O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa

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AFONSO DUARTE

BIBLIOGRAFIA 1912 – Cancioneiro das Pedras (Livraria Ferreira, Lisboa) 1914 – Tragédia do Sol-Posto (França Amado, Coimbra)

1929 – Os 7 poemas líricos (Presença, Coimbra) 1933 – Desenhos Animistas de uma Criança de 7 anos (Imprensa da Universidade, Coimbra)

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1936 – O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (Companhia Editora do Minho, Barcelos) 1947 – Ossadas (Seara Nova, Lisboa) 1948 – Um Esquema do Cancioneiro Popular Português (Seara Nova, Lisboa) 1949 – Post-Scriptum de um Combatente (edição do autor, Coimbra) 1950 – Sibila (edição do autor, Coimbra) 1952 – Canto de Babilónia e Canto de Morte e Amor (edições do autor, Coimbra) 1956 – Obra Poética [incluindo O Anjo da Morte e Outros Poemas] (Iniciativas Editoriais, Lisboa) 1960 – Lápides e Outros Poemas [póstumo] (Iniciativas Editoriais, Lisboa) Funda as revistas A Rajada (1912) e Tríptico (1924) e colabora, entre outras publicações periódicas, nas revistas A Águia, Contemporânea, Dyonisos, O Instituto, Manifesto, Presença, Seara Nova e Vértice.

Na parede [do quarto de frente da casa de Afonso Duarte, na Rua do Dr. João Jacinto, em Coimbra], por cima da mesa grande, encontravam-se dependurados uns objectos de arte regional e, ao meu olhar indagador, ele descreveu: Eram algumas das peças do museu de etnografia que eu estava a organizar quando me puseram fora. A sua voz tinha uma tremulência, notava-se desgosto e compreendi ainda melhor este seu verso O meu espírito agreste de luta, porque ele nascera para lutar nos seus trabalhos e na sua poesia. A vida e a incompreensão da sua obra pedagógica tornara-o um lutador. Queria organizar apaixonadamente uma obra de etnografia que a sua mente concebia e para isto traziam-lhe elementos preciosos as suas alunas. Ia amorosamente estudando e comparando os trabalhos recebidos como se poderá verificar nos seus livros O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa em que ele principia agradecendo aos seus antigos alunos da Escola Normal Primária de Coimbra: «Historiando o nascimento do divino Jesus, os cantos do Natal entretecem um dos mosaicos mais ricos da nossa literatura oral. (…) Um Esquema do Cancioneiro Popular Português, em que afirma: « – Um breviário de conceitos morais, formando corpo de doutrina sobre a honra, firmeza e fidelidade, prudência, diligência e persistência, confiança e franqueza, amor da família, e uma filosofia de experiência que é toda perdão, desculpa e paciência perante as fraquezas da vida». Daí o convívio com o seu antigo condiscípulo e etnógrafo, Prof. Vergílio Correia e as interpretações pessoais que nos deixou e podemos antever, portanto, a riqueza desta obra etnográfica que foi tão prematuramente cortada, mas que nos legou como o método que tinha traçado. JACINTO SOARES DE ALBERGARIA, A Lição dum Homem, Ponta Delgada, 1975.

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1925 – O Desenho na Escola – Barros de Coimbra (Lumen, Coimbra)

A LIÇÃO DUM HOMEM O CICLO DO NATAL NA LITERATURA ORAL PORTUGUESA

1916 – Rapsódia do Sol-Nado seguida do Ritual do Amor (Renascença Portuguesa, Porto)

O CICLO DO NATAL NA LITERATURA ORAL PORTUGUESA

JOAQUIM AFONSO FERNANDES DUARTE

seguido de

1884 – Nasce a 1 de Janeiro, na Ereira, Verride, Montemor-o-Velho.

UM ESQUEMA DO CANCIONEIRO POPULAR PORTUGUÊS

1894-1896 – Instrução primária em Alfarelos. 1898-1901 – Aluno interno no Colégio Mondego, em Coimbra. 1902-1907 – Regimento de Lanceiros dʼEl-Rei e Liceu de Coimbra. 1907-1913 – Universidade de Coimbra. Bacharel em Ciências Físico-Naturais. 1914-1915 – Professor no Liceu de Vila Real de Trás-os-Montes. 1915-1918 – Lisboa: Escola Normal Superior / Professor do Liceu de Gil Vicente / Mobilizado para o Regimento de Artilharia de Costa / Sofre ataque de paraplegia. 1919-1932 – Coimbra: funções administrativas nos Liceus José Falcão e Infanta D. Maria / professor na Escola Normal Primária. 1932 – Colocado na situação de adido fora do serviço e compelido à aposentação. Passa a viver na Ereira, com periódicos regressos a Coimbra. 1958 – Morre em Coimbra, a 5 de Março. É sepultado no cemitério da Ereira.

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O CICLO DO NATAL NA LITERATURA ORAL PORTUGUESA seguido de

UM ESQUEMA DO CANCIONEIRO POPULAR PORTUGUÊS


edição:

Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro) título: O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa, seguido de Um Esquema do Cancioneiro Popular Português autor: Afonso Duarte recolha de textos e notas: fotografia de capa: capa:

Mário Araújo Torres

A fonso Duarte em 1925, Professor da Escola Normal Primária de Coimbra

Ângela Espinha Paulo S. Resende

paginação:

1.ª edição Lisboa, outubro 2018 isbn:

978­‑989-8867-43-8 444537/18

depósito legal:

publicação e comercialização

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AFONSO DUARTE

O CICLO DO NATAL NA LITERATURA ORAL PORTUGUESA seguido de

UM ESQUEMA DO CANCIONEIRO POPULAR PORTUGUÊS Recolha de textos e notas por

Mário Araújo Torres



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NOTA SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO Se a obra poética de Afonso Duarte [Joaquim Afonso Fernandes Duarte (Ereira, 1 de Janeiro de 1884 - Coimbra, 5 de Março de 1958)] continua pouco conhecida, apesar da recolha completa feita pela Plátano Editora (1974) e, mais recentemente, da edição crítica comemorativa do cinquentenário da morte do autor, editada pela Imprensa Nacional (2008), com introdução, fixação do texto, registo de variantes e apêndices de José Carlos Seabra Pereira, mais chocante é o completo esquecimento da sua valiosa obra pedagógica e etnográfica, desenvolvida na Escola Normal Primária de Coimbra, onde foi professor de Desenho desde o início do funcionamento da Escola, em 1919, até 1932, ano em que, já transformada, em 1930, em Escola do Magistério Primário, Afonso Duarte foi compelido à aposentação, tal como viria a acontecer, alguns anos depois, ao seu colega Álvaro Viana de Lemos (Lousã, 28 de Março de 1881 Coimbra, 21 de Agosto de 1972), ambos inseridos no movimento da Educação Nova. No presente volume reúne-se a sua produção etnográfica editada em livro – O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa (1936) e Um Esquema do Cancioneiro Popular Português (1948) –, para a qual Afonso Duarte contou com a empenhada recolha de materiais por parte dos seus alunos da Escola Normal Primária de Coimbra, a quem dedicou aquela primeira obra. Recolhem-se ainda três textos de Afonso Duarte publicados na Vértice – Revista de Cultura e Arte: Glosas Populares – Comentário e Coletânea (no n.º 127, Abril 1954, pp. 197-208), Do registo e cotejo das variantes do cancioneiro popular (no n.º 128, Maio 1954, pp. 276-278), e O Brasil no cancioneiro popular português (no n.º 159, Dezembro 1956, pp. 604-608).


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A primeira edição de O Ciclo do Natal na Literatura Oral Portuguesa foi composta e impressa na Companhia Editora do Minho, Barcelos, em 1936, com 126 páginas e uma tiragem de 350 exemplares numerados; a “segunda edição melhorada”, igualmente composta e impressa na Companhia Editora do Minho, em Barcelos, saiu em 1937, com 154 páginas e uma tiragem de 400 exemplares numerados. Trata-se, em parte, da recopilação de textos anteriormente publicados em publicações periódicas. O texto do Capítulo I (Os cantos do Natal e o sentimento religioso popular) foi inicialmente publicado na Presença – folha de arte e crítica, n.º 23, Coimbra, Dezembro de 1929, p. 10, e corresponde a uma conferência proferida por Afonso Duarte, na sede da Universidade Livre de Coimbra (Torre de Almedina), em 19 de Dezembro de 1928, com o título A festa do Natal e o sentimento religioso popular O Capítulo II (Os cantos do Natal e os autos vicentinos) corresponde ao artigo Os cantos do Natal e o Teatro Religioso em Portugal, publicado na Seara Nova – Revista de doutrina e crítica, n.º 195, de 9 de Janeiro de 1930, pp. 37-39. Os Capítulos III (O cepo do Natal) e IV (A Fogueira do Galo) haviam sido, sob a designação genérica Folklore, publicados na Seara Nova, n.º 194, de 1 de Janeiro de 1930, pp. 19-21. No Capítulo VII (Cancioneiro do Menino Jesus) foram inseridos dois pequenos textos inicialmente publicados na Seara Nova (Cancioneiro do Menino Jesus, no n.º 421, de 27 de Dezembro de 1934, pp. 197-198, com a nota: Do «Livro do Natal» composto por Afonso Duarte com a colaboração de antigos alunos da Escola Normal Primária de Coimbra, 1925) e na Presença (O enxoval do Menino, no n.º 40, Dezembro de 1933, p. 1) O Capítulo IX (As Janeiras) fora publicado em Portucale – Revista ilustrada de cultura literária, científica e artística, vol.


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VIII, n.ºs 44-45 e 46-47, Porto, Março-Junho e Julho-Outubro de 1935, pp. 41-47 e 134-139, e corresponde a uma conferência feita em 1928 na Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A parte relativa às janeiras no Caramulo surgira em Pátria – Revista portuguesa de Cultura, vol. I, n.ºs 1-2, Gaia, 1931. A obra Um Esquema do Cancioneiro Popular Português, edição da Seara Nova (Lisboa, 1948, 78 pp.), integrada na coleção Cadernos da «Seara Nova» – Secção de Estudos Folclóricos, corresponde ao texto, com o mesmo título, publicado no n.º 1065-1067, de 27 de Dezembro de 1947, pp. 260-270, da revista, a que foi aditada, na edição em livro, uma “recolha de provérbios, adágios ou sentenças”. Resulta da correspondência de Afonso Duarte que Um Esquema do Cancioneiro Popular Português constituiria apenas o estudo introdutório da projetada edição da recolha, com a colaboração dos seus antigos alunos da Escola Normal Primária de Coimbra, de cancioneiros populares, designadamente do Cancioneiro da Ereira (Campos do Mondego), que, só este, contava com 300 páginas. Em carta de 2/3/1943 para Manuel Mendes (integrada no seu espólio, depositado no Museu Nacional de Arte Contemporânea, e digitalizado na “Casa Comum” da página da Fundação Mário Soares) refere: “Presentemente, estou a trabalhar para uns amigos do Brasil da Revista das Academias de Letras. Há um ano que me não deixam por via de coisas do nosso folclore: querem trovas, muitas trovas do nosso povo acompanhadas de um estudo meu. Cá estou, portanto, em pleno Laboratório étnico – como diria o Jousse. Imagine que nas Férias (?) do Natal tive a habilidade de sacar da boca dum homenzinho iletrado da minha aldeia – 850 quadras, afora outras coisas! Tenho-as já cotejadas com as do Cancioneiro de Vila Real


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(Trás-os-Montes) e Souto da Casa (Beira Baixa) – e vou seguir para o do Minho, etc. Coisa dos diabos! E que não está feita – apesar da praga de folcloristas que há neste país de mil diabos!”. Sucederam-se tentativas para a edição do Cancioneiro popular junto de várias editoras (designadamente na Cosmos, por iniciativa de Fernando Lopes-Graça): “Tenho o meu trabalho sobre o cancioneiro popular pronto há quatro anos e ainda não sei a quem o entregar” (carta a Manuel Mendes de 2/3/1947). A Seara Nova acabaria por editar em 1948 apenas o Esquema, tal como surgira nas páginas da revista, com o aditamento de curta recolha de provérbios, adágios ou sentenças. Apesar dos esforços feitos, não foi possível localizar o original do Cancioneiro popular organizado por Afonso Duarte.




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O CICLO DO NATAL NA LITERATURA ORAL PORTUGUESA Recueillir indistinctement toutes les productions orales d’une époque, ce n’est assurément pas, du simple point de vue esthétique, de notre esthétique, un service à rendre à une telle littérature; car de vraies beautés pour nous se trouvent submergées par une masse de platitudes que nous fixons à jamais ou que nous allons déterrer là où les siècles passées les «avaient mises par écrit». Mais cela «est précieux pour qui étudie la façon dont se forme une littérature orale». «Le nombre des sentiments que cette littérature orale sait exprimer est limité; limité aussi le nombre des clichés propositionnels, porteurs des comparaisons concrètes – non pas poétiques – et des images qu’elle a à sa disposition». Marcel Jousse

Aos meus antigos alunos na Escola Normal Primária de Coimbra a quem devo os materiais que serviram a compor o presente ciclo do natal

O. D. C.

A. D.



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I Os cantos do Natal e o sentimento religioso popular (*) Historiando o nascimento do divino Jesus, os cantos do Natal entretecem um dos mosaicos mais ricos da nossa literatura oral. Conhecidos já na liturgia dos primeiros séculos da Igreja, eles derivaram para a imaginação popular que lhes sobrepôs inúmeros acrescentos profanos, já transpondo-os de outras canções tradicionais, em virtude da sua identidade semiológica ou correlação de formas verbais, já enriquecendo-os com variantes de sua espontânea inventiva. E, deste modo, nos aparecem os elementos diferenciais do sentimento religioso, correspondentes às atitudes mentais étnicas de cada meio social. Quanto a nós, o que transparece destes cantos do Natal, como fundo do sentimento religioso popular, é alguma coisa de divino no belo, mas sem grande idealidade, antes profundamente realista. Esta linguagem física e sensual, comum, é certo, a todos os povos ainda não dissociados pela ação cultural, sobressai com extremos de figuração metafórica no culto do Menino Jesus. Ele é tão formoso que apetece comer-lhe a boquinha de marmelada, a boquinha de requeijão, em gulosas metáforas: Ó meu menino Jesus, Boquinha de marmelada; Oh, quem a comera toda E não lhe deixara nada! Ó meu menino Jesus, Boquinha de requeijão; (*) Este Capítulo I foi inicialmente publicado, com o título Os cantos do Natal e o Sentimento Religioso Popular, na Presença, n.º 25, Dezembro de 1929, p.10.


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Quem me dera a comer toda Com bocadinhos de pão.

Ele é tão humano, tão fora da filiação metafísica dos teólogos, que, no ventre de Maria Nove meses escondido,

quando ao mundo veio: Era meia-noite, Meia-noite em pino, Cantavam os anjos, Chorava o menino. S. José se levantou E uma vela acendeu, Para alumiar ao menino Que à meia-noite nasceu. S. José se levantou A acender o candeeiro; Já Jesus era nascido,

Filho de Deus verdadeiro.

E, a completar o retábulo da Natividade, a incomparável escultura destes versos: A Virgem então o adora, Nos seus braços o recebe: Como mãe lhe beija a face Mais alva que pura neve.

Agora, qual formoso canteiro, poetizando a Sagrada Família numa linguagem que rescende a rosas e a cravos:


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Nossa Senhora é uma rosa, É seu Filho um lindo cravo, S. José o jardineiro Daquele jardim sagrado.

Ou, como nas cosmogonias áricas o homem nasce das plantas, Do varão nasceu a vara, Da vara nasceu a flor; Da flor nasceu Maria, De Maria o Redentor.

E ainda, tocado de ancestralidades, o português raramente dirá, como o francês, «la beauté du soleil et de la lune ne se peuvent comparer à la sienne», ou, como no Proto-evangelho de S. Tiago, «a luz nascente brilha mais do que a luz do sol», mas, como é frequente na literatura patrística, Ele é o Sol verus: No Presépio de Belém, Venham todos, venham ver Da mais cândida açucena O Sol divino nascer. No Presépio de Belém Uma luz apareceu: À hora da meia-noite O Sol divino nasceu.

Mas, entrando no nosso amoroso coração, eu não sei de ligação afetiva, onde o belo no divino ascenda a um martirológio de amor, como na fuga mística destes versos: Ó meu menino Jesus Sois pequenino e bem feito. Se vós tendes frio, frio, Vinde cá para o meu peito.


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Vinde cá, meu Deus infante, Nascei no meu coração; Tomai dele inteira posse, Tomai-o da vossa mão. Vinde cá, meu Deus infante, Vinde, não vos detenhais: A minh’alma vos espera, Já não pode esperar mais. Ó meu amado menino, Ó meu tão belo jasmim, Ou me levai para vós Ou, Vós, vinde para mim.

* * * Esses formosíssimos versos costumam cantá-los nas chamadas Novenas do Menino Jesus que têm lugar, como as passadas calhandras, durante os nove dias que precedem o Natal. Também costumam levar Novenas de promessa ao Deus­-menino na noite de Natal; estas compõem-se de nove raparigas, indo cada uma com sua vela acesa na mão. Vão acompanhadas por dois ou mais homens, que ficam no adro para deitar os foguetes do estilo durante a cerimónia (Castanheira de Pera). Nalgumas localidades costumam, ainda, cantar em coro os versos ao Menino Jesus, acompanhados de música própria, na missa do galo ou da meia-noite. Devemos acentuar, no entanto, que esta missa já se não vai dizendo em tantas igrejas, que em breve mal a teremos, como um eco na escuridão, ressoando destes versos:


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Pastores de Belém santa, Esta noite não durmais Que se dizem as três missas E quero que as vós ouçais. A primeira é a do galo, A segunda é a da luz; A terceira é a do dia Que é a do Menino Jesus.

(Freixeda: Guarda; Talhadas: Aveiro)

Eu sei que Ramalho Ortigão disse que a missa da meia-noite é uma invasão do lar pela sacristia e que a festa do Natal, que nos países cristãos, em toda a Europa, é a festa da Família, não é o padre que a deve benzer, é a mãe; mas eu sei também que ela era um dos mais impressionantes quadros litúrgicos, pela beleza dos coros, com seus diálogos e réplicas, que nos fazia assistir às origens do Teatro, e nos dava a noite-maior-do-ano como uma viva e estranha figuração da Idade-Média.



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II Os cantos do Natal e os autos vicentinos (*) Filiados na corrente literária dos autos litúrgicos que o clero da Idade-Média instituíra no seio da Igreja com o fim de fortificar a fé do vulgar ignorante e dos neófitos – como se diz na concordia regularis do beneditino Ethelwold escrita nos fins do século X – e participando das suas intenções apologéticas e didáticas, muitos dos cantos que ainda hoje se cantam pelo Natal pertenceram a antigos autos. Dessas intenções pedagógicas, dá-nos Gil Vicente, em 1534, lição magistral quando, no Auto de Mofina Mendes, faz dizer: Senhora, não monta mais Semear milho nos rios Que querermos por sinais Meter cousas divinais Nas cabeças dos bugios.

Cristianizar a mentalidade pagã, tal foi a religiosa intenção dos autos. Assiste-se-lhes como a um verdadeiro sistema educativo mimográfico: uma catequese pela figuração realista dos principais mistérios da Fé. «C’était – escreve Jeanroy – un procédé d’enseignement auquel le clergé avait été amené à recourir par l’ignorance de la masse des fidèles et l’incapacité d’un grand nombre à en recevoir un autre». Exclusivamente religiosos, a princípio, não admitindo como figurantes senão elementos do clero, em breve o desenvolvimento que os autos alcançam – extensão das cenas e número de figuras (*) Este Capítulo II foi inicialmente publicado, com o título Os cantos do Natal e o Teatro Religioso em Portugal, na Seara Nova, n.º 195, de 9 de Janeiro de 1930, pp. 37-39.


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– leva o clero a transpô-los para fora dos altares e a dar colaboração a amadores: nobres, burgueses e artífices. É somente no século XVI que eles vêm a cair sob o desempenho de profissionais, e, profanados até à expressão humorística de santa-paródia, a Igreja intervém e proíbe-os. Agora, novamente, despidos da representação cénica, das roupagens efémeras, os autos regressam, confirmando a lei do eterno retorno, ao nódulo primitivo: o simples canto. E assim é que, hoje ainda, nós podemos ouvir da boca do povo, como denúncia dialogal e mise-en-scène: Apareceu hoje nos céus A nossa paz verdadeira. Já no mundo andam os anjos Numa fatal brincadeira. Hoje se deve alegrar Todo o que é filho de Adão. Hoje se vai dar princípio À obra da Redenção.

(Teixoso: Covilhã)

E estes que devem ter pertencido ao mesmo auto e se cantam pelas Novenas do Natal: Infeliz Adão não chores, Suspende o pranto e a dor. Da Virgem de Nazaré Vem nascer o Redentor. É Jesus de Nazaré Esse anjo tão desejado Que vem livrar o mundo Das cadeias do pecado.


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Vem nascer em uma gruta O grande Rei das Nações Pra combater as durezas Dos humanos corações. Esse anjo tão desejado Que entre grutas veio nascer É o Príncipe da Paz Que por todos vem sofrer.

(Bolfiar: Aveiro)

E, como estes, inúmeras são as deixas dialogais e cenográficas de antigos autos de caráter religioso que enriquecem o nosso folclore. Cotejando os cantos do Natal com os autos vicentinos, iríamos dizer que o Poeta marcou uma profunda influência no formalismo destes cantos, se não tivéssemos antes por bem arcaicos os seus esquemas-tipos. Não sendo, porém, de estranhar que haja um perfeito paralelismo entre os versos do Poeta e os cantares do povo, exemplifiquemo-lo, no entanto. Assim, o povo canta: Alegrem-se céus e terra, Cantemos com alegria. Já nasceu o Deus menino, Filho da Virgem Maria. Ó homens acordai todos, Acordai, mulheres, também! Vinde ver Jesus nascido No Presépio de Belém.


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Alerta, pastor, alerta! O anjo anúncio nos deu Que fossemos ver a flor Que em Belém, por nós, nasceu.

E Gil Vicente, no Auto de Fé, escreveu: Ela és noche de alegria, Ninguno está aqui soñoliento. Es noche do nascimiento Em que Deus mostrou seu dia. Pues que es noche de alegria, Cantaremos melodia.

Ou, no Auto de Mofina Mendes: «Recordai, pastores!» – Hou de lá, que quereis? «Que vos levanteis!» – Para quê, ou que vai lá? «Nasceu em terra de Judá Um Deus só que vos salvará».

Interpretando a pobreza da Lapinha e a frialdade serrana da Noite de Natal, o povo canta: Ó meu amado Jesus, Ó meu menino tão belo, Logo vieste nascer Na noite do caramelo!


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O menino está dormindo Nas palhinhas sobre a neve. Os anjos lhe estão cantando: Ditoso de quem o serve. O menino está na neve E o frio o faz tremer. Oh, menino da minh’alma, Quem vos pudera valer!

E o Poeta, no Auto Pastoril castelhano: Senhora, com êstes hielos, El niñito está temblando, De frio veo llorando.

Ou, no Auto da Fé: Na mangedoura metido, Em pobre palha chorando, E os anjos embalando O menino entanguecido.

Ora, dando a estranheza dos Magos perante a humildade do Rei dos Reis – passo que me faz lembrar outro ingénuo diálogo duma das Natividades Liegenses do manuscrito de Chantilly, cujo texto Cohen, seu descobridor, atribui ao século XIII, e que diz, posto em francês moderno: – O mon cher ami quand naquit l’enfant où fut-il-mis? – Dans la crèche sur la paille, faute d’un petit lit;


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dialogará o nosso Poeta, no Auto Pastoril castelhano: – Que casa tão pobrecita Escogió para nacer! – De paja es su camacita Y un establo su posada.

E cantará o povo: Pastorinhos do deserto Correi todos, vinde ver A pobreza da Lapinha Onde Jesus quis nascer. Bem pudera nascer Em cama de pedraria, Mas para dar exemplo ao mundo Nasceu numa estrebaria.

Representando agora o ofício dos Magos – eamus, inquiramus eum et offeramus ei munera: arum, thus et mirham – o povo canta: Já lá vem os Reis Magos O Deus Menino adorar: Um traz ouro, outro incenso, Outro mirra lhe vem dar.

E, logo, traduzindo ainda o litúrgico do Ordo Stellae,


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Aurum regem, Thus celestem, Mori notat untio,

continuará o povo: Trouxeram-lhe ouro fino Como rei celestial, Incenso como divino, E mirra como mortal.

Por seu lado, o poeta escreveu no Auto dos Reis Magos: Vão os três Reis Adorar com sentimiento Y mui gran contentamiento El nacimiento Del señor de todas greis. De oro llevam gran presente; Incenso, mirra excelente.

E, ainda, este paralelismo formal na representação dos pastores com suas ofertas: Pastorinhos do deserto Todos correm para o ver: Trazem mil e um presentes Para o Menino comer. Aceitai-me esta oferta Criada no meu pomar. Eu sou um pobre pastor Não tenho mais que vos dar.


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Esta cestinha com ovos É minha recordação: Dignai-vos aceitá-la, Tende de mim compaixão.

E o poeta, no Monólogo da Visitação – a sua primeira obra dramática –, transportando as ofertas dos pastores dos autos do nascimento de Jesus para o do seu Príncipe: Y trae para el nacido, Esclarecido, Mil huevos e leche aosadas Y un cento de quesadas, Y han traído Queso, miel, lo que han podido.

E no Auto Pastoril castelhano: Perdonad, señor, por Dios, Que como somos bestiales, Los presentes no son tales Como los mereceis vós.

Não sendo aceitável que o nosso clero medieval e os fiéis tivessem sido alheios ao intenso movimento dramático-litúrgico que já por volta do ano mil fazia representar estas cenas-mímicas num grande número de igrejas de França, de Inglaterra e da Alemanha, e talvez noutros países, – diz-nos Jeanroy – foi por influência da Igreja que elas passaram para o povo, e foi portanto deste magma que o criador do teatro moderno em Portugal genialmente se aproveitou na composição dos seus autos de devaçam.


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As suas figuras são tão ingénuas, e tão espontânea é a sua linguagem, que Gil Vicente nos aparece como um verdadeiro recitador do estilo oral do meio étnico em que se criou. Portanto: se, literariamente, é a própria língua oral rítmica que Gil Vicente transfere para os seus autos, e se, psicologicamente, não é menos para admirar o número de clichés proposicionais do meio étnico que se incorporam na sua obra – este facto explica, só por si, o largo desenvolvimento que deve ter tido no Portugal medieval a dramaturgia religiosa, por certo nada inferior à de outros países da Europa.



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III O cepo do Natal (*) Atribuem-lhe ritos mágicos e ele é tão cristão como a Cruz: ele proclama a Vida, canta a Natividade; ela santifica a Morte. Ambos símbolos de amor, na mesma expressão religiosa, – um constrói a Família, criando o Lar; – outro, abraçando a Humanidade, cria a Vida-eterna.

É à lareira, queimando o cepo, madeiro, ou canhoto e ouvindo contar histórias, ou entretendo-se com vários jogos – como o rapa-tira-põe-e-deixa, o par-ou-pernão, o subragalhegas e o ferrum-ferrolho – ou cantando loas ao Menino Jesus, que se faz o serão da família, cabendo à pessoa mais idosa da casa ter a tenaz na mão para avivar ou compor o lume. O cepo do Natal, antecipadamente escolhido, preferindo-se de madeira de carvalho, castanheiro, azinho ou oliveira, deve levar um ano a secar (Freixeda: Guarda), e ser bastante grande, porque tanto mais gordo será o porco para a matança do ano seguinte, quanto maior for o cepo (Avelar: Leiria). No Algarve, escolhe-se o madeiro de oliveira – que é a árvore da paz – e nunca de alfarrobeira porque traz a discórdia ao lar (S. Catarina: Fonte do Bispo). Nos campos de Coimbra (Ereira) usam também aquela, porque é um dos 5 paus de que foi feita a cruz: oliveira, palma, cedro, louro e rosmaninho. O cepo deve durar aceso até ao dia de Reis, não ser apagado, mas deixar-se que ele se apague por si, guardando-se o tição que restar para acender nos dias de trovoada – para acalmar a ira divina.

(*) O texto O cepo do Natal corresponde à I parte da colaboração, sob o título Folklore, de Afonso Duarte, na Seara Nova, n.º 194, de 1 de Janeiro de 1930, pp. 19‑21.


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Nalgumas terras do Minho é costume assar pinhas e, tirados os pinhões, guardá-las para deitar no lume quando troveja. É em torno da lareira que o povo se amesenda para a Consoada, a que não deve faltar o famoso prato de bacalhau com batatas e olhos de couve ou tronchos, e polvo cozido com arroz, ou frito com ovos, sem o qual a consoada ficará desconsolada (Vilarelho da Raia: Chaves), e ainda açorda e castanhas (Vilarelho de Tanha: Vila Real). Servida em almofias (distrito da Guarda), a consoada deve ser feita com tal abundância que de tudo sobre bastante, e, no fim, que nem migalha se limpe da mesa, que ficará posta para os Apóstolos. Nalguns povoados, é pouco depois do anoitecer que tem lugar a Consoada, mas ninguém se deve levantar da mesa antes de soar a meia-noite; noutros, conservam-se à lareira até à missa do galo, vindo depois missar (Aldeia da Mata: Portalegre). Além da tradicional bacalhoada, não há dona de casa, com posses, que esta noite não apresente variada guloseima: as sete coisinhas (Castanheira de Pera: Leiria), como se diz por certo em memória dos sete ós ou convites que se davam nas Catedrais, Colegiadas e Mosteiros em cada um dos sete dias que precedem o Nascimento do Menino Jesus. Além do citadino bolo-rei, com sua surpresa, e dos modestos e caraterísticos filhós de farinha, molhados em água quente e açúcar, ou dos belhós de abóbora menina, – moguenga (Lagares da Beira), – jerimu (Barcelos), e das vulgares rabanadas, fatias de parida ou douradas, orelhas de abade ou de frade, coscoréis, sonhos e esquecidos, temos ainda diferentes, no nome, quando não pela própria receita, os celebrados mexidos ou formigos, feitos de pão de trigo com ovos e açúcar, – em Entre-Douro-e-Minho; as «fofas» de bacalhau – em Bragança; floretas, bolo-podre, bolo-mimo, bola-enrolada, pão leve, bola de amêndoa, broinhas de requeijão, doce de abóbora botelha, bolos do acaso (Paul: Covilhã), feitos de leite, ovos, farinha, bicarbonato e azeite, e o famoso bolo terminado em pirâmide e encimado


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por um boneco de açúcar, com seu garruço e compridas barbas brancas, personificando o Pai-Natal, – nos distritos da Guarda e de Castelo Branco; as pitas e pés de abóbora – no de Viseu; os borrachões e bilharacos – no de Aveiro; as broinhas de farinha com uvas passadas e pinhões, as brindeiras, ou rapelhos (Ameal) – no de Coimbra; as merendeiras e bicas de farinha, açúcar e ovos – no de Leiria; as azevias e nogados – no Alentejo; as empanadilhas e seus derivados: filhós de canudo, alcagoitas, e bolinhóis – no Algarve; a aletria doce, com ovos – em muitas terras do País. Em suma: na casa onde, pelo menos, se não fizeram filhós ou belhós, é costume dizer-se «que não conheceram o Natal». Às criancitas, quando vão deitar-se, faz-se acreditar que, deixando elas o sapatinho no poial, ou pial, da lareira, ou na pilheira (Beira Alta), ao outro dia terão muitas prendas que o Menino Jesus, vindo alta noite pelo telhado, e descendo pela chaminé, lá irá colocar, se prometerem comportar-se bem durante o ano. Anunciando o nascimento de Jesus, crê-se que os animais falam na véspera do Natal (Casal de Cinza), e é uso também, neste dia, suspender uns ramos de louro, de hera, de oliveira, ou de murta, às portas dos estábulos, para livrar de mau-olhado (Pínzio, Casal de Cinza, Arcozelo, Fragozela, Mangualde). Ao dar da meia-noite era também costume, há poucos anos ainda, acender todas as luzes, pondo as candeias às janelas, para alumiar ao Menino Jesus (Avelar: Leiria). Também, do Natal para o Ano-Bom, é costume colocar ainda umas mancheias de farinha (uns poios) nas portadas das casas, para se distinguirem das dos Hebraicos (Aldeia do Bispo: Fundão).



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IV A fogueira do galo (*) Não há frio que regele quando as almas se aproximam, diz-nos a Noite de Natal. Ao casebre mais humilde da nossa planície, o salgueiro das valas deu cepos para o lume; na montanha, os toros de lenha vão buscar-se onde os há. Ninguém é dono das matas e há festas para todos. Natal! Nasceu Jesus.

Em quase todas as províncias de Portugal, a Fogueira do Galo canta o seu legendário passado, mas é em Trás-os-Montes, e principalmente, nas serranias das Beiras que ela mantém o seu mais vivo cerimonial. É sobretudo nesta zona de relevos onde ela ainda tem lugar, no Adro ou na Praça, e em torno da qual há rondas, descantes, comezainas e bebidas. Nas outras zonas decai, ou de todo se lhe perde a tradição, limitando-se a Noite de Natal à Festa da Família, queimando o cepo, canhoto, ou madeiro, ou armando simplesmente a importada Árvore do Natal com seus jogos de luminárias e brinquedos para as crianças. Em Paul (Covilhã), na véspera de Natal, depois do regresso do trabalho, os rapazes solteiros, e até homens casados, despertam o povoado, correndo sem destino por todas as ruas, cruzando-se, parando, voltando de novo à mesma correria, numa algazarra indecifrável, como um cerimonial de aves grasnadoras, ou horda primitiva em seus rituais totémicos.

(*) O texto A fogueira do galo corresponde à II parte da colaboração, sob o título Folklore, de Afonso Duarte, na Seara Nova, n.º 194, de 1 de Janeiro de 1930, pp. 19-21.


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Em seguida, apoderam-se de carros de bois e vão carregá-los com toros de castanheiros, puxando eles próprios os carros, sempre em grande alarido, até ao adro da Igreja, onde os descarregam e amontoam para a fogueira. Nesta noite sagrada, toda a vigilância é pouca, para que não levem, para o fogo do Adro, tudo o que possa arder: peças de mobília, os balcões das casas, os terrados dos lavradores, e tapumes e silvados dos pátios e quintais. Uma vez que o roubo entrou no adro, o proprietário perdeu-lhe todos os direitos. Nalgumas localidades, a lenha para a fogueira do adro é oferecida pelos mordomos do Menino Jesus ou dada pelos proprietários, ou ainda é comprada pelos rapazes solteiros a maior árvore que haja na povoação, chegando-se no ano de 1926 a queimar 95 (noventa e cinco) pinheiros, oferecidos pelos proprietários, na fogueira de Vila Ruiva (Fornos de Algodres). É ao festivo repicar dos sinos para a Missa do Galo que começa o fogo na rima de lenha empilhada no adro, estoirando nos ares uma guerra de foguetes e morteiros. Há o costume de espetar no meio da fogueira um varapau com uma caixa de lata no cimo, e dentro dela um galo. Logo que o pau tomba, carcomido pelo fogo, agarram o galo e vão enterrá-lo, deixando-lhe o pescoço de fora. Sorteiam-se então alguns rapazes que, de olhos vendados e de cajado na mão, são conduzidos até ao local sinistro, onde, depois de duas voltas rodopiantes para lhes fazerem perder o tino da direção do local, batem com o cajado no chão; o galo é entregue ao primeiro que lhe acertar. Em vez de um galo também costumam sacrificar um gato, dentro de um cântaro que se ata ao topo de um pau envolvido em palha. Logo que o cântaro cai, desprendido pelo fogo, a selvajaria acaba por correrias sobre o pobre maltês que não soube conservar-se fechado, à ordem da dona, durante os dias que antecedem o Natal (Casal de Cinza: Guarda).


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Outro costume diabólico – não direi como um rito mágico, mas como um evoé das Bacantes que, disfarçadas em Ninfas e Heroínas, corriam de noite pelas ruas, com archotes acesos nas mãos, ou tirsos, e gritavam: Io Bacche! Io Bacche! – repetem os nossos rapazes quando à paulada aos toros de lenha, logo que no ar sobem as primeiras labaredas da fogueira, vão gritando: «Arda o toro! Viva o moro!» (Cadoiço, Vermiosa, Águas Belas, Barroca) ou então: «Ó madeiro! Ó madeiro!» (Sortelha); ou ainda: «Viva o cepo! Viva o Menino Jesus!» (Meda). Uns explicam que é para atear o fogo (Famalicão, Guarda), outros que é para lhe arrancar carvões (S. Pedro de Alva: Coimbra), e alguns que é a desafiar o velho da Fogueira (Vale de Porco: Bragança) – o velho mascarado que aqui nos aparece a personificar o inverno, como em Itália, nomeadamente, a Vecchia di Natali, ou, em dia de Reis, a veneziense Befama. Ouvida a Missa do Galo, a maior parte do povo fica assistindo à fogueira do adro, levando para lá os seus farnéis de figos secos, nozes, amêndoas e bebidas. Em roda do fogo, e pelas ruas, organizam-se rondas, cantando-se até de madrugada ao toque de harmónio, pandeiro, bombo e caixa (concelho de Bragança); ferrinhos, guitarra e rascas (Sampaio: Mogadouro); ferrinhos, concertinas, adufes e pandeiretas (Aldeia Nova, Vale de Lobo, Janeiro de Cima); harmónio, pífaro e ferrinhos (Valongo do Côa, Águas, Penamacor, Folgozinho); realejo, ferrinhos, harmónio e matráculas (Coja, Barril de Alva). Em Barreira, concelho de Meda, alguns rapazes, a que chamam velhas, sobem disfarçadamente à torre da Igreja e dão o sinal de que está acesa a fogueira, tocando o sino. O povo vem então reunir-se em volta do fogo, cantando versos ao Menino Jesus. Na raiana Barrancos (Beja), velhos e novos, ricos e pobres, todos correm ao largo fronteiro da Igreja na Noite Boa; é a rapaziada que, em doida alegria, vai deitar lume à fogueira do adro, e que lá arde, enorme, até ao romper do dia – para que o Deus Menino não tenha frio! – dizem.


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É a noite da Zambomba: uma bilha de barro, um pote, ou um alcatruz de nora, a que se tapa o bocal com uma pele humedecida e ao meio da qual se prende uma varinha – a canabória ou gambôa, a que chamam gamonita. E, esticada a pele, como num tambor, é só passar, com força, a mão encerada, num movimento rítmico vertical, pela varinha, para que se produza o som rouco que acompanha os cantares da noite boa, em volta da fogueira. Enquanto nas grandes lareiras domésticas se fazem os fritos, os brinholos, ou bunhelos, e a Igreja tem as suas portas abertas aos fiéis que vão admirar o presépio e beijar o Menino Deus, no burgo, a rapaziada, ao som das Zambombas*(1), dá largas aos seus cantares durante toda a noite, mau grado os flocos de neve: Esta noche és noche buena, Noche de hacer bunhelos, Pero mi mare (2) nos los hace Por que no tiene dinero. La zambomba pide vino E la gamonita cêra E el mocito que la toca Pide una niña soltera.

(1) Zambomba, em Barrancos, ou ronca, em Elvas, instrumento inventado para imitar o mugir do boi e em cujo ato de magia se quere representar o trabalho dos campos, preludiando já de longe o despertar da primavera; o mesmo instrumento é que se usa na Roménia no acompanhamento dos cantos do Ano Novo, tal como M.elle Réa Ipcar o descreve: «c’est un tonnelet fermé d’un coté par une peau traversée d’une corde de crin, sur laquelle on fait glisser les mains enduites de resines…» (Écrivains Roumains – La Renaissance du livre, Paris). (2) mare = madre = mãe.


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Em Redondo (Évora) cantam à lareira, em volta do madeiro, a seguinte «Noite do Natal»: 1

Romeiros da Boa Nova, Nós cantamos o Natal, Como sempre o têm cantado, Corações de Portugal. Quando Jesus sobre o mundo Poisou a divina face, Não houve pastor na serra, Nem anjo, que não cantasse. Apenas sobre o Presépio Levantou as mãos piedosas, Tremeram todos os astros E abriram todas as rosas. Quando pela vez primeira Jesus chorou o seu pranto, Foi já sangue derrimido, Corações em treva e espanto. Louvado seja Jesus E bendito o seu Natal! Bendito e louvado seja Na terra de Portugal.

2

Esta noite é noite santa, Não é noite de dormir, Que um lindo botão de rosa, À meia-noite, há de abrir.


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