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Enquanto o enredo do romance se espraia pelas páginas do livro, personagens e acontecimentos vão emergindo e salientando aspetos que permitem um relance pelo que era a Lisboa de meados do Séc. XX, e um olhar mais abrangente sobre uma aldeia raiana, profundamente rural. É dessa Lisboa que, em manhã gelada de Janeiro, parte, rumo ao Alentejo, o jovem Cláudio Pacheco, recém-licenciado em engenharia de minas, compelido a realizar uma missão secreta num meio que lhe era totalmente desconhecido e sem a mínima semelhança com aquele onde vivera até ali. Esperavam-no desconfortos, surpresas, amores e desamores. Medos e angústias também. A sua luta maior foi contra um preconceito e a sua mais interessante descoberta foi a de, na improbabilidade de ser achado o ouro da lenda, poder demonstrar possuir aquela serra outro ouro e muito.
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HÁ OURO NA SERRA DA ADIÇA
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José Nunes Valente, nasceu em Sobral da Adiça, concelho de Moura. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa, foi coordenador superior do quadro de investigação criminal da Polícia Judiciária, tendo exercido funções de investigação em vários departamentos e no Gabinete Nacional da Interpol. Além de docente no estabelecimento de formação da mesma polícia, exerceu ali funções dirigentes. Participou em várias conferências internacionais e coordenou projetos de cooperação com países africanos de expressão oficial portuguesa, que deram origem à criação das polícias de investigação criminal desses países. Saiu da sua terra aos vinte anos, mas sempre a visitou regularmente e manteve vivo o interesse por tudo o que lhe diz respeito. É autor do livro com o título "Angola, afinal, era deles", bem como de obra a publicar intitulada "A sombra entre a verdade e a Justiça".
JOSÉ NUNES VALENTE
HÁ OURO NA SERRA DA ADIÇA Recordações de uma época de vidas e amores difíceis
HÁ OURO NA SERRA DA ADIÇA
edição:
Edições Vírgula® (Chancela Sítio do Livro) título: Há Ouro na Serra da Adiça autor: José Nunes Valente Ângela Espinha Campaniço paginação: Paulo S. Resende capa:
foto de capa: Jorge
1.ª edição Lisboa, outubro 2018 isbn:
978‑989-8821-78-2 446068/18
depósito legal:
© José Nunes Valente
publicação e comercialização
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JOSÉ NUNES VALENTE
HÁ OURO NA SERRA DA ADIÇA
À memória de meus pais À minha família Aos sobralenses
A vida só se compreende mediante um retorno ao passado, mas só se vive para diante. Soren Kierkegaard
Se falarmos com um homem numa linguagem que ele compreenda, isso entra na cabeça dele. Se falarmos com ele na sua própria linguagem, atingiremos o seu coração. Nelson Mandela
Índice Breve Introdução
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Bibliografia
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Glossário Ampliado
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Alguns factos e situações reais ao serviço da ficção 376
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BREVE INTRODUÇÃO Este romance tem a particularidade de, em boa parte do seu texto, a ortografia não respeitar a norma-padrão, mas sim a oralidade no que diz respeito às personagens alentejanas, e incluir expressões e vocábulos comuns na região, sendo que uma boa parte poderão mesmo considerar-se típicos da aldeia onde decorre a maior parte do enredo. Das mais importantes mudanças fonéticas que sobressaem no texto, temos a monotongação, que consiste na redução a um único som vocálico dos dois elemento de um ditongo. São exemplos: (beijo/bejo), (peito/peto), (roseira/ rosera), (leite/lete), (não/nã), etc. Mas isto não significa que todos os ditongos sejam sujeitos a monotongação, como no caso de pai. Contrária a essa mudança fonética, outra bem presente na linguagem das personagens aldeanas do romance é a ditongação, que consiste na formação de um ditongo a partir de uma vogal simples. Veja-se a frequente adição da letra “i”, principalmente na terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo ser (é/ éi), bem como em outras palavras como caféi. Várias outros exemplos que primam pela falta de observância da norma serão facilmente notadas como a transposição de um fonema no interior duma palavra (dentro/drento); a adição de um fonema em final de palavra, frequente na segunda pessoa do singular do pretérito perfeito do indicativo (disseste/dissestes); a elisão ou supressão do final vocálico de uma palavra e fusão com a palavra seguinte (vista d’olhos), etc. São apenas alguns exemplos, porque fastidioso seria enumerar aqui todas as mudanças ortográficas resultantes da opção de privilegiar a transcrição da oralidade em detrimento da sujeição total e rigorosa à aludida normapadrão. A ação do romance decorre em Lisboa, Beja, Moura e, especialmente, em Sobral da Adiça, durante os anos quarenta e cinquenta do século passado, com o recurso a situações e acontecimentos que a memória do autor guarda desse tempo, os quais foram isolados do seu contexto real e objeto de novos enquadramentos, de acordo com os interesses do desenvolvimento da trama.
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Esta, todavia, manteve-se integralmente fictícia, do princípio ao fim, embora algumas personagens de segundo plano possam ser identificadas com pessoas reais por aqueles que as conheceram, ainda que rebatizadas com imaginados nomes e alcunhas. Não houve, porém, a preocupação de ficcionar, mas sim a de retratar, o mais fielmente possível, como então se vivia naquela aldeia, como se trabalhava no campo, como se namorava, como se divertiam as pessoas. O retrato não terá saído completo, nem isso seria possível, mas a imaginação dos leitores que conheceram a realidade em causa contribuirá, certamente, para o retocar e ampliar, com a achega, para os que não a conheceram, de que a vida era simples, mas muito dura para quase todos. Para os leitores interessados em conhecer as situações e acontecimentos reais atrás referidos, bem como o significado das expressões e vocábulos referidos no primeiro parágrafo e ainda de outros de uso local, se incluem dois anexos. Um importante esclarecimento final: o atribuir às personagens da aldeia falas, expressões e vocábulos daquela época, algumas das quais provavelmente ainda em uso, longe de ser um exercício de gracejar, é, acima de tudo, uma forma de homenagear a simplicidade e genuinidade de quem viveu naqueles tempos difíceis, bem como todo um povo ao qual o autor se orgulha de pertencer, e com o qual muito aprendeu, principalmente durante os primeiros vinte anos da sua existência. O Autor.
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Na casa dos Pachecos, era grande a azáfama na preparação do mais importante jantar ocorrido no seio daquela família, pois o seu chefe havia tomado coragem e convidado o seu primo ministro e o chefe da repartição de finanças onde trabalhava desde os vinte e cinco anos. D. Almerinda, sua mulher e mui dedicada dona de casa, andava nervosíssima, pois enfrentava a mais difícil e embaraçosa tarefa doméstica da sua vida: servir um jantar em sua casa a pessoas tão importantes, que, ainda por cima, se fariam acompanhar das esposas. A do primo ministro era simpática, mas dizia mal de tudo e de toda a gente. Por isso, era certo e sabido que iria dizer mal pelo menos do seu jantar. A do chefe de seu marido era uma emproada pretensiosa, feia e sempre mal vestida. Destinava-se o jantar a enaltecer e homenagear o filho único da família, o Claudinho, que acabava de formar-se em engenharia de minas. Ele merecia; sempre aluno dedicado desde a primária, um curso superior brilhante, apesar de não ter correspondido aos desejos de seu pai, que o queria ver um doutor de leis, nem de sua mãe, que sonhara com o seu filho de bata branca e estetoscópio ao pescoço. Ela via na engenharia de minas uma coisa suja e perigosa, que exigia andar debaixo do chão, metido em buracos e túneis escuros. E até nas férias, o seu Claudinho levava o tempo a explorar grutas na Serra da Arrábida, levado pelo seu professor de geologia, o Dr. Mário Clóvis, grande entusiasta da espeleologia, outra atividade que punha o coração de D. Almerinda em sobressalto. Falta uma referência a uma convidada especial: a Mafaldinha, acompanhada de seus pais, que jamais a poderiam deixar comparecer sem a sua guarda. Namorada do homenageado desde a pré-adolescência, era menina recatada e inteligente, bem perto de receber o diploma de professora primária. Os Pachecos gostavam muito dela, conheciam-na desde o berço, mas torciam o nariz por causa do pai. Na sua latoaria no Largo do Calhariz, ele atendia a clientela de fato macaco sebento, exibindo mãos sujas e encardidas, o que muita impressão fazia aos presumíveis futuros sogros, especialmente
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a D. Almerinda. Para resolver o problema, Óscar Montes Pacheco ainda levou o filho a conhecer a filha de um seu colega, que era uma brasa, em almoço na casa deste, mas nem a menina visada nem Claudinho mostraram o mínimo interesse um pelo outro. Nada a fazer, o rapaz adorava a Mafalda, apesar de franzina e sem graça, e, agora, D. Almerinda já se mostrava receosa ao marido de que o latoeiro sebento, como ela lhe chamava, aparecesse no jantar mal vestido e com aquelas mãos encardidas. Quanto à mulher, pedia a todos os santinhos que não abrisse a boca, que primava por ditos brejeiros e inconvenientes. E o que diria o primo ministro dos futuros compadres? Nem queria pensar. Mais dois casais amigos iriam sentar-se à mesa, quando chegasse o convidado de honra, que, por sinal, estava atrasado. Uma reunião do conselho de ministros se prolongara pela noite dentro, como era habitual, eis a explicação. Mas logo o governante, após o pedido de desculpas, anunciou que trazia consigo uma bela surpresa para anunciar, que compensaria o atraso. Toca a sentar, jantar pronto a servir, latoeiro e mulher longe do primo ilustre, Mafaldinha em frente a Claudinho e não ao lado, que a estopa ao pé do fogo arde – argumento invocado pela mulher do latoeiro à anfitriã para que separasse os pombinhos à mesa. O manjar fora preparado pela Clementina cozinheira, contratada para o efeito no dia de folga da tasca onde trabalhava, ali bem perto, três portas ao lado, na Rua da Rosa. E um primo da Clementina, profissional de gabarito em restaurante afamado da Rua da Misericórdia, ali estava vestido a rigor para servir à mesa, depois de convencido pela prima a pedir uma dispensa ao patrão. Tudo pensado e preparado pelos pais do Claudinho, que a ocasião justificava. Não era todos os dias que viam um ministro sentado à sua mesa e muito menos um filho para homenagear a poucas horas de ter recebido o canudo de engenheiro. Mas o mais importante era que, do investimento naquele opíparo jantar, colhessem o apetecido fruto que garantisse o futuro do seu Claudinho – a cunha ministerial, infalível, para o belo de um emprego. No fim do jantar, surgiria o azado momento para o toque respetivo à estrela da família. Não seria, porém, necessário, para espanto geral. Na verdade, terminado o repasto, depois de Óscar Pacheco ter agradecido a presença de todos e manifestado a subida honra em ter à sua mesa o mais prestigiado dos ministros, este tomou a palavra e, da odisseia dos
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descobrimentos ao momento que Portugal então vivia, foi um moroso navegar pela história e por rota povoada de elogios à capacidade dos portugueses em dar ao mundo exemplos de inteligência, coragem e tenacidade, no enfrentar e descobrir soluções para os mais complicados problemas. Chegado aqui, aportou à atualidade para dar como o mais cabal dos exemplos a salvação do país empreendida pela mão firme do homem que a divina providência colocara ao serviço da pátria – o senhor presidente do conselho. Fez pausa, porventura à espera de palmas, mas apenas viu o anfitrião acenar com a cabeça em sinal de concordância. Retomou o discurso com menos ênfase, mas, como até ali, eivado de figuras de estilo, numa linguagem rebuscada pouco ou nada entendível para a maioria dos presentes. Longo, barroco e fastidioso, o discurso ministerial apresentavase, no entanto, aos olhos e ouvidos da esposa de Sexa, como um exercício retórico veiculando uma peça de filigrana literária que, face ao baixo conceito que tinha do intelecto dos presentes, era generosa oferta em que a expressão bíblica de dar pérolas a porcos tinha cabal aplicação. Para o latoeiro, aliada ao bom tinto que regara o jantar, a verborreia funcionou como um poderoso sonífero, mergulhando-o numa sonolência incontrolável, e nem as cotoveladas da mulher o faziam endireitar a cabeça. O rosto em chamas da tímida e frágil Mafalda denunciava a vergonha que ela sentia por seu rude e inculto pai apenas saber moldar e soldar latas. Por fim, o orador voltou-se para o primo Óscar: enalteceu-lhe a probidade e profissionalismo ao longo da vida, felicitou-o pela genial ideia de tudo fazer para formar o seu filho na universidade, privilégio de poucos. Para o Claudinho não tinha palavras para qualificar as suas qualidades em todos os aspetos. A sua inteligência e dedicação pelos estudos haviam-se mostrado invulgares e isso merecia um prémio – e ali estava a surpresa: o filho do Pacheco das Finanças tinha emprego assegurado no Serviço de Fomento Mineiro (SFM), que tinha por missão proceder ao inventário dos recursos minerais do País, onde teria de receber formação especializada e, depois, partir para o terreno e integrar a Brigada do Sul, mais precisamente a Secção de Moura, em plena atividade de prospeção e pesquisa mineiras numa das freguesias do concelho. Tudo estava acordado com o seu colega da tutela, devendo apresentar-se – precisou logo o ministro – na Direcção-Geral de Minas e Serviços Geológicos (DGM). Moura como destino devia-se – explicou ainda o governante – a pretender
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encarregá-lo duma missão especial e secreta a realizar na área de atuação da secção referida. Para o pai do homenageado, a surpresa era ótima e evitava o pedido programado, pelo que o agradecimento efusivo ao primo não se fez esperar. Para a mãe, ao contrário, era péssima, pois não demoraria a ficar sem o seu menino e sabia-se lá o que lhe poderia acontecer. Era certo que não teria de atravessar o oceano a caminho de Áfricas ou Brasis, mas em quantos transportes ele não teria de viajar, durante horas e horas, até chegar a um Alentejo longínquo, junto da fronteira, onde poderia até haver guerra com a Espanha. Barco, comboio, automotora e sabia lá que mais. Não iria viver em sossego até vêlo de regresso. A Mafaldinha, essa, fitou Claudinho com as lágrimas a aflorar aos seus pequeninos olhos cinzentos, enquanto seu pai rosnava para a mulher: «pronto, lá vai o gajo a pirar-se e essa parva a ficar cho…». Mais uma cotovelada e o latoeiro sem terminar a última palavra da previsão da reação da filha à ausência do namorado. Este sentia contentamento por ter emprego assegurado e ir desenvolver uma atividade de acordo com o seu curso, embora com o senão de ter de se deslocar para longe de casa e a incumbência de realizar uma missão especial, ainda por cima classificada de secreta. Daí o ter afivelado um sorriso amarelo, balbuciado um obrigado ao primo e apenas acenado afirmativamente quando este lhe disse dever comparecer, no dia seguinte de manhã, no ministério e dizer ao seu chefe de gabinete quem era. O seu coração estremeceu quando viu Mafaldinha levar o seu lencinho de cambraia aos olhos e fazer sinal aos pais para se retirarem. Com a voz embargada, segredou-lhe por cima da mesa: «eu não vou para o fim do mundo, Mafaldinha, e não demorarei por lá». No dia seguinte, o jovem engenheiro Cláudio Vieira Montes Pacheco, mal bateram as nove horas, estava na frente do chefe de gabinete do primo ministro, que lhe entregou uma carta e lhe disse para se dirigir à DirecçãoGeral de Minas e Serviços Geológicos e a entregasse ao próprio diretor-geral. Depois da formação especializada a que ia ser sujeito e antes de partir para o Alentejo, deveria voltar ali ao ministério, para ser recebido pelo senhor ministro, o que indiciava ser apenas nessa altura que ficaria a saber de que missão especial pretendia o primo encarregá-lo. Cinco dias depois de iniciada a formação, encontrou casualmente o Anselmo Tavares, seu condiscípulo universitário e amigo, a quem contou tudo, mas este,
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em vez de o animar e congratular-se com a sorte de já ter emprego, pintou-lhe o mais negro dos quadros do que o esperava na profissão que ia iniciar. Seu pai, também engenheiro de minas, levara uma vida errante, longe da mulher e dos filhos, aturando concessionárias ávidas de lucros e de mineiros mal pagos, muitas vezes suportando intempéries violentas ou correndo riscos nas visitas a galerias poeirentas ou de paredes infiltradas e chãos lamacentos – que ele gostava de ir até junto dos mineiros –, a centenas de metros de profundidade, até acabar soterrado numa mina lá para o norte do país, precisamente nas vésperas de terminar o seu curso. Por isso, seu pai, antes de morrer, teria sempre tentado convencê-lo a cursar Direito, Engenharia Civil ou qualquer outra coisa, todavia, sem êxito. Mas com a sua morte naquelas circunstâncias horríveis, o seu amigo Anselmo ia esquecer que tinha tal curso e lutar com todas as suas forças para arranjar outro qualquer emprego, na certeza de que nem chegaria perto de buraco que lhe cheirasse a mina ou coisa parecida. Apesar de ir trabalhar para o Estado, não estava ele, Cláudio, já a enfrentar o problema de ter de se afastar da família e da namorada? Então que imaginasse como seria quando casasse e tivesse filhos. Era isso: deveriam ter pensado muito bem no que os esperaria com tal curso e escolhido outro. A caminho de casa, já o elétrico atacava a subida da Rua do Alecrim, começou a pensar seriamente no que o seu amigo Anselmo lhe referira. Inicialmente, achara que ele estava traumatizado com a morte do pai e isso o fizera abominar o curso e a profissão dele decorrente. Em qualquer caso, não tinha dúvidas: a vida que o esperava não seria muito diferente da que ele lhe narrara como tendo sido a do pai, e essa vida ou semelhante para si não lhe agradava nada. Ele, quando casasse, queria estar sempre junto da mulher e dos filhos, mas andar com eles atrás, para lugares mais ou menos remotos, não era solução. Ora, seu primo ministro, já que pretendia oferecer-lhe um emprego, deveria antes ter pensado num lugar na própria Direcção-Geral ou num laboratório, e não mandá-lo para longe, quem sabia se para um sítio inóspito. Desceu na paragem do Largo Camões. Cabisbaixo e alheio ao intenso movimento de transeuntes, começava a atravessar o largo, quando sentiu a pressão de um dedo nas costas e ouviu: «mãos no ar!». Voltou-se e deparou-selhe a montanha de gordura do Damião, seu vizinho e colega de turma do primeiro ano de curso, gozão, desbocado e alarve, que o tratava por Pachecote e se referia à sua família por Pachecos- aos-montes, o que o irritava profundamente.
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– Quem tem padrinho não morre mouro, não é assim Pachecote? Então o rapazote Montes Pachecote já tem o seu tachote arranjadote, pelo primote ministrote, e lá vai até ao Alentejo já encaixadote no Serviço de Fomento Mineiro, para fazer que trabalha e cumprir uma missão especial. Muito bem. Ainda não sabe qual é a missão, mas como, pelos vistos, é secreta, deve ter alguma coisa a ver com bufaria, que a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a PVDE, não pode estar em toda a parte. Ouve lá, o teu primote não quererá mandar-me contigo para te chefiar? Se pagar bem, eu vou – tudo em tom jocoso e uma gargalhada a terminar. – Quem é que te contou essa treta? – disparou Cláudio, à falta de melhor. – Ninguém. Há bocado, passei pela tasca do Chico Rela e a cozinheira estava a contar à malta do copo de três e a quem mais quisesse ouvir, tudo o que captara, detrás duma porta, do discurso do teu parente ministro num jantar em tua casa. É treta, dizes tu? Então se é, vamos lá os dois e tu chamas a gaja a contas. – É pá, não estou com vontade de te aturar, deixa-me ir para casa, está bem?!... – e Cláudio procurou afastar-se, agastado, quando Damião o segurou por um braço. – Espera! E quanto à doce Mafaldinha, como vai ser? Achas que a vais deixar por aí, abandonada, a chorar pelos cantos? Nunca, jamais, em tempo algum. Por isso, vai tranquilo que eu trato dela – levo-a ao cinema, à matiné dançante dos Alunos de Apolo, levo-a para a caminha, consolo-a. Não achas bem? Cláudio teve vontade de esmurrar o insolente, mas lembrou-se do seu metro e oitenta e muitos e dos seus cento e vinte ou mais quilos e resolveu voltar-lhe as costas, lançando-lhe apenas um olhar fulminante. Já se afastava, quando ouviu ainda o Damião dizer-lhe: – Pachecote, ouve: aconselho-te a levá-la, se não a malta papa-a. E leva o pai dela também e aprende com ele a latoeiro. Depois, tapas buracos em panelas, fazes cântaros e funis de lata, essas coisas… – e já em voz alta, com Cláudio a uns bons metros: – Claudinho, não passas de um anjinho que tem um bom padrinho. Este encontro desagradável com a besta do Damião era a gota de água. Afinal, tinha mesmo de se livrar daquele emprego. Decididamente, não queria sair de Lisboa, onde não faltariam empregos que lhe pudessem interessar. Tinha de fazer compreender seu pai de que seria penoso para todos abraçar
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uma profissão que o obrigava a andar longe de Lisboa, perigosa por obrigálo a andar dentro de minas, e ainda por cima ter de cumprir uma missão secreta, a realizar em zona fronteiriça onde ainda seriam sentidas as sequelas da guerra de Espanha. Para cúmulo, era quase certo ser do foro da polícia política, o que lhe repugnava bastante, e, nisto, o Damião não estaria longe da verdade. Seguro de que sua mãe estaria do seu lado, entrou em casa esperançado de que, com a sua ajuda, levaria seu pai a aceitar as suas razões. Mas sentia-se extenuado, nervoso, e desatou a vociferar contra a cozinheira que a mãe arranjara, que se permitira escutar detrás das portas e apregoar o que ouvira. A mãe acalmou-o e desculpou-se, pois não poderia adivinhar tal comportamento. Depois, grave mesmo, alegou D. Almerinda, era o facto de ele ter de se ausentar para tão longe e por lá andar a pesquisar em serras e outros sítios ermos, provavelmente com matagais, rochedos, escarpas, buracos e... até lobos. E sabia-se lá que missão especial seria aquela, se calhar também cheia de perigos. Em sua opinião, a solução era simples: recusar o emprego, agradecer e pedir desculpa ao primo, e… pronto. Era isso mesmo que precisava de ouvir. Aquele bendito emprego e aquela misteriosa missão que o primo lhe ia confiar, como se constituíssem um grande favor, poderiam vir a transformar-se em presente envenenado para um engenheiro acabado de se formar, nascido e criado na capital, sem experiência de coisa alguma num meio rural. Perante tudo isto, a atitude de seu pai não poderia ser outra que não fosse a de anuir à desistência. Depois, bastava deslocarem-se ambos ao ministério para apresentarem as suas razões ao primo, que acabaria por compreender e aceitar. D. Almerinda rejubilou com a ideia, e foi com alguma ansiedade que aguardaram o regresso a casa daquele pai orgulhoso do filho e tão agradecido ao primo governante. Não demorou a ouvirem abrir a porta, e D. Almerinda logo correu a ajudar o marido a desfazer-se do sobretudo, do guarda-chuva, do chapéu. E não se conteve: – O Claudinho e eu temos uma coisa importante para te propormos. – Já sei. Irmos com ele para o Alentejo. Posso ver isso e talvez consiga. Em Moura há Finanças e o chefe da repartição é meu amigo – o Serafim Severo. Pararam à entrada da sala, Cláudio levantou-se e expôs o que tinha na mente, com sua mãe a ajudar na previsão dos riscos que certamente
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correria calcorreando serranias inóspitas e entrando em minas, onde ocorriam derrocadas e se contraíam doenças. Óscar Montes Pacheco ficou paralisado e a olhar alguns segundos, ora para a mulher, ora para o filho, que, atónitos perante aquela atitude, se fitavam, por sua vez, perplexos. Por fim, a explosão: – Quem é que vai recusar, desistir, recuar, desertar nesta casa? Quem, podem dizer-me? Eu respondo: ninguém! Ninguém, ouviram, ou querem que grite mais alto? O filho que eu criei não é, não pode ser cobarde, medroso, inseguro, maricas, perante seja o que for, muito menos ao confrontar-se com o seu primeiro desafio profissional, à saída da universidade, um privilégio apenas de quem se pode dar ao luxo de ter alguém importante que se oferece para lhe dar a mão. Que bonito, amanhã chegarmos junto do primo e dizermos-lhe: o menino está borrado de medo, não aceita o emprego nem a missão para que foi escolhido – e o competente e impoluto funcionário das Finanças, admirador indefetível do chefe do governo e de todos os seus ministros, continuou, de faces entumecidas e vermelhas: – Quer dizer, ele salvou-te de ires à tropa, arranja-te um emprego, e tu queres pagar-lhe desse modo?! Eu morreria de vergonha. Sinceramente… Além de tudo isso, quando escolheste esse curso e durante cinco anos andaste a marrar nas respetivas matérias, não sabias o que te esperava? Ou julgavas que as minas eram no Rossio ou no Príncipe Real? – Mas pai, não se trata propriamente de medo; o problema é que eu, nascido e criado em Lisboa, vou ter de passar a vida na província, provavelmente em meios rurais, longe da família. Depois, andar debaixo do chão tem reais perigos, e a missão de que o primo me vai encarregar pode estar ligada à PVDE, ter natureza política, sei lá, e isso repugna-me, assusta-me – retorquiu Cláudio, perturbado com a reação do pai, enquanto a mãe se escapuliu para o quarto de lágrimas nos olhos. – Ah, então é isso mesmo: julgavas que ias ser engenheiro de minas em Lisboa, com a mãezinha dum lado e a namoradinha do outro. Preferindo galerias de obras de arte, a galerias mineiras; desprezando túneis por onde circulam vagonetes carregadas de minério, e ficando apenas a conhecer o do Rossio por força das escapadelas com a sua Mafaldinha à descoberta das belezas e recantos da serra de Sintra. E quanto a perigos, podes andar uma vida
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inteira debaixo do chão e nada te acontecer e saíres à rua e seres atropelado por um automóvel. – Está bem pai, eu … – Deixa-me falar! – gritou e continuou, com espuma a espreitar aos cantos da boca: – Agora tens de ouvir o resto. É ridícula essa tua insegurança, e, nem que estivesses mobilizado para ires para uma guerra, eu te deixaria sequer choramingar, que filho meu é teso, não vacila, não treme, não receia nada neste mundo. Quanto ainda à tal missão: e se for o que estás a imaginar, qual o problema ? Repugna-te, assusta-te ? Ora tem juízo. Não me digas que também és desses palermas que andam por aí a dizer que pertencem à oposição. Mas qual oposição, qual quê, só quem não é patriota é que pode dizer uma coisas dessas, e o meu filho é, tem de ser patriota, ou então não é meu filho! – Está bem, pai, pronto, eu vou para o Alentejo, para a China, para qualquer sítio que o primo e o pai desejarem. Desculpe, com licença – e Cláudio partiu de imediato a fechar-se no quarto – ouvindo ainda o pai dizer: «esta é que eu não esperava!». A mãe, essa, rumara do quarto para a varanda das traseiras, que ali se pouparia a ouvir o resto da verborreia explosiva do marido e poderia chorar à vontade.
*** A formação especializada terminara e já tomara posse na DirecçãoGeral, onde recebera informações sobre a viagem a realizar até aos confins do Alentejo. Ali estava, agora, de volta ao ministério para ser recebido pelo primo. Ia finalmente conhecer a missão que deveria cumprir, a par das funções a desempenhar integrado na equipa do Serviço de Fomento Mineiro que lhe fora destinada. Sem demora, foi conduzido ao gabinete daquele que estava a moldar-lhe o destino. Na rua a temperatura era baixa, mas, na frente daquele homem, sentiu pela primeira vez um calor esquisito e um suor frio a escorrer-lhe pela espinha. Ele apenas lhe estendeu a mão e continuou, sem uma palavra, a escrever com uma caneta dourada que deslizava rápida pelo papel timbrado, depois de um breve olhar metálico, gelado. Aquele já não era o primo de seu pai na noite do jantar.
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Perfilado em frente da secretária, Cláudio teve tempo de reparar nos retratos do presidente da república e do presidente do conselho, nas dezenas de pastas alinhadas numa estante, no monte de papéis ao lado do ministro, no cabelo farto e empastado deste, no mata-borrão frequentemente chamado à sua função de matar. Largos minutos se passaram até ver a caneta deslizar numa aceleração brusca que rematava o longo texto com a assinatura. Agora, os olhos do ministro percorriam as três folhas escrituradas e a caneta era levada a corrigir aqui e ali alguma falta de pontuação ou de acentuação, que não de palavras. Dobrou as folhas, introduziu-as num envelope e fechou este com cola. A seguir, chamou o chefe de gabinete e disse-lhe para lacrar o envelope, utilizando um sinete que tirou duma gaveta e lhe entregou. Momentos depois, Cláudio recebia o envelope das mãos do ministro, com a seguinte advertência: – Só vais abrir este envelope e conhecer o texto do documento que contém quando chegares ao Alentejo. Vais ler o mesmo com toda a atenção e seguir rigorosamente os passos que aí estão traçados. Tem cuidado, que nada pode falhar. Por isso, tudo vai devidamente explicado sobre o que deves fazer, para levares a bom porto uma missão muito importante. Cumpre-a com discrição e o máximo secretismo, sem prejudicares o desempenho das tuas funções; sem pressas, mas bem. – Bem, primo, julgo provável eu ter de invocar uma razão qualquer em certas situações, ou não ? Não sei do que se trata... – Aqui não há primos. Há um senhor ministro e um funcionário designado para uma missão especial. Estamos entendidos? – Cláudio acenou afirmativamente com a cabeça e o ministro prosseguiu: – tens alguma razão, por isso vais, em certas circunstâncias, invocar a incumbência de um estudo da orografia da região e do levantamento das cavidades naturais; noutras, terás de ser um bom psicólogo e saber obter determinadas informações, depois de te integrares muito bem no meio. A seu tempo, perceberás porquê. – Vou certamente ser alvo de suspeitas, por... – Sim, sim, pode acontecer. Até porque existe por lá um posto da PVDE e o agente lá colocado vai querer saber quem és e o que andas a fazer, se notar que não te limitas às tuas funções de engenheiro de minas. Mostras-lhe esta credencial, que te servirá também para te apresentares às outras autoridades locais, se isso for estritamente necessário. Está já aqui neste outro envelope. Mais alguma dúvida?
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– Pelo que o senhor ministro disse no jantar, supunha que saberia agora qual era a missão – arriscou Cláudio, com a boca seca e os envelopes a tremerem-lhe ligeiramente na mão direita. – Não há jantares para aqui chamados e o melhor é não teres pressa de saber. Não esqueças o que te disse: só no Alentejo é que abrirás o envelope! Além de mim e do senhor presidente do conselho, apenas tu ficarás a saber do que se trata. Por isso, não quero o mínimo risco de que isso possa chegar ao conhecimento público. Se tal acontecer, serás o primeiro a ser responsabilizado. – Sim, senhor ministro. Não sei é se estarei à altura de ... – frase interrompida asperamente pelo ministro, que quase gritou: – Eu teria designado outro, se achasse que não estavas à altura! Já revelaste que és inteligente e teu pai deu-me todas as garantias de que eras de confiança. Além disso, espero perspicácia, desembaraço e ânimo para ultrapassares dificuldades, pelo que não me venhas com dúvidas ou lamúrias. O jovem engenheiro sentiu o sangue a subir-lhe ao rosto e o suor voltar a descer-lhe pela espinha, balbuciando, a custo, com a sua boca mais seca ainda : – Ah, sim, claro, senhor ministro, desculpe. – Fico a aguardar os teus relatórios. Confidenciais, não te esqueças. Aí o chefe de gabinete, o Dr. Barradas, vai dizer-te como terás de elaborar e enviar os relatórios. Ele providenciará tudo o mais que te possa faltar para a viagem e a estadia por lá. Boa viagem e boa sorte. Dá cumprimentos aos teus pais – mão estendida e olho ministerial já fixo noutro documento preso na mão esquerda. «Se aqui não há primos nem jantares, porquê os cumprimentos para meus pais?» – interrogou-se Cláudio, incomodado com os modos do primo ministro, quando se dirigia ao encontro do chefe de gabinete.
*** Nem o sobretudo de lã, nem as luvas e o cachecol de caxemira que a sua Mafaldinha lhe havia oferecido pelo Natal se opunham totalmente ao frio naquele dia gélido de meados de janeiro, ao viajar numa carruagem que mais lhe parecia um frigorífico. Que raio de comboio que nem aquecimento tinha, nem um vagão restaurante para matar a fome. Embarcara cedo no Terreiro
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do Paço para tomar aquele comboio das sete e um quarto no Barreiro e mal tomara o pequeno almoço, perturbado também pelas lágrimas de sua mãe, que ficara inconsolável. Em Casa Branca poderia comer e beber qualquer coisa, mas a correr, que a paragem era curta e comboio não esperava, informou-o o companheiro de viagem que ia na sua frente. – Muda em Beja, não se esqueça – informou-o o revisor quando lhe obliterou o bilhete. – Ah, o senhor vai p’ra Moira? Tameim eu – disse o mesmo passageiro do banco da frente, que logo se apresentou de forma exaustiva: – chamome Manel Simão Rosera, mas sou conhecido na minha terra, no Sobral, por Manel Tomate, ou apenas por Tomate, por ê’ ter esta cara muito vermelha e em rapaz começarem a dezer que a minha cara parecia mesmo um tomate. Ê’ cá sou trabalhador rural; no campo, faço o que calha. Já fui pastor, cavador de enxada, almocreve, porquero, sei lá. E o senhor éi viajante, vende coisas? Olhe, olhe, o camboio já está afracando… Éi a tal Casa Branca. Vamos já para junto da porta, para corrermos ao balcão e comermos depressa. Come o senhor, que ê’ já só tenho denhero para viajar de Moira prà frente – tudo dito sem deixar Cláudio proferir palavra. Mal o comboio se imobilizou, o Manel Tomate saiu a correr e Cláudio seguiu-o até ao bar da estação, onde depressa se aglomeraram dezenas de passageiros a pedir sandes e bebidas. Cláudio entregou uma nota de vinte escudos ao desembaraçado companheiro, que conseguira ser um dos primeiros a chegar ao balcão, e disse-lhe para comprar sandes e cervejas para os dois. Mas ao voltar para junto de Cláudio, levava apenas uma cerveja e uma sandes, que lhe entregou, juntamente com o troco. À pergunta por que não comprara para ele, Tomate respondeu que quem não tinha dinheiro não tinha vícios e, além disso, não tinha fome. Quando chegasse a casa, a sua Mariana tinha lá um bom jantar à sua espera. E se não tinha, por não saber do seu regresso, fazia-o. Mesmo umas batatas fritas e um ovo. Mulher desenrascada era ela, a sua Marianita. Considerou Cláudio esta atitude exagerada, mas abonar a favor de Tomate, sentindo-se, ao mesmo tempo, incomodado em estar a comer e ele a olhar. Já com o comboio a retomar a marcha, partiu a sandes ao meio e tentou que ele aceitasse metade, mas sem resultado. Passava bem sem comer, que um homem assim não ia morrer à fome.
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– Isto agora até Beja, já éi rápido. Depois mais umas duas horitas até Moira e dali prà minha aldeia éi um pulo – referiu Tomate, a olhar para o verde dos campos, que lhe pareciam deslizar em sentido contrário. – Ah, se bem recordo a sua aldeia chama-se Sobral; não foi isso que referiu há pouco? – Foi, sim, senhor. Sobral d’ Adiça. Conhece, já lá esteve? – Não, mas vou conhecer, pois também vou para lá. – Ah, vai?… Munto beim. Vai vender coisas, visitar alguém de família… – Nada disso. Vou trabalhar. – Trabalhar? A fazer o queim lá? Só se for na azetona, que ainda éi tempo dela. Ainda que mal lhe precure, quem éi vossemecêi e o que vai fazer pràqueles becos? Diga duma vez, se não arrebento, poças. – Sou engenheiro de minas e também espeleólogo nas horas vagas, e isto diz-lhe tudo: quem sou e o que faço. – Espólogo queim? – Espeleólogo. Não sabe o que é isso? – Nã’ sei, nã’ senhora. Engenhero de minas, ‘tá-se mesmo a ver o que éi. Agora a outra coisa, sei lá beim o que faz um homem desses. – Um homem desses explora e estuda buracos. – Desculpe lá, mas o amigo está mangando cá com o rapaz. Explora buracos?! Quais buracos? E nem nome ainda me disse, nem nada… – exclamou Tomate, olhando de través. – Sim, buracos no solo. Cavernas, grutas ... – Ah…, podia logo ter dito, gaita! Buracos há muntos… – E o meu nome é Cláudio. Cláudio Pacheco. E talvez o senhor mesmo me possa ajudar a encontrar buracos nas serras. – Ah, agora já vi beim que buracos são, camano! Posso ajudar, sim senhor, que estou agora sem patrão e não me apetece ir à azetona, com este frio, que a vara gelada põe as mãos entenguidas. Para começarmos, levo-o logo à Cova da Adiça. Já ouviu falar? – Não, não. Mas agora sou eu que lhe pergunto: o que andou o senhor a fazer em Lisboa? Trabalhava lá e desempregou-se?... – Trabalhar em Lisboa, eu?!… Xó machete, qu’ ê’ cá nã’ gosto de raboliço, nem sou pássaro de gaiola. Viver numa barraca ou numa casuca daquelas, lá por aqueles ares, com uns por baxo e outros por cima? Ná… Mas se quer
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saber, ê’ digo-lhe tudo: há uns dez dias, fui ao Montijo levar uma vara de porcos do patrão e, depois, dei um salto à Amadora visitar mê’ irmão mais velho, que trabalha numa fábrica. Agora, encimi com o patrão, que por enquanto não tem porcos p’ra guardar, e, assim, estou às suas ordens. – Bem, mas isso eu só posso fazer aos fins de semana, que o meu trabalho é numa equipa que faz prospeção de minas no concelho de Moura. Agora está na sua terra. – Nã’ faz mal. Se éi no fim de semana, éi no fim de semana que a gente lá vai. Olhe, talvez a gente ache a mina Del Niño, que dizem existir pràqueles lados. Tinha ouro aos montes, éi o que dizem. – Ouro aos montes? – perguntou Cláudio em voz baixa, ao lembrarse do mastodonte do Damião e do que ele dissera sobre a sua Mafaldinha. Tomate nem ligou à pergunta, já de olho na paisagem e decidido a explicar tudo o que vissem, embora a correr, ao senhor engenhero – como passara a chamar-lhe –, ao aperceber-se de que ele tudo ignorava do campo. «Olhe, aquilo ali éi uma seara de trigo; isto sã’ favas; aquele gado além éi mertolengo; aquelas ovelhas sã’ campaniças – algumas, outras não», e por aí fora. Depois, ao avistar Beja: «olhe aquele castelo, grande torre, hã! Dizem que éi a mais alta do mundo». Já a caminho de Moura: «rio Guadiana, já ouviu falar com certeza, grande rio, e vamos atravessá-lo por cima duma ponte – grande ponte, vai ver». Quase a chegar : «Aqui éi o apiadero dos Machados; grande propriedade, grande mesmo – tã’ grande que o dono nem sabe o tamanho. E tem o maior olival do mundo; grandíssimo. Ah, e nã’ pense que o camboio chigou ontem a Moira… – chigou falta pouco para quarenta anos, veja lá! Foi em 1905, segundo me disse o mê’ patrão». Cláudio achava graça à forma de Tomate se expressar, sem prejuízo de considerar muito interessantes e úteis as explicações que lhe ia fornecendo, a propósito do que surgia na paisagem. Mas, quando ouviu dizer-lhe «‘tamos já em Moira», a curva da sua atenção recuperou do ponto zero, onde se precipitara por força do cansaço da viagem e por mal ter dormido na noite anterior. E até poderia ter pelo menos passado pelas brasas no comboio, não fosse ter aquele Tomate falante aos ouvidos. E agora, ao sair da estação, estes zumbiam, ao mergulhar naquele silêncio que não conhecia. Queixouse de tantas horas de comboio, que estava todo partido, mas Tomate ripostou:
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– Munto pior se tivesse ido comigo levar os porcos ao Montijo. Um bom pedaço de dia e uma nôte entera naquela porquera de camboio, que parava em todas as estações e andava mais devagar que uma lesma piada. Atão éi que tinha sido chegar partido ao destino e… a cherar a porco. Cláudio perguntou a Tomate como viajariam para a aldeia dele, de táxi? Tomate não conhecia essa forma de viajar; ouvira dizer que uns barranquenhos estavam já ou iam começar a transportar pessoas em camionetas para Barrancos e Safara, mas quanto a táxis não se apercebera da sua existência na vila; carros de praça, sim, já tinha ouvido falar, mas viajar num transporte desses só por desgraça e grande. Para a sua terra, quem não tinha transporte seu, era simples: ia até à estalagem do Fachadas e ali apanhava o carro do tio Alfredo, e mais hora menos hora chegaria à aldeia. – Então sempre viajariam de automóvel, não era assim? – inquiriu Cláudio, moído, quase a desfalecer, sentado sobre a mala, a poucos passos da porta da estação, mas agora esperançado em viagem rápida, sob um céu carregado de nuvens a ameaçar chuva grossa. Sobre os joelhos e com a asa bem apertada na mão direita, uma pequena maleta de folha, onde levava os documentos e o célebre envelope fechado, que projetara abrir no comboio para saber logo que raio de missão secreta iria ali descrita, mas que a tal não se atrevera porque as ordens não eram essas e alguma coisa poderia correr mal. – Qual altomóvel nem meio altomóvel... – gargalhou Tomate; – Nã’ senhor, nã’ éi altomóvel ninhum; o carro do tio Alfredo éi de varais, puxado por um macho. Em Lisboa, se nã’ me engano, chamam-lhe carroça. Já ‘tá vendo o que éi. Mas anda beim… Anda que se farta. Cláudio nem respondeu, mas ainda observou que num carro daqueles chegariam noite avançada, pois os dias ainda eram pequenos e a noite não tardaria. Tomate retorquiu que o melhor era deslocarem-se sem demora para a estalagem, que tio Alfredo já devia estar a atrelar o macho; se o deixassem partir teriam de dormir em Moura, e ele não tinha dinheiro para pagar uma pensão. Apresentado ao tio Alfredo e com o carro à vista, Cláudio segredou a Tomate temer viajar num transporte como aquele. Poderia molhar-se, engripar-se, sabia-se lá que mais, mas Tomate sossegou-o. – E o toldo?!… O carro tem um belo toldo, ali nã’ entra água, nã’ entra vento, nã’ entra nada. O senhor engenhero vai chigar lá com o seu sobretudo e fatinho
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secos que nem um esparto e limpinhos. Qual gripe qual carapuça. Éi pena nã’ ser de dia, via logo os campos e a serra onde vai trabalhar. À saída de Moura, já a chuva se fazia ouvir fortemente no toldo e o vento silvava pelas frestas das duas peças destinadas a tapar o vão posterior do carro (o taipal e um oleado), enquanto o vão anterior ia totalmente a descoberto, pelo que o tio Alfredo aconselhara logo os passageiros a instalarem-se no meio, enquanto ele ia à frente apenas protegido por uma velha capa de oleado com capuz. Para o passageiro finório, ele destinou a única cadeira existente, e o Tomate que se sentasse mesmo em cima do saco de feijão, mas colocando por baixo uma velha manta, com a graçola de que o legume não deveria chegar perfumado à loja. O carro avançava aos solavancos, ao sabor das pedras soltas e buracos da estrada. O pobre animal, fustigado pelo vento e pela chuva, caminhava tropeçando aqui e ali, com o chicote a acicatá-lo, sempre que parecia querer renunciar à sua penosa marcha. Era o seu martírio diário de quatro horas para cada lado, no rigoroso cumprimento do contrato do seu dono com os correios. Para este, levar e trazer a correspondência era a mais importante e bem paga das tarefas, não podia falhar, fizesse um sol abrasador ou chovesse a cântaros. Encomendas de particulares e transporte de mercadorias para as lojas não pagavam o trabalho que davam. Agora, a chuva parecia mais intensa e o vento ameaçava levar o toldo do carro pelos ares, com a água já a entrar por todos os lados. Um relâmpago iluminou a estrada e um imediato trovão assustou o macho, que fez o carro quase resvalar para valeta. Com a cancela da passagem de nível fechada e o carro parado até o comboio de mercadorias passar, Cláudio quis por duas vezes tomar coragem para chamar a atenção de Tomate para o exagero de classificar o toldo de impenetrável pelo vento e pela chuva, mas nada disse. Não resistiu, porém, na entrada da reta grande, a queixar-se do desconforto provocado pelas irregularidades da estrada e pelos salpicos que o atingiam e faziam sentir cada vez mais molhado. Eram as maganas das pedras soltas e dos buracos; a estrada era uma porcaria, e, quanto à chuva que atingia o senhor, que se desenrascasse, se tapasse com umas sacas velhas, que elas andavam por ali, foi a resposta do tio Alfredo às esquisitices do lisboeta. Atão levava um belo dum sobretudo vestido e ainda se queixava. Olha lá, se era comichoso. Um pouco mais à frente, o incomodado perguntou se ainda faltava muito, ao que Tomate respondeu que não, depois da reta era só mais um bocado.
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E a chuva não parava, o vento acabou por desprender uma parte do bocado de oleado que tapava o vão posterior e uma forte corrente de ar atormentava Cláudio, que já não sentia o corpo, de tão maçado, e imaginava-se já doente, cheio de reumático ou tuberculoso. Deixou de perguntar se faltava muito, por já saber a resposta de Tomate, que tiritava de frio, sem agasalho capaz, passando a certa altura a embrulhar-se na velha manta onde ia sentado. Percorrida a infindável reta, surgiram os olivais, anunciados pelo tio Alfredo como se estivessem às portas da aldeia. Aí Cláudio resolveu fazerse ouvir, esperançado no muito próximo fim do tormento. – Então estamos a chegar, não é assim? – Já nã’ falta munto; são só mais umas curvas e ‘tamos lá – respondeu Tomate, adiantando-se ao estafeta, que ia dizer a verdade, mas um trovão e um solavanco o levou a exclamar: – O raio do macho quase nos atira prá valeta. Mas com uma escuridão destas, que nã dexa ver a ponta dum corno, e a cair-lhe toda esta aguada no lombo, a admiração éi nã’ ter arremetido já p’ra fora da estrada e ter enfiado o carro num atasquero. Há quatro ou cinco anos fazendo este caminho, não m’alembro duma coisa assim. Seguiram-se alguns palavrões e o proverbial «arre macho!...» Durante uma boa meia hora, tio Alfredo não ouviu palavra dos passageiros, acabando por lhes perguntar: – Então, vão a dormir ou queim? – Com este conforto todo, quem é que não dorme?! – Ironizou Cláudio, com uma ponta de mau humor. – Olhi, se queria conforto, tivesse vindo num carro de praça. Ou por cinco mil réis queria vir refastelado num caderão e de cu tremido? – Bem tremido vai ele e...dorido. – Pois fique sabendo que o carro tem molas; melhor qu’isto, só rodas de borracha. O macho acelerara um pouco o passo na descida, e tio Alfredo rodou um pouco a manivela do travão para a direita. A curva do monte da Preguiça aproximava-se, e, passada que fosse, a manivela rodaria em sentido contrário, o que não chegaria a verificar-se. De repente, novo relâmpago e novo trovão instantâneo. O macho desta vez sai fora da estrada, a roda do lado direito
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entra obliquamente na valeta. O animal acurvilha, o carro tomba para um mar de lama vermelha e o varal direito parte-se. Tio Alfredo, projetado para a garupa do macho, foi cair-lhe junto das patas, sobre o que restava de um monte de terra que o cantoneiro havia cavado e se tornara almofada de barro frio e viscoso. Encharcado, enlameado, assustado, preso de movimentos, o estafeta gritou aos passageiros para dizerem se estavam bem e, se pudessem, que o ajudassem a levantar-se. Tomate respondeu estar inteiro, saiu do carro às apalpadelas e foi puxar pelo tio Alfredo, que entretanto chamava insistentemente por Cláudio. Como este não respondesse, pediu a Tomate que o procurasse, que ele estava muito combalido e adivinhava desgraça. Tomate voltou ao interior do carro tombado, apalpou, apalpou e chamou, mas nenhum resultado. Com uma escuridão daquelas, não enxergava nada. O melhor era correr ao monte pedir ajuda, mas bastou uma dúzia de passos a gritar por socorro para que aparecessem luzes de lampiões suspensos das mãos de três homens que correram na sua direção, cobertos com capas de oleado e com as botas a atascarem-se na terra empapada. – Foi o cabrão do macho que se escarapantou com um trovão e atirou com tudo de pantanas – adiantou-se tio Alfredo na informação – acrescentando: – estou práqui sem me poder valer, o outro passagero nã’ responde, que deve estar morto, as coisas pràs lojas devem ter ido todas praí às arraboletas no lamaçal, enfim, uma desgraça do catano. Nem sei como consegui entoiçar-me depois do tombo que di. Enquanto dois dos homens foram libertar o macho da canga e de entre os varais, o outro homem e Tomate apressaram-se a procurar o passageiro em falta por entre sacos, caixas de sabão, embalagens de pacotes de café e outras mercadorias, mas, de homem morto ou vivo, nem o mais pequeno indício. – Só pode estar debaxo do carro tombado – gritou o velho Alfredo, que rodeava o carro a coxear. Não percebiam como tal pudesse ter acontecido, mas imediatamente todos se mobilizaram a endireitar o carro. Impossível, eram necessários reforços – um deles correu ao monte e, pouco depois, eram oito os homens a puxar pelo máximo das suas forças para colocarem o carro na sua posição normal, quando um novo grito do tio Alfredo, os fez parar: – Cuidado! A abanocarem assim o carro, se o homem nã’ estiver já morto, matam-no vocês, porra! Que diabo… Esperem lá aí, caneco!
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Foram buscar cordas, puseram o macho a puxar e eles a empurrar e, uns bons minutos depois, o carro estava sobre as rodas, mas debaixo não havia morto nem vivo, não senhor. – Atão o desgraçado foi nessa enxurrada que passa já por cima da estrada. Vem além da cova e vai por esse barranco abaxo. A esta hora já ‘tará chigando à Robera de S. Pedro, se nã’ encalhou praí nalgum carrasquero. Estou perdido – choramingou o tio Alfredo, enquanto Tomate discordava dele: – Éi lá… Essa enxurrada que se ouve éi lá mesmo na curva, como éi que o homem era apanhado? Ó Tio Alfredo, nã’ pense nisso. Vamos mas éi procurar aqui beim, que o homem nã’ pode ‘tar longe. Os homens espalharam-se com os lampiões, procurando na valeta, detrás de moitas e da vegetação ao longo da estrada, até que soou um grito: estava ali. Correram e foram encontrar Cláudio sentado no chão, do outro lado da estrada, encostado ao pé duma oliveira, a chorar. Libertara-se das mercadorias que lhe haviam rebolado para cima, saíra do carro sem conseguir articular palavra, depois de ter procurado em vão achar a maleta de folha, que considerava o bem mais importante que levava consigo. Perdera também o chapéu e estava paralisado de frio, que a chuva não dera um minuto de tréguas, e um vento gelado assobiava nas ramas das oliveiras. Tio Alfredo não lhe perdoou o susto: – Atão que raio, vossemecêi ouve chamar, ouve as nossas aflições e nã’ dá cavaco?!… Ora se fosse p’ra um sítio quê nã’ quero dezer… Dois dos homens ajudaram-no a levantar-se e amparam-no na curta caminhada até ao monte, com os seus sapatos novos, comprados na fina sapataria Ferrara da Rua Garrett, a afundarem-se a cada passo e a encheremse de água e barro vermelho. Um grande lume no meio dum alpendre era a melhor coisa que aqueles homens podiam oferecer aos acidentados, para enxugarem as roupas e matarem o frio que os enregelava. À sua volta, mulheres que preparavam jantares e outros homens curiosos a perguntarem que desgraça havia ocorrido. Todos faziam parte de uma quadrilha de Santo Aleixo, que fazia de empreitada a safra da azeitona da propriedade. Enquanto duas jovens os presenteavam com um latão de café quente, por entre risadinhas e olhares marotos dirigidos ao encharcado engenheiro, este matutava no desaparecimento da maleta e em todas as consequências se não a conseguisse recuperar. Se ao menos soubesse ou tivesse lido o conteúdo
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do envelope que descrevia a missão secreta… Ao manifestar, em voz alta, a sua grande preocupação pelo desaparecimento da maleta, logo um dos homens procurou tranquilizá-lo: assim que clareasse a manhã, a maleta seria achada, mas logo outro foi menos otimista – se era coisa leve, poderia muito bem ser arrastada até à curva e ser levada pela cova abaixo até à ribeira, que já deveria levar uma boa cheia. É que a estrada parecia já um rio e, dada a inclinação daquele troço, a água escorria veloz e com força, levando tudo pela frente. Ao ouvir isto, Cláudio voltou as costas ao lume e os seus olhos voltaram a ficar marejados. Passarem ali a noite ou avançarem para aldeia com um carro emprestado eram as alternativas. A última vingou e, depois de terem enxugado a roupa ao calor do lume, voltaram à estrada, conseguiram recuperar algumas coisas de dentro do carro acidentado, entre elas a mala de viagem do engenheiro, e lá partiram protegidos por oleados que os azeitoneiros também emprestaram, com a chuva a voltar em força. Agora é que chegariam depressa, já estavam perto, no dizer de Tomate, mas Cláudio mal o ouvia, de novo encharcado, com o sobretudo a pesar-lhe arrobas, exausto, assustado com o desaparecimento da maleta. Voltaria ali no dia seguinte, voltaria e tornaria a voltar até encontrála – dizia para consigo próprio. Chegado à única pensão da aldeia, viu-se rodeado dos seus colegas e do engenheiro-chefe da equipa. Contou-lhes o que lhe acontecera e o último, o carrancudo Eng.º Branco Gorrilho, censurou-o por não ter procurado ajuda para encontrar um carro de praça que o transportasse. E alertou-o, desde logo, que o temporal que se abatera sobre a região, da mesma forma que estava a impedir os trabalhos da equipa, o impediria a ele, Cláudio, de se deslocar ao local do acidente à procura da maleta. Ainda que assim não fosse, estaria igualmente impedido por arreliadora gripe, que o viria a tornar prisioneiro no seu quarto durante quatro dias. Tomate visitava-o diariamente na pensão e incutia-lhe a esperança de que a maleta estaria com toda a certeza no monte da Preguiça, que os azeitoneiros de certo a teriam encontrado à luz do dia. A tal ponto que já não admitia outra coisa. Ao quinto dia, não aguentou mais e, ao princípio da tarde, atravessou a aldeia guiado por Tomate, para falar com o estafeta e saber quando se deslocaria à Preguiça ou a Moura, pois muito poucos se tinham atrevido a sair para o campo ou a fazer-se à estrada naqueles dias.
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Partira o tio Alfredo de manhã muito cedo, para devolver o carro e os oleados, e voltaria a cavalo no macho. Podiam sentar-se e esperar um pouco, que não demoraria, segundo sua jovem filha, esguia e estrábica, que os recebera sem simpatia que se visse. Para Cláudio, tudo era novidade e aquela casa revelava uma pobreza para si desconhecida. Nos minutos de espera, os seus olhos percorreram e notaram as irregularidades da superfície das paredes caiadas mas enegrecidas, e detiveram-se num canto escuro da casa, onde crepitava um lume fraco e fumarento, junto do qual borbulhava algo dentro de panela de barro, tapada parcialmente com um texto de lata escurecido. No ar, um cheiro ou uma mistura de cheiros não identificável por um qualquer lisboeta. – Do que são feitas estas paredes tão irregulares? De pedra ? – Sussurrou Cláudio, ao serem deixados a sós. – Não, de taipa. – O que é isso? – Ah, nã’ sabe?! Um engenhero nã’ sabe… – Não sou engenheiro civil. Os engenheiros civis é que sabem tudo sobre paredes, entende? – ’Tá beim, pronto. Lá vai: duas tábuas, terra e um maço – segredou Tomate, com o olho na porta donde poderia reaparecer a filha do dono da casa. – Fiquei na mesma. – Os pedreiros põem duas tábuas ao lado uma da outra, deitam terra no meio delas e… Cláudio, imbuído de uma enorme expectativa, deixou de ouvir a explicação e passou a antever o velho Alfredo entrar pela porta que dava para o quintal, com a sua maleta, e ficar a escutá-lo sobre o que lhe haviam dito os homens quanto ao achamento no meio da lama, na valeta, no barranco, não interessava. Estava a ver-se fechado no quarto da pensão a abri-la, ansioso por ver se a água nela se infiltrara e estragara os documentos. Nada disso, a maleta deveria ser estanque e, em qualquer caso, o envelope sempre resguardaria minimamente o conteúdo e daria para ler o que pretendiam que ele fizesse, na célebre missão secreta, como nos filmes. Voltou à realidade e às perguntas, em surdina: – Aquilo é uma lareira? Porque deita o fumo para o teto de paus separados uns dos outros? E o cheiro?...
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– Aquilo éi um chupão, o telhado éi salto-de-rato, feto de canas ( nã’ éi de paus); o fumo vai prò telhado porque o chupão nã’ presta. O chero éi do fumo e do fejão que s’está cozendo na panela. A jovem esguia e estrábica reapareceu e anunciou: – Mê’ pai já chigou e está metendo o macho na cabana – e ambos a levantarse e a fixar os olhos na porta por onde entraria o desejado. – Aí está a sua maleta, de certeza, senhor engenhero. Vai ver – referiu Tomate, prazenteiro. O som de passos vindo do quintal, acelerou o ritmo cardíaco de Cláudio, e ali estava o tio Alfredo com a talega do farnel que levara pendurada do braço e as mãos enrolando um grosso cigarro de tabaco Duque, em mortalha de livro king size Rei da China. – Ah, estão à minha espera? Nã’ lhes disse nada, porque p’ra cá nã’ os podia trazer. Amanhã volto lá com um abogão, a ver se ele atamanca os varais de qualquer manera e conseguimos trazer o carro p’ra ser amanhado na aldeia. Se vissem, um dó d´alma: os fejões espalhados por aquele lamaçal, os pacotes de caféi estragados, uma desgraça. E agora tenho de pagar aquilo tudo aos homens. E o denhero, onde o tenho? Vá lá que salvi a mala do correio e a sua mala grande de viagem, se não éi qu’era bonito… O que o cabrão do macho m’ arranjou. Beim, o alimal, p’ra beim dezer, nã’ tem culpa. Cláudio e Tomate, especados a ouvi-lo, viram o estafeta dirigir-se ao lume, tirar um pau com uma brasa na ponta e acender calmamente o cigarro. O primeiro não se conteve, já com a deceção a invadi-lo: – E a minha maleta, senhor Alfredo, e a minha maleta, o senhor não me diz nada sobre ela? Os homens acharam-na, não acharam? – Desgraçadamente, nã’ acharam, nã’ senhor. Dizem que correram tudo, que andaram drentro das valetas, do barranco… Chegaram até à Robera de S. Pedro, e nada… E éi de acraditar, que aquilo éi gente séria. Deve ter sido levada pela cheia que veio lá de cima por aquela cova abaxo, e como há muntos ervançuns e munta murraça por aqueles charais, onde quer ficou escondida, entarrada… Olhe, era pior se tivesse perdido a mala grande… – rematou tio Alfredo, já meio engasgado com o fumo do cigarro que, de mal feito, ameaçava desintegrar-se. – Não pode ser! Tenho de achá-la, dê por onde der! – exclamou o engenheiro a denunciar-se agastado.
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– Éi o achas… Se calhar os seus dois olhos enxergam mais que os daqueles todos juntos, nã’ éi assim? Mas exprimente, atasque-se nos barriçais e esgravulhe, ninguém o estrova. Sabe que mais: já vou estando estamagado com a história da sua maleta. Cláudio já nem ouviu as últimas palavras do velho. Saiu disparado, sem se despedir. Tomate correu atrás dele e foi com dificuldade que lhe aguentou a passada até à pensão, e só à entrada desta lhe ouviu a fala: – Tenho de encontrar a maleta. O senhor Manel ajuda-me? Eu pago-lhe o que for preciso. – Atão nã’ ajudo porqueim?! Ajudo, pois!| – E Tomate prontificou-se mesmo a arranjar transporte: a carripana de seu cunhado Canavial, puxada por um burro que andava que se desunhava. Nada disso, mais carros desses não queria Cláudio. Apercebera-se de que havia um carro de praça na aldeia, que falasse com o motorista, dono ou lá o que fosse.
*** O jantar estava servido na casa do abastado proprietário Mariano Caldeira Lacerda. Apenas se ouviam os talheres e os passos da criada no vaivém entre a sala de jantar e a cozinha, quando o patriarca resolveu quebrar o silêncio. – Parece que hai poucos dias chigou um gajo de Lisboa com o velho Alfredo e ‘tá hospedado na pensão. Foi visto passar prà Coitada com o Manel Tomate. Sabes d’alguma coisa, Farnando? Tu que não fazes nada, mas que sabes tudo do que se passa nesta terra e arredores… Fernando é o filho mais velho, não quis estudar, era uma maçada; percorrer as propriedades, ajudar o pai a gerir a segunda maior casa agrícola da aldeia, isso era maçada e meia. Acabara de cumprir o serviço militar como soldado raso e matava o seu tempo a caçar, pescar, percorrer a aldeia no seu belo cavalo branco, jogar ao bilhar e às cartas na Sociedade de Cima, chamada dos ricos, embebedar-se, correr para Moura e frequentar as casas das meninas dos Quartéis. – Já cá faltava a piadinha. Pois saiba que já fui hoje, na charrete, ao Monte das Alpondras, buscar ovos, a pedido da mãe.
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josé nunes valente
– Buscar ovos, sim senhor, este rapaz farta-se de trabalhar e de produzir. Buscar ovos, vejam beim! Agora faz o trabalho do rapa. E, afinal, sabes ou não quem éi aquele gajo? – Deve ser um viajante, sei lá beim. Volta e meia aparece aí gente dessa. – Ah, já sei: a Laurinha disse-me que a filha do Tomate, a Maria da Luz, que trabalhava na casa da avó dela, lhe falou num rapaz bonito que se hospedou na pensão do Romano. Éi engenhero e vem trabalhar com outros engenheros que tameim estão hospedados na pensão. Parece que andam na serra a fazer não sei o queim – informou Ana Leonor, mais nova dois anos que Fernando, linda e mimada, que os papás, ao contrário do que ela pretendia, não deixaram ir estudar para Beja pelos perigos que qualquer namorico fora do seu controlo representava. Bastava-lhe a quarta classe, que o seu futuro seria garantido por casamento com rapaz da sua classe social e pelo que viria a herdar de seus pais. Mas esse rapaz começava a tardar. Os poucos jovens ricos da aldeia andavam a estudar em Beja ou em Lisboa, ou a fazer que estudavam; só os via nas férias e nenhum deles se mostrara interessado. Dos jovens que viviam na aldeia, todos estavam fora de qualquer hipótese e nenhum se atrevia sequer a olhá-la. Bonitão e talentoso que fosse, mais não poderia ser do que pedreiro, carpinteiro, sapateiro, barbeiro, abegão ou caixeiro, tudo gentinha de que ela nem se dava conta. E nos bailes da Sociedade dos ricos apenas dançava com algum estudante ricaço em férias ou forasteiro desconhecido, cuja indumentária lhe parecesse de gente fina e tivesse boa aparência, mas, como ela própria dizia, tudo indicava que os homens se assustavam com a sua beleza. Por isso os seus olhos brilharam ao referir-se ao forasteiro de que lhe falara a Laurinha, pois que, além de engenheiro, era bonito, esperava que solteiro e sem compromisso. – Acho estranho que venha mais um engenhero. Ainda há poucos dias o chefe da equipa da prospeção minera me disse ter até gente a mais. Nã’ sabia da chegada desse… – E tu tens de saber de tudo?! Ora, dexa-te disso! – exclamou D. Amélia para o marido, em tom de censura. – Claro que tenho, nã sou eu o presidente da Junta?! Ah, e tu cala-te que não percebes nada de nada! – ripostou Mariano, veemente, acrescentando: – Ana Leonor, vê lá se sabes mais alguma coisa desse tipo. Nã’ sei porqueim, mas, depois
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há ouro na serra da adiça
do Gorrilho me ter dito ter gente a mais, chera-me que esse nã’ vem só integrar a equipa. Espera, dexa, vou pedir ao regedor p’ra averiguar. Se não ainda dizem que ‘tás enteressada nele. – E se estiver? Ninguém tem nada com isso. Éi bonito, éi engenhero. A Laurinha tameim disse que ele perdeu uma maleta no caminho, com papéis importantes. Viajava de Moura no carro do velho Alfredo e o carro tombou ou nã’ sei queim… O Tomate tameim vinha. – Com o velho Alfredo, numa caranguejola daquelas… Tameim éi estranho. Esse gajo… Antes de completar a frase foi interrompido pela criada: o senhor regedor estava à porta – pretendia falar-lhe. – À porta e com um temporal destes? Manda entrar o homem, rapariga!!! – trovejou Mariano Lacerda, e foi com a velocidade de um relâmpago que as faces da criada ficaram a arder. A pobre Clotilde ficava aterrorizada só de passar junto do patrão ou quando tinha de lhe dirigir a palavra. Ela tinha razões para julgar que ele a odiava, mas a bondosa D. Amélia dizia-lhe que não fizesse caso, que era o feitio dele. Com o resto da criadagem era a mesma coisa. Na verdade, nunca lhes mostrava os dentes e parecia aprazer-se em apoucar, diminuir e humilhar quem o servia. Nem acabou de jantar. Àquela hora e debaixo de chuva, tinha de ser coisa grave. Levantou-se e dirigiu-se para a porta, ultrapassando Clotilde no corredor. – O que hai, Demingos? Entra, homem, que ‘tás molhado que nem um pinto. Que sangria éi essa, morreu alguém? – Nã’ senhor. Vim preguntar-lhe se sabe quem éi um gajo suspeto que se hospedou na pensão do Romano e anda com o Tomate a escarafunchar os rastos da cheia entre a curva do monte da Preguiça e o pégo do banho, entarrados em lama até às orelhas. E hoje estiveram na sua horta e devem ter falado com o seu hortelão. Quem me disse foi o Sousa, que os tem levado e trazido no carro de praça. – Isso tameim ê’ quero saber. Mas essa éi munta boa. Tu, regedor, com funções de polícia, vens preguntar-me quem éi o gajo ?!… Vai lá e interroga-o, porra! Diga quem éi e o que anda práqui fazendo. – Beim, ê’ nã’ queria fazer isso sem lhe dezer, sem ter o seu acordo, que o tipo parece finório.
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