caixinha preta, ela atou-a ao taxímetro com um elástico e disse-lhe com um tom de voz cativante: — Este é um condensador espácio-temporal multi-galáctico que te vai permitir viajar instantaneamente, através de wormholes, para onde quiseres em todo o universo, e voltar. Ofereço-to. Ele deu uma grande gargalhada mas agradeceu. Por fim, chegadas ao
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destino discutiram entre elas quem havia de pagar. A ruiva, que se chamava Galateia, pagou com uma generosa gorjeta e disse que ela e as suas amigas gostariam que as ajudasse a levar as malas até aos seus aposentos. Disse-lhes que sim, mas que o taxímetro ficaria a contar. O aposento tinha vários beliches. Ao fundo havia um enorme espelho. Quando procurou nele a sua imagem, o que Lúcio viu foi o seu rosto e o seu corpo viajado no tempo com a imagem que ele tivera aos vinte anos: um rosto de menino; vestia uma camisa verde escuro de gola alta, fato completo de cor creme com um padrão quadriculado em que as calças alargavam em baixo, tinham a cintura subida e eram presas por um cinto largo castanho; o casaco descia-lhe abaixo da cintura, era de abas largas e algo subidas. — Que raio de aplicação será esta? Não sabia que existia isto. Tenho de procurar na net — pensou ele. Depois de lhe oferecerem uma taça de vinho, despiram-se lentamente e sensualmente à sua frente exibindo os seus corpos esbeltos e poderosos. Galateia descalçou-o, debruçada sobre ele, expondo os seus seios a baloiçar à sua frente de mistura com os seus longos cabelos. Embora o seu coração estivesse a pulsar energicamente, começou por ficar estupefacto e inibido. Ela virou-se para si, encostou o seu rosto quente ao seu. Lúcio beijou-a timidamente nos olhos, na face e na boca. As outras acorreram, ele cedeu aos carinhos delas, tão doces, físicos e afectivos, palavras picantes que lhe dispensavam, e excitaram-no as suas risadas. Despiram-no por completo. Ele ganhou um fulgor repentino enquanto elas o puxavam para si e o abraçavam, disputando-o. Viajou com todas elas por universos paralelos e por fim adormeceu. Quando mais tarde acordou elas dormiam. Deu um beijo muito ao de leve em Galateia antes de sair. Apagou as luzes do aposento e saiu do hostel, já era de madrugada, feliz como se tivesse acabado de nascer. Jamais esqueceria aquela noite. Já terminara o seu horário. Entrou no táxi, arrancou, e pouco depois parou ao sinal vermelho do semáforo. Os dias de trabalho, até ali, haviam decorriam serenos, por vezes monótonos, e até os acontecimentos mais singelos se tornavam fascinantes, mas esta noite era completamente irreal. Por certo estaria a sonhar. Não tardaria iria acordar para a realidade banal e rotineira. Percebeu então que estava a chover, e as luzes dos carros que passavam, bem como as dos candeeiros, reflectiam-se no piso molhado da
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rua, quando foi surpreendido pela inesperada entrada dum indivíduo de meia idade, magro, seco, de feições afro-europeias. — É para a Avenida de Paris. — Para que número? — Tome este telemóvel que a pessoa que vai falar consigo explicar-lhe-á. “É na Praça Pasteur, número tal”, comunicou a voz pelo telemóvel. — Muito bem, já sei para onde vamos. — Estamos em tempo de chuva, disse o passageiro. — Clima temperado, diz o motorista. — Em San Jose, na Califórnia, onde tenho estado, também chove nesta época. — Trabalha lá? — perguntou o motorista — sim, mas também conheço outras cidades. O Porto, por exemplo, para além de Luanda e outras cidades pelo mundo fora. Lúcio olha pelo espelho. O homem magro tem uma barba grisalha de dois dias e comunica: — Ainda há dias estivemos a fotografar o Estádio da Luz e o Estádio de Alvalade. — E o Dragão? — Sim, também tenciono fazer isso. É já aqui. — Vamos apenas recuar um pouquinho e evitar aquela poça. Assim fica mais perto e o senhor não se molha. Era já tão tarde. Sentiu-se cansado. — Quem me dera ter já este carro na garagem, já são horas de terminar — disse estas palavras, falando para si próprio em voz alta enquanto se preparava para voltar para casa. Como que por encanto, como num pestanejar, encontrava-se agora na sua garagem sem perceber como isso acontecera, dentro do carro, sem que tivesse sentido qualquer solavanco ou desconforto de qualquer tipo. Ficou assustado, o seu coração batia agora com força em batimentos rápidos. Pensou em amnésia. Mas o taxímetro estava ligado e marcava um valor alto e disparatado. Pensou na hipótese absurda de ter talvez feito uma viagem enorme até ali, transportando alguém que o adormecera com algum narcótico para não lhe pagar, e daí a amnésia. Contou o dinheiro recebido no dia e faltava o montante que o taxímetro marcava. Para minimizar o prejuízo, resolveu que o melhor era voltar às ruas para realizar um pouco mais de receita. Foi a casa, abriu o frigorífico, comeu queijo, pão e bebeu café. Ador-
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meceu sentado a ver o noticiário. Acordou com frio, tomou um duche, barbeou-se, vestiu roupa lavada e voltou ao trabalho a pensar em recuperar a receita perdida. Na Estrela, uma jovem aproxima-se da praça de táxis, entra na viatura e ordena de uma forma simpática: — Para a Penha de França se faz favor. E, de repente, estavam lá, mesmo à porta da igreja. A rapariga ficou petrificada, olhos muito abertos, estava embasbacada. Antes que se pusesse a gritar ele disse-lhe: — Chegámos. A viagem foi boa. — Devo ter adormecido profundamente, disse ela. Olhou o taxímetro. Marcava mais uma vez uma importância disparatada. Fez um cálculo rápido e pediu-lhe sete euros. Recebeu uma nota de dez, deu-lhe o troco, olhou o indicador do nível de combustível. Constatou atónito que estava a um nível baixo, tão baixo a ponto de não compreender como seria isso possível, pois só percorrera alguns trinta quilómetros desde que havia atestado o depósito a última vez. Estava tão confuso que disse outra vez para com os seus botões: — Vou atestar o depósito na bomba de gasolina da Rotunda do Aeroporto — e enquanto pensava que devia ir depois à oficina saber porque razão o gasóleo estava a desaparecer, ele já estava parado junto à bomba, mas logo de imediato começou a ouvir buzinadelas. Um homem alto e esguio, pencudo e gingão, vestido com um blusão vermelho, veio ter consigo e diz: — Ó esperto, então isto é assim? Passa-se à frente de toda a gente na fila? Vá lá, dá meia volta e põe-te no teu lugar na fila lá atrás. Ai o caralho… Passada esta vergonha, lá atestou finalmente o depósito e foi à oficina, onde o mestre Augusto verificou o motor, lhe deu várias acelerações, deixando-o ao ralenti. Pelo meio verificou as tubagens, a parte inferior do carro, sem encontrar nem fugas nem avarias, nem qualquer razão para o excesso de consumo. Sentia-se exausto, voltou à base, consultou o taxímetro e, só então prestou atenção à caixinha preta que a jovem loura lhe tinha deixado. Pegou-lhe, nada viu nela, nem um parafuso, nem um rebite, nem um encaixe, e era muito leve. Pôs-se finalmente a pensar em levar a sério o que Alexa lhe tinha oferecido: um condensador espácio-temporal multi-galáctico. Depois
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de vários testes percebeu como funcionava: bastava dizer ou dar um comando mental do lugar para onde se queria ir, e instantaneamente, lá estaríamos. Passou por isso a utilizá-lo de forma controlada. Aprendeu como o neutralizar; bastava colocá-lo a mais de 10 centímetros do taxímetro para desligar, pois ambos funcionavam em conjunto. Mas também resultava em associação com um simples relógio. Pensou em dar-lhe o nome de TMG, teleportador multi-galáctico, mas preferiu algo mais sonante: CETMiGal. Mais tarde aprendeu a associá-lo ao GPS e treinou o modo de o accionar apenas com a força do pensamento. Quanto ao combustível, o que se passava verdadeiramente era que as viagens instantâneas não eram grátis, gastavam combustível, sem que ele percebesse por que mecanismo é que isso acontecia. E, portanto, quanto maior fosse a distância para o ponto de destino — quer em espaço quer em tempo — maior era o consumo. Para fazer determinada viagem, o CETEMiGal só funcionava se houvesse energia por perto. Esta energia podia apresentar-se sob a forma de combustível fóssil (carvão, gasóleo, gasolina, gás natural), electricidade ou qualquer outra. Havia de descobrir depois, que se não houvesse disponível uma forma de energia fácil de converter, por exemplo gasolina ou álcool, o CETMiGAl podia ser perigoso: é que podia extrair qualquer tipo de energia que sob qualquer forma existisse à sua volta, incluindo o calor. Porque o iria extrair de qualquer lado, provocando com isso um instantâneo e drástico abaixamento de temperatura, de qualquer matéria que rodeasse o objecto a transportar, podendo mesmo matar seres vivos. Enquanto foi novidade foi usando o dispositivo. Quando havia um engarrafamento numa qualquer rua ou avenida, para não alarmar os passageiros, fazia pequenas descontinuidades no percurso, aparecendo como por milagre nos espaços que se iam formando entre os carros, na dinâmica do congestionamento, lá mais para a frente. Geralmente, dada a suavidade da operação, o passageiro não dava por nada, ou se dava, ficava confuso. Chegava-se mais rápido ao destino, e o táxi ficava livre mais cedo para outros passageiros. Como nisto ganhava tempo — pois nesta profissão, como em outras, tempo é dinheiro — havia mais clientes, mas não era rentável devido à despesa com o combustível. Passou a ter o cuidado de o ter fixado com velcro, do lado de dentro da portinhola do porta-luvas, mesmo junto ao taxímetro, fora da vista, não fosse ser necessário explicar o que era, vá-se lá saber a quem ou porquê. O problema é que o consumo de combustível decuplicava. Se é ver-
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dade, como se diz, que não há almoços grátis, ainda é mais verdade que também não há viagens sem consumo de energia. Por isso, passou a usar o CETEMiGal só em circunstâncias muito especiais em que se lhe afigurava justificável. Passou a ter os maiores cuidados com ele, a ponto de o levar consigo sempre que saía do carro. Todavia as tentações apareciam-lhe e chegou a dar por si a não lhes resistir. Como naquele dia em que efectuou um serviço para uma mulher de olhos azuis, de feições exóticas com traços africanos, mas de surpreendente pele clara. Era alta e musculada. Trazia consigo vários sacos e uma mala rígida. O motorista abriu o porta-bagagens, agarrou na mala, mas foi surpreendido pelo seu enorme peso, não conseguindo erguê-la a uma altura suficiente. Vai ela, pega na mala como se fosse uma coisa bem leve e zás!, dentro do porta-bagagens com toda a facilidade. Os sacos tinham um peso normal e lá ficou tudo, arrumado na bagageira. Ela usava na cabeça uma espécie de boina achatada, verde e preto; vestia um fato de treino verde escuro com uma faixa oblíqua preta. O fato cingia-lhe as ancas largas e realçava-lhe a musculatura e a dimensão avantajada do seu corpo. — Para o Jardim Botânico de Famões. Vamos pela Estrada da Pontinha. — Muito bem. Passamos então pela Escola Agrícola da Paiã. — Não, — diz ela — é pela zona dos moinhos e do restaurante Pernifrango. É por Pontinha e pela Estrada da Paiã! Tudo isto dito em tom de quem fala para um escravo. Este tom demasiado autoritário surpreendeu Lúcio indo contra o seu estereótipo de que as pessoas fortes, fisicamente, teriam bons modos porque a sua envergadura os dispensaria do recurso a qualquer tipo de força. Teve vontade de fazer uma pequena vingança. — Sei onde é, respondeu-lhe,— conheço bem. Lúcio transportou-a em direcção ao seu destino, mas a meio da viagem usou o CETMiGAL e, de repente, já tinham chegado. Ela mostrou-se desorientada. Depois de uma pausa a olhar em volta perguntou: — Já chegámos? Precisava de passar pelo Pernifrango. Mais uma vez ele accionou o CETMiGAl. — Cá estamos — disse ele. Estavam em frente ao restaurante e Lúcio estava agora perante uma cliente que ficara muda durante mais algum tempo até cair em si novamente. Pouco depois ela entrou no estabelecimento e voltou com uma
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