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2021 Agora nós! | Frei Fernando Ventura

por Frei Fernando Ventura

O ano novo que nos preparamos para começar a viver traz mais do que nenhum outro a novidade do desconhecido, uma novidade marcada pelo desconfinamento mas também pelo “desconfiamento”; desconfiamos do desconfinamento, vamos desconfinando o confinamento…, mas o que sobra, o que temos para gerir, a bagagem emocional que transportamos neste viagem temporal que agora começa é muito da memória do ontem vivida no hoje fugaz em direção ao novum ainda por revelar ainda por desconfinar.

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O mundo de onde viemos, sobretudo o mundo ocidental chamado “desenvolvido”, foi-se constituindo e construindo sobre uma série de certezas apodíticas, a mais perigosa das quais era a de, justamente, sentirmos e pensarmos que tínhamos respostas para tudo. Tínhamos ou pelo menos íamos sentindo “cada vez mais” que tínhamos encontrado e iriamos sempre encontrar as respostas capazes de responder a todas as interrogações com que nos íamos deparando.

Os enigmas da ciência iam caindo paulatinamente um atrás do outro, numa inexorabilidade de descobertas que nos asseguravam todas as respostas para todas as perguntas consolidadoras das seguranças do Ser…

Só que, de repente, quando cada vez mais sentíamos que tínhamos todas as respostas, veio a vida e mudou todas as perguntas…

De repente, o Ser, vertido em todas as suas declinações, viu-se ameaçado por um não ser, uma amálgama de RNA - um vírus de RNA, com fita simples de sentido positivo, e que usa uma enzima de replicase de DNA (ou uma polimerase de RNA dependente de RNA) na sua replicação - para nós,

simples mortais, esta é simplesmente uma linguagem hermética que mais do que revelar, esconde numa espécie de apocalipse/revelação, que mais não faz do que infetar; infetar desde logo o ser e com ele a vida, a segurança e as seguranças, a existência como a concebíamos, o nosso ser relacional, agora obrigado ao confinamento, à separação, ao escondimento, à inexorabilidade de uma solidão forçada, chorada, sofrida, sem fim à vista e sem horizonte de esperança.

De repente, a palavra de ordem era: “Deixa de ser”. No mundo, agora, manda um não ser.

Foi com esta certeza que esbarrámos de frente.

O “não bicho”, a “não vida” infeta e afeta. Infeta o Ser e os seres, infeta a vida e a existência e toca, toca a essencialidade essencial que nos define e determina como pessoas - o ser de relação – persona do latim per sonum, o “soar através de”, a comunicação no seu sentido pleno e abrangente de construção do próprio eu diante de si próprio e dos outros, no seu ser com, no seu comunicar. A palavra pessoa, no teatro clássico, designava a máscara usada pelo ator no desempenho da sua personagem…

É impressionante como tudo isto de repente se tornou realidade aos nossos olhos.

Ao longo da história foram vários os momentos nos quais a humanidade se viu confrontada com situações deste género. São ainda memória viva, pessoas que atravessaram 3 e 4 épocas destas nos últimos decénios.

Entretanto, esta época que é a nossa, globalizada e tele informada como nenhuma outra viveu a universalização do medo, da precariedade e da globalização na sua realidade mais crua, de uma forma que nunca tinha sido experimentada antes.

De repente, demo-nos conta que o palácio e a barraca sofriam do mesmo mal. A essencialidade essencial da animalidade que a todos nos acomuna apareceu despudoradamente nua aos nossos olhos numa epifania de horizontalização niveladora da existência, que nunca pensámos que fosse possível.

Era a pandemia.

Nunca a etimologia da palavra tivera um significado tão abrangente e universal. Pan (o todo, a totalidade) Demos (povo). Literalmente, todo o povo, de repente, se sentiu tocado por uma universalização de humanidade ferida, uma abrupta chamada de atenção para a inutilidade das fronteiras, das barreiras, dos muros, dos castelos dourados.

O palácio e a barraca estavam em risco. De repente, a pirâmide das prioridades estava invertida. De repente, um acessório de limpeza tornava-se tão importante como um aparelho sofisticado de suporte de vida. Ambos eram fundamentais na luta pela sobrevivência. Ao “lixeiro”, finalmente era reconhecida a mesma dignidade do profissional de saúde mais bem preparado. Ambos se tornaram fundamentais para a luta a travar.

E o mundo “parou”. Era urgente responder, era urgente reconfigurar as prioridades. As estrelas do brilho mediático começaram a deixar de brilhar; a euforia tribal do estádio desapareceu no encolhimento apertado das enfermarias que faltavam… faltava muito, faltava quase tudo; porque o tudo era quase só fachada e vil cenário… faltava o essencial. O mundo viu que o “povo pequeno” dos ordenados precariamente mínimos era muito mais importante do que as “estrelas” dos contratos e ordenados pornograficamente milionários dos mundos de outras luzes, de outros estádios e de outras futilidades com que os impérios se enfeitam, para dar ao povo o pão (pouco) e o circo em abundância.

As “estrelas” do mediatismo televisivo, futebolístico, do socialite bacoco, da política do faz de conta, dos afetos inconsequentes, da propaganda ideoló-

«De repente, demo-nos conta que o palácio e a barraca sofriam do mesmo mal. A essencialidade essencial da animalidade que a todos nos acomuna apareceu despudoradamente nua aos nossos olhos numa epifania de horizontalização niveladora da existência, que nunca pensámos que fosse possível. Era a pandemia.»

gica estupidificante, do “impingimento martelante” do chamado main stream, não estavam destinadas a ser mais do que isso mesmo… um main stream, uma corrente de um rio fétido, cujo destino, - nunca melhor significado pelo “papel higiénico” que povoou a primeira onda de histerismo -, era esse mesmo, era o de ser o coletor capaz de levar toda essa enxurrada de inutilidades à ETAR purificadora dos “eus”.

Infelizmente, não sinto que a ETAR esteja a cumprir o seu papel…

E agora?

É esta a pergunta que nos “sobra”.

A resposta só pode ser uma. - Agora nós!

Nunca a verdade de uma resposta se tornou tão verdadeira!

Agora nós, agora eu, cada um dos eus que somos na construção do nós.

Importa sair da pandemia da indiferença e do onanismo solipsista, do me, myself and I, que nos caracterizava e que nos permitia, quando muito, atingir orgasmos místicos incapazes de gerar vida, porque acontecidos na ausência de um qualquer outro parceiro de relação.

Importa sair em direção ao novum inexorável que nos toca afrontar, com uma consciência acrescida de incremento da consciência do coletivo, como condição sine qua non para vencermos a pandemia do medo, da indiferença e dos afetos solteiros, histericamente à procura da salvação no açambarcamento do papel higiénico do nosso contentamento e do nosso confinamento, qual panaceia para garantir um futuro cada vez mais incerto, porque o importante sou eu…

Ironicamente, o papel que nos toca desempenhar é justamente esse, um papel higiénico, um papel de higienização dos nossos modos de ser e de estar, de higienização das relações desfeitas, capazes de unir o palácio e a barraca não por um abismo intransponível, mas pela descoberta e criação de formas novas, para que o palácio não viva no luxo e do luxo enquanto que a barraca tem que viver no lixo e do lixo.

Se daqui sairmos mais capazes de construir a consciência universal no sentido Teilhardiano do processo de hominização como espiral ascensional de complexidade consciência, terá valido a pena o esfoço e as penas por que passámos; veremos florescer o novum como continuidade e evolução, como memória que se faz história, como história que se faz vida, vida em abundância, para todos, sem excluídos, a não ser os filhos da autoexclusão.

Esta é a missão do Agora, a ser proclamada e vida na nova agorá do tempo novo, que é o mundo todo e todo o mundo, solidamente ancorado no presente, fazendo memória do ontem, para que o amanhã possa ter sentido PARA TODOS.

“Somos todos pontos de chegada e pontos de partida; pontos de chegada de todas as experiências de vida e de fé que nos precederam e pontos de partida para novas experiências de vida e novas experiências de fé”. Esta é uma das heranças dos meus antepassados judeus, que trago comigo. Somos um povo que há três mil anos vive e cultiva o sentido, os porquês e os “para quês” da memória e da história; por isso sobrevivemos…

Agora, nós…!

Sobrevivemos… Sobreviveremos, se nos atrevermos a VIVER!

Para todos, um bom ano de 2021!

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