A Margem do Rio

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A MARGEM DO RIO


edição: Edições Vírgula®

(chancela Sítio do Livro) Margem do Rio autor: Osvaldo Énio título: A

capa:

Patrícia Andrade Paulo S. Resende

paginação:

1.ª edição Lisboa, maio 2017 isbn:

978­‑989-8821-48-5 423777/17

depósito legal:

© Osvaldo Énio

publicação e comercialização:

www.sitiodolivro.pt


osvaldo énio

A MARGEM DO RIO



Capítulo I Botelho mexeu-se, puxou melhor a manta grossa pois a madrugada estava fria, tal como sempre se manifestava naquelas “terras do fim do mundo”. Uma região parcialmente ignota e que só a história mencionava temporariamente, embora abundassem relatos verídicos ou não, sobre ocorrências de vários matizes. Vivia-se a plena época das chuvas que esgotavam as cacimbas, aumentavam as mulolas, cobriam as margens dos rios e tornavam as estradas e picadas intransitáveis. Algo perturbara o seu sono que, com o auxílio dum milongo (remédio) resultante duma infusão de flores de laranjeira e pitangueira recomendada pelo kimbanda (curandeiro) da sanzala, decorria suavemente. Prestou uma rápida atenção e concluiu que alguém batia à porta principal da residência destinada à autoridade administrativa. Aliás o seu sono era muitas vezes interrompido, pois assim o havia determinado aos seus auxiliares diretos sempre quando ocorresse qualquer anormalidade. a m a r g e m d o r i o  | 7


O Chefe de Posto espreguiçou-se, lançou ainda sonolento duas ou três imprecações, ergueu-se pressurosamente, vestiu a farda de caqui que deixara sobre a cadeira, pronta para ser usada a qualquer momento, e acendeu o candeeiro de petróleo por ser mais rápido do que o petromax pendurado na sala. O pequeno gerador que alimentava a habitação, era habitualmente desligado por cerca das vinte e duas horas, pois imperioso se tornava poupar a dotação mensal de gasolina para a viatura. Depois de lamentar a vida de administrativo que iniciara já se passavam quinze anos, abriu a porta e escutou o seu colaborador mais próximo. – Senhor Chefe… Senhor Chefe… vem depressa… a gente da sanzala Omulunga está a fugir por causa do rio, tem problemas mesmo. Gente está a morrer! – alertava o ansioso e instável capita (o cabo de cipaios) de nome Neguma. Tal como suspeitavam de acordo com as informações chegadas através do P19, e dos alertas que ia fazendo o feiticeiro, relacionados com cultos às forças da natureza e aos diversos deuses, que indicavam intensas e persistentes chuvadas nas áreas vizinhas, o leito do rio Mulavi subiu repentinamente, inundando as zonas marginais, pondo em perigo as populações que habitavam aqueles terrenos tão amigos e compensadores para as suas diversas produções hortícolas, as suas bem acarinhadas lavras, um lugar

especioso que todos amavam e respeitavam, e que garantiam a sua sobrevivência. 8 | o s v a l d o

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Mas o rio ficou com raiva e veio destruir as frágeis libatas feitas de paus, barro e colmo, e arrastar uns tantos habitantes que dormiam desprevenidos. Saltaram os dois para o jeep do posto e aceleraram rumo ao local da tragédia. Avançaram até às cubatas destruídas e com as águas já a cobrirem parcialmente as rodas da viatura. A gente da sanzala, que andava atarefada a recolher os seus parcos haveres e familiares, ao notarem a chegada da viatura que bem conheciam, correram em direção à mesma buscando uma ajuda. – Toda a gente aqui para este lado. Cabo, vai ali mais à frente e manda para este alto. Só lá ficam os mais fortes a procurar as pessoas - ordenou o Chefe. A claridade rutilante que anuncia as madrugadas, permitia que se observasse com minúcia a zona inundada e o leito do rio que seguia turbulento, arrastando materiais diversos e possivelmente habitantes e animais da otyilongo (aldeia). Gritos de raiva, de choro e de socorro ecoavam dos mais escusos lugares. Depois de reunidos os membros de cada família procedeu-se à contagem dos presentes, tendo o soba dirigido essa ação. Com angústia foram compelidos a concluir que faltavam pelo menos quatro elementos, adultos e crianças. Esta sanzala, constituída apenas por vinte cubatas e seus anexos, possuía oitenta e seis habitantes de etnia cuanhama, consoante acontecia por toda aquela zona. a m a r g e m d o r i o  | 9


Dedicavam-se à agricultura de sobrevivência e pastorícia em número reduzido, bovinos e caprinos, alguns levados agora pela força das águas, e outros agonizando enterrados na lama. Tendo a seu lado o soba e o cabo de cipaios, ofegantes e exaustos, o Chefe deliberou: – Temos de arranjar comida e construir cubatas novas para substituir as que desapareceram… mas fazer mais longe do rio para não acontecer o mesmo no futuro. Vou convocar os comerciantes do posto para nos ajudarem pois não há nombongo (dinheiro) para gastar com estes arranjos. Acalmada a população, após intensa persuasão regressaram ao posto, um pequeno edifício com uma secretaria, gabinete do Chefe e casa de banho. Valendo-se da sua máquina de escrever Hermes e de papel químico, redigiu uma convocatória de sorte a reunir ali, antes do almoço, os três comerciantes existentes na área. Era esta a altura julgada conveniente. Se deixasse passar as emoções do momento, a sua missão tornar-se-ia mais problemática. Por outro lado, sabia bem que não poderia contar com o apoio dos seus serviços. Não há verba para esse efeito, seria como sempre, a resposta transmitida. – Cabo, monta na bicicleta e vai levar estas cartas aos senhores Gomes, Armando e Luís – disse logo que este acabara de comer um bom naco de cará assado nas brasas e bebido uma pequena cabaça com leite azedo. 10 | o s v a l d o

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Consciente de que tudo o que era possível fazer-se estava a ser bem feito, regressou à residência. Sentou-se à mesa onde o criado, elemento ainda jovem oriundo da sanzala agora em apuros, colocara o matabicho que o cozinheiro havia preparado com esmero – bife de olongo com ovo e batatas fritas, pão com manteiga e café com leite, como era tradição no mato. Hoje, excecionalmente, por força do chamamento urgente, não tomara ao levantar “o café do cigarro” como sempre fazia ou mais especificamente no seu caso, o “café do cachimbo”. Sozinho, voltou novamente ao rio a fim de coordenar os trabalhos que ali estavam a ser consumados. As águas continuavam volumosas e rápidas dando ainda origem a perigos diversos. A população amedrontada, gritava e gesticulava pelos familiares ausentes. O embanda (feiticeiro maior) mantinha-se isolado, fazendo uso dos poderes destruidores e mediúnicos na sua cubata, levantada em local próprio e onde todos tinham receio de entrar. A necromancia era um dote atribuído de que só os feiticeiros gozavam e todos devotadamente aceitavam. – Mais logo, quando as águas baixarem vamos bater toda a zona inundada. Temos que saber se por ali não estarão os corpos dos desaparecidos nem outras coisas das pessoas. Soba, vai falar com a população para saber onde é que querem fazer a nova sanzala… mas lembra bem, nesse sítio a água não pode chegar, mesmo quando o rio fica cheio como hoje. Esta a m a r g e m d o r i o  | 11


sanzala nunca deveria ter sido construída aqui. Mas foram eles que escolheram quando chegaram. Não havia mais ninguém na área para os esclarecer e demover de tal propósito – concluiu. Efetivamente, quando os primeiros elementos da população ali chegaram, tudo era deserto e ermo. Os comerciantes e as autoridades chegariam muito mais tarde, uns em busca de riqueza, outros para exercerem a soberania em nome da monarquia portuguesa. Aproximava-se a hora do almoço quando à porta do posto se juntaram os três comerciantes que haviam sido convocados. – Bom dia meus senhores… obrigado por terem vindo. Entrem para conversarmos. Como já devem saber a enchente de hoje ultrapassou o que havíamos previsto. A sanzala ficou parcialmente destruída e houve alguns mortos por azar. Têm de ser construídas novas libatas e é para isso que peço a vossa ajuda. É um momento difícil para população e esta será uma boa oportunidade para mostrarem a vossa amizade e serem sempre bem aceites por eles. Não é só vender… agora também têm de dar alguma coisa. E é isso que eu ponho à vossa consciência e por isso pedi que aqui viessem. Vou precisar de uma viatura ou duas para transporte de paus, barro e capim. Temos que acabar as cubatas o mais rápido possível. Se vocês não colaborarem eu nada poderei fazer, e as populações deixarão de confiar em nós… e com toda a razão. Não podemos falhar quando precisam de nós. Devemos agregar todas as vontades para se remir os mais atingidos e necessitados – concluiu aceradamente. 12 | o s v a l d o

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O comerciante Gomes, mais velho em idade e permanência na zona, respondeu de imediato: – Mas Sr. Chefe, não há qualquer problema. Como já sucedeu, aqui estamos prontos a ajudar. É só fazermos um calendário para sabermos os dias e horas para o trabalho das camionetas. E ainda mais, já estivemos todos a conversar, e ficou decidido garantirmos a comida durante os dias de trabalho fornecendo os mantimentos e roupa necessários. O senhor Chefe pode ficar descansado, pois quanto mais população feliz tivermos na zona, melhor será para o nosso negócio. Se houver paz e afabilidade entre todos, mais negócios poderemos fazer. – Mas tenham cuidado, pois não aparo golpes nem injustiças. Estamos em 1950 e ainda estão todos bem lembrados dos acontecimentos militares da primeira década. E no meu posto quero ordem e justiça. Só assim valerá a pena continuarmos por aqui. O povo cuanhama é valente e orgulhoso. Não o devemos esquecer ou assobiar para o lado. Propugnar para a sua manutenção, conforto e quietude é dever nosso. Aproximava-se o final da tarde quando o Chefe com o soba e o cabo se foram juntar ao grupo que se mantinha a bater as margens do rio em busca de vítimas, uma vez que até ao momento continuava-se a notar a ausência de alguns elementos que, logicamente, julgavam ter sucumbido. A renitência foi compensada ao serem resgatados três corpos que se encontravam parcialmente enterrados na lama escura e viscosa. a m a r g e m d o r i o  | 13


No dia seguinte, estava o chefe de posto vestido como sempre com botas, meias altas, calções e camisa de caqui, protegendo a cabeça com o capacete colonial, do alto do morro onde fora construído o edifício e anexos a observar a zona flagelada pela corrente, quando reparou com satisfação na chegada de duas viaturas carregadas de troncos, que haviam sido cuidadosamente escolhidos para o fim pretendido. O sorriso deixou ver os dentes escurecidos pelo tabaco, queimado num cachimbo trabalhado e oferecido pelo regedor do posto onde servira antes, acentuando uma linha que dividia um bigode farfalhudo de uma barba cerrada, espessa, onde começavam a despontar alguns pelos de cor branca. António Botelho ingressara no quadro administrativo logo após terminado o serviço militar que começara na Escola de Aplicação Militar de Nova Lisboa e terminara no Regimento de Infantaria de Sá da Bandeira. Nascera na bonita vila da Chibia há trinta e cinco anos, descendente duma família de colonos madeirenses que ali se tinha instalado, vinda do Lubango nos princípios de 1885. Era considerado “chefe da mandioca” pelos colegas licenciados na Escola Superior Colonial e depois Instituto Superior de Estudos Ultramarinos e em 1962 Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, que assim depreciativamente procuravam erguer uma barreira de competências e saberes com aqueles que não possuíam aquelas habilitações superiores. Estes gozavam do privilégio de iniciarem as funções no cargo de secretário de administração, razão pela qual nunca passariam 14 | o s v a l d o

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pelas dificuldades e adversidades que a chefia de um posto, muitas vezes sediado em locais inóspitos e ermos, acarretava. Neles, o respetivo chefe desdobrava-se em múltiplas funções, como representante do estado, juiz, médico, professor, psicólogo, arquiteto, economista e acima de tudo, uma autoridade exemplar e credível, em resumo, aquele a quem foi outorgado o direito de julgamento e decisão. Regressou ao posto a fim de escrever o Diário de Serviço tal como o obrigavam as normas em vigor. Viera para aquele posto de Chiede sozinho uma vez que o seu único filho, o Nando, contava apenas quatro anos de idade, e na zona não havia condições para o mesmo crescer em segurança, além do mais por sofrer de uma importunadora alergia. Era mais um sacrifício que tinha de agradecer à Ermelinda, a mulher com quem casara logo após o seu ingresso no funcionalismo público. Alugaram por isso uma casa na Ondgiva (Vila Pereira d’Eça) local da sua administração, aonde uma vez por mês se deslocava por efeitos de serviço. Era o tempo de passar uma noite ou duas com a família destilando as saudades e projetando o rumo sobre o futuro que corre todos os dias. Na manhã seguinte estava ele fiscalizando e orientando o desenrolar dos trabalhos, que seguiam em cadência rápida e bem coordenada, quando surgem dois elementos da população correndo velozmente, gesticulando e gritando, erguendo uma criança desnudada, chorando convulsivamente, revelando dificuldades respiratórias. a m a r g e m d o r i o  | 15


Essa criança era eu! Estava vivo! Conseguira sobreviver dentro da destruição que por ali havia passado. Ser frágil, debilitado, mas por alguém protegido. Que Deus seria este? Conseguiu entender que esta fora achada por aqueles elementos, quando procuravam materiais que pudessem ser reutilizados na construção das novas cubatas. Estava coberto de barro, devendo sobressair apenas os meus dois olhitos negros que espreitavam com espanto e ansiedade à minha volta. Pouco entendia do que se passava. Como deveria ter mostrado que sentia fome, foi-me dado algum leite azedo e pirão. E como me senti tão bem! E como gostei de ver tantos a ajudar-me. Só estranhei não ver perto de mim os meus pais e irmão. Onde estariam eles? Aguardei que alguém me desse a resposta. Mas como um relâmpago a memória falou-me em surdina a resposta. Seguiam arrastados à minha frente, depois de terem procurado segurar-me num dos braços. Não os vi mais, apenas os ouvi gritar por ajuda. Senti-me sozinho, preso no barro, e julgo ter adormecido. – Soba, onde é que está a família dele? Vão procurar. Vai chamar para levar o menino – mandou o Chefe. Depois de inquirir os elementos que por ali se encontravam, chegou a uma triste conclusão. – Sr. Chefe, família do menino morreu toda na cheia. Os pais e um irmão mais crescido estão para fazer o óbito. 16 | o s v a l d o

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Apercebi-me com mágoa que estaria sem eles a partir de agora. E senti medo! Como poderia crescer, tornar-me mulume? (homem valente). A minha família, tal como algumas mais, tinha vindo para ali habitar, na busca de melhores condições de sobrevivência, uns anos antes. – Agora vamos tomar conta do menino. Eu vou falar com os colegas dos postos vizinhos para sabermos se existe lá alguém da família ou amigo, e que queira tomar conta dele. Acalmados os intervenientes decidiu o Chefe Botelho: – Cabo, traz o menino e vamos falar com a lavadeira do posto para tratar dele. Vai ficar a viver lá até aparecer outra situação. Ela também tem um filho pequenino e assim podem brincar e crescer juntos. Talvez pleno de egoísmo, fiquei mais tranquilo. Já não estaria só! A lavadeira do posto, de nome Gertrudes, fora prestar serviço no tempo do anterior funcionário e ocupava um dos anexos do edifício, ajudando muitas vezes na cozinha, pois tinha-se revelado uma exímia cozinheira, sendo já famosas a sua caldeirada de cabrito e a moamba, pratos que deliciavam quem visitava o posto, como por exemplo o Administrador do Concelho, a autoridade mais alta que por ali passara até então. Após alguma conversa, Gertrudes depois de acertados determinados princípios, apoios e obrigações, aceitou ficar a cuidar de mim, como se filho seu também fosse. a m a r g e m d o r i o  | 17


Para colmatar de imediato a necessidade, mandou colocar uma pequena cama de ferro e colchão de arame das que estavam guardadas no armazém. Remodelado o quarto onde passariam a viver duas crianças, um novo ciclo despontou para um futuro que iria exigir complacência, harmonia e sacrifícios. Gostei da maneira como arranjaram o quarto. As condições eram bem melhores do que as que tinha na ondywo (espaço de dormida) dos pais. Não havia fogueiras ao lado, nem fumo para irritar os olhos e a garganta. Descansei tão bem que me apeteceu ficar na cama até meio da manhã, ao contrário do que fazia na esteira. – Precisamos de dar um nome à criança e fazer o seu registo – lembrou o chefe de posto. – Menino pode chamar Marcos para lembrar o dia em que foi encontrado – alvitrou a Gertrudes. – Bem… acho bem… e já agora como esse dia de S. Marcos aconteceu num domingo vai ficar Marcos Domingos, o nome do santo e do dia, concordam? Assim, já não nos esqueceremos da data. Gertrudes, o cabo de cipaios e o soba manifestaram a sua concordância, o que muito me alegrou. Eu também gostei do nome. Era diferente, em casa chamavam-me Evula, que quer dizer “menino com sorte”. Tinha perdido a família, e por tal iria de certeza cair muitas vezes por desânimo e exaustão, embora neste início me sentisse apoiado e estimado. Acreditava que a sorte não me abandonaria e me faria erguer a cada tombo sofrido. 18 | o s v a l d o

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Agarrado ao P19 Botelho comunicou para a administração relatando como decorriam as ações de apoio à população atingida, a recuperação e construção de novas cubatas. Falando com o Secretário da administração, seu antigo companheiro quando fora transferido para o Moxico – Posto do Lucusse – como aspirante, e o mesmo ali estava como chefe de posto, procurou saber notícias da mulher e do filho, que ultimamente andara com paludismo. Como as notícias eram boas, suspirou de alívio. Agarrou no cachimbo, meticulosamente o preparou antevendo o prazer, e veio para a varanda fumar, gozando a paisagem que se estendia e que extasiava qualquer um – a curva do rio, palmeiras, imbondeiros, mulembas frondosas, a chana misteriosa e a sanzala, como se ali tivesse sido pintada por alguém de bom gosto, num quadro de excelência. Aguardava com ansiedade que o tempo melhorasse, tornando menos agreste e perigoso o estado da estrada, para ter ali a seu lado a família como sempre procuravam fazer. Retomarem as conversas, recordarem o tempo passado e preparem o dia de amanhã. Ouvirem musica e jogarem às cartas, e por vezes convidarem as famílias residentes nas redondezas do posto para uma refeição mais preparada e um efusivo convívio a terminar. Notei que a minha presença tornou-se o tema de interesse assim que a família se reuniu. Procurei por isso prestar muita atenção a tudo o que diziam. a m a r g e m d o r i o  | 19


– Por quereres fazer bem, assumiste uma grande responsabilidade, Bó – advertiu a mulher. O menino vai crescer, vão igualmente aumentar os problemas, daqui a anos serás transferido, como será para todos nós? Quando ganhar uma consciência mais robusta, como irá aceitar o caminho que nós decidimos como se fosse o melhor para todos? As suas raízes ancestrais não irão depois colidir com os afetos que se forem aglomerando? Não se julgará um estranho por causa da cor? – Eu sei que hoje tudo parece simples, o que nos pode levar a pensar que o futuro serão apenas rosas, o que é enganador, ilusório mesmo. Vamos deixar passar mais algum tempo e ponderar no que teremos de fazer. És capaz de criar o Marcos na companhia do nosso filho? Ele vai continuar aqui com a Gertrudes para crescer mais um pouco. Assim evitaremos um corte demasiado brusco relativamente aos seus costumes. Quando regressares, vai contigo. Leva-o ao doutor Fernandes para o examinar e dar-lhe as vacinas de que precisa. Passado este tão gratificante período familiar, e após devidamente autorizado pela chefia, lá seguimos todos no jeep do posto para a sede do concelho. Foi a primeira vez que andei de carro. E o tempo foi mesmo demorado! Mas embora aos saltos e cheio de poeira, gostei da experiência. 20 | o s v a l d o

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Capítulo II Abeirava-se do fim mais um período das férias e o Pedro, filho do comerciante Armando, preparava-se igualmente para voltar ao Lubango e ocupar o seu lugar na camarata do Internato, agora sob o olhar vigilante dos Irmãos Maristas que vieram substituir a “ mãe da malta”, a expedita e diligente dona Virgínia, esposa do doutor Negrão, até então diretor do estabelecimento e professor e reitor do Liceu Diogo Cão. Rumar ao Lubango para continuarem os estudos no liceu, era o que sucedia aos alunos residentes fora da zona da cidade, pois em Angola apenas funcionavam dois liceus, sendo o outro em Luanda, a capital. Nas outras cidades cresciam os colégios particulares. Todavia o valor da inscrição e propinas exigido não era propiciador a todos os interessados. Esta uma das grandes causas justificativas da enorme iliteracia que grassava em Angola. Nas zonas interiores, junto a pequenas localidades ou mesmo em pleno mato, ganhavam notoriedade as missões religiosas, muito frequentadas pelas crianças e até adultos. a m a r g e m d o r i o  | 21


Por isso o Lubango no período de aulas e exames era animado por grupos diversos de alunos que davam mais colorido e alegria à cidade, construída nas faldas da imponente Chela pelos destemidos e sofridos colonos madeirenses, ali chegados em finais de 1884. Este povoamento dirigido teve por objetivo aumentar a presença portuguesa no sul de Angola, perante a ameaça imane das forças alemães e de alguns povos da zona, armados e incentivados por aquelas. A irmã do Pedro, a Mena, com menos dois anos, frequentava o colégio religioso Paula Frassinette, vulgo colégio das madres, onde se distinguia pelas boas notas conquistadas. No tempo das férias mergulhava numa inatividade incomum, passando os dias a ouvir música, pois como afirmava “férias são férias” e só dá para descanso. O Pedro, ao invés, desdobrava-se em múltiplas participações, como caminhadas pelo mato, caça, pesca, e companhia e ajuda aos pastores que cuidavam dos bois e cabras de seu pai. Imitava na perfeição os gestos vulpinos dos companheiros. A sua inventividade estuava-o a cada momento. Não se sentia ainda feliz! Algo mais lhe faltava concretizar. Conquistara a amizade e confiança de dois jovens da sanzala como ele, o Zunga e o Mufi, e assim seguiam os três plenos de alegria, vencendo obstáculos, ultrapassando metas e conquistando saberes e vitórias. Tal como os seus companheiros, o Pedro vestia apenas um tchinkuane (tanga) e descalço caminhava pelas osanas (chanas) 22 | o s v a l d o

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ultrapassava as mulolas (baixas com água), pisava as terras molha-

das, inspirava deliciado os ares recendentes que se evolavam, brincava com o vento que lhe fustigava o peito, trepava às vistosas mulembas e de arco e flecha perseguia as lebres, os bambis e outros, em competição renhida com a destreza, astúcia e habilidade dos seus parceiros. Por outro lado os kuanhamas mais importantes e notáveis como os sobas, seus lengas, heróis guerreiros, conselheiros e seus descendentes, usavam a samakaka (panos azuis e vermelhos) para acentuarem essa mesma posição social.

Por vezes levava a estilosa caçadeira calibre 12, Winchester, que seu pai lhe oferecera, e trocava com um dos companheiros que se deliciava ao usa-la durante as deslocações, buscando tornar-se um apreciado atirador como os verdadeiros caçadores, que na época seca por ali apareciam para caçar elefantes e rinocerontes de preferência. Quando não saiam, quedavam-se pelo arimo (espaço desti-

nado a agricultura) a cuidar das verdejantes plantações de massango e milho. Pelo meio observa-se um conjunto de construções, envolvidas por um protetor cercado de paus a pique, revestidos por espinheiras, o eumbo, o agregado habitacional do ohamba (soba) com

várias cubatas em planta circular onde residem as suas mulheres

(três ou quatro) sendo a mais próxima ocupada pela mulher mais considerada, a chamada primeira mulher. a m a r g e m d o r i o  | 23


Existe depois a ombala, onde vive o restante agregado familiar, os conselheiros, os lengas (chefes militares), serventuários, etc. Nestes locais encontram os estudiosos da ergologia as suas melhores fontes de entendimento e confronto. Para imprimir mais veracidade à sua atividade, Pedro recusava levar qualquer comida, mesmo a mais simples e rápida, o que fazia a mãe detestar tais saídas já que o “seu menino passaria fome de certeza.” — Oh Pedro, mas que teimosia a tua. Qualquer dia estás magrinho, sem forças, doente, e lá se vão os estudos – eram os cuidados da mãe. Todavia os três jovens caçadores deliciavam-se com os saborosos e coloridos frutos que espreitavam nas belas árvores vigorosas como o munhande ou munhandeiro, que eles chamam enãndi, e ainda banana, laranja, goiaba, omomi (maboque), gongu ou omungongu, pintando o chão de amarelo claro. A sua ingestão ou a bebida alcoólica que deste fruto faziam era tão apreciada, e por isso bastante consumida, que uma lei tradicional cuanhama ordenava que ninguém nesse período andasse armado, de maneira a evitarem-se conflitos ou mesmo mortes. Outro fruto importante e muito consumido era o nombe que se apanha numa delicada árvore chamada embe. Igualmente a mákua (assim chamado no Sul), o estranho fruto do imbondeiro, considerado uma árvore sagrada, fonte de poesias, ritos e lendas, tal como a que afirma que um morto 24 | o s v a l d o

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sepultado dentro desse singular tronco, a sua alma viverá enquanto a árvore existir. É também uma fonte valiosa de medicamentos, sendo as suas folhas usadas para combater febres e inflamações, a disenteria, a anemia e o raquitismo. Derrubar um imbondeiro, seja porque razão for, é considerada uma profanação em Angola. Segundo informação dos “homens do mato” o maior imbondeiro de Angola pode ser visto em Ombandja, região do Cunene. Constitui um espetáculo único e belo, apreciarmos os macacos a arrancar e partir a casca dura dos aromáticos maboques, batendo sagazmente um contra o outro ou mesmo contra uma rocha, manifestando elevada perícia. Mais sumarentos e substanciais frutos iam saboreando, tais como as lombulas, mirangolos, mangas, nêsperas, nochas e sape sape. A caça que abatiam era devidamente selecionada, de modo a poderem depois transporta-la para a sanzala, e ser oferecida à população que muito a apreciava para servir de “conduto” ao pirão e tchipope (feijão). O volitar dos diversos pássaros berrantemente coloridos, despontava igualmente a atenção do Pedro. Em todas as suas atitudes observava-se o grande respeito e estima por tudo o que a natureza e os seus componentes ofereciam. Nada se prejudicava ou destruía. Apenas para matar a fome se colhiam os deliciosos frutos, e somente os bastantes para a m a r g e m d o r i o  | 25


o efeito. Igual comportamento era tido relativamente ao pescar e ao caçar. Nada era usufruído em demasia. Este, eufórico com os saberes que ia adquirindo, e juntamente com o intuito de melhorar o absorvimento de nutrientes orgânicos, procurou acompanhar em pormenor um dia de alimentação da tribo. Ficou assim conhecedor de que ao longo do mesmo, e sempre que apeteça, bebem uma belunga (ou brolunga) espessa, que é uma bebida feita à base de mapungo (massambala). A refeição principal do dia tem como alimento fundamental o pirão de iputa (massango). O conduto deste é normalmente feito de produtos vegetais e óleos também vegetais. Os outros produtos vegetais como frutos e legumes, são considerados de menor importância. Os alimentos de origem animal como o ombiche (peixe fresco ou seco) apanhado nas chanas, também é muito apreciado. O leite é consumido em pequenas quantidades, e apenas enquanto há pasto e água. É sujeito a uma preparação muito especial. Enchem duas cabaças com o liquido, suspendem-nas num pau com duas forquilhas, e imprimem repetidas vezes um movimento de vai e vem, até ser considerado machicua (azedo). É similar aos iogurtes hoje consumidos. Para os cuanhamas o abater gado implica uma razão forte como as cerimónias e festejos tradicionais, saciando-se somente com o que morre por sede ou fome. 26 | o s v a l d o

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Utilizando uma máquina de fotografias recentemente comprada, registava com frequência os diferentes acontecimentos a fim de acompanhar o relato entusiasmado e entusiasmante que fazia aos colegas, quando iniciava as aulas. Era igualmente seu interesse elaborar um álbum com essas fotografias, de modo o poder recordar todo este tão preenchido e absorvente período da sua vida, para que não se tornasse imemorado num futuro mais longo. Durante as caminhadas suavizadas pela olência emanada de flora distinta ou nos tempos de repouso que iam fazendo, gozando do intimismo que a todos envolvia, o Pedro procura conhecer com alguma profundidade a tribo que ali habitava, para com essas ferramentas melhor poder desenvolver o seu desiderato. Contaram-lhe então que aquela etnia era conhecida tradicionalmente por kwanyama (kuanhama), pertencia ao povo ovambo, que significa “pessoas das névoas, do nevoeiro”, e oriundo do grupo banto. Era a resultante dum encontro entre um povo de caçadores nómadas vindos do sudoeste africano, região da donga, os vambukusso, exímios em fundir o ferro, que traziam o kutuva (coiro tapando a parte de traz), com os povos estabelecidos entre os rios Cunene e Cubango, daí brotando cinco tribos angolanas a saber: cuanhamas (os mais numerosos), cuamatos, evales, cafimas e dombondolas. Julga-se que a designação cuanhamas provem da zona onde se acolheram, e que se apresentava repleta de variada caça, com relevo para o onghoxi (leão), ongwe (leopardo) e ondjaba a m a r g e m d o r i o  | 27


(elefante) pelo que diziam tuenda ko nhama (vamos para a carne), quando pretendiam referenciar a área em causa. Na umbira (época das chuvas) entre os meses de outubro a abril, com maior incidência nos meses de dezembro, janeiro e fevereiro, as margens do rio Cuvelai crescem, derramando as águas pelas terras sedentas, transformando as chanas com manchas de vegetação, onde sobressaem os mutiátis, as acácias e os espinheiros, e num embaraçado de lagoeiros e lagoas contendo milhares de peixes e rãs que servem de sustento à população, e ainda pequenos cursos de água efémeros. Estes garantem o bom estado das terras (lavras) onde são plantados os produtos hortícolas para consumo de todos. Para o interior as chanas tornam-se mais extensas, menos alagadiças e monotonamente planas. Dão lugar à savana (anhara em Angola) e que surge como uma zona de transição, com plantas rasteiras e poucas concentrações de árvores, carateristicamente com troncos inchados e copas achatadas, com predominância para as rubras acácias. Por aqui abundam os insetos, pássaros e alguns mamíferos tais como elefantes, leões, onças pintadas e girafas Por vezes, enormes pragas de gafanhotos destroem por completo as colheitas, prejudicando o sustento pretendido e tão generosamente trabalhado. Estas invasões de gafanhotos são conhecidas desde os tempos da antiguidade, tal como são descritas na Bíblia, como uma das dez pragas do Egito. 28 | o s v a l d o

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Na sua deslocação ruidosa podem percorrer cerca de duzentos quilómetros por dia. Nas regiões mais afastadas do rio e no tempo quente, os habitantes sabiamente fazem escavações de um a três metros de profundidade para armazenarem o precioso líquido, a que dão o nome de simpaka (chimpaca). Os povos nhaneca e os humbes, sazonalmente levam a efeito a designada ”Festa do boi sagrado”. Trata-se dum ritual de premonição relativamente aos resultados da colheita próxima. Consoante o comportamento tomado pelo boi escolhido e preparado frente ao soba, lambendo ou não o pó colocado numa das mãos, assim será o novo ano bom ou mau. No tempo em que a autoridade do soba era total (antes da presença portuguesa) quem ali recolhesse água, teria de extrair uma certa porção de areia de acordo com a água retirada, havendo para tal uma vara sempre disponível. Deste modo simples as chimpacas mantinham-se eficientes, até porque a tradicional firmeza dos sobas cuanhamas “não permitia abusos”. Quem lidava com este povo sabia que nada tinha de ignavo. Um dos vários erros grosseiros do poder colonial foi a escolha e nomeação das autoridades autóctones sem auscultarem devidamente as suas populações, que deste modo foram perdendo toda a sua autoridade e prestígio, pois o verdadeiro soba, o soba grande, aquele que ditava as normas de conduta e tinha o direito de julgar e punir, continuava a ser a entidade escolhida pelo povo de acordo com a sua estirpe. a m a r g e m d o r i o  | 29


Em cada região a autoridade tradicional é liderada por um chefe, rei ou rainha. A nível local há diferentes chefes chamados sobas, que são os responsáveis por cada aldeia. Igualmente um outro clamoroso erro cometido pela autoridade colonial, mormente a autoridade militar no período da guerra que tudo queria controlar, por ventura devido à ausência de perceção política, capacidade de entendimento e espirito decisório, foi não terem absorvido e respeitado as tradições e costumes da população indígena. Já a outro nível também idêntico errado procedimento foi tido pela autoridade portuguesa ao escolher e nomear presidentes de câmara e governadores de distrito, além de outros funcionários superiores, personalidades estranhas e sem qualquer vínculo ao meio local ou provincial, relegando o valor e a experiência dos angolanos, brancos e negros, que eram normalmente escolhidos como subjuntivos perante os novos e inexperientes decisores escolhidos em Lisboa pelas mais diversas causas. A chegada do tempo seco a meio do ano vem alterar a vivência normal do povo cuanhama, originando a eclosão da sua vocação guerreira. Sob o comando dos lengas (chefes de guerra e conselheiros dos sobas) partem para ações de guerrilha e saque em locais muito distantes, seguindo as suas surtidas em direção ao Humbe, Camba e Quiteve, e igualmente para a zona dos ganguelas. Devidamente armados com canhangulos, arcos, flechas e outros instrumentos de pau e ferro trabalhado, avançam protegidos por amuletos suspensos do pescoço, tais como chifres 30 | o s v a l d o

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de bambi, recheados de cinzas provenientes dos corações dos valorosos companheiros mortos em combate. A sua proteção era ainda confiada a um homem possuído de virtudes e magia designado ondiai (similar ao feiticeiro). Concluídas as homenagens rituais aos antepassados, lançavam-se com intrepidez sobre as sanzalas desprevenidas, espalhando o terror e a morte. O regresso triunfal ao eumbo (sanzala grande) com ricos espólios de escravos e gado era saudado com danças guerreiras e cantares por todos os membros da população. Hodiernamente contudo, existem nações com território mais pequeno que o de certas tribos em Angola, que se digladiam na defesa de uma qualquer razão, causando um número de vítimas superior ao que as provocadas por estas razias tribais. O seu deus é Kalunga, sendo de notar que neste país Deus é tratado com pelo menos três nomes – Nzambi, Kalunga e Suku. O primeiro é nome comum entre os povos do Congo, incluindo-se ainda aqueles que falam a língua quimbundo. Kalunga é utilizado pelos povos do Sul/Sudoeste e nas zonas litorais. O mesmo vocábulo se aplica igualmente ao mar, a quem atribuem o sentido de infinidade. Sucu ou Suku é o nome usado por alguns povos não bantos do sul, os nhaneca-humbe, povos de Quilengues, os “bimbundos”, de acordo com Ferreira Diniz. Os cemitérios e as sepulturas que são feitos em locais não alagados, ocupam um espaço de predominância na vida comunitária destes povos. a m a r g e m d o r i o  | 31


Segundo a tradição colocam sobre a sepultura objetos como uma cabeça de boi, uma cabaça ou garrafa com água, mel, alguns alimentos, um copo, um prato, um instrumento de trabalho e troféus de caça. Ao contrário do que alguns afirmam, estes alimentos servem para ajudar o defunto a realizar a viagem para um novo lugar. É um reconhecimento pelo bem que fizeram na terra e um meio para estabelecer ligação com os mortos, mantendo assim uma corrente de energias. Os defuntos são inumados perto de suas casas ou mesmo no seu interior, e por vezes à beira dos caminhos, para que os vivos ao passar lhes prestem homenagem. Ao rei é dado outro tratamento, sendo primeiro sentado numa cadeira especial para ser adorado. Depois é levado para uma caverna na montanha, coberto com pedras e os seus arredores cercados por paus. A este local chamam “onguwé”. A santaria cubana e a macumba brasileira poderão ter a sua essência nas crenças tradicionais religiosas dos povos angolanos e outros, que para ali foram deportados como escravos, que as levaram e as passaram a praticar e a difundir. A escravatura ou o trabalho forçado é uma herança da Antiguidade. Não é falacioso que a ignominiosa e lucrativa exportação de mão de obra escrava pelos descobridores surgiu em princípios de 1470, valendo-se dos povos do golfo de Benim (Dahomé) e 32 | o s v a l d o

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delta do rio Níger. Todavia este sistema aviltante já nesse tempo era praticado pelos árabes e africanos mais ricos. Antes da chegada dos navegadores portugueses a Angola o território era conhecido como o “Reino de Sebaste”. Paulo Dias de Novais teve por missão principal contactar o lendário Rei de Ndongo, de nome Ngola Kiluanji. Por desconfiança deste ficou detido, sendo depois libertado com o auxílio de uma princesa, filha daquele rei, e mediante a promessa de arranjar em Portugal uma ajuda militar que o fortalecesse na campanha contra o seu temível rival Kiloango-Kiacongo. Com a promessa cumprida regressou, tendo desembarcado na Ilha das Cabras (atual Ilha de Luanda) onde recebeu uma embaixada do Rei Ngola com o intuito de gizarem a estratégia militar a seguir. Logo de seguida foi-lhe concedida a permissão para se instalar em terra firme, o antigo Morro de S.Paulo, onde fundou a povoação de São Paulo de Loanda, pujando inúmeros perigos e contrariedades. Com o início da expansão ultramarina no século XV, o reduzido número de mouros aprisionados existentes no reino vai sendo substituído pelos negros trazidos nas caravelas, que eram igualmente aproveitadas para transportarem as mercadorias de Goa (especiarias, louças e tecido). A prática da escravidão entre os povos de Angola é anterior à chegada dos portugueses, sendo esta mais uma razão justificativa para a posterior atividade dos navios negreiros, que vieram a expandir o esclavagismo e enriquecer os malevolentes escravagistas. a m a r g e m d o r i o  | 33


Nesse período os africanos tornavam-se escravos pelas seguintes razões – prisioneiro de guerra; punição para quem fosse condenado por roubo, assassinato, feitiçaria e por vezes também adultério; penhora, como garantia para o pagamento de dívidas; rapto individual ou de um pequeno grupo de pessoas no ataque a pequenas povoações; troca de um membro da comunidade por comida e como pagamento de tributo a outro chefe tribal. O negro era então tido como “ um reservatório de energia” e assim deveria ser aproveitado pelos países necessitados de trabalho manual. Segundo os registos da época cerca de dez por cento da população de Lisboa era já constituída por escravos, e no Alentejo seis por cento dos seus habitantes. Em Angola, durante o século XVII, o embarque de escravos foi rijamente disputado entre portugueses e holandeses, tendo ganho o Reino de Portugal. Tornou-se assim um importante centro de fornecimento dessa massa escrava para o Brasil (S. Salvador da Baía e Minas Gerais) que a empenhava na produção da cana-de-açúcar e exploração de ouro. O comércio de escravos para o Brasil era dominado pelos africanos, e só após autorização de Catarina de Áustria, da casa dos Habsburgo, Rainha de Portugal por ter casado com D. João III, passaram os europeus a poder fazê-lo. Uma das figuras de realce foram os pombeiros, na sua maioria mestiços gozando já de alguns conhecimentos, que, com muita usura, prestavam os seus serviços aos grandes chefes, sobas 34 | o s v a l d o

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ou militares portugueses. Durante um ou dois anos deslocavam-se pelo interior de Angola, trocando os escravos por tecidos, vinho e quinquilharias, sal e pólvora. Regressavam com uma centena de escravos acorrentados de modo a evitar as fugas. A este tráfico foi dado o nome de “guerra preta” perante a violência que muitas vezes era aplicada sobre aqueles. A androfagia era praticada desde há muito, verificando-se mesmo alguns casos no ano de mil novecentos e sessenta e um contra civis e militares, no início da guerra colonial, na região dos Dembos. A escravatura veio a ser abolida primeiramente por Portugal, no pais e nas colónias indianas, corria o reinado de D. José I, a 12 de fevereiro de 1761, por iniciativa do Marquês de Pombal, e nas restantes colónias em 1854. Um dito muito em voga no século XVIII classificava com certa ironia, a América Portuguesa como o purgatório para os brancos, o paraíso dos mulatos e o inferno dos negros. Acontecia porém que eram os próprios negros, como por exemplo os Jingas, que arrastados pelo orgulho de possuírem os objetos levados pelos portugueses, faziam guerra aos seus irmãos de cor. Devido à grande movimentação gerada, foi criada uma moeda especial para pagar os escravos, uma espécie de conchinha importada do Brasil, a que deram o nome de Cauri ou Zimbo (búzio pequeno). a m a r g e m d o r i o  | 35


De entre as moedas usadas em Angola merecem destaque a primeira, conhecida por Aggry (contas de vidro com lindos desenhos) que os fenícios teriam trazido para África quando da sua navegação ao longo da costa ocidental; Axiluanda (lançar redes) que Paulo Dias de Novais encontrou quando chegou à Ilha de Luanda; a Moeda Angolana, a moeda privativa decidida pelo Senado da Câmara da cidade de S. Paulo da Assunção no ano de 1649 sendo governador Salvador Correia, reinado de D. Luís I; as Cruzetas, pedaços de ferro e cobre em forma de X (cruz de Santo André), a moeda portuguesa do reinado de D. Pedro II, a circular em Angola a partir de 1694; mais tarde, um tecido feito de folhas de palmeiras, o Libongo (paninho do Congo); a Macuta, a primeira a apresentar o dístico “Africa Portuguesa” que veio a ser cunhada em 1762 sob o impulso do Marquês de Pombal e que circulou até 1910, quando da implantação da República. No governo do General Norton de Matos (1921) novamente se procedeu à cunhagem duma moeda privativa para Angola. As primeiras emissões da moeda no tempo do Estado Novo (1927) foram em alpaca, referindo a palavra “makuta”. Nas emissões que se seguiram, o escudo português foi substituído por um desenhado especialmente para Angola, composto por um elefante e uma zebra. Depois surgiram o escudo angolano, a seguir os angolares e por último o escudo novamente. Merece citação especial como comandante supremo da “nação” kwanyama (cuanhama) nos anos de 1911 a 1917, 36 | o s v a l d o

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o ultimo soba e rei, elemento extremamente cruel, muito inteligente, hábil negociador, déspota e corajoso, Mandume Ndemufayo, treinado e apoiado pelos alemães sediados na Damaralândia, sudoeste alemão, de 1884 a 1915. Tolerava apenas as missões protestantes alemães, as quais o haviam instruído na língua, na escrita e na revolução a favor do seu povo. Ordenava ele “que todos os brancos que não fossem padres e estivessem dentro do seu vasto território, deveriam ser mortos”. Para comprovar a sua decisão mandou ali mesmo matar um português, a mulher e amigos que o acompanhavam. Implacável, a 30 de outubro de 1916 aniquilou uma força portuguesa comandada pelo tenente Raul de Andrade, habilmente atraída a uma cilada, transformando aquela zona num campo sético, jamais esquecido pelas chefias militares. Foi vencido a 20 de agosto do ano seguinte no combate da Môngua por forças do general Pereira de Eça, que no relatório que produziu sobre a ocorrência, elogiou o comportamento, valentia e habilidade do adversário, considerando-o mesmo “um brilhante estratega”. Perseguido acabou por cometer suicídio com a sua bem estimada espingarda mauser ofertada pelos alemães, após eliminar um a um os familiares e conselheiros que o acompanhavam. Considerado por alguns como recoletores, os cuanhamas são excelentes agro pastores, vivendo do seu gado bovino e também caprino, e de uma agricultura de subsistência. Uma vez que não a m a r g e m d o r i o  | 37


encontram nas terras o pasto suficiente, são os mesmos obrigados a migrações regulares, o que origina um regime de transumância ascendente na época seca e descendente na época das chuvas (umbira). Devido á aridez do solo, ficam dependentes das mulolas (terreno alagadiço) para beberem água, tomarem banho e dessedentar o gado. A ocupação destas mulolas e cacimbas constituía um forte objetivo militar nas campanhas do sul, podendo determinar ou ser mesmo decisiva para o desfecho das batalhas. Pela sua localização e abundância, tornaram-se num importante ponto de apoio as cacimbas do Evale e as mulolas do Cuvelai, e por tal, locais a merecer uma defesa importante e inultrapassável. A gente cuanhama é alta, elegante, bem constituída fisicamente e apresenta-se aprumada e limpa, orgulhosa e atrevida. Nobreza e valentia são atributos presentes nos seus atos. Ao longo da sua história ganhou nota importante a honestidade cuanhama, embora fizesse tremer de medo as populações vizinhas, que frequentemente são ridicularizadas com estórias de escárnio. Praticam a poliginia, e ter muitas mulheres é um sinal de riqueza e importância. Porém é-lhes atribuído elevado valor na sociedade, usufruindo de amplos direitos e de muita liberdade. Ela constitui o grande apoio da economia doméstica e é responsável pela educação dos filhos. A mulher grávida, todavia, sofre de muitos condicionalismos, tanto na comida (não comer carne de animais listrados como 38 | o s v a l d o

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a zebra para evitar marcas no feto), comportamento cuidado (não subir às árvores para o filho não vir a ser um ladrão), etc. Podem ter filhos desde que sejam consideradas adultas, o que acontece não em função da idade, mas apenas depois de passarem pela festa chamada “efandula leengoma” O nascimento é sempre causa de muitos ritos de agradecimento, porém sem o arrebatamento e envolvência do batuque dos mortos. Contudo, os gémeos são mal recebidos. Mãe e filhos são levados para uma cubata isolada, erguida fora da sanzala, onde ficarão em quarentena a fim de serem limpos, por tempo imposto pelo feiticeiro. Os filhos ficam sob a responsabilidade do clã materno. São os herdeiros da dignidade e da posição social do irmão da mãe, recebendo como herança os bens do tio ou da tia, e não os bens do pai. Os contactos frequentes com a população, o conhecimento das suas tradições e a confiança e estima que conquistara com as suas atitudes nobres, levaram o Pedro a idear um novo projeto para a nova geração, mas de maneira tal que não fosse delir a harmonia que se vivia entre todos. — Ó Pedro, tenho mais que fazer do que estar agora a ensinar letras e números. Não arranjo paciência para os aturar. Quando for mais velha, talvez arranje alguma disposição – retorquiu a sua irmã Luísa, ao tencionar envolvê-la mais intensamente no programa. Era vontade do jovem entusiasta ensinar os mais novos a ler e a fazer contas mesmo elementarmente, mas de sorte a entenderem a m a r g e m d o r i o  | 39


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