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Rosa Perez

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Edilson C. Silva

Edilson C. Silva

Rosa Peres é uma dessas mulheres que vive em prol da Literatura, principalmente feminina. Começou a escrever desde criança com uma visão plural em defesa do homem da Amazônia e dos seus desafios. A escritora é pedagoga com uma vasta experiência em Educação e Cultura, também é contista e romancista com a mão cheia de histórias do seu povo da região Norte. Produtora Cultural e Gestora de Instituições de Ensino Superior. A escritora representa no Pará, a REBRA- Rede de Escritoras Brasileiras, preside a Alerpre -Academia de Letras de Rondon e Região, é membro ativa de outras Academias com um grande trabalho de difusão da arte. Atualmente Rosa Peres é Secretária de Cultura do Município de Rondon do Pará, a escritora aceitou o desafio por acreditar nas possibilidades de incentivar, investir e apoiar outros artistas. Rondon do Pará é uma cidade rica culturalmente com uma diversidade espetacular. Dos 05 livros lançados individualmente e 15 com outras escritoras, a escritora orgulha.se pela abordagem social, pois, para Rosa Peres, a Literatura serve para denunciar as atrocidades do povo, ela é um combustível de libertação. O próximo livro “Oração do Cacto” caracteriza uma nova fase na vida da escritora, com um estilo de fé, espiritualidade e amor a vida. O romance se passa na capital Belém do Pará, uma trajetória poética da Belém do grão Pará aos dias atuais. O romance de Rosa Peres tem cheiro e nostalgia de um tempo que não pode ser apagafo de nossas lembranças. Como contista, repleta de histórias do seu povo, a escritora apresenta três novos Contos, onde a mulher tem protagonismo e atua como empoderada, apesar de todos desafios impostos.

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM A ESCRITORA

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ROSA PEREZ ---------------

Abril Chovia muito forte, era uma chuva mitológica dentro de mim, e por estar encharcada, chorava lágrimas de chuva, mesmo com o corpo em chamas. Os pássaros que outrora habitavam em voos em dentro de mim, foram desengaiolados e partiram naquele abril febril. Os muros construídos e erguidos por uma vida estavam mais espessos e altos; os tijolos, matéria- prima daquela construção interminável, dentro de mim, haviam comprimido o jardim que florescia com tantas borboletas, até os girassóis de Clície sofreram inflorescências do deus Hélio, as flores estavam murchas e eu terrivelmente só. Mas existia uma força que não amava aquela chuva interminável e aquele muro escroto. Eu precisava sair daquele onirismo e desengessar tantos fantasmas existentes na proa do meu barco que navegava em águas turvas, dentro de mim. Eu precisava de muitas invencionices para bandolinizar meus dias.

O sol que existia dentro de mim, reluzia apenas nos postes, a minha luz estava fraca, apagada, amarelada dos dois lados do caminho; as pedras atiradas durante a jornada, viraram regiões rochosas. O silencio sepulcral perdurou na escuridão dos dias e noites turvos; o céu estrelado estava preso dentro da caixa de pandora ou na caverna de Platão. E eu imensamente só, andando quilômetros em labirintos côncavos e convexos, por meses a fio, com um medo terrível de afundar cada vez mais, talvez no poema sujo de Gullar. Abril ariano de intempéries tempestades tempestivas dentro de mim, meus dragões e fantasmas haviam engolido o óbvio. Eu estava sufocada estendendo as mãos até mesmo para as bruxas de Salém para aliviar meus embruxamentos. Mas inacreditavelmente, meu calvário, era eu mesma; por isso precisava vencer todos encantamentos e tempestades. Abril tempestivo, eu ainda no imenso ostracismo telúrico, desadormecida, taciturna, tênue, esotérica, sôfrega e abissalmente bizarra. Dizem que tudo acontece em abril! Tristeza, descompasso e desesperança avolumaram-se dentro de mim, criando involucras crisálidas sem previsão de metamorfoses. Eu tentando atingir minha missão de passarinho, mas cerceada por uma procissão de gaiolas fechadas aprisionando meu sonho de voo.

PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM A ESCRITORA

ROSA PEREZ ---------------

Amma Ela viveu a ilusão que sobreviveria as intempéries do mundo feminino. Ariana com todas as cores e conectividade aventureira, espiritualista e sem limites, uma exímia fêmea fatale, genuína, espertalhona, vivendo todas as delícias, perigos e desafios de ser acadêmica do Curso de Jornalismo e amante de luxo de um político bem sucedido. Sem planejar ela arrumou a mochila e partiu para Brasília na primeira estação do ano, com a missão de viver uma linda história de amor, mas quem a recebeu no aeroporto foi o motorista do senado, ela ficou fascinada pelo carro de luxo sem teto, o apartamento luxuoso na área nobre, a cama aveludada recheada de presentes como kit de boas vindas enviados pelo senador, contendo vários vestidos e sapatos para festa, um mapa de Brasília, flores e um cartão de crédito ilimitado. Uma ariana livre de todos os preconceitos, também chamada de Ariana por nascer no primeiro dia do zodíaco de áries. Jovem, livre, leve, solta e as vezes até irresponsável, foi assim que ela chegou em Brasília. Apenas uma mochila, um jeans claro com uma camiseta, os cabelos longos encaracolados reduziam consideravelmente sua idade de 26 anos. O sorriso mônada, irrefutável e irrestível era o seu cartão postal. Foi assim com o senador, quando ministrava uma palestra no auditório da Faculdade de Jornalismo e foi literalmente fisgado por aquele sorriso inesquecível. -Me chamo Ariana Livre! E antes que a imaginação se aguçasse ela completou. - Ariana Andres, livre em nome da liberdade. Disse numa simplicidade, fazendo um coraçãozinho para o senador. Logo que chegou em Brasília ficou apaixonada e sussurrava pelos cantos. - Ah Brasília! Bocejava todas as manhãs olhando pelo vitrô do seu apartamento de luxo. Era a Brasília dos ipês roxos, do Clube do Choro, das Bandas de Rock que nasciam todos os dias nas garagens de qualquer uma daquelas asas, do Garrincha, da Praça dos Três Poderes, da famosa Catedral, da ponte coroada de anéis, a lagoa Paranoá, os sonhos esdrúxulos de Niemeyer ao vivo e a cores com seus ares de modernidade. Linda Brasília, entre asas e eixos, um ar majestoso, A liberdade aos poucos foi sendo cerceada, os encontros com o senador passaram a acontecer fora de Brasília, eles só falavam em eleições e ela foi literalmente abandonada naquele luxuoso condomínio solitário, até o curso de jornalismo foi obrigada a trancar quando começou aparecer nos jornais com os amigos do curso. Ariana enlatada e acorrentada sem poder conhecer as vertentes sociais, só conhecia a Brasília dos ricos, a do lixo, foi escondida para ela através dos arranha céus. As mídias começaram a especular a vida secreta do senador considerado mais honesto de Brasília, mesmo ele, tinha seu teto de vidro. E ele exigiu sua reclusão, trocou seu apartamento, sua academia e até mesmo o supermercado. Em pouco tempo após a reclusão total, nas madrugadas bucólicas, Ariana embebedava-se, dançava e pulava sozinha, depois passou a quebrar os móveis e por fim encontrou uma crisálida profunda chamada solidão. Foi assim que ela despistou o segurança e amanheceu o dia na Esplanada do Ministérios com um megafone, gritando. –Vão se foder senadores! Vai se foder Brasília! Enquanto o senador assistiu o Coral na famosa Catedral com a participação de sua esposa, Ariana era retirada pela polícia. A Ariana foi permitido somente conhecer a Brasília do luxo, aonde viviam os magnatas e os políticos, a Brasília escondida entre os arranha céus, aonde era escondido as suas mazelas sociais e o povo, ela não conheceu. Mas como era livre na sua essência, os ternos engomadinhos dos políticos de Brasília criaram nódulos na sua garganta, os carros luxuosos do governo causavam brotoejas que se alastravam pelo seu corpo, os discursos inflamados

e medíocres não combinavam com os filósofos estudados no seu Curso de Jornalismo. Tudo começou a ficar muito paradoxal naquele conto de fadas moderno. A imprensa estava fervorosa contra a corrupção dos políticos e ela fazia parte daquela sociedade seleta de jornalistas que perseguiam e faziam suas monografias sobre as algazarras acontecidas em Brasília. A perseguição era implacável. O senador era um dos poucos políticos considerados ilibados, mas também tinha seu teto de vidro e a imprensa sabia disso. O senador era católico praticante, seus pais chegaram em Brasília junto com Juscelino Kubstichek, eram do ramo da construção civil e eram nobres. A família Lacerda desfrutava dos maiores prestígios, por isso, o senador desfilava pela Catedral e pelos Clubes sociais com sua família fazendo caridade e representando a elite conservadora de Brasília. O senador trancou a faculdade de jornalismo, os encontros eram fora da cidade, cada vez mais amiúdes e escassos, mas ela o amava por ser tão ético, admirava seus cabelos grisalhos e sua intelectualidade, apesar de sempre o acusar fora de moda. Ele sabia que ela era o combustível para fazê-lo feliz, ela o rejuvenescia. Dizem que os arianos tem espírito aventureiro e adoram viver além dos limites, as vezes são acusados até de levianos, mas quando amam, são os mais fiéis e dedicados do zodíaco. Ariana estava completamente só, isolada do mundo acadêmico e social. Sua rotina era desfilar pelos shoppings comprando roupas caras e desnecessárias. Odiava aquelas correntes e algemas consideradas desnecessárias para ela e na sua impulsividade desafiava Indra e voava perigosamente pelas ruas nuas e tristes de Brasília, até o dia do trágico acidente com três feridos. A adrenalina controlava seus nervos. Ariana livre passou as festas de final de ano olhando os fogos da lagoa por entre as frestas do seu apartamento. No seu aniversário recebeu o bolo e uma joia espetacular, mas no pacote não tinham pessoas. O senador tinha certeza que venceria as eleições, enquanto seus adversários inundavam-se em escândalos, ele representava a ala conversadora que defendia os bons modos e costumes da elite brasileira. Por este motivo cancelou até os momentos mais nostálgicos pelo celular, falavam-se rapidamente pelo telefone do motorista. Tiveram um único encontro no período eleitoral dentro do helicóptero particular da família Lacerda. Os dois juraram amor eterno enquanto sobrevoavam Brasília, mas ela sabia que ele jamais abandonaria a esposa por ela, talvez por isso entregou até a sua alma para aquele amante tão carente de vida própria. Ela o obrigou a desfilar pelo corredor com as camisetas coloridas e o chinelo comprado por ela. Ele riu, era ele mesmo em sua essência e era feliz ao seu lado. Depois renderam-se aos encantos de Brasília, juntos olharam pela última vez o Memorial JK, o Jardim Botânico, os Bares na Orla do Lago, os Monumentos moderníssimos de Oscar Niemeyer com o Paisagismo de Burle Marx. Não havia entardecer mais deslumbrante do que aqueles de Brasília. Após as eleições, ela viu seu amor pela televisão comemorando mais um mandato. A imprensa estava eufórica com novos casos de corrupção e escândalos. Apenas uma vez ela acenou pra ele na porta da Congresso, ele gelou, totalmente mudo e inerte. Ariana estava magérrima, bebidas, cigarros e muita desilusão, tosou os cabelos, pintou de azul, depois de verde e finalmente de rosa. Entrou numa crisálida perigosa e quase sem retorno, tinha surtos psicóticos e insônia. Avisado, o senador contratou uma enfermeira e um psiquiatra. Mas ela odiava aquela rotina preserva para quem só queria amar e ser livre. Naquele entardecer ela estava bem melhor quando telefonou para Indra, a convite caminharam pelo Lago Paranoá, a princípio num silencio ensurdecer de tão misterioso. Indra continuava absorto naquele convite enigmático e silencioso, seus passos eram lentos. Mas foi ela quem quebrou o silêncio. -Eu sei que você reprova o meu comportamento. Eu gosto muito de você Indra, peço perdão por ontem, rock alto demais e fumei uma carteira de palheiro com o carro fechado. Eu sei que você detesta tudo isso. - Detestei mais você esmurrar os vidros até sangrar a sua mão. -Olha pra mim Indra, uma louca prestes a ser internada! -Senhora! -Eu sou bicho do mato, sou pássaro livre de gaiolas, nasci para viver livre, mesmo além do óbvio. - Vamos tomar um chocolate quente, tem um café muito estiloso que a senhora vai gostar. -Este café precisa vender cervejas. Sentaram-se, cada um navegando num mar de incertezas. Ele pediu as bebidas e ela prosseguiu. -Quando eu tinha 13 anos meu pai faleceu e imediatamente foi substituído, eu fiquei tão revoltada que peguei minha mochila, guerreira de luta e fui morar com minha tia na capital. E como aprendemos vivendo na casa dos outros, eu sempre me virei sozinha, sempre fui livre, não consigo e não posso viver encarcerada, entupida de remédios. Ela pediu outra cerveja. Indra olhou dentro dos seus olhos. -Não é só a sua mão que está machucada, é a sua alma! Ela começou

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ROSA PEREZ ---------------

a chorar. -Sabe dona Ariana, nos eventos sociais lá em casa que fazemos para os familiares, sempre quisemos convidar a senhora, mas o senador proibiu. Dói minha alma vê-lo desfilar com a esposa em eventos e a senhora isolada. Eu devo toda a minha instabilidade ao senador. Eu sou o seu homem de confiança. Mas não acho certo o que ele faz. A família Lacerda é nobre e de tradição em Brasília, chegaram aqui junto com Juscelino. -Não me chame de senhora, Indra! -O senador a ama tanto que deseja vê-la embrulhada para presente. Eu sofro vendo a senhora desfilar pelos shoppings com várias sacolas vazias cheias de dores. Aonde existe felicidade nas joias e roupas caras que ele envia para a senhora? Olhe para a senhora, tudo é tristeza e dor! -Indra? -Ao amor carece a liberdade! Eu sou servo fiel do senador, ele mudou a vida da minha família, mas não posso assistir o funeral de uma jovem de 26 anos. -Me sinto pássaro morto engaiolado! -O senador é homem de família, ele nunca vai largar a esposa. A instituição familiar pesa nas costas de um político: esposa, filhos, netos e bisnetos. A Senhora Ludmila Lacerda é muito amada pelos moradores de Brasília, é uma excelente professora Universitária com vários livros escritos. -Merda Indra, peça uma caixa de cervejas, não seja tão cruel comigo! Ela olhou pelos arredores do Lago Paranoá, estava tudo muito triste e sombrio, Brasília era apenas um porto solidão que ela detestou. Indra estava decidido a ajudá-la. -A senhora sabe que sou Indiano, o nosso povo é muito alegre, nas festas lá em casa sempre tem muita dança e barulho, sou o único calmo da família. -O senador me falou muito bem sobre você. - Eu nunca falo sobre o meu trabalho em casa, mas fui obrigado a falar da senhora para minha esposa Surya. Ariana segurou as mãos ásperas do motorista. -Você é o meu único amigo que essa cidade perversa me permitiu. -Eu agradeço a confiança, senhora. Mas minha esposa me lembrou de Amma. -Amma? –Amma é uma das maiores líderes espiritual da India. -Porra Indra, você já viu no mapa aonde fica a Índia? O homem estava decidido. -As pessoas do mundo inteiro vão para a Índia ao encontro dela, o seu abraço tem uma força miraculosa e extraordinária! -O abraço? -Senhora, é inexplicável, quando ela nos abraça, uma força misteriosa emerge do nosso espírito, um sentimento pleno de amor, fé, compaixão, humildade e serenidade nos domina. Surge um eu minimalista tão poderoso que nos eleva acima da humanidade. Eu era um homem arrogante e intolerante por ser o homem de confiança do senador e talvez pelo alto salário. Surya me levou para o abraço, hoje sou um novo homem. Surya minha esposa todos os anos vai para a Índia encontrar Amma. -Que experiência linda meu amigo. Diga ao senador que ele não pode oferecer o que procuro. -Nós não registramos nosso encontro com Amma, ele é tão poderoso que fica guardado eternamente em nossas lembranças. Ainda hoje sinto o seu calor e amor maternal. E não há maior lembrança do que aquelas que ficam vivas em nosso coração! Um mês depois Surya retornou da Índia, Ariana durante um ano enviou para Indra, fotos de sua peregrinação espiritual pela Índia, depois desapareceu completamente, era uma peregrinação silenciosa em busca de sua essência que não cabia mais registros, estava tudo na sua alma. Surya conta que o abraço entre Amma e Ariana foi tão intenso que todos os presentes assistiram uma combustão de energia cósmica que reprimidas refletiram-se numa espécie de aurora boreal, estendendo-se em fios neons por longas longitudes. Os olhos de Amma resplandeceram-se mergulhados dentro das águas milagrosas do Ganges. Ariana estava imersa em outros horizontes dentro da linha imaginária do equador. Ariana abriu suas mãos, a sua linha do tempo contava uma nova história, repleta de testemunhos, hemisférios e esperanças. Toda sua horizontalidade foi nascendo nas asas de silêncio que nasciam submergidas, provando que tudo na vida são desígnios dos deuses.

O Manuscrito O manuscrito foi encontrado 40 anos depois de sua escrita, as páginas estavam amareladas e roídas pelas laterais por traças que não resistiram a veracidade daquele documento ainda vivo. 40 anos haviam se passado, mas as digitais em marcas de sangue estavam lá, estampadas para contar a história. Uma mala velha de couro, um cadeado enferrujado, um sótão abandonado em meio a milhares de quinquiharias seculares esquecidas. A cidade nunca havia esquecido a fatídica noite de São João, todos os enigmas não resolvidos por 40 anos, com um passe de mágica de uma longa faxina estavam descoberto pela faxineira que resolveu bisbilhotar no sótão aquelas lembranças embebidas de passado e coberta por bandeirolas de teias que na sua simetria singular compunha uma tela surreal. Na noite do luar mais majestoso do planeta, sob os encantamentos de uma noite de fagulhas, folguedos e fogueiras a céu aberto, onde o grupo de teatro da Igreja matriz apresentaria para a população daquele povoado a história viva de São João Batista. Durante o ano os ensaios aconteceram com muita euforia daqueles jovens. Estava tudo organizado, cenário, iluminação, indumentárias, textos revistos e milhões de borboletas no estômago de cada um. Afinal, era a apresentação mais esperada do ano e os municípios vizinhos já estavam lá. Uma hora antes do espetáculo acontecer, Felipe, personagem de João Batista, foi literalmente arrastado para a sacristia. Sua mãe expurgou toda a sua revolta. A mãe sempre o humilhava, ele não compreendia como ela se sentia feliz em vê-lo minimizado. O ódio que sentia do seu pai que a abandonou grávida ela transferiu para ele, a mulher fazia questão de super valorizar o filho caçula Luciano. Naquela noite ela estava incomodada com o sucesso de Felipe. Quando entraram na sacristia, ela expurgou seu veneno da forma mais cruel possível. -Sua noivinha é a famosa prostituta que vive causando tanto desassossego para as famílias de nossa cidade. Ele ficou atônito, feliz em vê-lo sem cor, ela prosseguiu. -Ela faz tudo por dinheiro, aquelas histórias que a madre manda dinheiro é mentira. Ela vai ser expulsa da cidade, já foi acionado o conselho da igreja. Eu sempre te avisei que ela não prestava. Veja estas fotos que me enviaram. Felipe caminhou apressado e invisível entre as alegorias de São João, quando chegou em casa, estava exausto, tivera durante o percurso várias crises asmáticas. Correu até o quarto e encontrou sua bombinha, respirou profundo, abriu a gaveta da cômoda e pegou seu velho caderno de anotações. Conseguiu chegar na hora da apresentação, vestiu aquelas roupas do cenário, suspirou e entrou no palco. De longe, a noiva acenou mandando beijos, ele correspondeu com um olhar invasivo. Antes de entrar em cena fechou os olhos e reviu o dia que Lunara chegou na cidade e foi acolhida pelo padre. Doce e terna Lunara que todos se mobilizaram para ajudá-la, era órfã e não tinha para onde ir. As fotos dela semi nua agarrada com vários homens não saiam de sua cabeça. As cortinas fecharam-se e abriram-se novamente. O silencio era sepulcral, interrompido apenas pelos aplausos fervorosos do público. No segundo ato, ele olhou para o povo, para as faíscas das fogueiras de São João que atingiam o céu, de longe viu os meninos atingindo o inatingível no pau de sebo por um saco de guloseimas, viu os ensaios para as quadrilhas, as barracas recheadas de comilança, a alegria era contagiante naquela noite interminável. Ele apenas deu vários passos à frente do palco que ficava na entrada da igreja, abriu os braços e atirou contra o peito. A cena piedosa foi aplaudida aos urros pelos moradores que imaginavam que fazia parte do enredo. Ele caiu de braços abertos, imortalizando uma cena de amor e ódio. Apenas a mãe Lúcia sabia que era real e sentia-se aliviada, Felipe era uma assombração em sua vida, era o retrato do pai, o grande amor de sua vida que ao saber da gravidez desapareceu misteriosamente. Ela finalmente conseguiu exterminar o que sobrara daquele ser desprezível que tanto a atormentara por uma vida. Lúcia ficou muda e petrificada, não assumiu a culpa e a cidade enlutada nunca compreendeu como um jovem apaixonado de 20 anos poderia tirar a vida daquela forma. Lunara decretou luto eterno, nunca soube da montagem das fotos na capital por Lúcia e passou o resto da vida enlutada tentando compreender os desígnios de Deus. O enigma da noite de São João na cidade de Cajazeiras demorou 40 anos para ser descoberto, quando a faxineira de Luciano resolveu jogar fora todos os entulhos guardados no sótão para aliviar a dor do rapaz que perdera a mãe e vivia rogando pelos cantos, agarrados aquelas lembranças. A mala velha de couro dentro do baú guardava o caderno de anotações, a letra ainda estava viva, ele cortou o dedo e registrou com sangue o motivo de sua morte e os tormentos de sua mãe.

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