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OSVALDO ÉNIO

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Osvaldo Énio Nóbrega Machado Godinho nasceu no Lubango, descendente dos colonos ali chegados em fins de 1884, formando uma terceira geração como neto da avó paterna, nascida já em Mossâmedes, atual Namibe. Era assim um dos designados “branco de segunda” segundo as leis emanadas da Metrópole e em vigor durante alguns anos. Muito jovem começou a escrever versos e alguma prosa, a que uma precoce atividade radiofónica exercida na rádio local veio tornar mais assídua e volumosa. A sua juventude decorreu abraçada pela Serra da Chela e sob o olhar complacente da Senhora do Monte, sem espartilhos e sem amarras, e moldada pela Solidariedade. Defendia uma independência para todos que o 25 de abril 74 veio precipitar. Os efeitos nefastos da descolonização forçaram a sua fuga para a Metrópole, acompanhado dos familiares diretos. Perante a desorganização e incompreensões encontradas nas forças de segurança, dois anos depois pede a passagem à reserva. Passado algum tempo vai para o Alentejo litoral trabalhar, e perante a colorida natureza que o rodeia e a simplicidade, honestidade e resiliência do seu povo tão sofrido, torna-o um novo e renovado chão, a quem oferece todos os saberes, experiências e competências.

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O Frederico parte da sua pequena aldeia pobre, sem recursos, e vai mobilizado para a guerra em Angola, deixando ficar a namorada com quem pensava casar. Cumprido o tempo abandona a zona de guerra e é transferido para a EAMA (Escola de Aplicação Militarde Angola) localizada na bonita cidade de Nova Lisboa, Huambo, onde passa a instrutor. A Nela não aprova a decisão, pois tem medo de ir viver para Angola, e contra a vontade do Frederico acabam o namoro. Num grupo de amigos conhece a Filipa, com quem se casa e têm uma filha, a Tereza de Fátima. Anos depois Filipa morre de acidente de viação. Devido à situação de insegurança,conflitos decide mandar a Té estudar para um colégio conhecido de Chaves. A Té tem dificuldades em se adaptar à mudança, sofre de depressão, e uma professora que a vem apoiando verifica que a mesma é filha de Frederico, o seu antigo namorado. Frederico abandona com mágoa Angola, vem para Chaves, e casa com a Nela, sua antiga namorada. A Té, já na Universidade, aceita ir fazer um voluntariado numa ONG no Huambo, a sua terra natal. Evale, uma criança de seis anos, encontrada ferida e faminta, após destruição da sua sanzala por um dos movimentos ditos de libertação, afeiçoa-se à Té e torna-se seu protegido. No regresso a Portugal, condoída e com o apoio de todo o quimbo, o Evale acompanha a Té, passando a fazer parte da família.


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FICHA TÉCNICA TÍTULO:

Despertar Osvaldo Énio EDIÇÃO: Edições Vírgula © (Chancela do Sítio do Livro) AUTOR:

Alda Teixeira Marta Deus ARRANJO DE CAPA: Ângela Espinha DESENHO DE CAPA:

ISBN:

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1.ª Edição, Lisboa Junho, 2019

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PAGINAÇÃO GRÁFICA:

978-989-8821-96-6 456155/19

DEPÓSITO LEGAL:

© OSVALDO ÉNIO

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Esta é uma obra de ficção, pelo que, nomes, personagens, lugares ou situações constantes no seu conteúdo são ficcionados pelo seu/sua autor/a e qualquer eventual semelhança com, ou alusão a pessoas reais, vivas ou mortas, designações comerciais ou outras, bem como acontecimentos ou situações reais serão mera coincidência.

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Todos os direitos de propriedade reservados, em conformidade com a legislação vigente. A reprodução, a digitalização ou a divulgação, por qualquer meio, não autorizadas, de partes do conteúdo desta obra ou do seu todo constituem delito penal e estão sujeitas às sanções previstas na Lei.

PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:

www.sitiodolivro.pt publicar@sitiodolivro.pt (+351) 211 932 500

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CAPÍTULO I

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Frederico há muito tempo que vinha assistindo a um duelo agressivo entre as suas emoções e as razões que brotavam a cada momento. Chegado a casa, após mais um dia de intenso trabalho, entendeu ser o momento exato para expressar a sua decisão, talvez dolorosa decisão. Verteu um pouco de whisky sobre o gelo, agitou o copo, sorveu um gole, manteve-o na boca, gozando o seu sabor. O calor convidava a tal prazer! Sentou-se à secretária que havia improvisado, aproveitando uma velha mesa feita de madeira de tacula, e começou a escrever. Chegara a altura de resolverem a situação sem mais delongas. Ou a Manuela decidia abandonar a família e vinha viver com ele para iniciarem efetivamente a vida em comum, tal como tempos antes haviam prenunciado, ou outro rumo teria de dar à sua vida.

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Dois anos haviam já decorrido e ainda nenhuma solução encontrada. Mais ou menos na data aprazada terminara a sua comissão de serviço, a maioria dos seus camaradas do batalhão havia regressado Metrópole, e ele pouco tempo volvido, após um concurso oportuno, acabara de ser admitido como funcionário da JAEA (Junta Autónoma das Estradas de Angola) em Benguela, uma linda e progressiva cidade do litoral centro de Angola, a cidade das rubras acácias e dos seripipis saltitantes. Antes de embarcar no paquete Niassa, cinco anos antes, rumo a Angola, no cais de Alcântara apinhado de gentes diversas, haviam jurado aos pés da Senhora da Conceição, no mosteiro de São Bento de Porta Aberta, um dos locais de peregrinação da sua região, ajoelhados o haviam implorado, que terminada com êxito a sua comissão militar como furriel, pois África absorvia muitas vidas, se uniriam mais tarde pelo casamento, dando assim concretização à paixão que desde muito jovens os arrebatava e os tornava felizes, jubilosos. Na aldeia todos o afirmavam, quando o Frederico regressasse lá da guerra, haveria casamento com certeza. Os pais, tristes e revoltados, abraçaram o filho com amor, o seu único menino, não escondendo o pensamento agreste de o não poderem voltar a ver outra vez. Muitos outros tropas conhecidos haviam tombado para sempre lá nas terras distantes, temerosas e infestas “da África” e nem o seu funeral foi feito, pois os seus corpos ficaram para sempre nas matas afri-

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canas. Os seus familiares, pobres e desvalidos, não possuíam dinheiro para pagar as despesas dessa ultima viagem. O padre João , que ali chegara jovem e hoje com o cabelo pintado de branco, o corpo arqueado e as pernas mais pesadas, casara já os pais da Manuela, assim como a muitos outros enamorados da freguesia, havia apontado na memória um pouco cansada, mais esse acontecimento religioso. Na primeira noite, com a lua a iluminar o convés, por onde deambulavam outros camaradas, refugiou-se sob uma lâmpada e o Frederico escreveu as suas primeiras cartas. Destinatários os pais e a Manuela. Pouco tinha a dizer. Que os amava muito, que o futuro o assustava e que rezassem para que regressasse “inteiro e com saúde”. Presciente olhou as estrelas procurando qualquer sinal, mas não o vislumbrou. Durante os oito dias que o vapor Niassa levou até chegar a Luanda, o Frederico manteve o ardor de escrever duas cartas todos os dias, alterando apenas as horas a que o fazia. Naquele dia quase todos se levantaram mais cedo e encostaram-se à amurada do navio, olhando curiosos e surpresos a cidade que se estendia perante a sua vista. O calor e a intensidade luminosa que os envolvia foram motivo de estranhamento. Os prédios altos e elegantes, o casario colorido disperso pelos montes, o movimento dos transeuntes e viaturas, tudo despertava a sua curiosidade e espanto. Como era grande e bonita a cidade. E como se vestiam as pessoas. E tantos brancos e pretos andando juntos e conversando.

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Afinal onde estava a guerra que o obrigara a si e a tantos outros, deixar as suas terras? Formado o batalhão, tal como o faziam todos os dias, mas hoje envergando a chamada farda de sair como havia sido determinado na véspera, disciplinarmente foram descendo as escadas do navio, integrando-se na formatura que o capitão Marcelo ia orientando, de tal sorte que os dois batalhões que chegavam desfilassem a partir das dez horas pela chamada Avenida Marginal, como estava a ser costumeiro. Era sempre uma ocorrência emotiva para os militares que marchando com galhardia, recebiam o apoio,os aplausos e o carinho da imensa e heterogénea multidão que ali acorria, e que se estendia ao longo daquela moderna e bela avenida. Após uma adaptação de dez dias no Grafanil às características climatéricas e aos tramas da guerrilha, formando uma coluna militar o seu batalhão deslocou-se para a Vila do Quibaxe, situada na martirizada zona dos Dembos e município do distrito do Kuanza Norte, que pertenceu ao antigo reino do Congo, cujo Rei residia na capital chamada Mbanza Kongo, atual capital da província do Zaire,percorrendo para o efeito duzentos e vinte quilómetros por uma estrada asfaltada, mas recheada de perigos e armadilhas. Esta estrada ficou conhecida pela “estrada do café”pois era através da mesma que se escoava toda a produção cafeícola dos distritos do Kuanza Norte e Uíge, e por onde circulavam o que chamávamos MVL (coluna auto civil de abastecimentos) muitas vezes flageladas de longe sem consequências maiores.

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Na altura presente, estamos em 1962, e todos nesta zona de guerrilha temiam o “mata alferes”, de seu nome António Fernandes, furriel desertor do exército português, presumindo-e hoje que o mesmo tivesse morto quinze alferes, ignorando-se a causa ou causas motivadoras dessa atitude. Simples vingança por ter sido preterida a sua promoção ou a ação deliberada de eliminar a cadeia de comando que era normalmente utilizada. Mais a norte, e anos depois, distinguiu-se pela sua crueldade o comandante da FNLA Pedro Afamado, a quem foram atribuídos diversos ataques a aquartelamentos e a concretização de várias, bem cuidadas e devastadoras emboscadas. Em toda a região vulgarmente chamada dos Dembos, as minas anti pessoal e anti carro foram sempre o inimigo mais temeroso e derribador face ao grande número de engenhos, alguns de fabrico artesanal, indiscriminadamente implantados e também à sua difícil e morosa deteção, que afetando gravosamente o ânimo e a fortaleza dos nossos soldados, tornavam difícil a sua constante e imprescindível superação. As companhias do nosso batalhão ficaram sediadas no Quibaxe(sede) Terreiro, Pango Aluquem, Úcua e Piri distribuindo alguns pelotões por povoações mais pequenas e fazendas de café (as roças), a fim de aí garantirem o trabalho e este a exploração de recursos que determinavam o desenvolvimento económico e financeiro de Angola. Eram deploráveis as condições que os nossos soldados tinham de suportar. Sem instalações que os abrigassem do tempo e do inimigo, e igualmente a alimentação não acompa-

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nhava o esforço dedicado. Uma companhia sediada no Quixico esteve quinze dias comendo apenas arroz com chouriço, pois não era possível o seu reabastecimento. Outros comiam apenas as rações de combate, nestes primeiros tempos pouco nutrientes e sem valor calórico. Logo que o Frederico vislumbrasse algum tempo de descanso, enquanto os seus companheiros jogavam às cartas ou se divertiam com conversas de todo o tipo, sentava-se a escrever, aproveitando todos os espaços que os pequenos aerogramas (mais conhecidos por “bate estradas” oferecidos pelo SPM) para falar um pouco de si, como ia vencendo os dias (sempre marcados no calendário logo pela manhã) como estavam as coisas na terra distante e as novidades com maior interesse. Para a Manuela, reservava palavras bonitas, doces, que falassem de saudades, ternura e amor, e de como era triste estarem tão longe um do outro. A distancia que os separava era grande, mas o seu amor era ainda maior. – Oh apaixonado ... Vê se pensas noutras coisas. Não fazes mais nada a não ser escrever ... escrever ... Vem mas é beber umas “bjecas” e esquece as saudades – brincavam os camaradas mais íntimos. – Deixa os gajos falar à toa. Faz o que entendes ser melhor, pois cada um sabe de si ... e aqui neste ambiente ... tudo é mais difícil – apoiou o Aníbal, um camarada com quem estabelecera já laivos de alguma amizade durante a viagem de barco. Eu farei tudo para não mudar os meus princípios e espero voltar inteiro. Há por aqui muita malta que não interessa.

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Quando a pequena e frágil avioneta civil da EVA (Esquadrilha de Voluntários do Ar) mais tarde justamente integrada nas Forças Armadas Portuguesas como FAV(Força Aérea Voluntária) chegava, todos pensavam na abertura do saco e consequente distribuição de cartas e outras encomendas. Fazia-se então um silencio. O silêncio da saudade e da recordação. Por momentos tudo parava no pequeno aquartelamento. Algumas lágrimas surgiam e também por vezes imprecações ... revolta ... azedume. Havia sempre alguém que não fora contemplado. E isso magoava .... entristecia ... tornava mais desabrido esse dia. Mesmo os mais temerários sentiam o desânimo. Faltava naquele momento a vitalidade que as palavras comportam, e vinha a astenia. Os aerogramas, oferecidos pelo eficiente Serviço Postal Militar, e as cartas ditas normais eram lidos apressadamente a primeira vez ... e depois com a euforia e exaltação mais contidas ... uma nova leitura era feita, mais calma, mesmo mais saborosa ... mas apareciam algumas que por desviantes trilhos do destino poderiam ser amargas, dilacerantes. Continham as más notícias. Alegria na sempre ruidosa receção e logo de imediato uma interrogação sobre o conteúdo ali expresso. Havia o perigo de uma coletiva decadência emocional que viria a aumentar as doenças mentais (as demências) em razão do tempo de exposição imane ao perigo e da intensidade das ocorrências.

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A FAV, que depois foi reforçada com cinco Austers adquiridos por subscrição pública, passou a cumprir, além das até ali desempenhadas como transporte de doentes e feridos, reabastecimentos e correio, voando com condições climatéricas adversas e pousando em picadas de piso traiçoeiro e em pistas improvisadas, sem condições de segurança, missões militares, mormente RVIS, tirando assim vantagem do conhecimento que tinham das vastas zonas onde se desenrolava a guerrilha. Em 1975, ao ser extinta, os seus pilotos formados nas escolas dos vários Aero Clubes, com as mais díspares profissões e atividades, foram promovidos ao posto de tenente da Força Aérea, por mercê da sua dedicação, espirito de sacrifício e valentia, generosamente postos ao serviço da Pátria. Compassadamente Frederico e restantes companheiros ia-se adaptando ao novo estilo de vida, procurando cumprir da melhor maneira as variadas missões que eram atribuídas e de acordo com as responsabilidades que o seu posto de furriel comportam. A zona de ação atribuída à Companhia a que pertencia, era localizada em plena região dos Dembos onde a atividade do inimigo se mantinha constante e destruidora através de emboscadas, implantação de minas anti carro e anti pessoal e ataques a fazendas, empenhados em praticar o maior número de baixas militares e civis, buscando a sua desmoralização. Uma multiplicidade agreste de sentimentos de penosa interpretação a todos ia corroendo.

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Os primeiros mortos e feridos abalaram a tenacidade e a determinação que a todos aglutinava. Enterrar os companheiros ali mesmo ao lado do quartel, apenas com as honras militares da praxe, marcou-o profundamente. Como era triste,ingrato e pesaroso ali ficarem sem o carinho dos familiares, que lá longe sofriam ainda mais a dor de tal perda. Os meses foram correndo e os acontecimentos passaram a ser rotineiros, mesmo quando o inimigo se revelava mais ativo. Com todas as suas nefastas consequências o langor e a indolência começaram a tornar-se a companhia de muitos. Frederico mantinha a correspondência em dia, pois todos os momentos de descanso ou lazer ele aproveitava para dar notícias aos pais e à Nela. Para não os inquietar ainda mais, falava de coisas banais, mandava algumas fotografias que tirava junto aos cafeeiros para apreciarem a sua linda flor, e que todos estavam bem. Para a namorada eram sempre escolhidas palavras de amor, de saudade e do mês do casamento, que dia a dia se ia aproximando, encurtando a distância e o tempo, pois o pensamento permitia esse privilégio. Porém as operações militares tornavam-se mais frequentes e dificultosas devido à época das chuvas. As picadas eram buracos, as viaturas ficavam atoladas e as árvores tombadas pela força do vento obrigavam a um esforço extra. As forças dos movimentos MPLA e FNLA, embora se

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digladiassem quando se encontravam, aumentavam a sua atividade bélica. Locais como Maria Tereza, Maria Manuela, Quicabo, Canda, Quipedro e outros mais exigiam uma defesa permanente. As roças eram normalmente protegidas pela Guarda Rural, uma força militarizada profissional, integrada mais tarde na PSPA que servia na zona operacional, vinda da OPVDCA, elementos valentes, belicosos e destemidos, profundamente conhecedores do terreno e dos modos de atuação do inimigo. Viviam em fortins (chamados destacamentos) construídos estrategicamente nas zonas de atuação do inimigo e dali partiam em socorro das roças atacadas ou de vitimas de emboscadas. Deslocando-se apenas em uma ou duas viaturas (jeeps land rover) eram implacáveis na retaliação, sendo conhecido o temor que o adversário demonstrava pelos mesmos, evitando o seu contacto, pelo que utilizava com frequência minas anti pessoal e anti carro para os deter. Nos convívios e deslocações que efetuava, foi tendo conhecimento do modo de vida em Angola, características das suas gentes, possibilidades de trabalho perante o desenvolvimento que se pronunciava, pelo que começou a estudar a hipótese de não regressar à terra materna quando terminasse a comissão que lhe fora imposta. Com agrado, e porque lhe interessava para compor a sua decisão, começou a observar que igual desígnio também era demonstrado por alguns camaradas.

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Mas uma grande e premente interrogação simultaneamente começou a surgir. E a Nela? Como iria ela reagir perante uma decisão que nunca fora considerada entre os dois? E os pais, como iriam aceitar a sua nova e desconcertada proposta? Suave e dissimuladamente começou a colocar nas cartas as suas recentes ideias, a busca dum futuro melhor e que não encontraria na sua região, as facilidades de um emprego capaz e estável neste grande território que tanto oferecia a quem o quisesse trabalhar e amar. Da parte dos pais sentia algum apoio, embora muito discreto. Porém a Nela, começou a revelar impaciência, dúvidas e a por várias interpolações sobre um futuro imediato. Não escondia a sua desconfiança e mesmo confronto com as notícias que ia recebendo. – Já não gostas de mim? Arranjaste aí outra mulher para mudares assim tanto de opinião – atrevera-se ela a desabafar na resposta que escrevia. Frederico, após muita meditação, arranjou força para explicar com bastante suavidade e meiguice aos pais e à Nela que gostaria de continuar ao serviço mais um ano, pois tal decisão só arrastaria vantagens. Teria a possibilidade de juntar mais dinheiro e provavelmente seria transferido para um zona mais calma, tal como vinha sucedendo com outros colegas que haviam procurado a mesma situação. Não ignorava que em consequência as saudades da sua terra e familiares aumentariam e que a relação amorosa com

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a Nela poderia entrar numa fase de instabilidade. Mas no seu caso a distância não faria esquecer. Os pais, com alguma tristeza, foram construindo a ideia do afastamento continuado do filho, mas como era para melhorar a sua vida, saberiam viver com esse sentimento tão puro que é a saudade. Poderia vir visita-los mais tarde, se ainda estivessem com vida, tal como haviam praticamente assentido. Relativamente à Nela, decidiu adiantar pouco convicto, que na decorrência desse terceiro ano seria realizado o apetecido casamento, ou com a sua presença ou por procuração, consoante as circunstâncias envolventes no momento. Com algum azedume a Nela desenvolveu os seus vários e muitos queixumes, afirmando sentir-se abandonada ou trocada por outrem e que iria pensar e aconselhar-se. Quando puder, direi alguma coisa sobre nós, pois não gosto de brincar aos casamentos, escreveu a terminar mais uma carta. Na data oportuna, pois aproximava-se o fim da comissão, o Frederico decidiu então fazer o requerimento onde solicitava a continuação da sua prestação militar por mais um ano, tornando-se assim mais um “chico” como era conhecido na gíria militar quem pedisse esse prolongamento. Devido à situação militar que se vivia e à falta de efetivos que sempre marcou o tempo da guerrilha, o requerimento foi devidamente aceite. O batalhão que os iria substituir já havia chegado e aguardava apenas a sua deslocação para aquele Setor. Esperavam

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a todo o momento a chegada dos “maçaricos” e dar-lhes as boas vindas, sempre inopinadas e astutas conforme se tornou tradicional. Quando o seu batalhão embarcou em Luanda de regresso à Metrópole, ali estava ele no cais a despedir-se dos seus camaradas, com aquele abraço que traduzia a comunhão e diversidade de pensamentos que só os combatentes sabem dar e sentir. Teria feito bem em ficar? Ao ver os camaradas subirem o portaló a indecisão tombou sobre ele. Pelo menos para outro campo menos deletério seria transferido após tanto tempo cumprido em zona operacional. Mas como seria o seu amanhã nesta terra diferente? – Bolas, ainda tenho um ano para pensar. Agora está feito ... feito está. Terei apenas de ser forte, sensato e audaz. Abraçou os outros três companheiros que como ele tinham resolvido ficar, embora já como civis, e que ali se deslocaram igualmente para dizerem adeus aos seus camaradas de tantos dias de incertezas, desânimo e angústias. Com mágoa e saudade recordaram os companheiros que haviam tombado ao longo das muitas ações, emboscadas e minas, levadas a efeito pelo inimigo, os ditos “turras”. Depois de alguns dias na CCS do Quartel General, recebeu guia de marcha para se apresentar na EAMA (Escola de Aplicação Militar de Angola) situada em Nova Lisboa, único estabelecimento militar dedicado à formação dos novos efetivos (os recrutas).

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Até 1966 o COM (curso de oficiais milicianos) era feito na Escola Prática de Infantaria em Mafra. Logo de início ficou agradado do que vira e da forma como fora recebido. Devido à experiência que havia adquirido na zona operacional dos Dembos, considerada a de maior conturbação, foi colocado na primeira companhia de instrução (formação de cabos milicianos que depois de frequentarem o CSM eram promovidos a furriel) comandada pelo capitão Fernandes, e mais diretamente no segundo pelotão sob o comando do alferes Santiago. Logo o alertaram para o feitio do capitão Fernandes, um militar exigente, disciplinador, arrogante, e que só sabia viver para a “tropa”. Depois de indagar Frederico teve a sorte de encontrar uma vaga na messe de sargentos, edifício que se encontrava localizado numa das zonas mais desenvolvidas da bonita cidade, o que financeiramente muito facilitava o gozo de uma vida normal, isto é, sem despesas exageradas. Tudo isto ele ia contando minuciosamente aos pais e à Nela, mencionando sempre o amor que por ela continuava a sentir e o propósito de se casarem, apenas essa oportunidade fosse familiarmente definida. Os pais continuavam a revelar o seu apoio às decisões que o filho ia assumindo. Relativamente à Nela já ele não percecionava o mesmo. Sobre todos os assuntos mostrava um interesse superficial,

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pouco complacente, chegando a determinada altura a afirmar que iria pedir conselhos ao padre João, sobre como deveria proceder no futuro. Depois do programa de instrução devidamente ponderado e pormenorizado, com as cerimónias militares da praxe, deu-se inicio à instrução dos novos soldados, futuros furriéis. Foi um período de exigência, estudo, dedicação e sacrifício distribuído por aulas teóricas, preparação física militar, técnicas de combate em guerrilha. Confrontado em ocasiões diversas por memórias verdadeiras e memórias falsas, ia recordando o que havia passado no teatro de guerra para melhor preparar os seus instruendos. Como meta apontava-se uma preparação adequada para a eficiência e capacidade dos futuros sargentos perante as diversas missões de combate e paz que iriam encontrar nas zonas de intervenção, onde o inimigo atuava com astúcia e boa preparação, como sucedia com os elementos do exército da FNLA, uns oriundos do exército zairense e outros da própria região dos Dembos. Marchas longas e duras, noites passadas nas matas com ou sem tendas montadas (bivaque) e respetiva proteção contra ataques perpetrados por grupos de colegas desfigurados em inimigo. Tinha sempre o propósito de nunca infirmar o modo de atuar dos guerrilheiros, pois era esse o pilar dos treinos. A caminhada sobre o pórtico, o salto do galho, o muro das “osgas”, a travessia da chamada “lagoa do recruta”, as marchas longas carregando todo o equipamento e as provas de

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orientação, eram ações que exigiam decisão, valentia, esforço e ousadia. Frederico depressa se inseriu na comunidade local, militar e civil, tornando-se num cidadão respeitado e considerado. A sua maneira de ser e estar, revelando uma lepidez constante e pulcritude também, sem olvidar contudo uma alinhada posição militarista, começou a conquistar o mundo feminino, sendo convidado para diversas festas e reuniões particulares, onde estavam presentes muitas jovens que aquela cidade tem o privilégio de albergar e que eram sempre apreciadas pela sua deslumbrante beleza e simpatia. O período de recruta decorreu sem incidentes de maior e assim chegou o juramento de bandeira, a cerimónia maior e mais emotiva de todas. É uma festividade militar onde os instruendos põem à prova as aptidões e conhecimentos adquiridos ao longo do tempo de recruta. É a demonstração pública das competências então absorvidas. Superar a sua capacitação individual era agora o seu objetivo. Presentes as mais altas entidades militares, civis e religiosas e muitos familiares dos soldados intervenientes, amigos e muita população, sempre apreciadora e presente nestes acontecimentos. Quebrando o silêncio profundo que caíra sobre o local, os novos cabos milicianos, apontando a mão direita em direção à Bandeira Portuguesa, com voz forte e bem tonante, juraram servir a Pátria, “dando a vida por ela se necessário.”

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Após a atribuição dos diplomas de louvor àqueles que mais se distinguiram, onde estava incluído o furriel Frederico, deu-se início ao desfile de todo o efetivo da Escola, que ali se encontrava integrado que, como militares mais antigos, estavam a testemunhar esse ato sublime e a demonstrar o seu apoio e confiança aos mais novos. Seguiu-se pouco depois uma demonstração das capacidades e competências militares interiorizadas pelos instruendos. Progressão em combate com disparos e rebentamento de granadas, saltos de viaturas em movimento, exercícios de aplicação militar, ginástica aplicada, exercícios diversos sincronizados, isto é, executados sem comando. A demonstração expansiva, vibrante e alegre da assistência com os seus aplausos, foi o prémio merecido por todo o trabalho desenvolvido e a confiança no seu percurso ao serviço da Pátria. Toda a sua participação na vida militar e o modo sereno como decorria a sua estadia no meio social da cidade, o Frederico mencionava, umas vezes mais minucioso, nas cartas que escrevia aos pais e à Nela. Para a namorada, perante a sua costumada insistência, buscava mostrar da melhor maneira as razões porque havia decidido ficar em Angola mais um ano e aguardar o final da sua vida militar para regressar ou ou pelo menos ir matar saudades e conversar com todos. Cada dia mais ele se ia convencendo que o seu futuro estaria em Angola, onde a explosão económica permitiria a

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obtenção dum emprego estável, o que não seria possível na sua região pobre e sem melhores condições de vida. Todavia o comportamento e a teimosia da Nela causavam-lhe preocupação e algum esmorecimento. Neste momento da sua vida era o impedimento que mais o preocupava e começava a ser urgente resolve-lo. Temia ser conduzido por caminhos vazios de esperança. Tal como se passava noutros estabelecimentos militares, à Escola começaram a chegar convites aos militares prestes a passar à disponibilidade e a outros de várias entidades para ingresso nos seus quadros, tais como a PSP, OPVDCA (Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil de Angola), PIDE, PJ (Policia Judiciária) e ainda outros serviços do estado e civis. De todos os que tentou conhecer melhor as condições e progressão de trabalho e as respetivas regalias, optou pela JAEA (Junta Autónoma de Estradas) que logo de início oferecia uma formação prolongada sobre a gama de conhecimentos a aplicar na construção de estradas e similares.

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CAPÍTULO II

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A situação que Angola vivia, induzia ao melhoramento e construção de várias vias de circulação, as quais pudessem fazer face e aumentar as ligações e o escoamento dos seus imensos produtos. A imensidão do território clamava por estes novos caminhos onde pudesse circular com eficiência a sua seiva regeneradora, alicerçando o desenvolvimento económico e a consequente melhoria de vida das suas populações esparsas pelos mais recônditos lugares. Percecionava por isso ser um lugar de futuro e onde poderia oferecer todo o seu entusiasmo e adquirir inúmeras competências que viessem a construir um bem estar ao longo da vida. Um pequeno grupo de amigos, na sua maioria camaradas, alguns pertencentes ao RI21 (Regimento de Infantaria) que ficava vizinho da Escola, algum tempo depois tornou-se grande, incluindo como então se dizia malta civil e muitas miúdas, estudantes ou não.

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Encontravam-se bastas vezes nos cafés, cinema, festas, refeições, etc, procurando sempre um motivo para se juntarem e divertirem. Raramente se deslocava no carro sozinho, e muitas vezes acompanhado de simpáticas moças, pois a verdade é que era ele próprio quem procurava “uma coincidência” para dar uma boleia. Mas também era verdade que nenhuma negava essa oportunidade. No meio delas a Filipa despertou a sua atenção, logo quando teve o ensejo de a conhecer. A cena desenrolou-se durante um dos vulgares assaltos de carnaval, desta vez em casa do furriel Semedo, um dos seus primeiros amigos. Quando entrou na sala, depois dos cumprimentos efusivos e habituais já no meio de toda a animação, colocou a garrafa de vinho na mesa, a participação que lhe coubera em sorte, e olhou em volta para ver quem estava presente e não pertencia ao seu grupo. Encostada a uma das paredes, pois não havia cadeiras na sala para não tirarem espaço aos divertidos dançarinos, reparou numa jovem levemente tisnada, de olhar triste, mostrando um pensamento distante ou mesmo ausente do que ali se passava. Curioso, mas também impelido para a necessidade de uma ajuda, abeirou-se dela. Cumprimentando-a cordialmente, buscando as palavras certas para não a magoar, procurou saber a razão, se a havia,

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originária daquele comportamento perante o que à sua volta animadamente evoluía. Fitou-me com os seus olhos negros e tristes, pensou por instantes e respondeu-me apenas que estava cansada e sem vontade de acompanhar a diversão. Fiquei confuso, mas resolvi ficar a seu lado, não respondendo ao apelo que me fizeram para colaborar na festa. Consegui provocar alguma conversa e muito a custo informou-me que pouco tempo antes tinha perdido um ente querido, e que só ali estava por insistência duma colega e amiga que muito estimava. Começámos a opinar sobre a importância da unidade familiar na formação plena dos mais jovens e da própria sociedade para se evitarem comportamentos incorretos e incomuns. Abordamos o sentido da vida e a causa da morte. Fiquei a conhecer que frequentava o último ano do liceu nacional General Norton de Matos, curso de ciências, e que pretendia seguir a licenciatura de Investigação Agrária no Instituto de Investigação Agronómica que abrira recentemente na Chianga, nos arredores da cidade Huambo. Tem como principal finalidade realizar trabalhos de investigação aplicada e adaptativa e o desenvolvimento tecnológico, que visam o aumento da produção e da produtividade, melhorar a qualidade dos produtos, reduzir os custos de produção e viabilizar o aproveitamento das áreas subaproveitadas para a exploração agrícola e florestal.

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Como era uma amante da natureza, uma ecologista praticante, defensora acérrima de todas as benesses que a mesma nos oferece, entendia que essa deveria ser a sua opção. Fomos à mesa buscar uma bebida e pastéis e calmamente continuamos a conversar, imbuídos em saber o conceito de cada um perante vários acontecimentos ou cenários, longe do bulício que nos cercava. Pelo que a vida me revelara até então, senti estar perante alguém possuidor de um espirito diáfano, sereno. Instintivamente agarrei a sua mão e fomos dançar. Ficámos surpresos com o resultado. Uma salva de palmas, risos e vivas ecoaram. O nosso afastamento tinha sido observado e já muito comentado. Dançámos e conversámos, sós ou com os demais companheiros, até chegar o final do convívio carnavalesco. Gostava de a levar a casa, porém como havia vindo noutra viatura com os colegas, apenas lhe murmurei essa intenção, pois adivinhava uma resposta negativa, o que era natural face ao que havia sabido sobre a sua integridade de carácter, equidade e justiça, tudo através da conversa que tivéramos. Sentia uma vontade reforçada para no dia seguinte estar à saída das aulas da manhã para levar a Filipa a casa. Foi com muito esforço que o não fiz. Para evitar qualquer quebra, resolvi almoçar na Escola. Todavia dias depois urdi um encontro “casual”. Sabendo o caminho que percorria para chegar a casa, à hora aconselhada percorri o mesmo e parei a seu lado.

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Saí da viatura e depois de a cumprimentar tentei, esperando encontrar da parte dela alguma eupatia. – Gostaria de te levar a casa, não te importas? Ela sorriu, um sorriso lindo, e respondeu: – Aceito. Obrigado pela tua atenção. Costumas passar por aqui? Nunca tinha reparado. É uma estrada sossegada. Senti-me como uma criança apanhada a fazer uma traquinice. – Muito raramente. Vou normalmente pela avenida da Granja. Aconteceu passar hoje. Vou almoçar à baixa. Pelo trajeto tivemos uma conversa informal até deixa-la no portão de entrada da sua casa, localizada numa rua calma e cheia de arvoredo. Escamoteando a pergunta Frederico procurou junto de seus amigos saber mais algo sobre a Filipa. Pertencia a uma família modesta, bem considerada, era pouco vista em festas ou outros eventos, boa aluna e companheira. Ao findar de uma tarde amena, quando procedia ao inventário do armamento utilizado na recruta que terminara há pouco, foi chamado à secretaria da Companhia a fim de lhe ser entregue um telegrama emanado da sua terra. Ansioso, pois na última carta a mãe referia que o pai não se encontrava bem, andando por esse motivo a fazer uns exames, abriu o documento e leu pesaroso: “Pai faleceu esta noite. Abraços João”

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Consternado, desconcertado, num decorrer rápido viu as imagens da sua meninice e juventude, onde a figura austera, trabalhadora e honesta do pai o acaricia e mima. Adorava o pai e orgulhava-se de toda a sua vivência, cheia de dificuldades e sacrifícios, para que ele e o irmão mais novo João pudessem crescer com dignidade e o respeito da pequena aldeia. E decidiu resoluto. Era a altura de ir a casa. Infelizmente já não verei o meu pai, mas será a minha homenagem e o meu agradecimento pelo amor que sempre me concedeu e o conforto e apoio para minha mãe, sua companheira afetuosa ao longo dos anos e pilar aglutinador e dedicado de toda a família. Ele continuava a trabalhar numa rica quinta de um latifundiário que se dedicava à produção de vinho. Quando chegava a casa, cansado e por vezes mesmo esgotado, vinha carregado de lenha, e ainda ia tratar do pequeno pedaço de terra que tínhamos junto da casa, e onde íamos colher legumes, hortaliça e fruta para nossa subsistência, pois o salário que recebia era pequeno e a isso obrigava. Minha mãe também o ajudava nesses trabalhos, aproveitando o resto do tempo para preparar as nossas roupas, fazer a comida e ocupar-se com dedicação dos outros trabalhos de casa. Não tínhamos água nem luz tal como toda a aldeia e o calor da lenha a arder dava-nos um pouco de conforto. Era aí que a família se reunia antes da deita. Por falta de apoio e decisão dos responsáveis sabia que esta situação incómoda ainda afligia a população ali residente.

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Talvez buscando algum conforto e estabilidade, imediatamente procurou contactar a Filipa, contando-lhe o que havia sucedido e o que se propunha fazer. Esta concedeu-lhe o seu apoio integral, incentivando-o mesmo a seguir o seu desejo. Era o reconhecimento sincero à tenacidade do pai que o amara e o tornara, mesmo com muitas dificuldades e coações, num homem justo, honesto e destemido. Obtida de seus superiores uma licença para se deslocar à Metrópole, junto da agência de viagens Avinter adquiriu com facilidade a passagem de ida e volta para Lisboa. Arrumou numa pequena mala o que julgava mais necessário, e na tarde do dia seguinte tomou o seu lugar no avião da DTA para Luanda, e a meio da noite no aeroporto General Craveiro Lopes embarcou num dos novos aviões da TAP rumo à capital do País. Depois na estação de Santa Apolónia tomou o comboio para o Porto, aí aguardando a partida de igual transporte que parava na pequena estação situada a cerca de três quilómetros da sua pequena aldeia. Por ausência de qualquer transporte, com mais quatro companheiros de viagem, um deles já conhecido desde a mocidade pois foram colegas nos estudos, lá seguiram a pé em direção à aldeia. A primeira coisa que fez quando chegou a casa foi consolar sua mãe que chorava convulsivamente amparada por algumas vizinhas.

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Como era tradicional o traje negro cobria todas as mulheres. Aliás tornou-se comum vestirem-se assim, compondo a cabeça com um lenço de cor igual, desde que os seus meninos começaram a partir para a guerra que se desenrolava nas terras distantes e misteriosas de África. Aproveitando um momento de calmaria, Frederico procurou informar-se da causa de morte do pai, pois desconhecia o seu verdadeiro estado de saúde nos últimos tempos. Possivelmente devido ao peso da lenha que trazia ao ombro e ao piso escorregadio devido à neve, caíra já perto de casa, tendo por ventura batido com a cabeça numa pedra, uma vez que apresentava uma ferida ligeira no lado direito do crânio. Reergueu-se com alguma dificuldade, e retomou o caminho, dando conta do sucedido quando entrou em casa. A mulher pretendia leva-lo ao hospital para ser visto pelo senhor doutor, mas perante as dificuldades de tal deslocação e ao feitio do marido que não gostava de hospitais, aceitou o pedido deste para lavar a zona atingida e por uma pomada que lá tinham para cicatrizar as feridas. Assim foi feito com todo o carinho.Depois comeu uma sopa bem quentinha e foi deitar-se por estar cansado devido às tarefas do dia. A noite decorreu serena e a mulher ao acordar levantou-se sem provocar barulho, pois o marido encontrava-se a dormir e não queria interromper o seu descanso. A meio da manhã, estranhando não o ver levantado já, pois era sempre cedo que o mesmo o fazia para cumprir o seu

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horário de trabalho, foi ao quarto chama-lo, não tendo obtido resposta. Ao tocar no marido sentiu-o frio e inerte, concluindo que o mesmo estava morto. De imediato pediu socorro e alertou os vizinhos que ali acorreram estupefactos. Como era possível tal acontecer? Terminadas as muitas diligências imprescindíveis, dois dias passados foi realizado o funeral para o cemitério construído na aldeia próxima, mas que impunha a utilização de viaturas, pois a distância assim o constrangia. Dentro do espírito consuetudinário daquela região foi o corpo inumado. Prescindindo da companhia da Nela que mostrara interesse em o fazer, achando ter chegado o momento oportuno, Frederico deslocou-se àquele local considerado santo, e ajoelhado junto à campa do pai estabeleceu uma conversa, como se recebesse alguma resposta. – Obrigado Pai, és o meu herói, o meu exemplo! Acompanha-me em todos os passos que terei de dar para vencer na vida. Ensina-me a ser forte e justo. Dá-me ânimo quando eu estiver mais fraco e indeciso – terminou enquanto as lágrimas lhe escorriam pela face. Mau grado tudo o que vira e sofrera na zona de guerrilha, onde a morte é a companhia constante, a barbárie campeia, a vingança ensombra, não estava preparado para se despedir assim do Pai, seu amigo e companheiro. Os dias seguintes foram passados a confortar a mãe e a procurar resolver nos diversos serviços e entidades todos os

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variados e sempre complicados problemas que uma situação destas arrasta. – Tens de conhecer bem todos estes casos, pois a mãe não será capaz de os resolver e com a família nem sempre se pode contar – alertou o seu irmão mais novo e único. Aproveitando algum tempo disponível procurou contactar os familiares e amigos ainda ali residentes. Ficou a saber que muitos haviam dado “o salto” em busca de uma vida mais próspera e segura, e outros para fugirem à guerra, onde haviam já tombado para sempre alguns companheiros e outros jovens das aldeias vizinhas. Bastas vezes a Nela era a sua companhia, aproveitando para falarem sobre o seu namoro, o casamento e o futuro, sempre imprevisível, que unidos pretendiam construir. A Nela assumia uma posição defensiva, dúbia até, revelando não pretender afastar-se da família, da região e mesmo do país. Um dia, na exaltação da conversa, afirmou perentoriamente: – Não quero ir para África. Existe a guerra e não há condições para viver. Vê quantos amigos e conhecidos nossos já morreram e ficaram por lá no meio do mato. A família nunca recebeu o corpo e por isso ainda não fizeram o funeral, continuando a fazer o luto. Não me peças mais para ir. Vem tu para cá. Foi aqui que nasceste! – Estás a levar a tua teimosia longe de mais. Há circunstâncias na vida que nos obrigam a parar para pensar e só depois decidir. Tu não conheces Angola, ignoras o seu desen-

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volvimento e as suas capacidades. É o local ideal para começarmos a nossa vida. Já reparaste na pobreza que grassa por aqui? É um país onde não existe o amanhã para jovens como nós. Não quero emigrar para França ou outros países, pois não aspiro a viver em bairros de lata e fazer trabalhos de baixa remuneração. A Nela não se mostrou convencida com o argumentário apresentado pelo namorado. Fez uma proposição após alguma meditação. – Vamos deixar passar algum tempo. O destino irá marcar a sua vontade pelo que não deveremos antecipa-la ou mesmo levantar qualquer interferência. Frederico embora não convencido aceitou porém a sugestão feita. Implacável o dia da partida chegou. Entristecido beijou repetidamente a mãe, pois dizia-lhe o coração que esta poderia ser a última vez que sentia a sua doce retribuição, olhava os seus olhos ainda brilhantes e acariciava o seu rosto enrugado. Embora desafiada, sempre recusara abandonar a sua casa modesta e a pouca terra que a circundava e que tratava com esmerado carinho. Era a fonte onde ia buscar o suficiente para viver. Era ali para beber forças para prosseguir. Com mágoa sentou-se no lugar que lhe fora destinado no avião, recordou a sua pequena e velha aldeia, os familiares, a

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Nela, amigos e os seus tempos de criança, prenhe de carências mas farta de mimos e de amor. Sentiu outra vez os seus pésitos indefesos pisando a água da chuva e a neve, levando a sua bolsa de pano pendurada no ombro, carregando os livros e um pedaço de pão com chouriço. Continuava a ser uma pequena aldeia sombria, adormecida, onde os seus habitantes, após trabalharem o dia inteiro, se recolhiam junto à lenha que ardia dentro de casa, aguardando um novo nascer do sol. Apenas ao fim de semana se juntavam para ouvir a missa e igualmente no dia de festa da aldeia para gozarem o fogo de artifício, ocorrência que provocava a emulação por entre as aldeias vizinhas. “Homens e mulheres de têmpera dura e fortes como o granito que pisavam e a urze (ali conhecida por torga) que os picava”, como definiu o Poeta, escritor e médico por ali nascido. E disse mais ainda “Bichos que cavam no chão, sem os quais não haveria searas, não haveria vinhas, não haveria toda a paisagem duriense, feita de socalcos na rocha, semear a terra aos penedos bravios das serras”.

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CAPÍTULO III

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O ar quente e seco, amenizado por leve brisa que corria, bateu-lhe na face ao descer a escada do avião, novamente pousado no aeroporto de Luanda. E no dia imediato a jovem e bonita capital do planalto do Huambo, dava continuidade às suas funções de militar brioso. Ao findar o dia, juntando na messe os seus camaradas mais chegados e amigos, foram saboreando o delicioso presunto e outras iguarias tradicionais e mimosamente preparadas por sua mãe. Foi um tempo de alegria e prazer que serviu para o Frederico calar na privacidade do seu âmago, toda a tristeza que havia vivido algum tempo antes. Para a Filipa escondeu os mais delicados e saborosas produtos, todos confecionados pela mãe ou familiares. Os encontros entre ambos passaram a ser mais frequentes. Uma consonância de pensamentos e ações começou a tornar-se mais permanente.

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