Até Sair do Mapa - guia

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Paisagem, narrativas e as representações do mundo estão intimamente conectadas com o caminhar. Os relatos dos aventureiros e caminhantes permitiram que mapas fossem criados, medindo e desmedindo o mundo. Pensar os mapas é pensar suas fronteiras e o que se desenha fora delas. Abismos, dragões, ilhas desertas. As heterotopias do cemitério, do hospital psiquiátrico, das cárceres, da periferia perigosa onde é melhor não ir. Não só o vento sagrado e imortal da cidade, senão a outra cidade mortal onde morrem os homens. E os jardins, que são como tapetes verdes onde o mundo todo se aperfeiçoa simbolicamente. Um jardim que é também paisagem. Representação universalizante desse mundo feliz possível. Quanto não se esconde por baixo de um jardim, por trás de uma vista? Essas linhas de fuga até onde levam? Se é que levam a algum lugar e não só ao fundo, ao outro lado, ao avesso do quadro. O fundo é plano, bidimensional todo. É questão de viragem. A banalidade das feiras livres, elas também heterotopias que precisam ser caminhadas, atravessadas. E seus sons e cheiros primitivos que nos fazem lembrar, como se de um parque temático se tratara, como era boa a vida de um outro tempo.

Caminhar é uma maneira de entender o mundo, uma maneira de entender-se no mundo. As coisas passam a fazer sentido depois de uma caminhada porque passam a ser respiradas, para dentro, tradução, para fora. Percebidas esteticamente. Traduzidas. Talvez o programa maior deste sistema que nos impera seja afastar para sempre o homem de seu caminhar, de seu ritmo próprio. Um pé depois do outro e os sons. Caminhaduras. Todo caminhar deveria ser pausadamente interpretado, assim como toda fotografia de um lugar deveria ser alterada. A paisagem é uma mentira, como o mapa, quando fixa. Nada no novo futuro à frente pode ser reto, determinante, fixo. Carecer de sentido é caracteristica das novas maneiras de estar. Andar se tornou obsoleto na hora de pensar a paisagem na contemporaneidade. Na época dos drones e das imagens HD de celulares sempre à mão, o que podemos esperar de registros trêmulos, apressados, despretensiosos? Feitos assim, como quem diz, entre um passo e outro. Três décadas de teorias pós-modernas descrevem o corpo como um objeto passivo. A pós-modernidade ainda questiona o que pode o corpo. A resposta é uma e não está muito longe da questão da paisagem. O corpo ainda pode andar. Ainda. Habitar esse tempo estendido e também efêmero. O corpo ainda caminha e caminhar nos reconecta com o entorno, com a necessidade de uma comunidade, um outro diverso que também está aí no espaço em comum conosco, caminhando ou parado, mas aí. Caminhar nos acorda para a possibilidade de subversão diária que é cruzar com alguém na rua sem sentir medo, ou mesmo sentindo. Andar nas cidades de hoje é insistir no risco, no horizonte sempre presente, mesmo que encoberto de concreto, do humano. Há um risco do humano e ele precisa ser reencaminhado. Caminhar é, mais do que nunca antes, uma transgressão. Seja caminhante, seja herói - poderíamos dizer. E porque todo bom caminhante é por princípio um marginal. O caminhante caminha as bordas destes mapas desenhados. E quem desenha os mapas designados? O caminhante sai das bordas, amplia o traço. Caminhar é sempre sair do mapa, da casa, do carro, do escritório, da academia, do shopping, do terror absoluto ao outro. É entrar em contato. Com outros. Com outros mapas.

Habitar a ruina é sair, fugir, migrar, buscar o centro

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.quando vemos uma pedra muito íngreme no meio do caminho e temos que decidir que próximo passo dar (dar voltas, subir, descer, parar, voltar), estamos fazendo um mapa. esse tempo dedicado ao outro, que é a pedra, passa a ser parte do nosso relato.

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Como naquele filme de Béla Tarr, quando a porta vai se abrindo e ainda não sabemos o que há lá dentro e mais tarde descobrimos que podemos olhar dentro do olho da baleia. Primeiro a porta se abre, depois o olho que não fecha. Mas o que não se esquece não é nem o aberto, nem o fechado - quando ainda é quase, mas das filas e filas de homens que esperam, e alargam o tempo, muito e muito ainda.

Da pintura propriamente dita, nem uma palavra, apenas a possibilidade de um ícone, signo de sua duração como imagem. Dobra que necessitamos desdobrar. As janelas pintadas se abrem à outras janelas. Mas a paisagem pintada segue cativa de seu muro, sua tela. É narrativa: não abre a natureza à visão por meio de si mesma, não é dupla face. Ela pensa ilusão. Ilusionada, a paisagem não é pintura. Ela aparenta parecendo. Como romper, então, com a máquina de olhar a paisagem? Como fazem os pintores com a paisagem? Como fazem os filósofos com aquilo que enxergam? Só se frequenta uma pedra pisando nela, ferindo-se nela, caindo dela. A pedra, no caminho. Teu corpo.


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