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Manuel Amaro Mendonça
PARTICIPAÇÃO ESPECIAL COM O ESCRITOR
MANUEL AMARO MENDONÇA----------------
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Este texto é um trabalho de ficção. ExpiaçãoNomes, personagens, lugares,
Aextensa nave da igreja encontrava-se em semipenumbra. Apenas a luz do luar se coava preguiçosamente através da claraboia setecentista, muitos metros acima. Todo o espaço estava repleto de sombras e as negócios, eventos e incidentes são, ou os produtos da imaginação do autor, ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos reais é mera coincidência. Expiação Ver. 1.0 Copyright © novembro 2020 - do e a barba negra e crescida, quase tapando o rosto pálido e macilento, onde brilhavam dois olhos pequenos, cor de carvão. — Também tem pecados a expiar, padre? — Grasnou o homem, ecoando na nave. Surpreendido, o sacerdote fitou o inusitado companheiro. Manuel Amaro Mendonça imagens dos santos e mártires, imobili- — Todos somos pecadores, meu filho. All rights reserved. zadas no seu mutismo eterno, eram teste- — Esclareceu-o ele. — Todos cometemos peTodos os direitos reservados ISBN: ISBN-13: munhas e guardiões do silêncio. O padre Ramiro, rondando os sessenta anos, assomou à porta que conduzia à sacriscados, uns mais graves que outros. O importante, é a forma como lidamos com eles. — O estranho olhou-o pensativamente, avalianE-mail: manuel.amaro@ tia, antes de se mostrar completamente. En- do-o e sopesando as suas palavras, enquanto debaixodosceus.pt vergava um pijama e roupão e calçava uma o padre continuava. — Temos de reconhecer Sítio do autor: http://www. debaixodosceus.pt Blogue: http://debaixodosceus. blogspot.com surradas chinelas de tecido. Estava já deitado e dormia a sono solto, quando uma urgência, que não sabia bem explicar, o fez levantar-se, que erramos e devemos pedir perdão a Deus por eles. Teremos de prometer que tudo faremos para não voltar a pecar. Facebook: https://www.facebook. deixar a cama e vir até à igreja. — E se o pecado não tiver perdão? — com/ Na segunda fila de assentos, divisou o O outro insistiu. riasdemanuelamaromendonca vulto ajoelhado, rosto escondido entre mãos — Todos os pecados têm perdão! — O implorantes. O silêncio intimidante, impu- sacerdote foi perentório. — Há pecados mornha-se pesadamente. tais, é certo, mas a misericórdia de Deus é inApós um minuto de hesitação, o sacer- finita e até o mais vil dos pecadores, terá uma dote soprou uma pequena coluna de vapor e oportunidade, se se arrepender do fundo do apertou mais o roupão, para se defender do coração. ar gelado que repousava no templo. Arrastou — O meu pecado não pode nunca ser as chinelas até junto do vulto e, com um pro- perdoado. — O homem fez um esgar amarfundo suspiro, ajoelhou a seu lado, imitando go. a pose implorante, frente ao altar. — Já disse, Filipe, que Deus pode perO estranho levantou a cabeça ao perce- doar todos os pecados. — O padre Ramiro ber o recém-chegado. Aparentava uns trinta reafirmou. anos e tinha o cabelo comprido e desgrenha- — Como sabe o meu nome? — O es-
tranho estremeceu, muito sério.
— Conheço-te há muitos anos… — Uma lágrima refulgiu nos olhos do sacerdote. — Não me reconheces mesmo? O chamado Filipe pareceu incomodado com a pergunta e levantou-se, dando uma volta sobre si mesmo, hesitante. Passou a mão pelo cabelo e cofiou a barba fitando o interlocutor com intensidade. Por uns segundos, um pesado manto de silêncio pesou entre os dois; um, em pé, recurvado e o outro de joelhos no suporte do banco da igreja. — Devia reconhecê-lo? — A voz do estranho tremia, como que acometido do frio, que há muito mordia o padre. — Não só a mim, como todo este templo, onde estiveste tantas vezes… — Acusou o ministro da igreja. — Sim, venho aqui de vez em quando… pedir perdão pelos meus pecados… — Filipe arrastava a voz, puxando pela memória. — E sabes ainda quais foram os teus pecados? — Ramiro sentou-se, observando-o. — Recordas o que tanto precisas que te seja perdoado, que te não deixa descansar e te traz aqui amiúde? Tiveste sequer a noção de quantas vezes me ajoelhei, como hoje, ao teu lado a rezar? Em todas essas vezes nunca me falaste, porém. Talvez não estivesses preparado. O estranho parecia cada vez mais perturbado e acenava negativamente com a cabeça enquanto balbuciava: “Não me lembro…” — Há quase quarenta anos, entraste nesta igreja com uma mulher sem vida nos braços. — Lembrou o sacerdote. — A mulher que nós amávamos! — Armanda! — Filipe apertou as mãos contra a boca, o rosto retorcido numa máscara de dor. — Fui eu! Oh, meu amor, fui eu quem te matou! — Depois, num súbito reconhecimento, fitou padre nos olhos. — Ramiro? És tu, Ramiro? Estás tão velho! — Passaram-se muitos anos, querido irmão. — As lágrimas assomaram com força aos olhos do ancião. — Perdoa-me, meu irmão! — Implorou o outro atirando-se ao chão, quase junto aos pés do sacerdote. — Eu é que te peço perdão, por ter permitido que ela se aproximasse de mim, depois de estar casada contigo. Peço perdão a Deus todos os dias, por ser o causador de toda desgraça que nos atingiu. — O padre enclavinhou as mãos numa oração. — Amaldiçoo-me eternamente por me ter deixado possuir por aqueles belos olhos, durante as férias do seminário em tua casa.
— Eu não podia suportar! — Gemeu Filipe, caminhando até ao meio da igreja, no espaço entre os bancos e ajoelhando no tabuado, em pranto. — Foi aqui que a deitei, depois de a ter estrangulado no carro! Eu não queria matá-la, mas não podia suportar que a mulher que eu mais amava no mundo me trocasse por outro homem… ainda que fosse o meu próprio irmão! Com visível esforço, Ramiro aproximou-se e ajoelhou no chão, junto do outro, os olhos cheios de lágrimas: “Perdoa-me!”, gemeu. Os dois, ajoelhados no soalho, não passavam de sombras na vastidão da nave do templo. — Achas que Deus me perdoa? — Ao fim de uns segundos, Filipe estendeu as mãos para o padre. — Achas que ela me pode alguma vez perdoar? E tu, meu irmão, perdoas-me? — Alguma vez Lhe deste essa possibilidade? A qualquer um de nós? — O sacerdote rouquejou. — A tua solução foi atirares-te ao rio e desaparecer para sempre. O teu espírito ficou a vaguear por aqui, incapaz de assumir o mal que fizeste, escondido do julgamento, assim como de qualquer forma de perdão. Aparentando agora ter mais quarenta anos às costas, Filipe ergueu-se a custo, com os olhos rasos de lágrimas fitos no chão onde em tempos repousou a mulher que ambos amaram. Soluçou audivelmente e pousou a mão direita sobre o coração. Ramiro chorava com ele, mas, por fim, engoliu em seco e levantou-se, apoiando-se nas costas do banco mais próximo. Com o rosto numa máscara cheia de majestade, ergueu os dedos indicador e médio da mão direita, numa autoridade que o seu cargo lhe permitia, e sentenciou “Ego te absolvo, in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti. Amen”. Filipe, atordoado, cambaleou na direção da porta que levava ao exterior da igreja e que abriu de par em par. Uma onda de luz imensa ofuscou todo o espaço, rebrilhando no ouro dos altares, iluminando os rostos tristes das imagens neles contidas, ressaltando nos cristais dos candelabros e nos vitrais das janelas, como uma onda de esperança que Ramiro, tombando de joelhos no meio do templo, recebeu de braços abertos. Foi de manhã bem cedo, que a equipa de limpeza encontrou o velho abade da freguesia, tombado no soalho frente ao altar. Aparentemente, sofrera um ataque fulminante que lhe levara a vida, antes mesmo de se aperceber do que estava a acontecer, pois o seu rosto exibia um sorriso, sinal de que partira em paz.