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Fernando Jacques – JAX

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM O ESCRITOR

FERNANDO JACQUES – JAX-----------------

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FERNANDO JACQUES DE MAGALHÃES PIMENTA (JAX) Nascido no Rio de Janeiro, 2/junho/1952. Tijucano, tricolor, salgueirense. Diplomata de carreira, formado em Direito pela UFRJ. Mestrado em Ciência Política, Universidade George Washington, EUA Livros: Traços e Troças (2015); Ibitinema e Outras Histórias (2016); No Ritmo do Jax (2019), Lamparina Luminosa, SP; Afinal de Contos... (2019), Illuminare, RS; Microcontos, MiniPoemas, Curtas Reflexões para uma Vida Breve (2020), Assis, MG; Antologias: Prosa e Poesia Brasileira, SOL, RJ; Contos de uma Primavera, Illuminare, RS; Coisas de Mãe, Assis, Uberlândia/ Lisboa, Brasil/Portugal; JAX e outros Autores, Palavra É Arte, SP (2019); E-Book Microcontos de Humor de Piracicaba, 2019; Ditos e Feitos, Antologia de Contos e Crônicas, Recanto das Letras, SP (2020).

CHUMBO ACHATADO

Amente guarda cada lembrança! Momento de olhar distraído sobre chinelos usados na tenra infância, nem se sabe se de couro legítimo ou sintético. Cenas de antigos programas de TV. Noites Cariocas. Praça XI. Dona Feliciana. As intelectuais. Quadros repetitivos que por isso mesmo ficaram na memória, ao contrário de tantos nomes e piadas de que não há meio de lembrar. A menina de vestido cor de rosa que brincava com os irmãos ou amiguinhos, no outro lado da Avenida Maracanã, na beira do quartel da PE, lá longe da janela do sétimo andar do apartamento de onde era observada. Garotos que maldosamente atearam fogo ao velho resto de tronco caído de árvore, em forma de dinossauro. Destruíram o que já estava extinto. Almanaques do Correio da Manhã largados sobre a velha escrivaninha da fazenda. Suplementos infantis do mesmo jornal, revistas de palavras cruzadas e de variedades, fotonovelas, fumo em rolo, palhas secas de milho, trastes diversos. A maior parte de tantas lembranças de nada serve. Meras fotos ou filmes de curta ou curtíssima metragem, que não contêm ensinamentos nem se revelam edificantes a ponto de merecerem romance, conto ou crônica. Sua função consiste em ocupar espaço ocioso nos escaninhos da memória, à espera de serem evocadas de quando em vez, no habitual exercício do diletantismo. Talvez se prestem, em todo caso, a recuperar parte da infância, da adolescência e da idade dita adulta. Uma lembrança leva a outra, num encadear sem fim. Qual o sentido disso? Bom, dizem que re-

CHUMBO ACHATADO

cordar é viver. Pois que assim seja. Recordações sempre fazem pensar, refletir em certa medida, e o bicho homem constitui ser pensante incessante. Pouco importa o que pensem! Algo dá para o gasto. Já que os tempos de chumbo continuam, na forma do custo de vida e das inesgotáveis contas a pagar, da burocracia também incessante, e de tudo mais que enche o saco de cristãos e pagãos, a mente refugia-se na lembrança de um chumbinho, agradável e ingênuo. Final dos anos 60: pai e filho divertiam-se na placidez da roça com as espingardas de ar comprimido recém-compradas. Tiro pra lá e pra cá, mas somente em latas, paus e galhos, objetos que convidavam à pontaria, sem perigo. Nada de mirar nas galinhas e na criação em geral. Sem então o saber, agiam de modo “politicamente correto” (esta quase aberração modernosa). Para não exagerar e fugir à verdade, alguns seres vivos sofreram com os chumbinhos, no caso, frutas que, uma vez no ponto de colher, requeriam cuidado em retirar os caroços, naturais e “artificiais”. Ninguém é perfeito... Desse tiro ao alvo, a mente, caprichosa, guardou a lembrança específica do venerável e resistente frasco de vidro azul de um leite de magnésia (agora, tudo é plástico). O garoto resolveu alvejá-lo, seguro de que os projéteis apenas desestabilizariam o frasco vazio ou, no máximo, o derrubariam em cima da mesa. Para sua surpresa, depois de alguns tiros, o último espatifou o heróico vidro, cuja resistência atingira o limite! Quando foi ver o estrago, encontrou o chumbinho achatado no meio dos cacos azuis. Parecia modelado com requinte artístico. Chumbo em forma de flor ou de sol, abertos e radiantes. Deveria haver sido tombado para a posteridade. Pequena obra de arte em homenagem à magnésia despedaçada. Visto à distância do tempo, o episódio poderia ser reinterpretado de variadas maneiras. Seria o chumbinho o símbolo do assalariado a bater-se contra o muro da carestia até vencer a luta com seu auto-sacrifício? O amante, perdido de amor, a batalhar para superar os obstáculos e atingir o coração da amada? Quem quiser ilações, que as invente. Para a mente desejosa unicamente de escarafunchar o passado, trata-se apenas de mais uma dessas lembranças curiosas e sem maior importância de que qualquer ser vivente facilmente se esquece.

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