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VICTOR MARQUES DOS SANTOS
O Obelisco de Kubrick Por entre Encontros e outros Momentos
CONTOS
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FICHA TÉCNICA EDIÇÃO:
Edições Vírgula ® (Chancela do Sítio do Livro) O OBELISCO DE KUBRICK Por entre Encontros e outros Momentos (Contos) AUTOR: Victor Marques dos Santos TÍTULO:
CAPA:
Carolina Quirino Alda Teixeira
PAGINAÇÃO:
1.ª Edição Lisboa, fevereiro 2018 ISBN:
978-989-8821-62-1 DEPÓSITO LEGAL: 435953/17 © VICTOR MARQUES DOS SANTOS
PUBLICAÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO:
www.sitiodolivro.pt.
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ÍNDICE
Notas de um Quase-Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Nota Introdutória. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Viagem ao Mundo Novo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Diálogos de Março. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A Folga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Quarto do Grito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Triângulos e outros Lugares-Comuns . . . . . . . . . . . . . . . . Talvez Amanhã. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mesopotâmia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Momentos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Cisnes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ventos do Sul . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Ontem e Muito Longe Daqui . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . “The Algonquin”. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Outros Mares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Porlock . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Banda Sonora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Agosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . “La Marée” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . “I’m Home!” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O Obelisco de Kubrick . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Epílogo – Ponto de Não-Retorno . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 255
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NOTAS DE UM QUASE-PREFÁCIO
O que é mais estupendo no meio do fortuito que tem o fortuito é que eu nunca percebi o fascínio que exerce o 2001, Odisseia no Espaço para estar agora a compor um prefácio a algo que leva Kubrick no título. Mas… cá estamos e o livro que leva esta espécie enviesada de prefácio, afinal, não tem nada de Kubrickiano. Bem pelo contrário, é um livro no terreno da nossa humanidade deste lado do cosmos, o lado que nos confronta com a força da gravidade de nós, um livro de histórias aparentemente desirmanadas, tão que acabam por se ligar circularmente nos extremos e serem, afinal, uma história por episódios, mosaicos num mural de vida. Eu não sabia que o Victor se dava a estas escritas. É aquela coisa de nunca sabermos quem habita por detrás de quem conhecemos, e eu conhecia o Victor. Ler o que aqui se apresenta é, estou certa na certeza, vislumbrar a pessoa no que tem de mais recôndito e, simultaneamente, mais próximo. Impressionaram-me as primeiras histórias que me foi enviando. Timidamente, a princípio, como a deixar-me ver por entre uma fresta, depois na plenitude do que tinha composto em anos de exercício escritor. E impressionou-me pela fluidez da escrita, a pontuação natural que respira e que é tão (e cada vez mais) rara. Impressionou-me a anglo-saxonidade, que tem na escrita, como a reconhecemos na vida quando o conhecemos. O traço da gentlemanliness introspectiva e observadora, contida e elegante. Por isso, estas histó7
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rias, contadas no masculino, são as histórias de um homem, ouso Victor; um homem que as tem para contar precisamente porque se deu à vida sem a deixar passar em claro e desapercebida. Sim, foi Vida o que mais me impressionou nos textos que ora se dão a público. A escrita e a pontuação, por (de)mais irrepreensíveis, são acessórios, a forma para o conteúdo, a Vida em maiúscula. Ler estes esboços de pensamento é ver por outros olhos, sentir com outros vagares, outras apreensões, outras subjectividades. Por vezes é ver sítios conhecidos tornarem-se desconhecidos ou, paradoxalmente, reconhecidos na familiaridade que com eles mantemos através do que o autor deles nos diz. É sermos levados a sítios físicos do mesmo modo que somos levados a sítios de intimidade psico-emocional. Agradeço ao Victor a partilha, o convite para percorrer essa intimidade de palavras e este outro para debitar umas quantas sobre o seu Obelisco de Kubrick. Ele sabe da minha antipatia por coisas de odisseias espaciais que metam monólitos, também sabe que aprecio o que escreve, o que não sabe, porém, é o quanto a sua humanidade se engrandeceu a meus olhos: obrigada. Ao leitor, a surpresa para daqui ler, quiçá, da (sua) própria Vida, o segredo, em suma, do obelisco… ISABEL TALLYSHA - SOARES
Nada, 12 de Outubro de 2015.
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NOTA INTRODUTÓRIA
Publicar pela primeira vez, depois dos setenta anos, textos de ficção que não se relacionam com a área académica das ciências sociais, a que nos temos dedicado profissionalmente desde há várias décadas, poderá parecer um exercício de diletantismo pretensioso derivado do assumir consciente de um “fim de ciclo”, perante a percepção inevitável de uma “mudança de paradigma”, como está na moda dizer-se, ou apenas o resultado de um passatempo próprio de quem não tem mesmo mais nada que fazer, nem melhor destino a dar ao tempo que lhe resta. Em qualquer dos casos, este exercício de escrita poderia ser considerado também como uma aventura, ou perspectivado como um desafio. No entanto, a concepção deste pequeno livro deriva apenas de uma questão de prioridades inseridas numa sequência de projectos. Trata-se de um objectivo que, finalmente, alcançou a dianteira dos propósitos hierarquizados desde há muito, e que só agora encontra a oportunidade e o momento propícios para a sua concretização. De facto, nem todos os textos seleccionados e agora publicados são de elaboração recente. Os mais antigos datam dos primeiros anos da década de 1970 e foram escritos sem qualquer intenção definida, para além da satisfação momentânea do prazer de escrever. As diferentes propostas textuais reflectem, por isso, não apenas uma natural evolução estilística, mas também o resultado do processo de maturação que as experiências vividas nos proporcionaram, e 9
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que adquirem expressão na diversidade temática e na qualidade variável da escrita. Os textos reunidos neste volume correspondem a momentos diferenciados, mas inequivocamente relacionados, de um percurso de vida único e irrepetível. A sua convergência induz as sinergias desenvolvidas entre a realidade vivida no contexto dessas experiências, e a imaginação inspirada que as mesmas despertaram em alguém que as viveu e que não se limita a contemplar o horizonte tomando a árvore pela floresta, confundindo a proximidade com a verdade, o efémero com o eterno, ou o ter com o ser. Alguém que, seguindo os conselhos de Merlin ao Rei Artur, ousa subir e voar como a águia para obter uma visão mais ampla e uma perspectiva mais abrangente sobre o plano alargado das vivências comuns. Uma perspectiva que permite observar as terras e os homens, mas a partir da qual não se enxergam as fronteiras que as dividem, nem se vislumbram as diferenças que os separam. Alguém que insiste em debater ideias, questionar preconceitos, recusar a intolerância, desafiar o imobilismo e as posições estáticas perante as dinâmicas evolutivas e inevitáveis da vida que acontece. Alguém que reconhece as fraquezas do ser humano que é, procurando, ainda que talvez em vão, testemunhar a firmeza dos princípios e a perenidade dos valores, como “o eixo da roda” que, no dizer de um mestre inesquecível, “acompanha a roda mas não anda”. As razões que nos levaram a divulgarmos estes “encontros” e a revelarmos estes “momentos” mas, sobretudo, os motivos do “agora”, talvez tardio, desta decisão decorrem da verificação de circunstâncias recentes, indutoras de uma inerente reflexão, e que nos permitem questionar, a partir da experiência adquirida, os princípios anteriormente adoptados, as premissas aparentemente inabaláveis e a permanência das constantes tidas, até agora, como indiscutíveis. A conjuntura evidenciou a oportuni10
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Nota Introdutória
dade e a necessidade de uma reavaliação serena e tranquila de tudo o que sempre considerámos importante ao longo da vida e que agora, à luz de perspectivas renovadas, parece adquirir uma importância relativa, perante a coerência de uma totalidade de valor absoluto, gradualmente revelada e reveladora daquilo que é realmente importante. Talvez as razões e os motivos dessa decisão, bem como as respostas decorrentes da inerente questionação reflexiva, se situem entre os efeitos do tempo, traduzidos na inevitável cedência de um projecto de vida e de um futuro, sempre adiados em nome de um amanhã utópico, orientador da acção e justificador de todos os esforços mas, de facto, nunca atingido, na permanente demanda de sentido para uma vivência concreta. Talvez sejam essas as causas menos perceptíveis mas, ao mesmo tempo, mais determinantes das formas e da densidade substantiva destas linhas que, afinal, materializam a realização de um sonho. VICTOR MARQUES DOS SANTOS
Bom Sucesso, 18 de Dezembro de 2014.
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VIAGEM AO MUNDO NOVO
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ar alegre e despreocupado da cidade estendera-se também à ruela estreita daquele bairro da periferia. O lixo amontoava-se por todos os lados alternando apenas com os vendedores ambulantes que atroavam o ar prometendo, em pregões mais ou menos enérgicos, este mundo e o outro. Um deles anunciava o último “pronto-a-vestir” acabado de importar da margem esquerda – aquela a que, antigamente, se chamava “a outra banda” – e cuja etiqueta dizia “Made in Hong Kong”. Outro, apregoava a felicidade em cassetes monofónicas mas que nem por isso eram menos estridentes quando reproduzidas no gravador japonês recém-chegado de Las Palmas. Um terceiro, vendia liberdades variadas, aos montes e de todos os tamanhos, se bem que filosóficas de mais para aquela rua. Mas apesar dos seus amplos gestos, a gente que passava virava-lhe as costas para olhar o outro passeio onde, mesmo em frente, um homenzinho pequeno, de olhos sempre no chão e ar circunspecto oferecia, também para venda, outras liberdades em livros e revistas com imagens mais palpáveis, garridamente dispostas no escaparate, algumas mesmo sem texto, logo, mais acessíveis. Era aquela rua pitoresca, cheia de sol, que todos nós conhecemos, de a vermos tantas vezes nas páginas das revistas estrangeiras. Lembram-se, por certo. O Ives Saint-Laurent até aproveitou o colorido do lixo para dar vida à nova colecção de inverno. Havia mesmo uma fotografia mostrando uma elegante modelo internacional com o braço sobre os ombros de
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um ser bizarro todo vestido de preto, que tinha sido recentemente promovido a mulher, sem nunca ter percebido porquê. Mas as revistas são muito limitadas. As imagens nem sempre valem mais que mil palavras. A realidade é tão diferente quando olhamos a rua e a sentimos ao mesmo tempo debaixo dos pés! Pois, é verdade que perdemos o conforto do sofá e o toque macio do papel. Mas, ah! Somos bem recompensados por aquele são odor a gente, misturado com a variedade inebriante dos perfumes do “nosso” tão querido e estimado lixo, pelos aromas fortes, comuns a todos os “nossos” pitéus tradicionais, que se esgueiram das cozinhas pelas portas das tascas, vindo espicaçar o apetite devorador das criancinhas subalimentadas que se divertem a caçar as inevitáveis moscas de zumbidos musicais. Somos assim atraídos por todo este ambiente estranho mas real, por um mundo que os bairristas apelidam de “o nosso”, que os clientes do Ives confundem com “les plages du sud”, que os sapientes crânios locais classificam como “o terceiro”, na esperança de que ninguém lhe chame “o quarto”, e ao qual a mulher de preto e eu nos referimos no quotidiano, ao suspirarmos à procura de um adjectivo sempre insuficiente. Este é o mundo para cuja manutenção todos contribuímos, de algum modo, com lixos de várias espécies, num infantilismo pateticamente humano e cromossomáticamente determinado, esperançados em vê-lo mudar antes de o deixarmos a caminho do “outro”. Foi nesta rua que ele deu os primeiros passos. Hesitantes, a princípio, cambaleando entre as quedas habituais. Aos dois anos, o seu mundo limitava-se ainda à rua onde nascera. Os caracóis loiros cobriam-lhe uma cabecita alegre, caindo sobre uma cara suja onde brilhavam dois enormes olhos castanhos e onde uma boquinha vermelha sorria sem saber porquê. Foi também por essa idade que lhe colaram o papel na camisola, e ele lá andava todo contente, saltitando por entre o lixo e 16
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Viagem ao Mundo Novo
as pernas dos vendedores. O único de quem ele não gostava era o homenzinho pequeno, sempre de olhos no chão, e que nunca o deixava mexer nos livros. Mas o senhor que vendia do outro lado da rua era totalmente diferente. Brincava com ele, dava-lhe rebuçados e obrigava-o a apanhá-los em bicos de pés, todo esticado, com o bracito no ar, bem alto. E quando ele, finalmente, atingia o rebuçado e o agarrava fechando-o no seu pequeno punho, o senhor ensinava-o a gritar qualquer coisa que ele não percebia, mas que não era o “obrigado” que ele já aprendera. Aquele dia amanhecera cheio de sol, como era hábito. Logo de manhã cedo a rua vibrava de actividade, transbordando de gente. Pela hora do almoço apareceu lá na rua um senhor ainda novo, de cabelo comprido, barba rala e óculos de lentes redondas, muito espessas. Vestia uns jeans velhos e uma camisola de gola alta, meio cinzenta, meio suja. Tinha também um papel colado ao peito e uma máquina fotográfica a tiracolo. Viera num “dois cavalos”, velho como o tempo, e dirigiu-se logo ao vendedor de liberdades filosóficas. Era muito simpático, o senhor. Falou com toda a gente, tirou fotografias e, por fim, aproximou-se dele olhando-o de cima e, sorrindo, estendeu-lhe uma flor vermelha. A rua parava observando a cena com sorrisos benevolentes. O senhor recuou alguns passos e, no momento em que disparava a máquina, ele tinha levantado o bracito como se fosse apanhar o rebuçado do costume mas, desta vez, era a flor, o que ele tinha esmagado, na mãozita fechada e, tal como o vendedor de liberdades o ensinara, gritou alegremente, o estranho “obrigado” que não entendia. Porém, logo se arrependeu, pois toda a rua à sua volta começou a gritar a mesma coisa, cada qual para seu lado e, tão assustadoramente, que ele quase morreu de medo e começou a chorar. O senhor das fotografias quis ainda dar-lhe outra flor mas ele não aceitou e, soluçando, baixou os olhitos e escondeu a flor 17
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esmagada atrás das costas. O senhor desistiu, fez-lhe uma festa e dirigiu-se para o carro. Já sentado ao volante, acendeu o “Gitanes” e, inspirando lentamente o fumo, olhou para a rua, onde a gente começava a dispersar. Por um momento, sentiu-se transportado a outra rua, noutra cidade muito longe daquela, a um mundo a que já um dia chamara “o seu” e que não era “o terceiro”, onde não havia gente mas pessoas, onde não havia lixo mas flores, onde as crianças sorriam só às vezes mas sabiam porquê e tinham a cara lavada, onde a música não era de moscas nem de vendedores ambulantes, onde a colecção de inverno sobrevivia mesmo sem o colorido do lixo, apesar de o sol não aparecer todos os dias. Suspirou, recostou-se no assento, pensou no póster que lhe tinham encomendado e sorriu. Arrancou lentamente e começou a dizer para consigo próprio: – “Afinal, até poderia fazer sentido, mas… o cravo esmagado na mão do miúdo e o autocolante ao peito, tudo ao mesmo tempo…não. Não pode ser…seria forte demais. Até eles próprios seriam capazes de compreender…”
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DIÁLOGOS DE MARÇO
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stava na fila havia quarenta e cinco minutos, quando a sua vez chegou. – “Bom dia, minha senhora…” – “Bom dia, faz favor…” – “Precisava de reconhecer esta assinatura.” – “Tem sinal aberto cá no cartório?” – “Hum… Não…” – “Tem consigo o bilhete de identidade?” – “Tenho… Espere… Não, afinal não tenho. É que estou a tratar de renovar o passaporte e tive de o deixar na agência de viagens. Mas tenho a carta de condução, o cartão de contribuinte, o…” – “Não serve. Tem que arranjar o bilhete de identidade.” – “Mas, como lhe estou a explicar…” – “E que quer o senhor que eu faça?”, retorquia a empregada já com um ar aborrecido. – “Não sei… Diga-me, ao menos, se há uma solução…” – “Bom…”, suspirou ela ignorando-o e exibindo a sua condescendência perante todos os presentes. – “Arranje duas testemunhas que estejam dispostas a assinar.” Ele olhou em volta e dirigiu-se à senhora que estava atrás dele na fila, aguardando pacientemente a sua vez. – “Desculpe, a senhora importar-se-ia de…” Mas ela não o deixou terminar: – “Geralmente há aí uns senhores que estão cá para isso…” – “São esses, aí sentados”, cortou secamente a empregada. – “Não estão aí para outra coisa”, concluiu. 19
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Ele dirigiu-se aos dois anciãos de cabelos brancos, modestamente vestidos, que se preparavam para deixar a velhice a caminho da antiguidade. – “Os senhores importam-se de…” Um deles cortou-lhe a palavra e, olhando para o outro disse: – “Claro! Não estamos cá para outra coisa que não seja para ganharmos uns dinheirinhos…” Ele ficou, por momentos, de boca aberta. Todo o diálogo se desenrolara com tal naturalidade e tão rapidamente, que o fez sentir-se num palco onde todos os actores conheciam perfeitamente as suas deixas e queriam chegar depressa ao fim da cena, interrompendo as falas uns dos outros. A empregada carimbou o papel selado. Os homens prepararam-se para assinar disputando-se com gestos cavalheirescos, oferecendo-se mutuamente a precedência do acto. O primeiro demorou um minuto a assinar. O outro aproximou-se com a mão trémula, animando amavelmente o companheiro: – “Está a ver que eu tenho razão? Eu bem lhe digo que o senhor assina mais depressa do que eu!” Quando acabou de assinar, dirigiu-se à empregada com o documento a tremer-lhe nas mãos, ignorando-o ao passar por ele. – “Posso entregar isto ao senhor?”, perguntou o velhote com um ar entre o grave e o solene. – “Pode”, respondeu a empregada sem olhar. – “Mas… a senhora não vai precisar dos bilhetes de identidade destes senhores que assinaram?”, questionou ele meio estupefacto. – “Não, já os conheço. Aliás, já lhe expliquei que não estão aí para outra coisa!” Decididamente, aquele era o dia das surpresas, pensou ele, e voltando-se para as peculiares testemunhas, perguntou: – “Quanto é que lhes devo?”
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Diálogos de Março
– “É aquilo que o senhor quiser dar…”, respondeu um deles baixando os olhos e encolhendo os ombros. Naquele momento, não saberia descrever o que sentia. Mas a primeira pergunta que lhe veio à ideia foi: “o que teria o Estado feito com os seus descontos para caixa de previdência, para o fundo do desemprego, para o imposto profissional, para o imposto complementar?” Pelo que estava à vista, aqueles dois também não sabiam. Meteu a mão no bolso e tirou cem escudos para cada um. – “Está bem assim?” Olharam-no pela primeira vez, os dois ao mesmo tempo, com o espanto e o contentamento estampados no rosto. – “Muito obrigado, senhor…muito obrigado…!” Saiu do cartório a passos largos. Sentia-se confuso. Havia nele um misto de revolta e de choque, de que ainda não se refizera totalmente. Aquilo a que tinha assistido era, pura e simplesmente, a corrupção institucionalizada. Provavelmente aqueles pobres ainda pagavam a alguém para os deixar estarem ali sentados. À medida que se afastava do local, a marcha rápida foi-lhe esfriando as ideias e, a certa altura, deu por si a pensar que talvez a situação não fosse tão negra como a pintara a princípio. Para já, tinha resolvido o seu problema. Depois, era bem mais saudável para aqueles respeitáveis velhinhos estarem ali em contacto com o público, num lugar abrigado e num ambiente de trabalho, do que andarem pela rua a pedir esmola, passarem o dia na taberna, ou encarcerados num asilo. Envolto nestes pensamentos, chegara ao fim da rua. Quis atravessar, mas o semáforo estava vermelho para os peões. Parou e, enquanto esperava o verde, olhou para o muro branco do outro lado da rua, onde alguém escrevera: “Adere á greve. 25 de Abril sempre!” Notou o acento agudo no “a”, suspirou e olhou para o céu, franzindo o rosto. 21
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A primavera chegara mais cedo. Estava-se numa amena manhã de sol, nos primeiros dias de Março, e ele pensou para si, com um certo ar apreensivo, que se aproximavam as celebrações do oitavo ano da revolução. O vermelho passara a verde.
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A FOLGA1
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eve finalmente coragem para abrir os olhos. Sem se mexer, procurou com eles alguma claridade e a que encontrou vinha, como habitualmente, das frestas do estore que deixara aberto na véspera. Entrara na fase final do acordar. Não sabia que horas eram, mas que importava isso? Recordava-se ainda de que, nesse dia, não iria trabalhar e esse facto deixava-o muito mais descontraído do que habitualmente. Deixou-se ficar assim algum tempo. Pensou o que costumava pensar, concluiu o que costumava concluir e, como não ia trabalhar, teve mesmo tempo para se dar ao luxo de sonhar um pouco. Por fim, decidido a enfrentar a realidade, deu meia volta na cama e ligou o rádio. Os primeiros sons chegavam até ele, naquele dia. Canto gregoriano. “Que sorte!”, pensou. A sua tentativa para pôr termo à preguiça que o invadia estava, logo de início, a ser posta à prova por aquela música que ainda lhe concediam as pilhas gastas do pequeno aparelho. Com a determinação própria dos “aries” estendeu novamente o braço, calou a música e sentou-se na beira de cama afastando os cobertores num gesto brusco. Respirou fundo e levantou-se, sentindo-se um pouco tonto. Não teve coragem suficiente para abrir mais o estore e enfrentar o dia na sua totalidade. Lembrou-se da pneu-
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A versão original deste texto foi escrita na madrugada de 11 de Janeiro de 1974, e publicada in Vôo, Revista do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil, n.º 40, Lisboa, SNPVAC, Fevereiro/Março de 1977, pp. 7-8. 23
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monia e vestiu o roupão de turco verde-escuro, antes de sair do quarto. Mesmo assim, sentia frio, pois não tinha aquecimento central e o resto da casa, ao que lhe pareceu, estava gelada. Andou cambaleante, a princípio, apoiando um ombro na parede áspera. Tropeçou em qualquer coisa, olhou para baixo e viu que era a sola da pantufa que protestava já contra uma razoavelmente longa vida de trabalho. “Que pena…”, pensou. “Como estas, dificilmente terei outras… Quem mas há-de trazer do Lesotho…?” Dirigiu-se à cozinha e encarou o dia a cem por cento. Estava cinzento e feio. O vidro embaciado da janela não o deixava ver o exterior, mas também não era necessário, porque ele já conhecia a paisagem e podia reconstituí-la de memória: sempre os mesmos prédios à volta, sempre os mesmos montes de lixo a separá-los. Abriu o frigorífico, serviu-se de um copo de leite, foi para sala e sentou-se no sofá. Começou a beber em pequenos tragos mantendo o copo na mão. Passados alguns minutos, o vidro arrefecido pelo leite gelado fez-lhe doer os dedos. Pousou o copo na mesa baixa à sua frente e meteu a mão do bolso, encolhendo-se dentro do roupão. Esticou as pernas por baixo da mesa e ficou naquela posição deixando escoar o tempo. Fechou os olhos. Ouviu o silêncio que vinha de fora, quebrado eventualmente por algum carro, riso de criança ou latido dos cães da vizinhança. Pensou novamente, com toda a lentidão a que o ambiente convidava. Viu as gotículas formarem-se no vidro do copo à sua frente, escorrerem pouco a pouco para a base e depois para o tampo da mesa. Voltou a pensar, começou e acabou rapidamente por concluir pela milionésima vez, a primeira ideia que concluíra havia muitos meses. Quantos, não se lembrava, mas também não era importante. Continuou a ouvir o silêncio, pensou em ouvir música, mas o rádio ficara no quarto e não lhe apetecia mexer-se. Olhou em redor e viu, mesmo ao seu 24
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A Folga
lado, a viola. Os seus lábios ameaçaram esboçar um sorriso e, ironicamente, pensou: “afinal, não estou tão só quanto parece!” Agarrou a viola, encostou-a ao peito com exageros de ternura e começou a dedilhar as cordas arrancando-lhes alguns sons. Passados alguns momentos, compreendeu que o silêncio era pesado demais para se elevar e desaparecer com tão abafados ecos. Começou a cantar, mas estava rouco, terrivelmente rouco. Com efeito, pensou, ainda não tinha falado nesse dia. Parou e ficou vergado sobre a viola olhando sem ver, o vácuo à sua frente. Tinha que fazer qualquer coisa para quebrar aquela monotonia insuportável, aquele ambiente apenas comparável a um angustiante deserto que, incessantemente, o mantinha em conflito com o seu próprio eu. Tinha cartas para escrever, papéis para arquivar, livros meio lidos e… “good God!” Por que não se teria ele lembrado antes? Tinha também amigos! E um telefone! Rápida mas cuidadosamente, depositou a viola a seu lado no sofá, levantou-se depressa demais, bateu com a perna na mesa provocando uma tempestade no copo meio de leite. Ignorou tudo isso, voou até ao aparelho, pegou no auscultador com as duas mãos e encostou-o ao ouvido. O som próprio para estabelecer a ligação penetrou-lhe no cérebro, alertando-o de que faltava qualquer coisa. “O quê? Ah! Pois claro…!” Ele é que tinha que falar, que marcar o número. Mas que número? Mas, afinal, para quem é que ele queria ligar? Lentamente, baixou o auscultador. Não lhe vinha à memória número algum a não ser o seu, que agora era outro e não aquele em que pensava. Pousou o auscultador no descanso, muito devagar e, mais uma vez, pensou como era bom viver num sítio calmo, sem ouvir o ruído da cidade… e começou a duvidar da validade desse pensamento. Olhou para fora. O dia começara, havia muito, a fazer a sua retirada. De pé, encostado à parede, sentindo nas costas o frio húmido, deixou-se ficar durante longos minutos. Não podia con25
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tinuar assim, pensou ele, tinha de reagir, fazer qualquer coisa, sair dali… De repente, tão inesperadamente que quase o fez saltar, o telefone, mesmo ali ao seu lado, retiniu. Olhou perplexo para o aparelho. “Finalmente!”, pensou, “finalmente!” Levantou o auscultador e, aclarando a garganta, num misto de curiosidade e esperança, não sabendo bem de quê, disse: “Estou, sim?” Do outro lado, a voz veio acompanhada dos ruídos característicos de uma má ligação. Perguntaram-lhe se era daquele número e se ele era aquele senhor. Respondeu que sim. A sua curiosidade transformava-se rapidamente em receio, pois não conhecia a voz. Num tom decidido perguntou: “Quem fala?... Está lá?... Quem fala, por favor?” Responderam-lhe e informaram-no de que, também no dia seguinte, estaria de folga e, portanto, não iria trabalhar. Na outra extremidade do fio, a voz gracejou congratulando-se com o facto, despediu-se e desligou. Ele ficou estático, com o telefone na mão. Agora, também o auscultador estava silencioso. Baixou a cabeça e sentiu algumas rugas a formarem-se na testa. Lá fora era noite. Olhou para a rua e viu as luzes acesas nas janelas dos outros prédios. Às apalpadelas, dirigiu-se ao quarto, acendeu a luz e viu as horas. Eram muitas. Nunca pensou que pudessem ter passado tantas… Afinal, não escrevera a ninguém, não arquivara nenhum dos papéis, e aqueles livros que começara a ler com tanto interesse, continuavam amontoados ao lado do rádio, junto à cama desfeita. Tinha os tais amigos com quem podia contactar, enfim, tantas maneiras para quebrar aquele marasmo que, secretamente, para não parecer trágico, ele sabia chamar-se solidão. Olhou à sua volta. Reinava a desarrumação. Pensou que, no dia seguinte, estaria também ali, àquela hora, talvez na mesma posição… Decididamente, aquilo não podia continuar. Num 26
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A Folga
gesto brusco, despiu o roupão, dirigiu-se à casa de banho e, pelo caminho, ligou o televisor. Estava finalmente a acordar, pensou. Olhou-se ao espelho e não gostou do que viu. Escovou os dentes, passou o pente pelo cabelo e achou que não valia a pena fazer a barba. Voltou ao quarto. As imagens mudas do televisor mostravam uma vasta multidão aclamando alguém que, de costas para a câmara, agradecia de braços abertos as saudações que lhe eram dirigidas. A câmara focou o alguém mais de perto e de perfil. Reconheceu o Papa e desligou o aparelho. Enfiou energicamente os jeans que, no dia anterior, deixara pendurados na cadeira, vestiu uma camisola, o blusão e foi à sala buscar as chaves do carro, os documentos, o dinheiro…não, não faltava nada. Abriu a porta e saiu. Respirou fundo e saltitou pelas escadas abaixo tentando recuperar o tempo perdido. Os odores das cozinhas esgueiravam-se por baixo das portas dos apartamentos e envolviam-no. Meteu-se no carro, desceu o vidro para deixar sair o silêncio e entrar o ar frio da noite. Arrancou vagarosamente, sem pensar para onde se dirigia. Decidiu-se, ao fim de alguns minutos, por um restaurante perto dali, onde já o conheciam e onde sabia que seria bem atendido. Um tanto aliviado, pensou que o dia chegara ao fim. Pensou que não fora um dia, hum…um dia, ora…um dia feliz. Mas, afinal, o que era a felicidade? O importante é que já passara, ou estava quase a terminar, e a terminar melhor do que começara. Pelo menos iria ver gente, falar com alguém, enfim, sentir-se só mas no meio de outras pessoas. Estacionou o carro à porta do restaurante e entrou. Estava cheio. Olhou em redor à procura de mesa e não viu nenhuma vaga. Ao fundo, o gerente, atarefado, distribuía sorrisos e travessas. De repente viu-o e reconheceu-o, sorriu-lhe entre dois pratos e fez-lhe sinal para esperar um pouco. 27
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Ele esperou, reparando distraidamente nos outros clientes. Que bem vestidos que estavam, à vista dele! Claro que isso não o afectava nada. Em qualquer sítio, sentia-se sempre em casa. Naquela noite, havia também várias crianças brincando por entre as mesas. Algumas delas tinham chapéus de cowboy e revólveres de plástico com os quais se atingiam mutuamente, disparando sons e cuspo ao mesmo tempo, pelas boquitas escancaradas. A empregada passou por ele e disse “boa noite!”, sorriu-lhe e entregou-lhe a ementa. Reparou que ela tinha um penteado diferente. Olhou a capa da ementa. Também já a poderia recitar de olhos fechados. Até os pratos do dia ele sabia de cor. Aliás, àquela hora, já não haveria o prato do dia. Vagava, finalmente, uma mesa perto de si. Sentou-se, abriu a ementa e verificou, com espanto e desagrado, que era diferente do habitual. Havia um menu fixo: sopa, dois pratos principais, e sobremesa. Que azar! Logo naquele dia, em que ainda não comera nada, tinha de se sujeitar àquilo! Sim, porque o que lhe apetecia era bacon, salsichas, ovos, chá e torradas com manteiga! Mas, acima de tudo, muito mais do que isso, o que ele realmente desejava, aquilo de que ardentemente sentia saudades, o que ele desesperadamente precisava e aquilo com que sonhava tantas vezes que quase podia respirar… era o som do estrelejar dos ovos na frigideira, o aroma do bacon e das salsichas a fritar, era o calor da água para o chá a borbulhar ao lume, o perfume único do pão quente e o conforto que só as suas velhas pantufas feitas à mão pelos Basothos de Maseru, já se negavam a conceder-lhe…! Mas, para quê pensar nisso agora? O que ele queria não havia mas, pedindo ao gerente, talvez ele arranjasse, pelo menos, um bife. Era isso mesmo! Um bife serviria perfeitamente. Ora que disparate! Fazer-se uma ementa só com dois pratos! 28
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Fechou a carta, levantando os olhos e viu o gerente aproximar-se com o seu habitual ar solícito e redondo. Já o vira dezenas de vezes mas, nessa noite, poderia jurar que o homem estava diferente. Olhou-o atentamente, e descobriu então a diferença. Era a gravata. O gerente trazia uma gravata nova, azul escura com bolas brancas. Seria fã do Gilbert Bécaud?, ironizou para consigo. Mas não era só isso. Nessa noite, o homem tinha um ar de felicidade estampada no rosto, como nunca lhe vira antes. Caminhava por entre as mesas com um sorriso cândido, as sobrancelhas formando um arco interrompido a meio, a cara bolachuda, o bloco numa das mãos e a caneta na outra. Por fim, parou junto à mesa dele. Esboçou uma vénia que julgou estar à altura do restaurante, do cliente, do momento, da função e da encomenda. E, sem deixar de sorrir, olhou-o bem nos olhos, como que a querer transmitir-lhes o brilho que os seus próprios olhos irradiavam e, antes que ele pudesse abrir a boca, juntou as mãos, o bloco e a esferográfica num só molho, e disse com voz forte: – “Ora então muito boa noite e um feliz Natal, senhor…”
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O QUARTO DO GRITO
B
aixei o livro e olhei em frente, recostando a cabeça. Ao longe, vi o Armindo pegar na alemã pela cintura, levantá-la suavemente do chão, colocá-la sobre o balcão do bar, ao lado do copo e sorrir-lhe, expondo os dentes alvos em contraste com a latinidade da pele. Estava a alemã a recuperar, ainda de boca aberta, quando o Estélio me fez desviar a atenção atirando com o bule de chá para cima da mesa à minha esquerda, num gesto calculado e com a indiferença própria de quem nunca bebera o precioso líquido, apesar de passar a vida a servi-lo. – “No fim do mês raspo-me para o Algarve”, segredou-me ele. – “Mas porquê? Isto aqui já não está a dar?”, perguntei eu para dizer qualquer coisa. O Estélio franziu o sobrolho, encolheu os ombros e retorquiu em tom cúmplice: – “Isto aqui dá sempre, mas lá em baixo um tipo tem mais espaço…mexe-se mais à vontade.” Sorriu, olhou em redor e acrescentou: – “…E depois, aqui é tudo velhada…!” E com esta, retirou-se no seu peculiar passo de raposa, ziguezagueando vagarosamente por entre os corpos cor de lagosta. Preparava-me para iniciar o solene ritual que qualifica o meu chá em relação ao dos outros, quando ouvi o João, em surdina: – “Que ricas férias que eu passava ali…!” Suspendi o gesto e segui-lhe o olhar semi-cerrado a tempo de apreciar a inglesa que, mais uma vez, se lançava na piscina transformando o mer-
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gulho em voo de anjo. Acalmada a ondulação, debrucei-me e alcancei a chávena. – “Não sei como consegues beber chá com este calor… ainda se fosse chá gelado…!” Por momentos a leitura fizera-me esquecer a sua presença. Olhei-a, ofereci-lhe meio sorriso e tive a certeza de que, mais uma vez, ela não compreenderia a minha resposta. – “É uma questão de hábito… Tomo chá desde pequeno”, atirei-lhe à laia de ponto final, dispensando-me de lhe dizer o que pensava sobre o chá gelado. Fechei “A Ilha” e saboreei, finalmente, a controversa infusão. Assim se escoava mais uma tarde de verão, prelúdio de noite que, por certo, não seria a tal do sonho. Os compradores de sol começavam a retirar-se enquanto a mercadoria se esgotava rapidamente. As sombras apontavam, resolutas, para a saída e os empregados ameaçavam varrer-nos com o lixo, se não nos apressássemos. Quando passei pelo bar, ouvi o Armindo convidar a alemã para uma “expérience anthropologique chez un natif de la culture méditerranéenne”, e não pude evitar um sorriso ao pensar na verdade sócio-geográfica onde a consciência do Armindo o situava. Sentei-me ao volante e esperei que ela desse a volta ao carro. Ia já distante o tempo em que lhes abria a porta. Pelo retrovisor, observei-lhe o passo insinuante, as pernas bem torneadas, agora favorecidas pelas sandálias de salto alto, e o movimento cadenciado das ancas. De súbito, perguntei-me o que estaria eu ali a fazer e, como de costume, não encontrei resposta. Afastei rapidamente o pensamento, condenando-me o vício das lucubrações filosóficas extemporâneas. Ela, entretanto, abria a porta e entrava trazendo consigo o odor do après soleil de Orly. – “Vamos tomar um whisky?”, propus.
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– “Vamos onde quiseres!”, respondeu ela, sorrindo cheia de vivacidade e atirando os braços para cima num gesto de descontracção. Acordei o motor e arranquei. Liguei o rádio, procurando abstrair o tráfego e passar aquele fim de tarde o melhor possível. – “Este carro não se abre?” A pergunta veio tão rápida e inesperadamente, que me apanhou de surpresa. – “Como?” – “Pergunto se o carro não se pode abrir”, repetiu ela olhando para cima. – “Pode. Ainda há pouco antes de entrares, abriste a porta, lembras-te?” – “Não é nada disso”, atalhou ela com um gesto impaciente. – “O que eu quero dizer é se o tecto não sai…” – “O tejadilho sai, sim”, retorqui eu repentinamente, para que o suspiro que se seguia pudesse sair também, mas em silêncio. Entretanto, ela não se dava por satisfeita. – “Então, se sai, por que não o tiras?” – “Porque não tenho tido tempo”, menti. – “Mas deve ser fácil, não?” – “É facílimo. E depois de tirado, ainda é mais fácil tirarem-me o resto do carro…” Ela sorriu, concluindo: – “Ah! Lá isso é…!” Mergulhei nos pensamentos habituais. Pensei que estava a ficar velho, a passos largos e sem paciência para nada nem para ninguém. Pensei que a sorte já não queria nada comigo e que não se vislumbravam dias melhores, nem sequer diferentes. Pensei que nos últimos tempos todas me pareciam iguais entre si e que, para além disso, aquela em particular, parecia apostada em interromper as minhas desoladoras cogitações. – “Mas, afinal, onde é que vamos beber o copo?”, perguntou ela, meio apreensiva, ao ver o “Forte Velho” ficar para trás e sem perceber o que se estava a passar. 33
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– “Vamos a minha casa”, disse eu aclarando a garganta. – “A tua casa? Mas tu sabes se eu quero ir a tua casa?” A sua voz, meio esganiçada, traía a falsa indignação que o seu estatuto social lhe impunha. Respirei fundo antes de falar: – “Não, de facto, não sei se queres ir a minha casa, mas…enfim, como disseste para irmos onde eu quisesse… Bom, entretanto é melhor ires pensando se queres ou não. Antes de lá chegarmos, claro…!” Sorri-lhe para temperar a sugestão. A resposta veio alguns segundos depois, algo hesitante: – “Bem, está bem, vamos. Mas olha que eu não me posso demorar!” – “Eu também não.” A frase saíra-me pela boca fora, sem mais nem menos, revelando a minha falta de paciência para aquele género de diálogo. Por momentos receei que ela compreendesse por que era que eu não me poderia demorar. – “Tu também não te podes demorar? Porquê?” – “Porque…porque não janto em casa…e já se faz tarde”, improvisei eu, meio desprevenido e ficando com a sensação de não ter sido muito convincente. – “Onde é que vais jantar?” Decidi que a conversa tinha de terminar ali e naquele instante, ao sentir a paciência a esgotar-se rapidamente. A seguir, perguntar-me-ia “com quem”. De repente, tive uma ideia brilhante para pôr termo à situação: – “Vou jantar a casa dos meus pais”, rematei em tom peremptório. – “Ah!”, fez ela um tanto desiludida. Chegávamos, finalmente. No pequeno rádio, a voz do James Taylor cantava as senhoras da vida dele, quando lhe cortei barbaramente a palavra. Estacionei no lugar que os vizinhos me tinham reservado. Até ali, estava tudo de acordo com a rotina. Como era hábito, já me tinha perguntado por que é que eu guiava devagar, por que 34
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é que eu tinha um carro de dois lugares, por que é que eu vivia fora da cidade, por que era que nunca havia apartamentos para alugar ao pé do meu, por que era que, “logo hoje”, eu não jantava em casa, quem era que cozinhava e limpava o pó, por que é que eu gostava de viver sozinho, quem era que…por que era que eu não queria…haveria certamente imensas pessoas que… Consolei-me com o pensamento de que faltava apenas o copo para completar a boa acção do dia. O vigia de serviço era o do primeiro esquerdo. Registou desdenhosamente as entradas, secretamente frustrado no seu voyeurismo, pelas pessoas que o olhavam de frente sem o verem, ignorando-o tanto a ele como ao seu ponto de vista, indiferentes à transparência que transformava a sua presença numa ausência total. Incomodado pelo olhar directo e frontal do alvo observado, virou os óculos para o fundo da rua constatando, pela enésima vez, que o mar só se enxerga do terceiro. Saiu da varanda, irritado, e foi insultar a mulher por viverem num primeiro andar. Subimos a escada devagar, ela à minha frente. Por alturas do penúltimo lanço, parou, deixou-me passar e soltou, ofegante, o comentário do costume: – “Uf! Tens que mandar pôr aqui um elevador…!” Era escusado responder-lhe que se fumasse menos e fizesse mais exercício, talvez só tivesse dito aquilo no telhado. Abri a porta e deixei-a entrar. – “Ai que quadro tão giro! Onde é que compraste? O tecto já estava assim, ou foste tu que…” – Passou para a sala, cantarolando, e foi desarrumar as estatuetas mexicanas. – “Queres com música?”, atalhei eu recordando o Vittorio Gassman n’“A Ultrapassagem”. – “O quê?”, retorquiu ela, sem perceber. Resolvi mudar de tema e perguntei: – “Queres gelo no whisky?” 35
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– “Sim, por favor… Mas disseste qualquer coisa com música…” – “Perguntei se gostavas de música.” – “Adoro música! Tens a quinta?” – “Qual quinta?” – “A quinta sinfonia, é evidente!” – “ De Beethoven?” – “Hum… Sim! Acho que sim…” – “Não. Não tenho nada de Beethoven.” – “Não tens? Que pena… Mas então o que é que tens?” Aproximava-se dos discos olhando fixamente o tecto. Na mão, trazia um ídolo azteca em ónix, com o qual coçava distraidamente a cabeça. – “Tens o Tchaikovsky?”, perguntou-me bruscamente, baixando os olhos do tecto até encontrar os meus. Quis responder-lhe, mas ela não deixou. – “Tenho um…” – “O concerto, tens?” – “Bem, tenho mas…” – “Então põe, está bem?” Resolvida a questão da sua preferência musical, deixou-se cair no sofá. Coloquei o disco sobre o prato, com o respeito que ambos me merecem, e sentei-me em frente dela, pronto para saborear o “Grant’s”. Os seus olhos percorriam a sala. Tinha-se recostado confortavelmente, descalçado as sandálias e cruzado as pernas num gesto descontraído. A posição fizera-lhe subir o vestido curto, revelando o bronzeado das coxas generosas que se moviam uma sobre a outra ao sabor do ritmo imposto pelo pé que balançava no ar. A sua mão, pequena, pendia do braço do sofá segurando o copo, enquanto a outra acariciava vagarosamente os cabelos num gesto calculado. 36
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– “Tchin tchin!”, exclamou ela, por fim, erguendo o copo na minha direcção e temperando o gesto com um sorriso insinuante. Correspondi ao gesto e fiquei em silêncio. O David atacava o allegro moderato, pleno de virtuosismo e energia. O sol acabava de se esconder e a sala recebia agora o que restava da luz suave do poente. Dei pelo tempo a passar por mim e deixei-o ir. Senti-me, de súbito, muito cansado, só e arrependido de a ter convidado. A sua presença deixava de me ser indiferente e começava a tornar-se ligeiramente desagradável. Desejei ardentemente que ela se recordasse de que não poderia ficar muito mais tempo. Tentei iniciar o diálogo, dizer qualquer coisa já que, para ela, qualquer coisa serviria. Mas não me apetecia falar, não valia a pena e não tinha obrigação de o fazer. Senti mesmo um sorriso a desenhar-se-me no rosto, ao pensar que já não tinha paciência para fazer o que não me apetecia. Seria a idade? Claro que não. Pelo menos por enquanto… A ideia, no entanto, não me deixava muito à vontade. Quando me recostei, ela tomou a iniciativa. – “Tens uma casa muito gira, sabes?” – “Não é má…”, concedi. – “É grande? Quantos quartos tem?” A seguir, era costume perguntarem-me quanto é que eu pagava de renda. Ela, porém, interrompera-se repentinamente. O indicador da mão direita apontava para o gira-discos. Tinha a boca aberta e o olhar em alvo, meio acusador, fixo em mim mas sem me ver e, então, decretou, categórica: – “Isto não é o Tchaikovsky!” – “É…”, tentava eu explicar. – “Não é, de certeza! Porque eu tenho o disco! Este nem tem piano!” – “Mas este é o…”
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– “É o que quiseres, menos o Tchaikovsky! Aposto contigo! Provavelmente, tinhas outro disco metido na capa do Tchaikovsky…” A hipótese atingiu-me como um tiro. Pousei cuidadosamente o copo na mesa que nos separava. De um salto, levantei-me e parei o gira-discos. – “Posso pôr outro mais ligeiro?”, indaguei, disposto a arquivar o incidente. – “Podes”, autorizou ela. – “Tens o Barry White?” – “Tenho” – “Então, põe”, ordenou. Sentei-me novamente, medindo a velocidade de cada gesto, tentando situar-me, de olhos semi-cerrados, tirando um azimute imaginário ao horizonte de cimento. O Barry começava a roncar em americano, ajudado pelo vai-vem da perna dela. – “Afinal, que disco era aquele que tinhas posto antes? Não era o Tchaikovsky, pois não?” A sua voz tornara-se inesperadamente suave, como que a pretender desculpar-se de uma possível gaffe, que a sua sensibilidade pressentia sem, no entanto, conseguir perceber nem identificar. – “Não”, respondi, lacónico. – “Posso ver o que era?” – “Podes.” Levantei-me novamente, amaldiçoando em pensamento a bisbilhotice mórbida disfarçada de curiosidade interessada, o grau de popularidade que o russo atingira e a minha mania de praticar boas acções. Estendi-lhe a capa com o disco dentro. – “Mas…mas…diz aqui na etiqueta que é o concerto de Tchaikovsky. Mas tenho a certeza que não é… Este não tem piano…” Falava já sem convicção, adivinhando-se perdida e reconhecendo a inconsequência do esforço. O tom era de desculpa e a desorientação, evidente. – “Esse é um concerto de Tchaikovsky para violino. O que tu querias era, talvez, o Primeiro Concerto para Piano.” Ten38
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tei falar num tom descontraído, conciliatório, dissimulando a minha impaciência e a sensação incómoda que a sua presença me causava. Devo tê-lo conseguido, pois a sua resposta não se fez esperar. Como se eu tivesse tomado por virtude a sua ignorância pretensiosa, encerrou calmamente o assunto com um: – “Ah! Então deve ser isso”, e continuou: – “Mas, dizia eu, tens uma casa enorme! Posso ver o resto?” Levantámo-nos e, de copo na mão, fomos deambulando pela casa enquanto eu explicava para o ar a utilidade de cada divisão. Ela olhava tudo de alto a baixo, como se estivesse a avaliar a hipótese de uma eventual aquisição, enquanto, com o indicador, agitava o gelo dentro do copo. Eu, pelo contrário, já não conseguia disfarçar o desinteresse total nem a indiferença pelo facto de ela poder perceber. Veio-me à memória o tempo em que mostrava a Torre de Belém aos franceses e lhes vendia, convicto, pormenores mais ou menos históricos sobre as invasões. Lembrei-me de dias como aquele, vinte anos antes, quando não havia lixo nas ruas, quando os azulejos de prédios luziam ao sol sem papéis a tapá-los, no tempo em que os Jerónimos se iluminavam à noite, mesmo quando não havia hóspedes em Queluz. Quando chegámos à última porta à esquerda, disse-lhe, no mesmo tom monocórdico: – “Este é o quarto do grito.” – “O quarto do quê?” – “Do grito”, repeti, absolutamente certo de que ela ouvira bem à primeira. – “Mas que confusão, meu Deus! Tudo desarrumado… O que são estes papéis, todos espalhados de qualquer maneira?” – “São papéis, enfim, vários…” – “Não percebo…” – “Não te preocupes, está tudo metodicamente desarrumado.” – “Metodicamente desarrumado?”, repetiu, incrédula e franzindo a testa: – “Que complicado que tu me saíste!” 39
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