Minha vida com o poeta Gessy Gesse
Minha vida com o poeta Gessy Gesse
Minha vida com o poeta copyright © Gessy Gesse EDIÇÃO
Enéas Guerra Valéria Pergentino DESIGN E EDITORAÇÃO
Valéria Pergentino Elaine Quirelli PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS / SUPORTE REDACIONAL
Luiz Afonso Costa REVISÃO DO TEXTO
Maria José Bacelar Guimarães Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.
Todo o conteúdo deste livro: textos, fotografias e imagens identificadas nas páginas 254 e 255, são do arquivo pessoal da autora Gessy Gesse e de sua total responsabilidade. Apesar de todos os esforços empreendidos, não foi possível identificar a origem e a propriedade de todas as imagens. Em caso de dúvida ou informação quanto ao crédito de alguma foto, favor entrar em contato com a autora para inserção em nova edição deste livro.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gesse, Gessy Minha vida com o poeta / Gessy Gesse. -- Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2013. ISBN 978-85-89059-49-7 1. Experiências de vida 2. Histórias de vida 3. Memórias 4. Moraes, Vinicius de, 1913-1980 5. Poesia brasileira I. Título. 13-07222
CDD-869.9803
Índices para catálogo sistemático: 1. Experiências de vida : Memórias : Literatura brasileira 869.9803
Gesse com seus netos em Campos do Jordão.
Eu creio: em Deus no amor na família na justiça e na verdade
Que Deus perdoe: a maldade o ciúme a inveja Amém
Sumário 11
Em poucas palavras Apresentação de Gessy Gesse
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Muito axé, comadre Gesse! Prefácio de Maria Creuza
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A vida é a arte do encontro
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"É por isso que eu moro na areia" Elis e Maysa
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Chão da estrela
25 33 38 40 46 52 57 60 63 67
Dona Celina, minha mãe Na tonga da mironga Ser musa Primeiro casamento Girando a roda do destino Segundo relacionamento Laços de família Mãe Menininha Cultura e arte em solo baiano Recordações em um caderno
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Viagem a Londres
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Principado livre e autônomo de Itapuã
81 89 90 95 97 104 108 109 114
Casamento cigano Construção da casa A inauguração Dolores A arca de Vinicius Pique Alba Soares A romaria Casa de gente famosa
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Convivência com o poeta
118 125 127 128 130 131 134 134 136
Aniversários com o poeta Viajando de navio Iansã, Oxalá e Xangô Vinicius e o carnaval Epa babá Odoyá Atotô A prótese Pileques do poeta
143
Músicas que vi nascer
151
Se todos fossem iguais a você
153 154 156 165 166
Sedução pela Bahia Admiração pelo candomblé Inspiração, trabalho e dengo Cansaço O pacto
169
Desenlace
203
Depoimentos
177
A partida final
179
O testamento
203 204 207
185
Praça do Poeta
187
Um sonho ainda não realizado Para escrever um livro
215 221 233 239 249
De Paris a Itapuã A droga mais forte do mundo Tarde de sol e recordações em Itapuã Abrindo o baú da memória Boas recordações O Médico e o Poeta Conversas no balcão do Galo Vinicius e o carnaval da Bahia
253
A Bênção...
254
Créditos das imagens
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Eternidade dos amigos
192 195 196 198 198 199
Camafeu de Oxóssi Nilda Spencer Olga de Alaketu Leila Diniz Helô Pinheiro Danuza Leão
199 199 200 200 200
João Gilberto Pablo Neruda Mercedes Sosa Astor Piazzola Sérgio Endrigo
Gesse no filme Senhor dos Navegantes.
Em poucas palavras
À
s leitoras e aos leitores, com quem vou dividir os fatos e emoções das páginas que se seguem, gostaria de esclarecer que jamais tive ou terei a pretensão de ser membro da Academia de Letras ou intelectual reconhecida. Continuarei uma mulher como outra qualquer, conforme o destino me reservou, com altos e baixos, paciência, empatia com o sofrimento, cautela com o sucesso e, sobretudo, a missão de ser gente, sensível e guerreira. A motivação para escrever este livro deriva de três razões. Por um lado, a necessidade de responder às pessoas que, ainda agora, passados tantos anos, continuam me perguntando, aonde quer que eu chegue: como era Vinicius? Como foi a convivência com ele? Por outro lado, dar o meu testemunho e relatar os fatos referentes ao período de nossa convivência, destacando sua passagem na Bahia, etapa pouco conhecida e mencionada nos livros que falam da vida do poeta. Finalmente, contestar algumas menções preconceituosas e superficiais a meu respeito nesses livros, dando-me a conhecer de forma mais completa e verdadeira. É vasta a literatura que aborda a vida de Vinicius enquanto poeta, diplomata, compositor, cantor, irmão,... E como marido e companheiro? O que de melhor poderia eu fazer, por mim e pelo poeta, senão rememorar os fatos e eventos, tal como se passaram e por quem os viveu no cotidiano? Tomei, então, a decisão e estou fazendo a minha parte. Vou relatar, de maneira simples e sincera, fiel e honesta, a minha vida com Vinicius, o marido e o homem. Claro que o cenário envolve os meus antecedentes de vida e o vibrante ambiente cultural em que eles se deram em solo baiano e pelo mundo afora. O livro inclui referências e depoimentos de amigos valiosos que tiveram grande importância em nossa vida e também fotos, cartas e curiosidades que ajudam a compreender o carinho e a confiança de nosso envolvimento. Espero, sinceramente, que apreciem a leitura e que algo de novo seja acrescido à memória eterna do poeta. Gessy Gesse 11
Muito axé, comadre Gesse!
E
stava no Rio de Janeiro, recém-chegada da Bahia e dando os primeiros passos na minha carreira, quando se deu o grande encontro da minha vida: Vinicius telefonou para mim, marcando um papo num bar de Ipanema, dizendo que queria me apresentar a uma pessoa... Dias antes, eu tinha jantado com o poeta em sua casa e “tocado o céu com as mãos”, por ele ter me convidado para ser sua cantora numa turnê programada para a Argentina. Vou então ao bar combinado, com grande expectativa, sem imaginar quem iria encontrar. Chego. O garçom me leva lá pro fundo e, à meia luz, vejo uma morena linda – que conheço de algum lugar, penso. Aqueles dois juntinhos, os olhos dela faiscando no escuro, ao lado de Vinicius, me causaram uma impressão tão bonita que nunca esqueci a cena: era Gessy Gesse, a baiana que encantou o poeta!!! Não foram necessárias palavras, a não ser aproveitar o momento de felicidade e intimidade que rolava no ambiente. Foi uma surpresa e tanto, porque eu já conhecia Gesse de Salvador. E depois soube que estava hospedada na casa de Maria Bethânia. Saber, naquele momento, que ela era o novo amor do poeta e o convite dele para viajarmos juntos foi, constatei depois, um momento “escrito nas estrelas” – eram baianas à beça na vida de Vinicius de Moraes!!! E uma das experiências mais intensas do meu começo de carreira! Vinicius foi o ser mais generoso que conheci, aquele que deu o maior impulso à minha imagem, responsável por grandes momentos em nossas viagens. E quanta coisa vivemos juntos! Corriam os anos 70. Numa das nossas viagens a Paris, fomos jantar com o famoso compositor e intérprete Georges Moustaki. Eu usava um colar de pérolas enoooorme, emprestado pela modelo Luana, que acabou se enroscando na bolsa e partiu quando subíamos a escada da casa do cantor...
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Não me lembro que gracinha (entre palavrões e gírias baianas que só nós duas conhecíamos) me disse Gesse, mas tivemos um ataque de riso enquanto catávamos as contas – eu, ela e Vinicius –, sob o olhar espantado do nosso anfitrião, que parecia nada entender (o que será que aqueles três loucos estão procurando na minha escada?)... Nada mais que as pérolas do colar alheio, que rolavam escada abaixo... O senso de humor, a graça e a malícia da comadre (sua afilhada espiritual também se chama Luana, minha filha) sempre me levam às lembranças mais deliciosas daquela época! As nossas idas às compras eram sempre um acontecimento, pois nos divertíamos à beça com as caras das vendedoras francesas, tentando entender o nosso “francês” recheado de palavrões em português mesmo... Outro momento inesquecível foi quando, em pleno show no Teatro Olympia, em Paris, me deu um branco no palco, cantando com Vinicius o Samba em Prelúdio, e inventei na hora outra letra – o que fez o poeta rir, e, vermelhinho como ele ficava quando se divertia, dizer: – Apresento a vocês a minha nova parceirinha, Maria Creuza! Sempre digo que estava escrito e abençoado pelos orixás o nosso encontro, pois não só me abriram os caminhos como, até hoje, tudo o que guardei na memória me enriquece como pessoa. É um tesouro que guardarei com o maior carinho por toda a minha vida – como Eu sei que Vou te Amar, versos do parceirinho Vinicius de Moraes... Muito axé, comadre Gesse! Maria Creuza
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A vida é a arte do encontro
C
orria o ano de 1969, que não será esquecido por iniciar uma era em que nuvens pesadas cobriam o céu do país. As filmagens da produção italiana El Cangaceiro haviam terminado. O trabalho como atriz me rendeu um dinheirinho extra e decidi que era hora de conhecer o Rio de Janeiro, respirar ares diferentes e visitar a irmã caçula, casada com um carioca. Peguei o avião, como se dizia na época, levando comigo minha mãe e a filhota Rose. A mana Altair e Adilson nos esperavam no aeroporto e fomos para a casa deles, em Jacarepaguá. Mãe e filha instaladas com conforto, o passo seguinte foi me baldear para a casa de dois amigos, Celi e seu irmão Gil, que moravam na rua Figueiredo de Magalhães, no coração de Copacabana. Muito me encantava a ideia de rever os amigos baianos, ligados aos agitos culturais da Cidade Maravilhosa. O Rio estava lindo e fervilhava; dava para sentir na pele a eletricidade das ruas. Liguei para Maria Bethânia. – Já cheguei, estou aqui! Após as efusões de boas-vindas, veio o convite para uma festa. À noite, um grupo de amigos veio me pegar e o destino era o restaurante Pizzaiolo, em Ipanema, onde o poeta Vinicius de Moraes ia “botar a mão no cimento”, uma versão carioca da roliudiana Calçada da Fama. De início, não me entusiasmei com a idéia. – Ah, não vou não! Isso é coisa de intelectuais, coisa chata... Eles falaram que era apenas uma passadinha para dar uma força, depois poderíamos circular nos lugares bacanas da noite. Quando lá chegamos, a homenagem já havia acontecido1 e o poeta, em uma mesa, conversava com um casal. 1
O pedaço de cimento que Vinicius marcou com as mãos está exposto na Toca de Vinicius, lojinha-santuário na rua que tem o nome do poeta, em Ipanema. 15
Desde o momento em que adentramos, Vinicius me percebeu. Alguém me alertou: “Repare, ele não tira os olhos de você!” Refleti e respondi que nem me passava pela cabeça ser mais uma na vida de um mito. Não o conhecia pessoalmente, mas sabia da fama de mulherengo, que havia casado não sei quantas vezes... Admirava suas músicas, em especial a que fez, em parceria com Pixinguinha, para o meu personagem no filme Sol sobre a Lama. O fato é que eu não queria saber, naquele período, de conversa comprida com homem algum, pois havia saído muito machucada das relações anteriores. Mas lá estava o poeta na mesa em frente e não afastava os olhos de mim; às vezes saudava à distância, erguendo o copo de uísque, essas coisas que homem faz. Ainda tenho o primeiro bilhete (velha mania de guardar tudo) que me enviou pelo garçom: “Será que eu posso ver você amanhã? Por favor! Meu telefone é 247-3003”.
A roupa que eu usava está guardada na memória: saia e bolero de um tecido da moda, com duas faces; a blusa era vermelha e os cabelos, longos, estavam bem soltos... Ele chamou Maria Bethânia de lado e, vim a saber depois, perguntou quem eu era. – É uma amiga, chegou hoje da Bahia. – Eu estou apaixonado! – disse ele, segundo o relato de Bethânia. Não demorou e o poeta veio à nossa mesa. Bethânia nos apresentou e, pouco depois, levantou-se, falou que tinha alguma coisa para fazer e saiu com Lena Crespi. Ficamos eu, Pitti e Adelson do Prado. Dentro de pouco, Pitti também se levantou, alegando ter um compromisso, e eu naquela santa inocência; depois foi Adelson, cada um dando uma desculpa, “vou ali e já volto”, e foram saindo. Tudo combinado! Viníicius havia armado tudo! Fiquei sozinha na mesa, pois não sabia voltar para 16
casa, já que não conhecia o Rio de Janeiro. Ele, então, se aproximou com o casal. Quando expliquei que estava esperando a volta dos amigos, ele entregou o jogo e disse: – Eles não vão voltar... – Como não vão voltar? – respondi. E ele: – Quem vai lhe levar para casa sou eu. Nesse momento, olhei firme para o sujeito e pensei comigo: “Bom, me comer na tora, ele não vai!” Fisicamente eu era mais eu, sabia uma capoeirinha, “se for na porrada eu ganho”, foi o que concluí... Enfim, fui ficando, não custava nada, não ia bancar a grossa e ele não parecia nenhum tarado. O casal que o acompanhava – Daniel e Sulma Terra – era uruguaio, duas figuras muito simpáticas, e a conversa foi rolando. Eles foram embora e Vinicius chamou um táxi. Veio o carro, dei o endereço e seguimos. No caminho, ele mandou parar na porta da boate Number One e me convidou: – Vamos parar aqui e tomar um uisquinho. Naquele momento, eu já estava relaxada com a sua companhia, a conversa fluía agradável, era aquela gentileza e carisma que todo mundo conhece; mas disse-lhe que estava muito chateada por ter sido enganada, não gostara nem um pouco daquilo. E ele falou que estava apaixonado! – Eu tive que fazer assim porque percebi logo que você é índia braba. Se não fosse daquele jeito, você ia embora e eu nunca mais a veria, não sei o que ia ser de mim. Lá dentro estava o Luizinho Eça no piano. Não deu outra, o repertório passou por Minha Namorada, Eu Sei que Vou te Amar, Vinicius também cantava e dizia estar apaixonado. Não desgrudava o olho de mim. Ele era (e sempre foi) uma pessoa envolvente e a sensação foi muito forte... Ficamos o resto da noite ao lado do piano, tomando uísque, um clima muito legal. Refleti e o negócio ficou assim para mim: “Não vou para motel, ele vai me levar de volta pra casa e não vai subir.” Mas a sedução era na base do poema, do lirismo, enfim relaxei. Saímos de lá e nos pusemos a caminhar pela avenida Atlântica, o dia já amanhecendo. Eu parei e falei: – Agora vou para casa, não vou? Ficamos ainda um tempo na calçada, em frente ao mar, de mãos dadas, pois ele não queria me largar de jeito nenhum. Mas, quando o sol começou a esquentar, ele pareceu transformar-se em vampiro! Resolveu chamar um táxi e me deixou na Figueiredo de Magalhães. Na manhã seguinte, lembrei do bilhete, mostrei para Celi. E ela: 17
– Você vai ligar? – Não, acho que não. Vou pegar minha mãe e minha filha e voltar para a Bahia. – Vamos ligar! – E se ele for casado? Ela me convenceu com um bom argumento: – Eu ligo, para ver se mulher atende. Ela fez a ligação e quem atendeu foi o próprio. Celi não resistiu à lábia do poeta, deu o telefone da casa. Vinicius ligou de volta e queria me ver no mesmo dia. Eu dizia “amanhã” e ele insistia. Eu planejava dar um tempo com os amigos e, de repente, a casa encheu de flores, parecia um jardim. A todo momento tocava a campainha e era gente da floricultura trazendo flores, flores e um convite para jantar... No dia seguinte, ele fez o jantar para mim em um apartamento que, depois, vim a saber que ficava na rua Rubem Vaz e era da irmã Letícia, a quem pagava aluguel. Mandou um táxi me buscar (dirigido por seu Antonio, que depois se tornou meu motorista), fez questão de demonstrar que não estava casado e, de fato, no apê não encontrei um grampo, não havia vestígio de mulher. Estavam lá seu filho Pedro e alguns amigos. Quando senti que era hora, pedi-lhe para me levar de volta. Ele desceu comigo, chamou um táxi e me levou para casa, tudo direitinho, um perfeito cavalheiro. Não queria me deixar partir e, claro, era difícil resistir aos encantos do poeta. Mas não rolou nada. Dois dias depois, voltei com minha mãe e a filha Rose para a Bahia. Deixei com ele o meu endereço. Logo que cheguei a Salvador, veio o telegrama: “Venha imediatamente. Saudades indizíveis.” Ele me pediu em casamento e convidou para acompanhá-lo ao Uruguai, onde ia fazer um show. Então chegou passagem, chegou tudo... Eu ia sendo levada, dizia que não queria fazer as coisas e quando me dava conta já estava fazendo. Fui para o aeroporto, rumo ao Uruguai, sem saber de nada. Algo me fez pensar: “E se eu chegar lá e não encontrar esse homem?” Mas ele telefonou e explicou os detalhes, disse que um motorista estaria me esperando para me levar ao hotel. Respondi firme: “Em quartos separados!” E assim a coisa estava arrumada quando cheguei: quartos separados. Para quê? Dispensamos um quarto e, desde então, a gente não conseguiu mais se separar... O show aconteceu em um café-concerto, tendo Dori Caymmi como parceiro. Conhecemos, na ocasião, o artista plástico Carlos Paes Vilaró, 18
uma pessoa extremamente comunicativa, carinhosa e amiga, um mago, um mestre das artes, quase um guru. A sua morada é uma espécie de castelo em estilo mediterrâneo, em Punta Ballena, conhecido por casa-pueblo, onde nos recebeu como grandes amigos. Ali se vive e se respira a arte, é incrível! Tem ruas internas com nomes de artistas brasileiros e Vinicius de Moraes é uma delas. Saravá, Vilaró! Que Deus nos conserve nesta vida o tempo suficiente para nos encontrarmos um dia e matarmos as saudades!
"É por isso que eu moro na areia" O nosso retorno ao Brasil, após a curta temporada no Uruguai, poderia ser perfeitamente embalado (com a licença de Caymmi) por aqueles versos tão conhecidos no país inteiro: “Eu não tenho onde morar, é por isso que eu moro na areia.” O fato é que, na época, muitas coisas estavam dando errado na vida de Vinicius. No final de 1968, a carreira diplomática foi cassada pela ditadura e, em maio de 1969, retornou de Lisboa para o Rio, de navio. Quando se deu a morte da sua mãe, ainda estava no mar; não deu para encontrá-la viva. Com tudo isso, estava muito carente, fragilizado. 19
A partir do momento em que o conheci e, mais tarde, quando percebemos que não podíamos mais nos separar e resolvemos viver juntos, nós partimos do zero, ou melhor, dos cinco cruzeiros que Tom Jobim emprestou para começarmos a nossa vida. Uma das filhas de Vinicius, Georgiana, por quem tenho carinho e gratidão, em um gesto de amor pelo pai, ofereceu-nos abrigo, no apartamento em que morava com o ator Claudio Marzo – a quem devoto grande afeição. Foi por pouco tempo, pois aconteceu o convite para um show em Buenos Aires, na boate La Fusa, pertencente a Silvina e Coco Perez, um casal apaixonado pela arte do poeta. Foram dias maravilhosos. Na volta para o Rio, ficamos abrigados no apartamento da comadre e cantora Maria Creuza (tenho saudades de você, viu comadre, desde os tempos bons da Bahia!). De forma igual ao que se deu na casa de Georgiana, ficamos pouco tempo: voltamos a viajar e a fazer shows... Na volta dessa segunda viagem, o dinheiro juntado ainda era pouco para a nossa casa de verdade. Fomos de mala e tudo, desta vez, para o apartamento do Cecil Thirré, filho de Tonia Carrero. A memória guarda com detalhes a amizade, o carinho e a alegria desta mulher e atriz maravilhosa. Ao entregar a chave para nós, ela disse:
Gesse em uma de suas viagens.
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– Fiquem todo o tempo que quiserem! Foi uma coisa tão sincera que, tenho a certeza, antes de partirmos lá para cima, vamos ter uma nova chance de estarmos frente a frente, para eu dizer o que tenho guardado no fundo do coração, o meu muito obrigada por tudo o que você fez por nós, como dizia o poeta: “Se todos fossem iguais a você!”... Um dia, contamos o dinheiro do cofre e já dava para comprar o nosso ninho, que veio a ser uma casa na rua Frederico Eyer, na Gávea. O carro não ia até a porta. Para chegar, tínhamos que subir uma escadinha que ficava no canto de uma avenida de três casas geminadas. Em frente, tinha um abacateiro e a casa foi a nossa felicidade, o nosso primeiro ninho, adquirido com trabalho e suor. Nós havíamos conseguido! Seguiu-se uma sucessão de viagens, shows e muita doação e companheirismo. Vivíamos intensamente, como se cada dia fosse o último. E começaram também as viagens para a Bahia, onde ficávamos na Ladeira da Barra, em um hotel pequeno e simples cujo proprietário, Virgílio, era uma pessoa muito especial. Vinicius adorava ficar naquele hotel, assim como no pouso alternativo, a casa de Édio e Sônia Gantois, na Barra Avenida. Por falar em hotel, naqueles tempos agitados, o destino quase nos pregou uma peça, tendo por cenário a pousada do Chico Rei, em Ouro Preto, onde éramos muito bem acolhidos por Lilli, uma dinamarquesa maravilhosa, amiga de Vinicius. Certo dia, no nosso quarto, ouvimos gritos, passos de gente correndo, móveis arrastados e muita confusão lá embaixo. Era uma mulher enlouquecida, de revólver em punho, procurando “o marido e sua amante”, supostamente hospedados na pousada. Lilli e Vinicius me salvaram de ser baleada sem saber por quem nem por quê: ela distraiu a mulher na recepção, enquanto ele me levava rápido para outro quarto... Só mais tarde soube que se tratava da “ex” Cristina2, que invadiu o nosso quarto com uma arma na bolsa, disposta a matar a ambos se nos encontrasse juntos... Esse episódio foi tornado público, muito tempo depois, em uma carta de Vinicius a Elizabeth Bishop, publicada em livro de Ruy Castro3. 2
Em suas cartas e comentários, Vinicius atribui à ex-companheira Cristina turbulentos episódios passionais, depois de finalizada a breve convivência entre ambos.
3
CASTRO, Ruy (org.). Querido poeta: correspondência de Vinicius de Moraes. Companhia das Letras: São Paulo, 2005. 21
E os fatos se sucediam. Na primeira vez em que fomos a Petrópolis, ficamos no hotel Margarida e, pela maneira como foi recebido e tratado, deu para sentir que já andara por lá com as outras... Naquele clima de fazer economia, inventei de jogar na loteria, que na época estava no auge. Marquei as apostas e pedi a Vinicius para incumbir Roberto, o nosso secretário, de fazer o jogo. Ainda brinquei, dizendo que era para a gente sair do sufoco e ele trabalhar menos. Na segunda-feira, quando fui conferir os resultados no jornal, quase não acreditei: 13 pontos! Na euforia da celebração, estranhei vê-lo murcho. Então perguntei: – Cadê Roberto? – Ih, filhinha, esqueci de dar o dinheiro e o rascunho pro Roberto fazer o jogo... – foi a resposta. Me senti caindo do céu, mas ia dar jeito? Não sei como, tive ânimo para falar: – É, poeta, não há de ser nada. O dinheiro não era para ser nosso, é para ser ganho através do trabalho, da luta! O futuro provou que eu estava certa.
Elis e Maysa Nesse período do Rio, convivi bastante com Elis Regina, e meu coração guarda lembranças maravilhosas, ainda que muita gente fale do seu temperamento forte. Ora, eu também tenho, e nunca houve qualquer problema entre nós, nenhum choque, nenhuma crise. Acho que ela gostava de mim tanto quanto eu dela. Lembro-me da agonia quando nasceu o primeiro filho, o João Marcelo, com um problema sério de rejeição ao leite; ela não tinha, e o guri rejeitava o industrializado. Ficou muito doentinho, entre a vida e a morte, e Elis no maior desespero. Eles passavam em minha casa, na Frederico Eyer, quando o dia estava amanhecendo, e subíamos o morro para encontrar uma mãe e comprar leite para o Joãozinho. Um dia, no desespero, ela pegou a roupinha do garoto e pediu para eu trazer para a Bahia, para Mãe Menininha. No Gantois, a Ialorixá pegou a roupa, olhou e me disse: “Vá, minha filha, viaje e diga à moça que isso é coisa passageira, vai correr tudo bem.” Quando voltei, dei um banho de ânimo em Elis e, hoje, está aí o rapaz vivo e forte... Pouco antes da sua trágica e prematura morte, Elis esteve em Salvador, para um show no teatro do Iceia, tradicional escola no bairro do Barbalho. Encontrei-a muito agitada, nervosa. O show foi suspenso e havia um clima pesado. Foi o último contato que tive com Elis e me deixou muito abalada a sua partida prematura. 22
Lembro-me de um fato engraçado que ocorreu muito antes, em São Paulo, com a música Gente Humilde. Eu disse a Vinicius que a canção tinha a cara de Ângela Maria, e ele estava resolvido a lhe dar, quando Elis entrou no circuito. Vinicius entendeu de cantar a música para Elis, que, de pronto, a quis para si: “Você não vai dar para ela não! Essa música você vai dar é para mim, para eu gravar.” E ficou aquela coisa; ela não saía do pé. Certo domingo, Ângela convidou a gente para almoçar na chácara Flora, onde morava. Falei para Vinicius que era a chance de levar a música e, quando estávamos saindo, eis quem chega: Elis! Quando soube que íamos para a casa de Ângela, não hesitou: “Eu também vou!” Eu pensei: “E agora?” Ela foi junto e ficou de olho, atiçava, dizia umas coisas provocantes para Ângela, tudo por causa da música. Parecia uma criança. Com Elis era o seguinte: se você soubesse levar aquele jeito dela, tudo ia bem; era divertidíssima. E terminou Ângela Maria gravando Gente Humilde. Maysa foi outra figura carismática que conheci na época, em São Paulo. Tempos depois, nos reencontramos em Mar del Plata, em um show com Toquinho, ao qual Vinicius levava sempre um convidado. Nessa apresentação, Bethânia era a convidada e Maysa se encontrava lá. Começou o show e Vinicius anunciou que Bethânia ia cantar O que Tinha que Ser. Ao começar a música, Maysa deu um pulo. O impulso foi tão forte que não deu para controlar. Ela pôs-se a gritar: “quem gravou fui eu!” Subiu no palco, tomou o microfone de Bethânia e começou a cantar O que foste na Vida... Cantou a música como pôde, a plateia aplaudiu educadamente e Vinicius agradeceu-lhe a presença, elogiou e tudo voltou ao normal. Depois do show, levei-a até o hotel. Quando chegamos ao quarto, Maysa desconectou o fio do telefone e ficou falando pelo aparelho com ninguém, com nada. Depois me disse: “Senta aí, baiana!” E cantou O Barquinho de trás para frente, a música inteira, do final até chegar à primeira estrofe – “Dia de luz”... “De trás para frente” é o mote para uma mudança de direção neste relato, aquela clássica volta no tempo, tão explorada no cinema e em livros com enredo biográfico. Vamos seguir esse caminho, então. E prometo que a leitura não se esgotará sem que tudo seja contado.
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