Ed 79 junho2016 internet

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PSIQUIATRIA PSYCHIATRY MENTAL ILLNESS AS A FIELD OF STUDY

CARDIOLOGIA INSUFICIÊNCIA CARDÍACA COM FRAÇÃO DE EJEÇÃO PRESERVADA: COMBATER EQUÍVOCOS PARA UMA NOVA ABORDAGEM. CARDIOLOGY HEART FAILURE WITH PRESERVED EJECTION FRACTION: FIGHTING MISCONCEPTIONS FOR A NEW APPROACH.

GOIÂNIA - ANO VII - Nº 79 - JUNHO - 2016

NUTRIÇÃO: OBESIDADE MATERNA EM GESTAÇÕES DE ALTO RISCO E COMPLICAÇÕES INFECCIOSAS NO PUERPÉRIO. NUTRITION: MATERNAL OBESITY IN HIGH-RISK PREGNANCIES AND POSTPARTUM INFECTIOUS COMPLICATIONS.




REVISTA ODISSEIA DA MEDICINA ......................................... ANO VII NÚMERO 79 JUNHO - 2016 ......................................... PUBLISHER

SUMÁRIO SUMMARY

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KLÉBER OLIVEIRA VELOSO

PSIQUIATRIA

......................................... JORNALISTA RESPONSÁVEL

PSYCHIATRY

A doença mental como campo de estudo. Mental illness as a field of study.

SUELI RAUL - DRT-GO/011263JP

......................................... REDAÇÃO E ORTOGRAFIA MARIA LÚCIA PAGLIARINI SAPONARA

CARDIOLOGIA CARDIOLOGY Insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada: combater equívocos. Heart failure with preserved ejection fraction: fighting misconceptions for a new approach.

......................................... DIAGRAMAÇÃO ODISSEIA COMUNICAÇÃO

......................................... EDITOR DE FOTOGRAFIA EDMAR WELLINGTON - MTB 1842

......................................... TRADUÇÃO

NUTRIÇÃO NUTRITION Obesidade materna em gestações de alto risco e complicações infecciosas no puerpério. Maternal obesity in high-risk pregnancies and postpartum infectious complications.

FELIPE HOMSI AGENOR NETO

......................................... CONSELHO EDITORIAL Dra. ADRYANNA LEONOR MELO CAIADO Dr. ANTÔNIO DA SILVA MENEZES JÚNIOR Dr. CLÁUDIO VITAL DE LIMA FERREIRA Dr. HÉLIO CURADO FRÓES Drª. JULIANA SILVA MOREIRA Dr. JOEL DE SANT´ANNA BRAGA FILHO Dr. MARCO ANTÔNIO CARNEIRO Dr. NADIM CHARTER P RO

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Estúdio profissional digital c/qualidade Neumann Estúdio profissional digital *Produção audiovisual c/qualidade Neumann em geral *Produção audiovisual em geral

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Odisseia O.P Produtora Odisseia *Atendimento a agências e produtoras Produtora

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......................................... PUBLICIDADE, MARKETING E MERCHANDISING ODISSEIA COMUNICAÇÃO + 55 62 3954.8201 odisseiadamedicina@gmail.com ......................................... CONTEÚDO, DESENVOLVIMENTO, PROJETO GRÁFICO E PUBLICAÇÃO AGÊNCIA ODISSEIA COMUNICAÇÃO CNPJ 11.026.604/0001-23 ......................................... Esta revista é uma publicação da Odisseia Comunicação, agência de publicidade e propaganda, com conteúdo nacional e internacional. A agência é comprometida com a ética, com o desenvolvimento sustentável, com o respeito ao consumidor e com a responsabilidade social. Os pontos de vista aqui expressos refletem a experiência e as opiniões dos autores. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida por quaisquer meios empregados sem a autorização prévia, por escrito, da agência e dos autores dos artigos. Esta publicação pode ser acessada, gratuitamente, nas seguintes redes sociais:

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A doença mental como campo de estudo.

Mental illness as a field of study.

a apresentação que Maria Isaura Pereira de Queiroz escreveu para a coletânea de estudos de Roger Bastide (1898-1974), por diversas vezes o sociólogo é visto como aquele que trabalhou na interface dos saberes. Ao situarmos as suas contribuições para a área da medicina e da doença mental, da psicanálise e da psiquiatria social, sem dúvida, essa é uma ideia que aflora de imediato, como foi claramente retomada por Ravelet. Essas áreas apresentam uma série de estudos que vão de 1941 a 1972 e que são as fontes para as nossas análises. Neste trabalho, selecionamos textos com base na bibliografia levantada por Ravelet e subsidiada pelas coletâneas de artigos, discussões e memórias organizadas por Pereira de Queiroz , Ravelet e Instituto de Estudos Brasileiros . O objetivo deste trabalho, primeiramente, é o de revisitar essa produção, cotejá-la com as análises já realizadas e, em segundo lugar, resituá-la, criticamente, frente às mais recentes produções no campo da sociologia das doenças mentais.

In the presentation Maria Isaura Pereira de Queiroz wrote for the collection of studies by Roger Bastide (1898-1974), many times the sociologist is seen as someone who worked at the interface of different disciplines. When contemplating his work, what immediately comes to mind are his contributions to the field of medicine and mental disorder, psychoanalysis and social psychiatry, as Ravelet clearly demonstrates. There are a number of studies in these fields, developed between 1941 and 1972, which are the source or our analyses. In this article, we have selected texts based on the references indicated by Ravelet and supported by the collection of articles, discussions and memories organized by Pereira de Queiroz, Ravelet, and the Institute of Brazilian Studies. The purpose of this paper is, primarily, to revisit this output, compare it against the analyses already made, and, secondly, to critically re-position it in view of the most recent developments in the field of sociology of mental disorders.

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AUTOR E OBRA Roger Bastide nasceu em Nîmes, na França, em 1º de abril de 1898, em uma família de tradição calvinista. Após a escola primária, cursou o liceu de Nîmes, de 1908 a 1915, quando obteve uma bolsa de estudos para se preparar para l’École Normale Supérieure. Segundo Ravelet, os

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AUTHOR AND WORKS Roger Bastide was born in Nîmes, France, on April 1st, 1898, to a family of Calvinistic tradition. After elementary school, he attended the lyceum of Nîmes, from 1908 to 1915, when he received a scholarship to prepare for thel’École Normale Supérieure. According to Ravelet, the 5 OM


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estudos foram interrompidos pela guerra, quando faz o serviço militar e prepara-se para uma licenciatura em Filosofia, mas, em 1917, parte para o front como telegrafista e, em 1919, ao ser desmobilizado, acompanha as sessões especiais de preparação para École Normale Supérieure, que eram oferecidas aos soldados. Em seguida, muda-se para Bordeaux, onde irá cursar a universidade e travar contato com a vida literária da cidade. Em 1921, apresenta o seu trabalho para a obtenção do DES (Diplôme d’Études Supérieures) de Filosofia. A partir de 1924 até 1938 lecionou sucessivamente em Cahors, Lorient, Valence e Versailles. Nesse ano, recebeu o convite do médico e psicólogo francês Georges Dumas (1866-1946) para ocupar a vaga deixada por Claude Lévi-Strauss (1908-2009) e lecionar sociologia no Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, criado em 1934, aqui permanecendo até 1954. Ao voltar à França, redige as duas teses de doutorado, defendidas em 1957: a “grande tese” Les Religions Africaines au Brésil, e a tese subsidiária, Le Candomblé de Bahia, vindo a ocupar, a partir de 1958, o posto de titular de Etnologia Social e Religiosa na Sorbonne. Lecionou também na École Pratique des Hautes Études e no Institut des Hautes Études d’Amérique Latine. Criou, em 1961, um Centro de Psiquiatria Social que dirigiu até sua morte. Faleceu em Paris em 10 de abril de 1974. A obra de Bastide é bastante extensa e alguns estudos procuraram situá-la e classificá-la. Ravelet aponta a enorme diversidade temática da obra de Bastide abrangendo os seguintes campos: sociologia geral; sociologia religiosa; antropologia; psiquiatria social; sociologia brasileira; literatura francesa e brasileira; arte e sociologia da arte, em particular, sobre o folclore e a arquitetura; reflexões filosóficas; educação; psicologia; psicanálise; doença mental; textos circunstanciais sobre a guerra; relações internacionais. Especificamente, em relação à psicologia, psicanálise, psiquiatria social, “loucura” e doença mental, a produção se mescla a temas como misticismo, sonho, transe. OM 6

war interrupted his studies; while he was drafted to the army, he studies for a degree in Philosophy. In 1917 he goes to the front as a telegraphist, and in 1919, when he is demobilized, he attends the special preparatory classes for the École Normale Supérieure that were given to soldiers. He then moves to Bordeaux, where he will go to the university and get in contact with the literary life of the city. In 1921 he presents his manuscript to receive his DES degree (Diplôme d’Études Supérieures) in Philosophy. Between 1924 and 1938, Bastide taught in Cahors, Lorient, Valence and Versailles, successively. In 1938 he was invited by French physician and psychologist Georges Dumas (1866-1946) to replace Claude Lévi-Strauss (1908-2009) as professor of sociology at the University of São Paulo’s Department of Social Sciences, created in 1934, where he stayed until 1954. Back to France, he writes two doctoral manuscripts, presented in 1957: the “major manuscript” Les Religions Africaines au Brésil, and the subsidiary one, Le Candomblé de Bahia; in 1958 he became full professor of Social and Religious Ethnology at Sorbonne. He also taught at the École Pratique des Hautes Études and the Institut des Hautes Études d’Amérique Latine. In 1961 he created a Center of Social Psychiatry that he managed until his death. He passed away in Paris on April 10, 1974. The body of work of Bastide is quite extensive, and some studies attempted situating and classifying it. Ravelet mentions the tremendous diversity of themes in Bastide’s works, including general sociology; religious sociology; anthropology; social psychiatry; Brazilian sociology; French and Brazilian literature; art and sociology of art, particularly folklore and architecture; philosophical reflections; education; psychology; psychoanalysis; mental disorder; incidental texts on war; international relations. Particularly in regards to psychology, psychoanalysis, social psychiatry, “madness” and mental disorder, themes such as mysticism, dreams, and trances are intermixed. Despite having written such diverse works, Bastide is an investigator who sought, in his works, to respond to some fundamental issues that


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Embora seja autor de uma obra bastante diversificada, Bastide é um pesquisador que procurou em seus trabalhos dar uma reposta às questões fundamentais que acompanhavam a sua vida, sem a “necessidade de falar de si próprio”, construindo uma obra que se caracteriza pelo rigor teórico e metodológico (p. 4). Segundo Pereira de Queiroz (p. 216): “O vasto leque de seus conhecimentos teóricos operava uma expansão extraordinária de perspectivas para quem o ouvia, mostrando a multiplicidade dos pontos de vista e dos sistemas de pensamento dos diversos autores de variadas correntes e de muitos países: as diferenças entre a Sociologia de Durkheim e a de seu contemporâneo Gaston Richard, a ampliação trazida por Max Weber ao estudo das sociedades; as pesquisas de Radcliffe-Brown; Karl Mannheim e o início da Sociologia do Conhecimento; as contribuições da Antropologia Cultural Americana”. Peixoto analisa que, “durante a sua estada brasileira, Bastide forja um ponto de vista teórico e metodológico particular, dissonante dos padrões de seu tempo”. Essa perspectiva deve- se às tradições das ciências sociais francesas, o contato com as produções sociológicas e antropológicas norte-americanas e “as linhagens intelectuais nacionais”. Nesse sentido, os diálogos com Mário de Andrade, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes são exemplares que a autora analisa na formação das ideias de Bastide. Retoma a postura teórica situada por Pereira de Queiroz quando anota: “Poderíamos dizer que Bastide exercitou a interdisciplinaridade num momento em que tal postura não era praticada como nos dias de hoje. Sua localização nas áreas de fronteiras entre as disciplinas converteu-se em uma posição privilegiada, da qual ele soube tirar farto proveito teórico”. Seu trabalho com os temas das doenças mentais, psicanálise, sonho, transe OM 8

accompanied his life, with “no need to talk about himself”, and developed a work whose characteristic is a theoretical and methodological rigor. According to Pereira de Queiroz: “The broad array of his theoretical knowledge caused an extraordinary expansion of perspectives for those who listened to him, showing the multiple points of view and systems of thought of different authors of various currents and many countries: the differences between the Durkheim’s Sociology and that of his contemporary Gaston Richard, the expansion Max Weber led to the study of societies; the investigations by Radcliffe-Brown; Karl Mannheim and the development of Sociology of Knowledge; the contributions of the American Cultural Anthropology”. Peixoto perceives that “during his Brazilian stay, Bastide develops a particular theoretical and methodological point of view, dissonant from the standards of his time”. This perspective comes from the tradition of French social sciences, the contact with North-American sociological and anthropological works and the “local intellectual lineage”. Accordingly, the dialogues with Mário de Andrade, Gilberto Freyre and Florestan Fernandes are instances analyzed by the author for the formation of Bastide’s ideas. She revisits the theoretical position previously indicated by Pereira de Queiroz when she notes: “We could say that Bastide put forth interdisciplinarity at a time when such posture was not taken as today. Being at the border of disciplines became a vantage point from which he took broad theoretical profit”. His works concerning mental disorder, psychoanalysis, dream, trance and others are clear instances of his stand, as we will show in this study. In addition, even though Peixoto has not addressed these aspects of Bastide’s works, her ideas enlighten our way of understanding that


PSIQUIATRIA e outros exemplificam claramente esse posicionamento, como mostraremos neste estudo. Acrescente-se que, embora Peixoto não trate desses aspectos da obra de Bastide, suas ideias iluminam a nossa maneira de entender este autor; especialmente quando aponta que Bastide “exercita uma sociologia sensível à complexidade do social, evitando reduzi-lo a uma única dimensão ou atribuir-lhe um sentido unívoco”. Psicanálise, psicologia, psiquiatria social, sociologia das doenças mentais: um caminho e um retorno. A obra de Bastide que trata da temática psi é extensa e mescla diversos subtemas que estão distribuídos da psicanálise à sociologia das doenças mentais, passando pela psicologia e psiquiatria social, com uma variante fundamental em seu pensamento e pesquisas, a da etnopsiquiatria. Esses subtemas atravessam a sua produção intelectual e são tratados sem esse ordenamento, mas como veremos, o autor procurou em alguns livros sintetizar o seu pensamento nesses diversos campos de conhecimento. Bastide chegou ao Brasil em 1938, com uma produção que, iniciada em 1920, incluía trabalhos de caráter histórico, sobre a vida mística e sociologia religiosa. Aqui, o seu primeiro trabalho foi Psicanálise do Cafuné e Estudos de Sociologia Estética Brasileira, publicado em 1941. Somente em 1948 publicaria Sociologia e Psicanálise e logo em seguida Introducción a la Psiquiatría Social. Christian Lalive d’Epignay (1938), analisando os primeiros trabalhos de Bastide, diz que “três figuras atravessam e unem a sua obra: l’etranger, le fou (l’alienus), le dieu (...) Estas três figuras são também fundadoras do indivíduo e da sociedade , elas são impostas sobre ele, como as três manifestações do Alter”. Para ele, “[n]a análise das mutações de um rito”, em Psicanálise do Cafuné, já aparecem as relações psicologia/sociologia que irão se completar em obras posteriores. Ao sintetizar a abordagem de Sociologia e psicanálise diz que Bastide ao discutir as conquistas da psiquiatria e, especialmente, o pensamento de Sigmund Freud que, se ele,“reintroduziu o social na psicologia, trata-se agora de reintroduzir a

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author, particularly when she mentions that Bastide “put forth a sociology that is sensitive to the complexity of the social, avoiding its reduction to a single dimension or having a univocal sense”. Psychoanalysis, psychology, social psychiatry, sociology of mental disorders: a pathway and a return way. Bastide’s work that addresses psychological issues is extensive, and mixes different subthemes, ranging from psychoanalysis to the sociology of mental disorders, and including psychology and social psychiatry, with a fundamental variation in his thoughts and investigation, that of ethnopsychiatry. These subthemes cross his intellectual output, and are not addressed as such, but, as we will see, in some of his books the author tried to summarize his thoughts about these different fields of knowledge. Bastide arrived in Brazil in 1938, having started his academic output in 1920, including works of historical natural about mystic life and religious sociology. His first work here was Psicanálise do Cafuné, published in 1941. Only in 1948 he would publish Sociologia e Psicanálise, and, soon after, Introducción a la Psiquiatría Social. Christian Lalive d’Epignay (1938) analyzed the first works by Bastide, and stated that “three characters cross and unite” his work: “l’etranger, le fou (l’alienus), le dieu (...) These three characters are also founders of the individual and of society, they are imposed on the individual as the three manifestations of the Alter”. For him, “[in] the analysis of mutations of a rite”, in Psicanálise do Cafuné, the psychology/sociology relations already appear, and will be completed in later works. When summarizing the approach of Sociologia e Psicanálise, he says that Bastide, when discussing the achievements of psychiatry and, particularly, the thought of Sigmund Freud, that if he “reintroduced the social in psychology, now one must reintroduce the psyche in sociology, and Bastide borrows from the great Viennese the concept of libido to make it an operational category of his sociology” (emphasis of the author). With this, he develops an understanding of the individual as “a being of impulses, dreams, 9 OM


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psiquê na sociologia e Bastide empresta do grande vienense o conceito de libido para torná-lo uma categoria operacional de sua sociologia” (ênfase do autor). Com isso, constroi uma compreensão do indivíduo como “um ser de impulsos, sonhos, desejos e temores” e a psicanálise como “la tentation de l’abyssal”. Recordamos que essa análise já havia sido feita por Vírginia Leone Bicudo (1915-2003) ao assinalar que Bastide, sobrepondo-se a preconceitos, “particularmente ao preconceito científico”, irá relacionar as “contribuições recíprocas entre a psicanálise e a psicologia social, esta última constituindo em um elo entre a psicologia e a sociologia”. Destacamos as observações de Bicudo quando afirma que “para repensar as teorias sociológicas, Roger Bastide propunha o reexame da organização da família sob o vértice das teorias psicanalíticas, com referência à censura e à sublimação da libido no processo da vida infantil”. Louis Moreau de Bellaing (1932) ao sintetizar as relações entre sociologia e psicanálise, aponta quatro polos: a história conjunta das duas disciplinas (ambas nascem na mesma época, 1896); os elos entre o biológico, a libido, o psíquico e o social; a interpenetração e a reciprocidade do social e da libido; a autonomia das duas disciplinas e sua complementaridade. Trata-se de um guia para a leitura de Bastide, chamando a atenção para o fato de que “muitas passagens do livro são consagradas à etnologia, especialmente aquelas sobre racismo”. Ao apontar os limites da análise de Bastide, situa: a redução do inconsciente de Freud à libido, citando as polarizações encontradas em seu trabalho – cultural/libido, social/libido; esquecimento da démarche e do método freudiano, ou seja, que deve-se “pensar a obra freudiana – a psicanálise – e suas relações com as outras ciências sociais de dentro dela mesma a partir de seus próprios pressupostos, o que, no fundo, é verdade para toda ciência”; a tendência à analogia, citando a relação feiticeiro/divindade, ao generalizar as características atribuídas ao feiticeiro, igualando-o aos deuses, não é precisa. OM 10

desires and fears”, and psychoanalysis as “la tentation de l’abyssal”. This analysis had already been made by Vírginia Leone Bicudo (19152003) by mentioning that Bastide, overcoming prejudices, “particularly scientific prejudice”, will relate “the reciprocal contributions between psychoanalysis and social psychology, the latter being a link between psychology and sociology”. We highlight Bicudo’s observations when she states that “In order to rethink sociological theories, Roger Bastide proposed the re-examination of the family organization under the vertex of the psychoanalytic theories, with reference to censorship and sublimation of the libido in the process of child life”. Louis Moreau de Bellaing (1932) when summarizing the relations between sociology and psychoanalysis, points to the four poles: the joint history of the two disciplines (both are born at the same time, 1896); the links between biological, libido, psychic and social; the inter-penetration and reciprocity of the social and the libido; the autonomy of the two disciplines and their complementarity. That is a guide to read Bastide, and calls attention to the fact that “many passages of the book are dedicated to ethnology, particularly those on racism”. When he points the limits of Bastide’s analysis, he mentions that Freud’s unconscious is reduced to libido, and cites the polarizations found in his work – cultural/libido, social/libido; forgetfulness of “démarche” and of the Freudian method, this means, “one should think about the Freudian work – psychoanalysis – and its relations with other social sciences within itself, starting from its own assumptions, which, bottom line, is true for all science”; the tendency to analogy, citing the sorcerer/divinity relationship, by generalizing the characteristics attributed to the sorcerer that equals him to the gods, is not accurate. For this author, the fecundity of the studies on the relations among psychoanalysis, sociology and ethnology are as follows: pioneering, in the 1950s, the reflections about this theme; not



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Para esse autor, a fecundidade dos estudos das relações psicanálise, sociologia e etnologia são as seguintes: pioneirismo, nos anos 1950, das reflexões sobre o tema; não ter hesitado em aproximar noções que eram “em geral descartadas pela maior parte dos pesquisadores separando-as ou confinando-as nas disciplinas, elas mesmas concebidas como separadas e pouco associadas”, citando como exemplo ilustrativo o estudo sobre a sexualidade em que antropologia, sociologia e psicanálise estão manifestamente presentes; ter conferido um lugar especial à psicanálise no quadro das ciências sociais, mas que “a psicanálise não pode se confundir, se misturar (méler) injustificadamente com a antropologia, sociologia, direito, história etc.”, porém, ressalta que “sem ela, as ciências sociais – e esta ciência humana que é a filosofia – ficariam literalmente amputadas de uma parte de sua investigação. Certamente, Sociologia e Psicanálise e Introducción a la Psiquiatría Social constituem os dois trabalhos mais importantes da década de 1940, que antecedem muitas ideias que serão ampliadas por Bastide em outros momentos. Em Introducción a la Psiquiatría Social, Bastide inicia o trabalho revisitando ideias que estiveram presentes no século XIX sobre degenerescência – “a desintegração das vias nervosas se convertiam na causa da desintegração dos vínculos sociais” – e sua substituição pelo conceito de regressão – “os transtornos sociais são a consequência dos transtornos da vontade e da personalidade...”. Para Bastide, são duas ideias mais gerais do que as que separam as doenças em lesivas e não lesivas, sendo estas últimas de interesse do sociólogo. Para entender a causalidade e não apenas as correlações – doenças e fatores sociais – propõe, à la Durkheim, uma apresentação inicial das estatísticas por estado civil, confissões religiosas, profissões etc., como também com a criminalidade. Em todos os casos “as cifras indicam uma correlação, nada mais” entre fatos sociais e fatos de patologia mental. Volta-se, então, para a distribuição das patologias nos espaços geográficos (método ecológico), o que ajudaria a estabelecer OM 14

having hesitated in bringing closer ideas that were “in general discarded by most investigators, separating them or confining them into the disciplines, which were conceived as separate and with little association”, and mentions, as an illustrative example, the study on sexuality in which anthropology, sociology and psychoanalysis are manifestly present; having granted a special place to psychoanalysis in the roll of social sciences, but that “psychoanalysis cannot be unjustifiably mistaken, mixed (méler) with anthropology, sociology, law, history, etc., however, he stressed that without it, the social sciences – and the human science of philosophy – would be literally amputated from part of their investigation”. Certainly, Sociologia e Psicanálise and Introducción a la Psiquiatría Social are the two most important works of the 1940s, preceding many of the ideas that will be expanded by Bastide at other times. Bastide begins the Introducción a la Psiquiatría Social. revisiting ideas of the 19th century about degeneration – “the disintegration of nervous pathways were the cause of disintegration of social bonds” – and its replacement by the idea of regression – “social disorders are consequence of disorders of the will and the personality...”. For Bastide, these are two more general ideas that those that separate diseases between injurious and non-injurious, being the latter of interest to the sociologist. To understand the causality, and not only the correlations – diseases and social factors – he proposes, à la Durkheim, an initial presentation of statistics according to marital status, religion, occupation, etc., as well as to criminality. In all cases “the figures indicate a correlation, nothing else” between social facts and mental pathology facts. He, then, turns to the distribution of pathologies in geographic spaces (ecological method), which would help him establish correlations less vague than the previous ones, even though, without advancing towards causality, sometimes, “We glimpse certain privileged cases in which probability moves towards a sociological causality...”. Abandoning temporarily sociology and moving



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temáticas e ampliando outras; a psicanálise continua presente, assim como a psiquiatria social e, além das relações sociologia e psicanálise, são especificadas as relações etnologia e psicanálise. Selecionamos desse período, início dos anos 1950, o curso ministrado no Hospital do Juqueri e publicado como A Psiquiatria Social. O curso foi realizado por meio de uma série de palestras que abordaram: objeto e métodos, formação e desenvolvimento da psiquiatria social, os problemas da psquiatria social, antropologia cultural e psiquiátrica, mentalidade mágica e consciência mórbida, imigração e doenças mentais. O curso foi ministrado a convite do Dr. Osório Cezar (1895-1979), psiquiatra do Hospital Juqueri durante quatro décadas, desde 1925, e autor, junto com Bastide, de um artigo sobre as relações pintura, loucura e cultura. Alguns aspectos desse curso chamam a atenção, e embora apresente temas já tratados anteriormente, essa versão sobre a psquiatria social é mais completa do que a de 1940. Mostra a psiquiatria social como criação posterior à sociologia e suas relações com a psicologia e antropologia cultural, ressaltando a falta de trabalhos metodológicos em pesquisas colaborativas. Destaca pesquisas multidimensionais e o que se produzia nos Estados Unidos nas chamadas area studies realizadas entre geógrafos, historiadores, juristas, economistas, sociólogos, antropólogos e linguistas, quando há entre os pesquisadores um “objetivo comum a todos”. O autor prossegue apontando que esses estudos além de serem apropriados para uma “fecundação cruzada” possibilitam uma interdisciplinaridade a partir da identificação do mesmo problema pelos diversos especialistas. Lembra que toda a colaboração é uma “colaboração crítica” e que isto se aplica ao campo da psiquiatria social. Também aponta a correlação entre os fenômenos sociais e as doenças mentais em lugar da busca da causalidade. Para isso utiliza o “princípio da reciprocidade de perspectivas” de Georges Gurvitch, para quem “a sociologia em profundidade concebe todo fato psíquico, consciente ou não, que descobre na sociedade como situação no ser e particularmente no ser social (...). O vivido é sempre ao mesmo tempo coletivo, intermental e individual (...)recobrem reciprocamente”. Não se pode deixar de mencionar que esse curso foi realizado na década de 1950, quando o Hospital do Juqueri entra em processo de superlotação de pacientes, passando de 7.099, em 1957, para 11.009,

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at the Juqueri Hospital, and published as A Psiquiatria Social. The course consisted on a number of lectures that addressed object and methods, formation and development of social psychiatry, the problems of social psychiatry, cultural and psychiatric anthropology, magic mentality and morbid conscience, immigration and mental diseases. This course was given by invitation of Dr. Osório Cezar (1895-1979), a psychiatrist at the Juqueri Hospital for forty years, since 1925, and author, along with Bastide, of an article about the relations among painting, madness and culture. Attention is drawn to some aspects of this course, and even though some of the issues previously addressed are presented, this version on social psychiatry is more complete than the one of 1940. It shows social psychiatry as having been created after sociology, and its relations with psychology and cultural anthropology, and stresses the lack of methodological studies in collaborative investigations. It highlights multidimensional investigations and what was developed in the United States in the so-called area studies conducted by geographers, historians, lawyers, economists, sociologists, anthropologists, and linguists, whenever there is a common aim among all researchers. The author goes on, and mentions that these studies, in addition of being adequate for cross fertilization, allow that interdisciplinarity occurs as the same problem is tackled by different experts. He reminds that all collaboration is a critical collaboration, and that it applies to the field of social psychiatry. He also mentions the correlation between social phenomena and mental disorders, rather than seeking the cause. For that, he uses “the principle of reciprocal perspectives” of Georges Gurvitch, to whom “in-depth sociology conceives the entire psychic fact, conscious or not, that finds in society as a situation of the being, particularly of the social being... The experienced is always, at the same time, collective, intersubjective and individual... reciprocally revisited”. One should mention that this course was given in the 1950s, when the Juqueri Hospital enters a process of patient overcrowding, jumping from 7,099 patients in 1957 to 11,009 in 1958, and about 16,000 patients admitted in the 1960s, and that this fact or facts about the conditions the patients lived in the hospital, including children, are not being noted or addressed by Bastide. We will not deal with the many works by Bastide of the 1950s and


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em 1958, cerca de 16 mil pacientes internados nos anos 1960, e sobre este fato ou outros das condições em que viviam os internados, inclusive crianças, não ter merecido observações e análises de Bastide. Não trataremos dos diversos trabalhos de Bastide dos anos de 1950 e 1960, mas destacaremos, por ser um trabalho de síntese, a publicação de Sociologie de Maladies Mentales. Trata-se de um período especialmente rico na produção sobre a psiquiatria, loucura e doença mental. Ressaltem- se os trabalhos de Foucault (1926-1984), Laing (1927-1989), Cooper (1931-1986), Szasz (1920-2012) que, de diferentes maneiras, lançaram uma nova conceituação sobre a doença mental e suas práticas, inaugurando o que Cooper denominou de antipsiquiatria, mas que não aparecem na obra de Bastide. Lembramos que apenas tangencialmente, Bastide cita Foucault. O fundador da etnopsiquiatria Georges Devereux (1908-1985) apontou que essa obra era indispensável a quem se aproximava da sociologia das doenças mentais pela primeira vez. Chamou a atenção para a vasta erudição do autor, sua compreensão das teorias e métodos, pela simplicidade e elegância da “lógica concisa” e originalidade, tratando pela primeira vez “o conjunto de uma nova ciência em plena evolução”. Não faz nenhuma referência ao fato de Bastide não ampliar a sua análise aos autores (antes citados) – da geração que fez a crítica à psquiatria institucionalizada e hegemônica. Ampliando temas anteriormente tratados, Bastide parte de uma detalhada caracterização do encontro entre a psiquiatria e a sociologia, como ele diz, estimulante, mas carregado de indecisões, quando as fronteiras se aproximam da constituição de um novo campo – a psiquiatria social. Revisando autores dos anos 1920, 1950 e início dos 1960, expõe os diversos sentidos atribuídos à psiquiatria social: vencer as doenças mentais que proliferam na sociedade e se tornam um problema social, formar profissionais para atuar nos cuidados psiquiátricos de reinserção

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1960s, but we will highlight a work because it summarizes others, the publication of Sociologie de Maladies Mentales. This is a particularly rich period in the production or works on psychiatry, madness and mental disorder. Mention should be to the works of Foucault (1926-1984), Laing (1927-1989), Cooper (1931-1986), Szasz (1920-2012) which, in different ways, launched a new concept about mental disorders and their approaches, giving rise to what Cooper called anti-psychiatry, but that are not present in Bastide’s works. One should remember only tangentially Bastide mentions Foucault. The founder of ethnopsychiatry Georges Devereux (1908-1985) mentioned that this work was mandatory for those who would be dealing with the sociology of mental disorders for the first time. He draw attention to the scholarly approach of the author, his understanding of theories and methods, the simplicity and elegance of his “concise logic” and originality, addressing for the first time “the body of a new science in full evolution”. He makes no reference to the fact that Bastide had not expanded his analysis to the authors (previously mentioned) – of the generation that criticized the institutionalized, hegemonic psychiatry. Expanding issues previously addressed, Bastide makes a detailed characterization of the convergence between psychiatry and sociology, as he puts it, exciting but filled with indecisions when they get close to the development of a new field – social psychiatry. Reviewing authors from the 1920s, 1950s and early 1960s, he presents the different aims of social psychiatry: overcome the mental diseases that proliferate in society and become a social problem, train practitioners to work in psychiatric care with the aim of social reinsertion of the patient, study methods of treatment to form therapeutic communities. Being more practical than theoretical, it is closer to psychiatrists than sociologists. Bastide mentions that there is room for theoretical constructs, and that will take place as investigators find social issues in the etiology of mental disorders, when

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social do paciente, estudar métodos de tratamento na formação de comunidades terapêuticas. Mais prática do que teórica, aproxima- se mais dos psiquiatras e menos dos sociólogos. Bastide não deixa de assinalar que há lugar para a construção teórica e isto irá ocorrer na medida em que os pesquisadores se deparam com a questão dos fatores sociais na etiologia das doenças mentais, num cruzamento de variáveis familiares, econômicas, profissionais, religiosas etc. e que foram reveladas pelos primeiros estudos com populações urbanas e nativas, num sentido, e em outro, com o estudo das “coletividades mórbidas”. Para Bastide, a compreensão dos fatores sociais relacionados à doença mental passa por três vertentes: a psiquiatria social, a sociologia das doenças mentais e a etnopsiquiatria. Considerando a questão com base na sociologia, Bastide diz que se poderia buscar na própria origem da sociologia os primeiros momentos de uma sociologia das doenças mentais, presente no pensamento positivista de Augusto Comte (17981857), que de forma bastante geral tratou das relações entre sociedade e loucura. Para Comte, “o aumento dos casos de loucura está em relação com a passagem de um período de crise; desenvolve-se ao mesmo tempo e pelas mesmas razões do individualismo”. Essas razões estão associadas ao pensamento “egoísta”, a revolta do indivíduo contra a humanidade, o abandono do altruísmo e a entrega à “subjetividade”. A influência comtiana é estendida a outros autores como Audiffrend, Blondel, Morel, mas será com Durkheim que “o problema das origens sociológicas da loucura (...) será posto em termos novos, em termos de anomia social”. Segundo Durkheim, anomia tem dois significados: ausência de regulamentação e falta de controle, que aparece, respectivamente, na Divisão do Trabalho Social e no Suicídio e, embora ele não o tenha utilizado em relação às doenças mentais, seria um conceito chave da literatura norte-americana sobre a sociogênese das perturbações psíquicas. Bastide aponta o marxismo como a segunda corrente importante para o campo da sociologia das doenças mentais, com a sua perspectiva de que os problemas do homem derivam das “transformações técnicas, ma-

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family, economic professional, religious, and other variables cross, that were revealed by the early studies with urban and native populations, on one hand, and on the other, with the study of pathological communities (collectivités morbides). For Bastide, the understanding of social factors related to mental disorder includes three dimensions: social psychiatry, sociology of mental disorders, and ethnopsychiatry. Considering the matter according to sociology, Bastide says one could see in the origins of sociology the early time of a sociology of mental disorders that is present in Augusto Comte’s (1798-1857) positivism, which addressed the overall relations between society and madness. For Comte, “the increase in the cases of madness is related to the passing of a period of crisis; it develops at the same time and for the same reasons as individualism”. These reasons are associated with the selfish thought, the revolt of the individual against mankind, the abandonment of altruism, and the concession to subjectivity. The influence of Comte is extended to other authors, such as Audiffrend, Blondel, Morel, but it will be with Durkheim that “the problem of the sociological origins of madness (...) will be presented in new terms, in terms of social anomie”. According to Durkheim, there are two meanings for anomie: lack of regulation, and lack of control, which appear, respectively, in Division of Labor in Society and Suicide, and even though he did not use it in relation to mental disorder, that would be a key idea in North-American literature about the sociogenesis of psychological disorders. Bastide points to Marxism as the second important current in the field of sociology of mental disorders, with its perspective that the problems of man come from “technical, material or moral transformations due to overall conflicts of the capitalist society”. The author also reviews how Soviet psychiatry adopted Pavlovianism as its theoretical foundation. The third dimension includes the contributions made by psychoanalysis to psychiatry and sociology. “At first sight, it would seem does it not”,


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correlações menos vagas do que as anteriores, embora, ainda, sem que se avance no sentido da causalidade, às vezes, “entrevemos em certos casos privilegiados que a probabilidade move-se no sentido de uma causalidade sociológica...”. Abandonar provisoriamente a sociologia e caminhar em direção à psiquiatria é o que aponta o autor. Analisa de forma geral as teorias de Freud, Pierre Janet que “nos conduzem ao conceito de subjetividade”, assinalando que foi Blondel quem mais “insistiu nesse conceito para dar conta das doenças mentais”. Volta-se para o método comparativo “experimentação indireta” e revê alguns clássicos da antropologia (Mead, Malinowski), mas comenta que este método não pode alcançar o grau de certeza quando utilizado em outras ciências como a física e a química. Pensa que, talvez, isso possa ser melhor observado em Moreno e a sociometria. A seguir, Bastide discute que o interesse está em saber se a sociologia pode ser útil à psiquiatria e não o contrário. Recupera em dois capítulos seguintes as representações coletivas dos delírios e os “delíros dos estrangeiros”, a indução ao delírio, loucura simultânea (entre dois ou mais indivíduos). Nas décadas de 1950 e 1960, Bastide vai consolidando algumas

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towards psychiatry, this is what the author points at. He makes a general assessment of the theories of Freud, Pierre Janet that “lead us to the idea of subjectivity”, noting that it was Blondel who insisted the most in this idea to account for mental diseases. He resorts to the “indirect experimentation” comparative method, and reviews some anthropology classics (Mead, Malinowski), but comments that this method cannot reach the degree of certainty when used in other sciences, like physics and chemistry. He thinks that perhaps this can be better observed in Moreno and sociometry. Next, Bastide argues that the interest is to know whether sociology can be useful to psychiatry, not the opposite. In the two following chapters, he recalls the collective representation of delusion and the “delusions of foreigners”, the induction to delusion, simultaneous madness (between two or more individuals). In the 1950s and 1960s, Bastide consolidates some of the themes, and expands others; psychoanalysis is still present, as well as social psychiatry, and, in addition to the relations between sociology and psychoanalysis, the relations between ethnology and psychoanalysis are specified. From this period, in the early 1950s, we selected a course he taught


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teriais ou morais” advindas dos “conflitos gerais da sociedade capitalista”. O autor passa, ainda, em revista, como a psiquiatria soviética adotou o pavlovismo como a sua fundamentação teórica. Uma terceira vertente é constituída pelas contribuições trazidas pela psicanálise à psiquiatria e à sociologia. “À primeira vista poderia parecer que não”, escreve Bastide, especialmente pelo fato de que Freud “anula o papel dos fatores sócio-econômicos e em particular o da luta de classes, para conceder o papel decisivo aos fatores biológicos e especialmente aos fatores sexuais”. O sociólogo destaca que não se pode esquecer que a psicanálise trouxe importantes contribuições para a compreensão dos fatores familiares, da constelação infantil, para o problema da comunicação (diálogo paciente/ analista) e de outras questões, canalizando para o interior do discurso sociológico técnicas, sugestões teóricas e vocabulário psicanalítico, tais como: racionalização, frustração, complexo de inferioridade, sublimação e muitos outros. Mesmo reconhecendo o valor dessa contribuição, é cuidadoso em recolocar as questões da teoria psicanalítica no quadro dialético de interpretação sociológica dos fatores sociais na compreensão da doença mental. Lembra, ainda, que um prolongamento da psicanálise está na socioanálise, que seria objeto de diversos desdobramentos pós-anos 1960, época da publicação do livro de Bastide. A questão da teoria geral e da pesquisa empírica no estudo das doenças mentais será um ponto de relevância para o entendimento do campo da sociologia das doenças mentais, especialmente no caso dos Estados Unidos que deram à época grande destaque aos trabalhos de campo e surveys. Bastide situa o fato de que a grande diversidade de estudos empíricos podia ser “sistematizada” e desta forma não reduzida a um conjunto desordenado de achados, pois no fundo havia “uma mesma concepção gestáltica da doença mental: a cultura, o sistema social, a personalidade são variáveis funcionais, interdependentes e interligadas”. Essas colocações que abrem a discussão sobre o campo serão

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wrote Bastide, particularly due to the fact that Freud “invalidates the role of socio-economic factors, in particular the class struggle, to grant a decisive role to biologic factors, especially the sexual factors”. The sociologist mentions that one cannot forget that psychoanalysis made important contributions to the understanding of family factors, constellation of childhood, communication problem (patient/therapist dialogue), and other issues, channeling into the sociological discourse techniques, theoretical suggestions, and psychoanalytical vocabulary, such as: rationalization, frustration, inferiority complex, sublimation, and many others. Even acknowledging the importance of this contribution, he is careful in repositioning issues in psychoanalytical theory with issues in the dialectic chart of sociological interpretation of social factors in the understanding of mental disorder. He also recalls that socioanalysis is an extension of psychoanalysis, and it would be developed time and again post-1960s, at the time Bastide’s book was published. The general theory and the empirical research for the study of mental disorders will be a point of reference for the understanding the field of sociology of mental disorders, especially in the United States where major focus was placed in field work and surveys. Bastide mentions the fact that a wide diversity of empirical studies could be systematized, and therefore not reduced to a disarrayed set of findings, because, in the end there was “the same gestalt idea of mental disorder: culture, the social system, personality are functional variables, interdependent and interconnected”. These statements that open the discussions about the field will be followed by detailed review of the literature existing at the date of the research developed by Bastide. Before doing the review, Bastide presents a detailed chart of the research methods and their problems. He lines up the statistical method, case reports, interdisciplinary investigation and experimental method. For the author, they are important as they are based on the perspective of Gastón Bachelard, when he states that 21 OM


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acompanhadas de cuidadosa revisão da literatura produzida até a data da pesquisa realizada por Bastide. Antes de realizar a revisão, Bastide apresenta um quadro circunstanciado dos métodos de pesquisa e seus problemas. Alinha o método estatístico, as histórias de casos, a pesquisa interdisciplinar e o método experimental. Para o autor, assumem posição importante, pois estão assentados na perspectiva de Gastón Bachelard quando afirma: “Não se atinge um objeto preciso sem um pensamento preciso. E um pensamento preciso é um pensamento que se oferece às discussões da precisão. Se se vai até a raiz das tendências, não há dúvida de que a precisão é uma instância do eu-tu”. Para Bastide, “a ecologia traz como contribuição à sociologia das doenças mentais o reconhecimento de uma distribuição espacial particular das psicoses, orgânicas e funcionais”. Segundo o autor, a regularidade na distribuição não é obra do acaso, mas a ecologia não chega a apreender as causas desta regularidade e somente levanta hipóteses; dentre elas, a desorganização social de certos setores do habitat e a espacialização do isolamento. Bastide faz restrições a essas questões dizendo que devem ser estudadas outras variáveis, como classes sociais, tipos de famílias, religião etc. e dedica extenso capítulo no sentido de apreender aquilo que constitui uma vertente fundamental para a sociologia das doenças mentais – as consequências da industrialização e da estratificação dos homens em classes sociais. Para tal, revisa: a psiquiatria das categorias profissionais; classes e estratificação social; psiquiatria da sociedade industrial. Ao estudar a psquiatria dos grupos sociais separa os grupos religiosos e os grupos étnicos, tratados não tanto como grupos culturais, mas como grupos minoritários. Destaques dessa obra são os três capítulos finais – Pausa no Fim do Caminho, O “Louco” e a Sociedade e O Mundo da “Loucura” – fato que Devereux apontou com extrema perspicácia. Mas, por quê? Em nossa análise, primeiramente, porque neles Bastide situa a sua posição teórica frente à loucura e à doença mental – “as perturbações do espírito expriOM 22

“one does not reach a precise object without a precise thought. And a precise thought is a thought that serves for the discussions on precision. If you go to the root of tendencies, there is no question that precision is an instance of I-you”. For Bastide, “the contribution of ecology to the sociology of mental disorders is the acknowledgement of a particular spatial distribution of organic and functional psychoses”. According to the author, regularity in distribution is not due to chance, but ecology does not apprehend the causes of such regularity, it only raises hypotheses; amongst them, the social disruption of some sectors of the habitat, and the spatialization of isolation. Bastide has some reservations about these issues, and mentions that other variables should also be studied, such as social classes, types of families, religion, etc., and dedicates an extensive chapter to discussing the instrumental source of the sociology of mental disorders: the consequences of industrialization and stratification of men in social classes. For this purpose, he reviews the psychiatry of professional categories; social classes and stratification; the psychiatry of the industrial society. In his study of the psychiatry of social groups, he separates religious and ethnic groups, which are considered not so much cultural groups, but rather minority groups. The highlights of this work are the three final chapters – A Pause at the End of the Way, The ‘Madman’ and Society and The World of ‘Madness’ – a fact Devereux pointed out with extreme insight. Why? In our assessment, first of all because in them Bastide takes his theoretical stand in face of madness and mental disorder – “the perturbations of the spirit express the influences of culture, organization of society, and the human milieu”; secondly, because he draws attention to the huge diversity of the investigations and the near impossibility of comparing results, in face of the diversity of diagnoses and data collection techniques. Bastide leans to a sociology of mental disorders in which madness, like crime and suicide, is essentially a ‘social thing’’. For Bastide there are


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mem as influências da cultura, da organização da sociedade e do meio humano”, em segundo lugar, porque chama a atenção para a grande diversidade das investigações e da quase impossibilidade de comparações dos resultados frente à diversidade dos diagnósticos e das técnicas de coleta de dados. Define-se Bastide por uma sociologia das doenças mentais, na qual a loucura, como o crime e o suicídio, “continua a ser essencialmente coisa social”. Para Bastide existem duas vias para se fundar (sic) uma sociologia das doenças mentais “fora de todo o problema etiológico”: “complementaridade da atividade simbólica dos doentes e dos não doentes nas estruturas da mentalidade coletiva”; a outra, na “complementaridade das pessoas doentes e das pessoas não doentes nas estruturas da sociedade global”. Dessa forma, ressitua o “louco’ no plano da sociedade, no penúltimo capítulo do livro, não deixando à margem as relações médico/doente, mas redefinindo-as no encontro de “duas perigosas virtualidades”, na expressão parsoniana – a da busca de legitimidade do seu papel, por parte do doente, e o do controle, por parte do médico. Nesse plano de análise, como afirma “Uma sociologia da loucura deve articulá-la na totalidade do nosso sistema social”. Ao encerrar o livro, assume que as três contribuições importantes para a construção de uma sociologia das doenças mentais são: o estruturalismo, a história e a etnologia. Ponto de destaque nesse capítulo é o estabelecimento do “diálogo entre a sociedade e o louco”, pois em Bastide “a dinâmica da desordem mental inscreve-se num sistema em que colaboram ao mesmo tempo o desviante e a sociedade”, pois “o mundo da loucura faz parte do sistema global” e “o problema do doente mental na sociedade não é apenas o problema do doente, mas o problema da própria comunidade”. Para Devereux, o grande mérito desse livro é o de “ter traçado com clareza as fronteiras entre os diversos métodos de encarar e estudar a mesma série de fatos” vistos por campos distintos como a psiquiatria, a psicologia social, a psicopatologia social e outros. Permite, dessa forma, articular as diferentes ciências que estudam a doença mental numa perspectiva que enfatiza “o quadro social e cultural”, mas sem a preocupação de oferecer “uma metodologia sistemática e unificada”.

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two ways to fund (sic) a sociology of mental disorders “away from the problem of etiology”: “complementary of the symbolic activities of those affected and non-affected in the framework of collective mentality”; the other, in “the complementarity of the affected and non-affected people in the framework of global society”. Thus, he repositions the “madman” at the level of society, in the penultimate chapter of the book, not discussing the doctor/patient relationship, but redefining it as the encounter of “two dangerous virtualities”, according to Parson’s expression, the patient’s, who the seeks legitimacy of his role, and the doctor’s, who seeks control. In this level of analysis, he states that “the sociology of madness should articulate it within the whole of our social system”. At the closing of the book, he accepts that the three major contributions for the construct of the sociology of mental disorders are structuralism, history and ethnology. The highlight of this chapter is the establishment of a “dialogue between society and the madman”, as in Bastide “the dynamics of mental disorder is set in a system in which, at the same time, the deviant and society play a role”, “as the world of madness is part of the global system”, and “the problem of the mentally ill person in society is not only a problem of the person, but a problem of the community at large”. For Devereux, the major merit of the book is to “have clearly drawn the limits among the different methods of facing and studying the same series of facts” seen by the distinct fields, such as psychiatry, social psychology, social psychopathology, and others. Therefore, it allows the different sciences that investigate mental disorders to be articulated in a perspective that highlights “the social and cultural setting, but with no concern in offering a systematic and unified methodology”. According to François Sicot, the bel avenir that Bastide foresaw for the investigation of the sociogenesis of mental disorders and for social psychiatry, in his book Sociologia das Doenças Mentais, that should become an agenda for future investigations was not fulfilled, particularly when one compares Sociology outputs in French and English. In the 1970s, Bastide makes two trips, one to Canada, with Henri Desroche, and one to Brazil, in 1973. This is his second trip to Brazil; 23 OM


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Segundo François Sicot, o “bel avenir” que Bastide antevia para a pesquisa sobre a sociogênese das perturbações mentais e para psiquiatria social em sua Sociologia das Doenças Mentais, que deveria constituir um programa para futuras pesquisas, não se cumpriu, especialmente quando se compara a produção sociológica francófona e a anglo-saxônica. Na década de 1970, Bastide realiza duas viagens: uma para o Canadá junto com Henri Desroche, e outra para o Brasil, em 1973. Essa é a segunda viagem, pois em 1962 já havia estado aqui a convite da Universidade de São Paulo. Nessa viagem permaneceu apenas de julho a setembro. Ravele relata que Bastide encontrava-se com a saúde bastante abalada, o que não o impede de apresentar até a sua morte em 1974 uma produção menor, mas expressiva em vários temas. No campo de nosso estudo, Bastide inicia a década de 1970 – que denomino de retorno – publicando um artigo que continua a sua busca para entender as relações entre a psicanálise e a sociologia, nesta ocasião usando a palavra “cooperação”; prefacia o livro de Devereux Essais d’Ethnopsychiatrie; escreve sobre a sociologia do sonho, as relações sonho e cultura e epidemiologia das doenças mentais; organiza Les Sciences de la Foliee a introdução da coletânea; aborda as causas sociais e culturais da doença mental e um estudo inédito, sobre “imagens das doenças mentais”. Mesmo conservando uma grande diversidade de temas na área psi, o que se percebe, nessa fase da sua vida, é que Bastide faz uma espécie de balanço do que havia estudado mais profundamente nesse campo. Como ele próprio relata, os acontecimentos de maio de 1968 serão motivadores para repensar a questão da loucura, estabelecendo um paralelo com os movimentos europeus da primeira metade do século XIX. Nesse sentido, “as duas grandes mutações do capitalismo industrial – a de sua formação e a de sua atual metamorfose – corresponderam ao romantismo e à agitação dos estudantes de 1968, fenômenos análogos; entre outras semelhanças, levou à descoberta ou à redescoberta do imaginário. Assim como da loucura como criação manipuladora desse imaginário”. Esse foi o ponto de partida para Bastide organizar uma série de conferências, em

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in 1962 he had come by invitation of the University of São Paulo. In this second trip, he just stayed from July to September. Ravele reports that Bastide’s health was quite poor, but that did not prevent him from having, until his death in 1974, a smaller, but expressive output in various themes. In the field of our study, Bastide begins the 1970s – that I call revival – by publishing an article continuing to seek the understanding of the relations between psychoanalysis and sociology, at this time using the word “cooperation”; he writes the foreword of Devereux’s book Essais d’Ethnopsychiatrie; he writes about the sociology of the dream, the relations between dream and culture, and the epidemiology of mental disorders; he organizes Les Sciences de la Folie and makes the introduction of the collection; he addresses the social and cultural causes of mental disorder and writes a seminal study about images of mental disorders. Despite the variety of psychical-related themes, at this point of his life one notes that Bastide revisits what he had studied more in depth in the field. As he reports, the events of May, 1968 motivated him to rethink the issue of madness, making an analogy with European movements of the first half of the 19th century. In this direction “the two major mutations of the industrial capitalism – its formation and its current metamorphosis – correspond to the romanticism and the agitation of the 1968 students, similar phenomena; among other similarities, it led to the discovery or rediscovery of the imaginary, as well as madness as a manipulative creation of this imaginary”. This was the starting point for Bastide to organize, in 1969, a series of lectures in the Center of Social Psychiatry, Paris, reviewing the thoughts about madness, published as Les Sciences de la Folie. Bastide hesitates between “sciences of madness” and “madness as sciences” as the title of the works; the expression “sciences of madness” has the meaning of “a scientific, objective, impartial study of the different mental disorders – the establishment of psychiatry as a discipline of the



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1969, no Centro de Psiquiatria Social, de Paris, revisando o pensamento sobre a loucura, publicadas como Les Sciences de la Folie. Bastide hesita entre “ciências da loucura” e “loucuras como ciências” como título dos trabalhos; a expressão “ciências da loucura” traz o significado de ser “um estudo científico, objetivo, imparcial, das diversas doenças mentais – a constituição da psiquiatria como uma disciplina de mesma natureza que os outros ramos da medicina” ou “a utilização da medicina como modelo a fim de inventar um novo domínio da sociologia”. Sem dúvida, como esclarece Bastide, são estudos que “fazem a transição entre uma psiquiatria, digamos, filosófica, e uma psiquiatria definitivamente científica”. Do confronto da semiologia médica (clínica) com a semiologia geral, que Barthes apresenta, à objetivação orgânica da “perturbação da alma”, na interpretação de Buchez, que Isambert reconstitui, há a visão da loucura de Comte, por Arbouse-Bastide, calcada no que Bastide chama “concepção romântica do positivismo”. Mas, é com Fourier que aflora a “ciência da loucura”, conforme o texto de Debout-Oleszkiewicz, não a “loucura” no “sentido que lhe dá a medicina, mas no sentido popular”, como anota Bastide, e no texto de Baruk emerge o fator social e moral das neuroses do nosso tempo, sem esquecer, como analisa Durand, as relações sonho-espiritualidade. Sem dúvida, Bastide prosseguia na construção de uma sociologia das doenças mentais e para isto buscava elementos que permeavam o seu trabalho anterior – trabalhar uma perspectiva sociológica, na interface com a história, antropologia, semiótica, mas como lembra com muita propriedade Braga “o olhar bastidiano voltou-se mais para os problemas que para as disciplinas, procurando em diferentes lugares as respostas para as suas inquietações sobre o outro”. Certamente, essas “inquietações sobre o outro” remetem-nos ao seu trabalho em que coligiu antigos estudos sobre o sonho, o transe e a loucura, que considero uma espécie de testamento de uma obra que se estende por centenas e centenas de páginas e na qual ele se debruça com base nos seus primeiros trabalhos. Trata-se de Le Rêve, la Transe et la Folie em que na Introdução Geral expõe toda a paixão pelos temas abordados, que se repete nas introduções das três partes do livro. OM 26

same nature as the other branches of medicine (...) or the use of medicine as a model in order to invent a new domain of sociology”. There is no question, Bastide explains, that these studies “make the transition of a philosophical, if you will, psychiatry and a psychiatry that is ultimately scientific”. From the confrontation of the medical (clinical) semiology to the general semiology presented by Barthes, to disturbance of the soul according to the interpretation of Buchez that Isambert reconstructs, there is the perspective of Comte’s madness by Arbouse-Bastide, founded on what Bastide calls “romantic conception of positivism”. But it is with Fourier that the “science of madness” emerges, according the text by Debout-Oleszkiewicz, not the madness in the “sense medicine gives it, but in the popular sense”, as Bastide notes, and in the text by Baruk the social and moral factor of the neurosis of our time emerges, not to mention, as Durand analyses, the dream-spirituality relations. There is no question, Bastide pursued the construct of a sociology of mental disorders, and to that end he sought elements that permeated his previous work – working in a sociological perspective in the interface with history, anthropology, semiotics, but, as Braga rightly recalls “the gaze of Bastide turns more to problems than to disciplines, seeking, in different places, the responses for his unease towards the other”. Certainly, such unease towards the other points to his work in which he gathered old studies about dream, trance and madness, that I consider a sort of testament of a work that extends to hundreds and hundreds of pages, on which he toiled following his early works. It is Le Rêve, la Transe et la Folie in which, in the General Introduction he displays all the passion he has for the issues he addresses, and that is repeated in the introductions of the three parts of the book. In Le Rêve, he begins by saying “We are always interested in our dreams. And we always regret that to date there is no biography of nocturnal men, as there are so many of diurnal men. (...) From the seduction of the


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Em Le Rêve, inicia dizendo “es tamos sempre interessados em nossos sonhos. E sempre lamentamos que ainda não haja nenhuma biografia dos homens noturnos, uma vez que existem tantas dos homens diurnos. (...) Desta sedução do mundo dos sonhos, que data das mais longínquas lembranças da infância, há apenas o simples interesse científico de constituir uma sociologia dos sonhos”. Reproduz uma série de trabalhos escritos no início dos anos 1930, “ponto de partida das pesquisas realizadas para o conjunto sobre a sociologia do sonho”; sonhos de negros, parte da pesquisa sobre negros e brancos do Estado de São Paulo, de 1950; as conferências sobre a sociologia do sonho, de 1967, e sonho e cultura, de 1970. Na seleção dos textos sobre La Transe, Bastide recolhe um escrito datado de 1953, com o expressivo título de Le“Chateau Intérieur” de l’Homme Noir, no qual ele que antevia a possibilidade de uma “sociologia do transe”, nas leituras antropológicas vai encontrá-la no candomblé brasileiro. O texto seguinte é sobre o fenômeno da possessão na interface do transe místico, da psicopatologia e da psquiatria, datado de 1967, mas que se completa com a conferência, de 1968, que intitulou Prolégoménes a l’Étude des Cultes de Possession. Bastide encerra essa parte da coletânea com um texto apresentado na Dinamarca, intitulado Discipline et Spontanéité dans les Transes Afro-Américaines, seguido de um longo posfácio no qual retoma a introdução a esses estudos ao anotar que “no transcorrer dos últimos anos, os cultos de possessão, em vez de permanercer localizados em certas etnias, multiplicaram-se de modo que sua análise torna- se hoje um dos capítulos mais elaborados da nova etnologia religiosa”. A terceira parte da coletânea é composta sob o título de La Folie, na qual reúne os seguintes trabalhos: o significado da psicose na evolução do homem e das estruturas sociais, de 1969; a abordagem interdisciplinar da doença mental, de 1967; a sociologia durkheimiana e a conceituação de doença mental, de 1966; um artigo inédito sobre as doenças mentais dos negros na América do Sul; uma introdução aos estudos afro-brasileiros, de 1948; suicídio entre negros brasileiros, de 1952; as conferências sobre “civilizações e doenças mentais” (1971); “simetria no pensamento mórbido” (1970); e o artigo em que aborda a psicanálise e a sociedade tecnicista, de 1967.

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world of dreams, that comes from the farthest memories of childhood, there is only the simple scientific interest to build a sociology of dreams”. He replicates a number of works written in the early 1930s, “the starting point of the investigations made for the set about the sociology of dream”; dreams of back people, part of the 1950 investigation about blacks and whites of the State of São Paulo; the lectures about sociology of dream, in 1967, and dream and culture, in 1970. In the selection of texts about La Transe, Bastide collects a piece dated 1953, with the expressive title of Le “Chateau Intérieur” de l’Homme Noir, in which he, who foresaw the possibility of a “sociology of trance” in the anthropological readings, will find it in the Brazilian candomblé. The text that follows is about the phenomenon of possession in the interface of mystic trance, psychology and psychiatry, written in 1967 but later completed at a lecture delivered in 1968, entitled Prolégoménes a l’Etude des Cultes de Possession. Bastide closes this part of the collection with a text presented in Denmark entitled Discipline et Spontanéité dans les Transes Afro-Américaines, followed by a long afterword in which he revisits the introduction by noting that “in the course of the past few years, the cults of possession, instead of remaining restricted to some ethnicities, multiplied in a way that their analysis is, today, one of the most elaborate chapter of the new religious ethnology”. The third part of the collection is presented under the title La Folie, and includes the following works: the meaning of psychosis in the evolution of man and social structures, in 1969; the interdisciplinary approach of mental disorder, in 1967; Durkheim’s sociology and the concept of mental disorder, in 1966; a new article about mental disorders in blacks of South America; an introduction to Afro-Brazilian studies, in 1948; suicide among Brazilian blacks, in 1952; the lectures about civilizations and mental disorders (1971); symmetry in morbid thought (1970); and the article that addresses psychoanalysis and the technically-focused society, in 1967. BASTIDE’S LEGACY Would it not be better to say that “madness is a social phenomenon” 27 OM


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O LEGADO DE BASTIDE “Não seria melhor dizer que ‘a loucura é um fenômeno social’, em vez de dizer: ‘a loucura tem causas sociais’?”. Laplantine escreveu que “Roger Bastide foi, e provavelmente é – com Lévi-Strauss – o pesquisador francês de maior influência no Brasil no domínio das Ciências Sociais”. Certamente, essa proximidade com aquele que é considerado um dos maiores antropólogos da história da antropologia, confere a Bastide um papel destacado nas pesquisas antropológicas que, segundo Laplantine, trouxeram uma “abordagem plenamente sociológica, quer dizer analítica das relações sociais”. Para ele, como analisa Laplantine, as culturas existem dentro das sociedades globais. Essa ideia é muito oportuna porque percorre a preocupação de Bastide em relação à loucura, doença mental e suas relações com a sociedade. Em realidade, a sua abordagem da doença mental e de um campo do conhecimento que lhe deu estrutura, no pensamento dos anos 1960, em termos sociológicos é, sem dúvida relevante. A revisão por ele realizada é detalhada e somente no final da década de 1960 apareceria outra revisão bibliográfica sobre o campo. Trata-se do estudo de Dufrancatel que analisa a produção de 1950 a 1967 (totalizando 826 referências), enfatizando os trabalhos americanos, e, como assinala Samuel Lézé, assume uma perspectiva diferente daquela de Bastide, para quem “o objeto da sociologia era aceito como dado pela psiquiatria”, ao passo que Dufrancatel “propôs uma introdução crítica e uma bibliografia anotada muito útil da sociologia da doença[illness, no original] mental... colocando abaixo, como primeira condição, uma ruptura epistemológica com o que é denominado como ‘desordem mental’ e a ênfase de sua precedência sobre a construção sociológica do objeto”. Do ponto de vista de estudos gerais, poucos são os trabalhos que trataram do campo antes do livro de Bastide. Citem-se: Clausen e a primeira antologia estudando diversos aspectos da saúde/doença mental, reunindo diversos autores e editada por Rose, publicada nos Estados Unidos. Assim,

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rather than “madness comes from social causes?”. Laplantine wrote that “Roger Bastide was, and probably still is – along with Lévi-Strauss – the French researcher of strongest influence in Brazil in the realm of Social Sciences”. Certainly, being close to the one who is considered one of the most important anthropologists in the history of Anthropology confers on Bastide an outstanding role in anthropological research which, according to Laplantine, “presented a fully sociological, this means, analytical approach of social relations”. For him, as Laplantine analyses, cultures exist within global societies. This is a very timely idea, as it considers Bastide’s concerns in regards to madness, mental disorders, and their relations with society. In fact, his approach to the mental disorder and to a field of knowledge that provided the framework for his ideas in the 1960s, in sociological terms, is unquestionably relevant. The review he did is a detailed one, only by the end of the 1960s another review of the literature on the theme would appear. It is the study by Dufrancatel that analyzes the publications between 1950 and 1967 (a total of 826 references), with focus on American works and that, as noted by Samuel Lézé, presents a perspective different from Bastide’s, to whom “the subject of sociology was considered as being given by psychiatry”, whereas Dufrancatel “proposed a critical introduction and a very useful annotated bibliography of the sociology of mental illness... tearing down, as the first condition, a epistemological break with what is called ‘mental disorder’ and the emphasis of its precedence over the sociological construct of the subject”. From the point of view of general studies, few works have addressed the field before the book by Bastide. They include Clausen’s, and the first anthology that examined the different aspects of health/mental disorder, a collection of different authors edited by Rose and published in the United States. Bastide’s study has, therefore, become reference for the understanding of the field as a whole, listing the significant number of


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o estudo de Bastide tornou-se referência para a compreensão do campo como um todo, relacionando a expressiva quantidade de pesquisas empíricas que já haviam sido realizadas sobre doença mental, até aquele momento. De certa forma, Bastide também, ao codificar a área, busca as informações mais atuais na época, tanto epidemiológicas como sociológicas, em torno das variáveis e suas associações com a doença mental, mas não se limita a esta exposição; há em seu livro um aprofundamento da perspectiva teórica traçando um panorama das relações entre o “louco” e a sociedade e do “mundo da loucura”, o que não o transforma, na opinião do autor deste texto, em sua totalidade, em um texto datado. A expressão “the book is very dated” foi usada por Kathleen Jones (1922-2010) quando resenhou a tradução em inglês de Sociology of Mental Disorder, publicada em 1972. Além dessa observação, acentua que Bastide foi mal traduzido e não cita Thomas Szasz, Freud, Reid, concluindo que o livro não cumpre o que o título promete e pode enganar o principiante. Ressaltamos, ainda, o fato de Bastide ter sido o introdutor da Escola de Chicago na França e suas críticas ao “sociologismo” durkheimiano, embora, como salienta Pereira de Queiroz, tenha usado amplamente as noções de anomia e representações sociais. Cotejar uma obra escrita precisamente há cinquenta anos não é simples. Para isso é necessário retomá-la dentro de novos cenários. Nesse sentido, são oportunas as observações de alguns autores, como Sicot, que optaram por análises que consideram as profundas mudanças que os estudos sobre a doença mental e a psiquiatria sofreram na França nessas últimas cinco décadas. Mudanças essas que estão associadas primeiro ao peso que hoje se confere à saúde mental; segundo, pela reorganização da própria psiquiatria frente ao sucesso das neurociências e da farmacologia. Para ele, essas questões não são exclusivas da França, com inflexões diferentes atingem todos os países ocidentais. Para Sicot, essa nova estruturação se institucionaliza por intermédio da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se impõe por meio de um modelo nosográfico – o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). Na revisão que elabora, distingue no conjunto da produção recente grandes temas: a organização dos OM 30

empirical studies on mental disorders conducted until that time. In a way, by codifying the area, Bastide also seeks the most current information at the time, both epidemiological and sociological, around the variables and their association with mental disorder, but he does not limit himself to this explanation; he goes deeper in his book on the theoretical perspective, presenting an overview of the relations between the madman and society, and the world of madness, but that does not make the book, in the opinion of the author of this paper, in its totality, a dated text. The expression the book is very dated was used by Kathleen Jones (1922-2010) when she wrote a critical review of the English translation of Sociology of Mental Disorder, published in 1972. In addition to this observation, she mentions that Bastide was poorly translated, does not cite Thomas Szasz, Freud, Reid, and concludes that the book does not fulfill what is promised by its title, and may deceive the beginner. We also stress that Bastide was the one who introduced the School of Chicago in France, and its critics to Durkheim’s “sociologism”, even though, as Pereira de Queiroz stresses, he had broadly used the notions of anomy and social representations. To cross-check a work written 50 years ago is not a simple task. It is necessary to place it in new scenarios. For this purpose, the observations of some authors, like Sicot are opportune, and made their analysis taking into consideration the deep changes that studies on mental disorder and psychiatry underwent in France over the past five decades. Such changes relate, first, to the weight currently conferred to mental health; secondly, due to the reorganization of psychiatry in face of the success of neurosciences and pharmacology. For him, these issues are not restricted to France, but reach all western countries in different degrees. For Sicot, this new framework becomes institutionalized with the intervention of the World Health Organization (WHO), and is imposed by means of a nosographic model, the Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM). In the review it makes, it differentiates from the set of recent outputs, the major areas: the organization of symptoms, the social representations, the relations between mental health, the criminal system and crime, the


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obtainment of epidemiological data, the reflection about diagnoses, and the relations between mental disorder and social bonds. Sicot’s reflection is important not only because it updates French literature on the theme, but for the critical spirit that is present throughout his analysis. In opposition to the optimistic view of Bastide, from the 1960s, Sicot shows that the current Francophonic sociological output on mental disorder is very feeble, particularly when compared to the Anglo-Saxon literature. The author emphasizes the absence of the theme in French sociological journals after the 1970s, and even books like Asile (Goffman) and Histoire de la Folie (Foucault) did not generate descendants. Lézé strongly criticizes the field of sociology of mental disorder, addressing the different stages it went through in France. The first is characterized by the proposal of definition and identification of the field (1965-1968); the second, by the description and criticisms to the social functions of psychiatric institutions (1968-1989); and the third by the emergence of mental health in the field of sociology (1990-2006). Among the different aspects addressed by Lézé and that allow the sociology of mental health to be re-dimensioned, worthy of note are the epistemological and methodological challenges, when he asks: What are the aspects that define the field? Is it by means of statistical methods, or a qualitative approach? Another epistemological challenge concerns the nature of mental health: it is not a medical issue, but pertains to the field of sociology of health. Bastide stands out particularly in the first stage, defining and framing the field of sociology of mental disorders. sintomas, as representações sociais, as relações entre a saúde mental, o sistema penal e o crime, a produção de dados epidemiológicos, a reflexão sobre os diagnósticos e as relações entre doença mental e os vínculos sociais. A reflexão de Sicot é importante não somente ao atualizar a literatura francesa sobre o tema, mas pelo espírito crítico que perpassa a sua análise. Diferentemente da visão otimista de Bastide na década de 1960, Sicot mostra que a produção sociológica francófona atual sobre a doença mental é muito frágil, especialmente quando comparada com a literatura anglo-saxônica. O autor destaca a ausência do tema nas revistas francesas de sociologia, depois dos anos 1970, e mesmo livros como Asile (Goffman) e Histoire de la Folie (Foucault) não produziram descendência. Lézé submete o campo da sociologia da doença mental a um forte crivo crítico, destacando as diversas fases pelas quais ela passou na França. A primeira, que se caracteriza pela proposta de uma definição e identificação do campo (1965-1968); a segunda, pela descrição e críticas às funções sociais das instituições psiquiátricas (1968-1989); e a terceira, pela emergência da saúde mental no campo da sociologia (1990-2006). Dentre os diversos aspectos abordados por Lézé que servem para redimensionar a sociologia da saúde mental, destacamos os desafios epistemológicos e metodológicos, quando pergunta: A partir de que pontos pode ser definido o campo? Será por meio dos métodos estatísticos? Ou por uma abordagem qualitativa? Outro destaque nos desafios epistemológicos é o da “natureza da saúde mental”, que não se enquadra como uma questão médica, mas no campo da sociologia da saúde. Bastide destaca-se especialmente na primeira fase definindo e demarcando o campo da sociologia das doenças mentais.

FINAL REMARKS If the starting point was to find multi- and interdisciplinarity in the works of Bastide, this is accomplished as we revisit his investigations. This is such a strong issue in Bastide’s works that, at some moments, it was he who provided the theoretical basis of these dimensions and its codification.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Se o ponto de partida era encontrar a multi e interdisciplinaridade nas obras de Bastide, isto se concretiza à proporção que revisitamos suas pesquisas. Essa questão é tão forte em Bastide que ele próprio forneceu em alguns momentos as bases teóricas dessas dimensões e de sua codificação . 31 OM


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Em trabalho datado de 1958, Bastide mostra que as relações entre a sociologia e a psicologia eram difíceis, pois “se procurava tal aproximação pela subordinação” que se reestrutura num sistema de “integração do psíquico e do cultural em planos sobrepostos” (p. 106). Para Bastide, a ideia de colaboração de psicólogos e sociólogos pode ser buscada em Marcel Mauss que, na década de 1920, criou a noção de “fenômenos sociais totais”, e em Gurvitch, que definiu baseando-se nessa noção o que denomina “os fenômenos psíquicos totais”. Dez anos depois, Bastide retoma a discussão e estabelece as seguintes distinções: pesquisa interdisciplinar – articulações entre diversas ciências, obra de um indivíduo ou de uma equipe de trabalho; pesquisa comparativa internacional ou transcultural – com base em um tema entre psiquiatras de diversos países; pesquisa multidisciplinar – trabalho numa mesma equipe de pesquisadores pertencentes a disciplinas diversas ou se em uma mesma disciplina a interação entre especialistas sobre um determinado aspecto do problema. Anota que essa última pode ser ao mesmo tempo interdisciplinar e transcultural, mas nem toda pesquisa com estas duas características é “forçosamente multidisciplinar”. Ponto alto desse trabalho é a tipologia das pesquisas multidisciplinares criada por Bastide, que apresenta quatro tipos: (i) coexistência igualitária – com base no princípio da indeterminação (Heisenberg) “um mesmo ‘acontecimento’ pode ter duas explicações completamente satisfatórias, quanto mais o compreendemos psicologicamente, menos o compreendemos sociologicamente, e inversamente”; (ii) coexistência estratificada – cada disciplina mantém sua autonomia, cabendo ao coordenador da equipe fazer a integração, por exemplo, ao psiquiatra cabe preencher as fichas e fazer o diagnóstico e ao sociólogo fazer as correlações; (iii) integração multidisciplinar prática – embora a abordagem de cada disciplina seja feita sucessivamente, não se estabelece nenhuma dominação de uma ou outra: o sociólogo faz estudos sociográficos, o psicólogo realiza os testes,

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In a 1958 work, Bastide shows that the relations between sociology and psychology were difficult, as “such closeness was understood as subordination” that is restructured in a system of “integration of the psychic and cultural in overlapping planes”. For Bastide, the idea of collaboration between psychologists and sociologists might be sought in the works of Marcel Mauss, who, in the 1920s, developed a notion of “total social phenomena”, and of Gurvitch, who, based on this idea, defined what he called “total psychic phenomena”. Ten years later, Bastide resumes this discussion and establishes the following distinctions: interdisciplinary investigation – articulation among the different sciences, the work of an individual of a working team; international or transcultural comparative investigation – based on one theme among psychiatrists of different countries; multidisciplinary investigation – the work a one team of investigators of different disciplines or, if of the same discipline, the interaction among experts of a particular aspect of the problem. He mentions that the latter can be, at the same time, interdisciplinary and transcultural, but not every investigation with these two features is necessarily multidisciplinary. The highlight of this work is the typology of multidisciplinary investigations created by Bastide, with four types: (1) egalitarian coexistence – based on the principle of indetermination (Heisenberg) “a single ‘event’ might have two entirely satisfactory explanations, the more we understand it psychologically the less we understand it sociologically and vice-versa”; (2) stratified coexistence – each discipline keeps its autonomy, and it is up to the team coordinator to make the integration, for instance, it is up to the psychiatrist to fill out the forms and make the diagnosis, while the sociologist makes the correlations; (3) practical multidisciplinary integration – even though the approach of each discipline is made successively, there is no domination one over the other: the sociologist conducts the sociographic studies, the psychologists applies the


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o psiquiatra avalia os diagnósticos, podendo se contar com a colaboração de assistentes sociais e estatísticos; e (iv) pesquisa integrada teórica – vai além da aplicação dos métodos de cada disciplina, forçando a “criação de novos métodos, novos tipos de experiências (...) passa do diálogo em torno do objeto empírico à singularidade do objeto conceitual”. Ao lado da interdisciplinaridade que perpassa toda a sua obra, o segundo grande destaque nestas considerações finais e que desenvolvemos ao longo deste trabalho é a contribuição sociológica de Bastide para as pesquisas no campo das doenças mentais. Tomamos como referência Henri Desroche (1914-1994) e sua análise da obra de Bastide Anthropologie Apliquée. Nessa análise, aponta as diversas sociologias que podem ser encontradas em seus trabalhos: uma sociologia da aplicação (sociologie d’application), uma sociologia da explicação (sociologie d’explication) e uma sociologia da implicação (sociologie d’implication), que se completam com uma sociologia da escuta (sociologie de l’écoute), seguida de uma sociologia do pluralismo (sociologie du pluralisme). Embora referidas ao campo da sociologia religiosa, podem, em nossa opinião, ser estendidas aos outros campos da sociologia e revelam a atualidade do pensamento bastidiano, e sua inclusão nas discussões mais recentes sobre a sociologia como campo teórico, aplicado, prático e público, pois, como escreve Laplantine, o seu pensamento “nos permite ultrapassar uma concepção estabilizada e solidificada do social”. Nesse sentido, citamos as contribuições trazidas por Duarte, na medida em que elas nos fornecem elementos preciosos para entendermos a expressão usada por Bastide quando se refere ao “castelo interior” como “modo de constituição da interioridade psicológica”. Mais ainda, Duarte desvenda os meandros sutis da “psicologização” em nossa cultura e a participação das “ciências sociais’ neste processo. Para o autor, Bastide constitui uma ilustração acabada na análise que se manifesta na experiência mística, no êxtase, no transe, nos estudos psicossociais, apresentando “fundamentalmente, um valor metodológico”. Pereira de Queiroz que havia destacado a forte interdisciplinaridade dos trabalhos de Bastide, irá também situar a sua contribuição às ciências sociais – antropologia e sociologia – quando assinala o que denomina “uma nova interpretação do Brasil”. Para ela, os conceitos herdados OM 34

tests, the psychiatrists makes the diagnoses, and may count on the collaboration of social workers and statisticians; and (4) theoretical comprehensive investigation – it goes beyond the application of the methods of each discipline, forcing “the development of new methods, new types of experiences (...) moving from the dialogue around the empirical subject to the singularity of the conceptual subject”. Next to the interdisciplinarity that crosses his entire work, the second major highlight of this final remarks and which we have developed throughout this paper is Bastide’s sociological contribution to the investigations in the field of mental disorders. We use Henri Desroche (1914-1994) and his analysis of Bastide’s Anthropologie Appliquée as reference. In his analysis, he points out the different sociologies that may be found in Bastide’s works: a sociology of application (sociologie d’application), a sociology of explanation (sociologie d’explication), and a sociology of implication (sociologie d’implication), that are completed with a sociology of listening (sociologie de l’écoute), followed by a sociology of plurality (sociologie du pluralisme). Even though they are included in the field of religious sociology, they may, in our opinion, be expanded to other fields of sociology, and they show the freshness of Bastide’s thoughts, and their inclusion in the most recent discussions about sociology as a theoretical, applied, practical, and public field, because, as Laplantine writes, his thoughts “allow us to overcome a stabilized, solidified conception of the social”. To that extent, we mention the contributions by Duarte, as they provide us with valuable elements for the understanding of Bastide’s expression “inner castle” to indicate the “mode psychological interiority is constructed”. Furthermore, Duarte unveils the subtle rambles of psychologization in our culture and the role of the social sciences in this process. For the author, Bastide is a full illustration of the analysis manifested in the mystical experience, in the ecstasy, in the trance, in psychosocial studies, presenting “essentially a methodological value”. Pereira de Queiroz, who had emphasized the strong interdisciplinary features of Bastide’s works, also mentions his contribution to the social sciences – anthropology and sociology – when she points to what she calls a new interpretation of Brazil. For her, the ideas inherited par-


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principalmente de Mauss (globalidade e totalidade) e Gurvitch (dialética da completaridade) foram fundamentais para que ele interpretasse o nosso país de forma diversa àquela consagrada em outros estudiosos, por exemplo, Gilberto Freyre e Euclides da Cunha. A análise de Pereira de Queiroz é refinada e profunda e dela extraímos somente um trecho marcante para os nossos propósitos: “A noção de integração que se depreende das análises de Roger Bastide é, pois, totalmente diversa da noção de integração existente nas obras dos pesquisadores brasileiros do passado. Para estes, a integração não podia existir senão com a anulação das divergências, das contradições, da heterogeneidade. Para Roger Bastide, a heterogeneidade constitui o próprio fundamento da integração, que só pode ser tentada a partir da diferença”. Com essas observações completamos a nossa perspectiva de ao revisitar a obra de Bastide e cotejá-la com diversos autores destacar a sua atualidade tanto para questões metodológicas como teóricas da sociologia e da sua aplicação ao campo da sociologia da saúde. Em síntese: os trabalhos de Bastide permitem visualizar um esquema no qual a interconexão com os diversos campos de conhecimento – sociologia, antropologia, etnologia, psicologia, psicanálise, subsidia as possibilidades de compreensão de diferentes temáticas – experiência mística, transe, possessão, loucura, doença mental, ritos, secularização – e, remete à construção de “campos interdisciplinares” – a psiquiatria social, a sociologia das doenças mentais, a etnopsiquiatria, a antropologia psiquiátrica, a sociologia dos sonhos, a sociologia dos delírios, a psicologia dos povos.

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ticularly from Mauss (globalism and totality), and Gurvitch (dialectics of complementarity) were instrumental for him to interpret our country differently from other scholars, as, for instance, Gilberto Freyre and Euclides da Cunha. The analysis by Pereira de Queiroz is refined and profound, and we extract an excerpt to mark out point: “the notion of integration that comes from the analysis of Roger Bastide is, thus, totally divergent from the notion of integration present in the works of Brazilian investigators of the past. For them, integration could not exist without the annulment of divergences, contradictions, heterogeneity. For Roger Bastide, heterogeneity is the foundation of integration, as this can only be attempted from the difference”. With these observations, we complete our intent to, by revisiting the works of Bastide and comparing it with those of different authors, highlight his freshness for both methodological and theoretical issues of sociology, and their application in the field of sociology of health. In short: Bastide’s work allows visualization of a scheme in which theinterconnection with the different field of knowledge – sociology, anthropology, ethnology, psychology, psychoanalysis, supports the possibilities of understanding the different themes – mystical experience, trance, possession, madness, mental disorder, rites, secularization –, and leads to the construction of interdisciplinary fields – social psychiatry, sociology of mental disorders, ethnopsychiatry, psychiatric anthropology, sociology of dreams, sociology of delusions, psychology of the people.

Everardo Duarte Nunes. Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Everardo Duarte Nunes. State University of Campinas, Campinas, Brazil .

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Insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada: combater equívocos para uma nova abordagem. insuficiência cardíaca (IC) representa um importante e crescente problema de saúde pública na sociedade atual, afetando 2%-3% da população adulta dos países desenvolvidos. Os doentes com IC são classicamente divididos em dois grupos: os que apresentam IC com fração de ejeção preservada (ICFEP), também chamada IC diastólica (ICD), e aqueles com IC e redução da fração de ejeção (ICFER), mais conhecida como IC sistólica (ICS). Nas últimas décadas, a ICFEP tem recebido muito menor atenção por parte das comunidades médica e científica, situação que começa finalmente a inverter-se. Esse déficit de atenção traduziu-se no aparecimento progressivo na comunidade médica de uma série de equívocos e dogmas relativamente à epidemiologia, ao diagnóstico, à fisiopatologia e ao tratamento da ICFEP. Com esta revisão pretendemos explorar e combater os principais equívocos associados à ICFEP. Abordaremos as mais recentes evidências existentes na área da ICFEP, providenciando uma nova visão dessa complexa síndrome, de forma a melhorarmos a sua abordagem clínica e terapêutica. EQUÍVOCOS FREQUENTES NA ABORDAGEM DA INSUFICIÊNCIA

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Heart failure with preserved ejection fraction: fighting misconceptions for a new approach. H

eart failure (HF) represents a major and growing public health problem, affecting 2% - 3% of adults in developed countries. Patients with heart failure are classically divided into two groups: those with HF with preserved ejection fraction (HFpEF), also called diastolic HF (DHF) and those with HF and reduced ejection fraction (HFrEF), better known as systolic HF (SHF). In recent decades, HFpEF has received much less attention from medical and scientific communities, a situation that is finally starting to change. Such lack of attention resulted in the gradual emergence, within the medical community, of a series of misconceptions and dogmas concerning the epidemiology, diagnosis, pathophysiology and treatment of HFpEF. With this review, we intend to explore and tackle the major misconceptions associated with HFpEF. We will discuss the latest evidence concerning HFpEF, providing a new view on this complex syndrome, in order to improve its clinical and therapeutic approach. FREQUENT MISCONCEPTIONS IN HEART FAILURE WITH PRESERVED EJECTION FRACTION 37 OM


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CARDÍACA COM FRAÇÃO DE EJEÇÃO PRESERVADA Equívoco 1: a ICFEP é uma entidade benigna Até há pouco tempo, a ICFEP era vista como uma doença essencialmente “benigna”, e associada a um melhor prognóstico. Os estudos epidemiológicos demonstraram que o prognóstico desses doentes é tão mau como o daqueles que apresentam IC sistólica (ICS). Os doentes com ICFEP apresentam taxas de mortalidade ao fim de um ano de 29% (versus 32% nos doentes com IC sistólica), e de 65% ao fim de cinco anos (versus 68%). A morbidade da ICFEP é igualmente muito elevada, com necessidade de hospitalizações frequentes e de um consumo significativo de recursos. Uma vez hospitalizados por IC, esses doentes têm uma elevada taxa de re-hospitalização de 50% ao fim de um ano. Igualmente preocupantes são as evidências que demonstram que a sobrevida dos doentes com ICFEP não tem vindo a melhorar nas últimas décadas, contrariamente aquilo que tem sido observado nos doentes com IC sistólica. Essa observação está provavelmente relacionada com o fato de a abordagem e o tratamento desses doentes não estarem a produzir os efeitos desejados, provavelmente devido aos vários equívocos em redor da ICFEP. Equívoco 2: a IC diastólica é uma síndrome pouco frequente Um segundo equívoco na ICFEP é o de pensarmos que essa é uma entidade clínica menos frequente do que a ICS. Pelo contrário! Sabemos hoje que a ICFEP é responsável por cerca de 50% de todos os doentes internados com IC, uma proporção que aumenta com a idade. Além disso, nas últimas duas décadas a proporção de doentes com ICFEP aumentou de 38% para 54% do total de casos de IC, proporção que continuará a aumentar, devido ao progressivo envelhecimento da população e ao esperado aumento da prevalência da hipertensão, da obesidade e da diabete. Equívoco 3: a IC diastólica e a IC sistólica são a mesma entidade

Misconception 1: HFpEF is a benign condition Until recently, HFpEF had been considered an essentially “benign” disease associated with a better prognosis. Epidemiological studies have shown that the prognosis for these patients is as bad as those who have systolic HF (SHF). Patients with HFpEF have mortality rates of 29% after one year (versus 32% in patients with systolic HF), and 65% after five years (versus 68%). The morbidity of HFpEF is also very high, requiring frequent admissions and a significant consumption of resources. Once admitted due to HF, these patients have a high rate of readmission of 50% after one year. Equally worrying is the evidence showing that the survival of patients with HFpEF has not been improving in recent decades, unlike what has been observed in patients with systolic HF. Such observation is probably related to the fact that the management and treatment of these patients are not producing the desired effects, probably due to various misconceptions concerning HFpEF. Misconception 2: diastolic HF is an uncommon syndrome A second misconception in HFpEF is to think that this is a clinical condition that is less common than the SHF. This is quite the opposite! We know today that HFpEF is responsible for about 50% of all patients admitted with HF, a proportion that increases with age. Moreover, in the last two decades the proportion of patients with HFpEF increased from 38% to 54% out of cases of HF, a proportion that will continue to rise due to the progressive aging of population and expected increase in the prevalence of hypertension, obesity and diabetes. Misconception 3: diastolic HF and systolic HF are the same condition The classical separation of HF in HFpEF is questioned by several authors who argue that these relate to the same condition, albeit with different

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A divisão clássica da IC em ICFEP e ICFER é questionada por diversos autores que argumentam que é tudo uma mesma entidade, embora com diferentes fenótipos de apresentação. Existem, contudo, muitos argumentos demográficos, epidemiológicos, histológicos, moleculares, de estrutura e função ventricular e mesmo de eficácia terapêutica, que parecem claramente indiciar que estas duas entidades são distintas. A espessura relativa da parede descreve a geometria do ventrículo esquerdo e é definida como a razão entre a espessura do ventrículo esquerdo e o diâmetro da cavidade ventricular esquerda. Relativamente às características da população, os doentes com ICFEP são mais idosos, mais frequentemente do sexo feminino, e apresentam uma elevada prevalência de hipertensão, diabete e obesidade, assim como várias comorbidades associadas como fibrilação atrial, insuficiência renal e anemia. Os corações dos doentes com ICFEP e IC sistólica apresentam também diferenças significativas quanto à estrutura e função ventricular. Os corações dos doentes com ICS apresentam remodelagem ventricular excêntrica com aumento dos volumes diastólicos e a principal anomalia ocorre nas propriedades sistólicas do VE. Pelo contrário, nos doentes com ICFEP ocorre remodelagem concêntrica, os volumes estão normais ou até diminuídos, e a principal alteração ocorre nas propriedades diastólicas, com atraso do relaxamento e/ou aumento da rigidez ventricular. Outros estudos recentemente publicados demonstraram também diferenças a nível histológico e molecular. Por exemplo, a análise de biópsias endomiocárdicas revelou que os cardiomiócitos dos doentes com ICFEP são estruturalmente diferentes, apresentando maiores diâmetros, maior rigidez e aumento da densidade de miofilamentos, comparativamente aos dos doentes com ICS. Também foram descobertas diferenças significativas

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phenotypes. However, there are many demographic, epidemiological, histological, molecular and structural arguments, as well as some relating to ventricular function and even therapeutic effectiveness, which seem to clearly indicate that these two conditions are quite different. Regarding the characteristics of the population, patients with HFpEF are older, often female, and have a high prevalence of hypertension, diabetes and obesity, as well as various comorbidities such as atrial fibrillation, renal failure and anemia. The hearts of patients with systolic HF and HFpEF also have significant differences in terms of structure and ventricular function. The hearts of patients with SHF present an eccentric ventricular modeling with increased diastolic volumes and the main anomaly occurs in LV systolic properties. By contrast, patients with HFpEF present as concentric remodeling, the volumes are normal or even reduced, and the main change occurs in the diastolic properties, with delayed relaxation and/or increased ventricular stiffness. Other recently published studies have also shown differences at histological and molecular level. For example, analysis of endomyocardial biopsies revealed that cardiomyocytes of patients with HFpEF are structurally different, with larger diameters, greater stiffness and increased density of myofilaments, compared to patients with ICS. Significant differences were also discovered at the molecular level. Titin is a molecule found inside the sarcomere which, given its elastic properties, is the main determinant of the stiffness of cardiomyocytes. It was found that in patients with HFpEF there is a change in the expression of the isoforms of this molecule - with increased expression of the stiffer isoform - or its degree of phosphorylation, which contributes to the increase in ventricular stiffness observed in these patients. Patients with HFpEF and systolic HF also have significant 39 OM


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CARDIOLOGY differences in fibrosis and extracellular collagen matrix, due to distinct patterns of extracellular matrix metalloproteinases (MMP) and tissue inhibitors of such metalloproteinases (TIMP) activation. While in HFpEF there is a decreased degradation of extracellular matrix (resulting in increased ventricular stiffness), in dilated cardiomyopathy there is an increased matrix degradation. In the HFpEF, diastolic dysfunction ca occur due to changes in the passive properties of the ventricle - particularly increased ventricular stiffness - or due to alterations in myocardial relaxation. The delay in myocardial realaxation seen in patients with HFpEF is caused by changes in calcium kinetics, especially by reduced activity of SERCA, the main protein responsible for the reuptake of calcium back into the sarcoplasmic reticulum. Finally, strong arguments related to the response to pharmacological therapy justify the separation of these two conditions. Few clinical trials performed to date on HFpEF reveal that these patients do not respond as well to therapy commonly used in systolic HF, suggesting that different pathophysiological mechanisms operate in these two conditions. These differences mean that the therapeutic approach to HFpEF must be different from that used in systolic HF, as prescribed in the guidelines for heart failure.

a nível molecular. A titina é uma molécula existente no interior do sarcômero que, dadas as suas propriedades elásticas, é o principal determinante da rigidez do cardiomiócito. Descobriu-se que nos doentes com ICFEP há uma alteração na expressão das isoformas dessa molécula - com aumento da expressão da isoforma mais rígida - ou do seu grau de fosforilação, o que contribui para o aumento da rigidez ventricular observada nesses doentes. Foram também detectadas diferenças na fibrose e na rede de colágeno extracelular entre os doentes com ICFEP e IC sistólica, com a presença de padrões muito distintos de expressão das metaloproteinases da matriz extracelular (MMP) e dos inibidores tecidulares dessas metaloproteinases (TIMP). Enquanto na ICFEP ocorre uma diminuição da degradação da matriz extracelular (originando aumento da rigidez ventricular), na cardiopatia dilatada ocorre aumento da degradação da matriz. Na fisiopatologia da ICFEP ocorrem não só alterações nas propriedades passivas do miocárdio - com aumento da rigidez ventricular-, como também ocorrem alterações no relaxamento miocárdio. Na fisiopatologia da ICFEP observou-se que o atraso do relaxamento ventricular se deve também a alterações da cinética do cálcio, nomeadamente a uma diminuição da atividade da SERCA - a principal proteína responsável pela recaptação do cálcio de novo para o retículo sarcoplasmático. Finalmente, existem fortes argumentos relacionados com a resposta à terapêutica farmacológica que justificam a separação dessas duas entidades. Os (poucos) ensaios clínicos conduzidos até à data na ICFEP mostram que esses doentes não respondem tão bem à terapêutica habitualmente usada na IC sistólica, sugerindo que existem diferentes mecanismos fisiopatológicos a operar nas duas entidades. Essas diferenças fazem que a abordagem terapêutica da ICFEP tenha de ser diferente da utilizada na IC sistólica, tal como vem já contemplado nas “guidelines” de insuficiência cardíaca. Equivoco 4: a fisiopatologia da IC diastólica caracteriza-se apenas por alterações na diástole OM 40

Misconception 4: diastolic dysfunction is the only abnormality involved in HFpEF The patophysiology of HFpEF is not totally understood, mainly because HFpEF affects an heterogeneous group of patients where different pathophysiological mechanisms may have a different relative importance. Diastolic dysfunction plays a central role in the pathophysiology of this condition, since most patients present delayed myocardial relaxation and/or increased ventricular stiffness. This is why HFpEF is often referred to as diastolic HF. More recently, after the discovery of other mechanisms that appear to contribute to the pathophysiology of this condition, the expression diastolic HF was replaced by a more general term: HFpEF.


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Persistem ainda muitas dúvidas quanto à compreensão completa da fisiopatologia da ICFEP, até porque, a ICFEP engloba um grupo heterogêneo de doentes em que diferentes mecanismos fisiopatológicos poderão ter uma importância relativa distinta. A disfunção diastólica desempenha um papel central na fisiopatologia dessa entidade, uma vez que a grande maioria dos doentes evidencia um atraso do relaxamento do miocárdio e/ou um aumento da rigidez ventricular. De tal forma que a ICFEP é frequentemente designada por IC diastólica. Mais recentemente, após a descoberta de outros mecanismos que também parecem contribuir para a fisiopatologia dessa entidade, preferiu-se a substituição do termo IC diastólica pelo termo mais abrangente de ICFEP. Por outro lado, sabemos que a disfunção diastólica do VE, por si só, não parece ser suficiente para causar o quadro clínico de insuficiência cardíaca. Existe um grupo importante de doentes, que apresentam disfunção diastólica, apesar de se manterem assintomáticos e sem IC. Além disso, a prevalência de disfunção diastólica na população em geral (presente em até 25% da população) é muito superior à prevalência de IC. Permanece contudo por explicar por que é que alguns doentes com disfunção diastólica têm ICFEP, enquanto outros permanecem assintomáticos. PARA ALÉM DA DISFUNÇÃO DIASTÓLICA: CONTRIBUIÇÃO DE OUTROS MECANISMOS FISIOPATOLÓGICOS Recentemente, vários estudos têm demonstrado que na fisiopatologia da ICFEP estão envolvidos outros mecanismos fisiopatológicos adicionais, incluindo fatores “cardíacos” e “extracardíacos”. A explicação para a diferença sintomática entre os doentes com disfunção diastólica assintomática e com ICFEP pode dever-se à existência simultânea dessas alterações fisiopatológicas adicionais apenas nos doentes com ICFEP. Entre as alterações “extracardíacas” presentes na ICFEP, tem sido dado um particular relevo para as alterações a nível da árvore arterial, nomea-

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On the other hand, we know that LV diastolic dysfunction, by itself, does not seem to be enough to cause the clinical picture of heart failure. There is an important group of patients who have diastolic dysfunction, although they remain asymptomatic and without HF. Moreover, the prevalence of diastolic dysfunction in the general population (present in up to 25% of the population) is much higher than the prevalence of HF. However, it remains to be explained why some patients with diastolic dysfunction have HFpEF, while others remain asymptomatic. BEYOND DIASTOLIC DYSFUNCTION: CONTRIBUTION OF OTHER PATHOPHYSIOLOGICAL MECHANISMS Several studies have recently demonstrated that the pathophysiology of HFpEF involves other mechanisms, including “cardiac” and “extracardiac” factors. The explanation for the symptomatic difference among patients with asymptomatic diastolic dysfunction and HFpEF may be due to the simultaneous existence of these additional pathophysiological abnormalities only in patients with HFpEF. Among “extracardiac” abnormalities found in HFpEF, particular emphasis has been placed on the abnormalities found in the arterial vessels, including increased arterial stiffness, changes in ventricular-arterial coupling, endothelial dysfunction and reduced vasodilator reserve . There are other extracardiac factors potentially involved in HFpEF. It was found that in these patients, increased ventricular filling pressure is also due to an increased effective circulating volume due to increased sodium and water retention in the kidneys. It should be stressed that in HFpEF, due to the simultaneous increase of ventricular and arterial stiffness, patients are very sensitive to small changes in the “central” volume. Recently, new “cardiac” factors have been found to contribute to HFpEF pathophysiology, such as chronotropic incompetence and changes in ventricular stretching, radial deformation and twisting, evaluated by 41 OM


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damente a um aumento da rigidez arterial, a alterações do acoplamento entre o ventrículo e a árvore arterial e à presença de disfunção endotelial e diminuição da reserva vasodilatadora. Existem outros fatores extracardíacos potencialmente envolvidos na ICFEP. Demonstrou-se que nesses doentes o aumento das pressões de enchimento ventriculares é também devido a um aumento do volume circulante efetivo, devido a uma maior retenção de sódio e água a nível renal. De salientar que na ICFEP, devido ao aumento simultâneo da rigidez ventricular e arterial, os doentes são muito sensíveis a pequenas variações do volume “central”. Recentemente, foram descobertos novos fatores “cardíacos” que ajudam a compreender a fisiopatologia dessa síndrome. Foi demonstrado que nos doentes com ICFEP uma parte da intolerância ao esforço pode ser também devida a uma incompetência cronotrópica e, recorrendo a dados obtidos por speckle tracking foram demonstradas alterações no estiramento, na rotação e na torção ventriculares. Importa ainda salientar que praticamente todos os estudos para a compreensão da fisiopatologia da ICFEP foram efetuados em doentes em repouso. Os poucos estudos que avaliaram as alterações fisiopatológicas em resposta ao exercício mostraram importantes alterações durante o esforço. SERÁ QUE NA ICFEP A FUNÇÃO VENTRICULAR SISTÓLICA É INTEIRAMENTE NORMAL? O fato dos doentes com ICFEP terem uma fração de ejeção normal não significa que a sua função sistólica seja inteiramente normal. A fração de ejeção é um parâmetro impreciso para a avaliação da função sistólica pelo que a função sistólica pode estar profundamente alterada, mesmo quando mantida uma fração de ejeção normal. Na ICFEP alguns doentes têm alterações da função sistólica, quando essa é avaliada por Doppler tecidual. Muito recentemente, em doentes com ICFEP foram demonstradas alterações da função sistólica sobretudo em resposta ao exercício. Equivoco 5: não existem critérios objetivos para o diagnóstico da ICFEP

speckle tracking analysis. Finally, HFpEF patophysiology is usually accessed at rest. However, several studies have shown that additional alterations occur during exercise in HFpEF patients. IS SYSTOLIC FUNCTION COMPLETELY NORMAL IN HFPEF? By definition, HFpEF patients have a normal ejection fraction. Nevertheless, because ejection fraction is an imprecise parameter for the evaluation of minor alterations in systolic function, it has been demonstrated that patients with HFpEF also have changes in systolic function assessed by Tissue Doppler analysis. Also, a recent study has shown that in HFpEF patients important alterations in systolic function also occur especially in response to exercise. Misconception 5: there are no objective criteria for the diagnosis of HFpEF Part of the controversy and misconceptions concerning HFpEF resulted from the lack of consensus about its diagnostic criteria. Such limitation was overcome in 2007 after the publication of a consensus document of the European Society of Cardiology with updated diagnostic criteria for HFpEF. According to this document, three prerequisites should be fulfilled simultaneously to diagnose HFpEF: 1) symptoms and signs of HF; 2) EF> 50% in a non-dilated LV (defined as LV with a end diastolic volume < 97 ml/m2); 3) evidence of high LV filling pressures. The demonstration of high LV filling pressures can be made by invasive hemodynamic evaluation (which is the gold-standard method, but is difficult to apply in clinical practice) or by combining several echocardiographic parameters together with natriuretic peptides quantification. By echocardiography several diastolic parameters can be obtained that allow LV filling pressures estimation. The most widely used parameter, and also the easiest to analyse, is the E/e’ ratio, which is obtained from the ratio between the peak transmitral flow velocity (E wave) and the mitral annulus

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CARDIOLOGIA Uma parte da polêmica e dos equívocos em torno da ICFEP resultou da ausência de consenso quanto aos seus critérios de diagnóstico. Essa limitação foi recentemente ultrapassada após a publicação em 2007 de um documento de consenso da Sociedade Europeia de Cardiologia com a atualização dos critérios de diagnóstico da ICFEP. Segundo esse documento têm de ser preenchidas simultaneamente três condições para o diagnóstico de ICFEP: 1) presença de sintomas e sinais de IC; 2) uma FE > 50%, num VE não dilatado (definido como um VE com um volume telediastólico < 97 ml/m2)); 3) evidência de pressões de enchimento do VE elevadas. A demonstração da elevação das pressões de enchimento do VE pode ser feita por meio do estudo hemodinâmico invasivo (o exame gold-standard, mas de difícil aplicação na prática clínica) ou pela combinação de vários parâmetros ecocardiográficos e da dosagem dos peptídeos natriuréticos. Com o ecocardiograma é possível obter vários parâmetros diastólicos que permitem estimar as pressões de enchimento do VE. O parâmetro mais utilizado e mais fácil de interpretar é a relação E/e’, obtida pela razão entre o pico de velocidade do fluxo transmitral (onda E) e a velocidade de deslocação do anel mitral, determinada a partir do Doppler tecidual (onda e’). A presença de uma relação E/e’> 15, a nível da parede septal, significa a presença de pressões de enchimento elevadas, enquanto um valor de E/e’ < 8 traduz pressões normais. Para valores intermédios de E/e’, entre 8 e 15, é necessário integrar este valor com os outros parâmetros ecocardiográficos de avaliação da função diastólica, como será abordado mais à frente. O novo algoritmo diagnóstico da ICFEP, apesar de apresentar algumas limitações, permitiu uniformizar o diagnóstico da ICFEP. Equivoco 6: os parâmetros ecocardiográficos de avaliação da função diastólica são ainda pouco específicos e não influenciam a abordagem clínica A avaliação da função diastólica do VE deve ser uma parte integrante da avaliação ecocardiográfica de rotina, sobretudo nos doentes com dispneia e/ou insuficiência cardíaca, pela sua importância diagnóstica e prognóstica. Inicialmente a avaliação da função diastólica por ecocardiografia era feita sobretudo pela análise por Doppler pulsado do padrão do fluxo transmitral, um parâmetro que quando usado isoladamente é pouco específico e que apresenta várias limitações. Esse fato levou ao aparecimento da ideia (equivocada) de que a avaliação ecocardiográfica da função diastólica é pouco específica e pouco útil na prática clínica. Existem hoje vários parâmetros ecocardiográficos de avaliação da função diastólica, cujas aplicações, vantagens e limitações foram alvo de um documento de consenso das sociedades europeia e americana de ecocardiografia, e que serão em seguida brevemente abordadas.

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velocity, determined from Tissue Doppler analysis (the e’ wave). When the E/e’ ratio at the level of the septal wall is > 15, LV filling pressures are certainly increased, whereas a E/e’ ratio < 8 represents normal LV filling pressures. However when the E/e’ ratio is between 8 and 15, it is necessary to combine this value with other diastolic function echocardiographic parameters, as discussed later. The new diagnostic algorithm of HFpEF, despite a few limitations allowed standardizing the diagnosis of HFpEF. Misconception 6: diastolic function evaluation by echocardiography is inaccurate and has no influence on clinical management strategies The assessment of LV diastolic function should be an integral part of routine echocardiographic evaluation, especially in patients with dyspnoea and/or heart failure, due to its diagnostic and prognostic significance. Initially, the diastolic function by echocardiography was mainly assessed through pulsed Doppler analysis of transmitral flow pattern. When this parameter is used alone, it is little specific, and has several limitations. This fact has led to the emergence of the (misconceived) idea that the echocardiographic assessment of diastolic function is little specific and little useful in clinical practice. Today, there are several echocardiographic parameters in the assessment of diastolic function, whose applications, advantages and limitations have been the target of a consensus document of the European and American societies of Echocardiography, which will be briefly addressed in this study. Pulsed Doppler transmitral inflow pattern The analysis of transmitral flow by pulsed Doppler is easy to obtain in almost all patients. By analyzing transmitral filling pattern, it is possible to define four degrees of diastolic dysfunction. Nevertheless, this parameter has several limitations because when used alone, it is not possible to distinguish a normal pattern from a pseudonormal, which indicates a grade II diastolic dysfunction. Despite its limitations, when combined with other diastolic dysfunction parameters, the evaluation of the

Análise Doppler do padrão do fluxo transmitral A análise do fluxo transmitral por Doppler pulsado é simples de obter em praticamente todos os doentes. Por meio da análise do padrão de enchimento transmitral podem ser definidos quatro graus de disfunção diastólica, para além do padrão normal. Esse parâmetro, contudo, apresenta várias limitações e, isoladamente, não permite a distinção entre um indivíduo normal e um indivíduo com padrão pseudonormal. Apesar das suas limitações, a análise da relação E/A e do DT, quando usada de forma integrada com outros parâmetros, é importante na prática clínica auxiliando no diagnóstico de ICFEP e dando informação prognóstica, quando está presente um padrão restritivo. 43 OM


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Tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV) Esse parâmetro, que avalia sobretudo o relaxamento ventricular, mede o intervalo de tempo entre o encerramento da valva aórtica e a abertura da valva mitral. O valor normal de TRIV é de 70-90 mseg, valor que vai aumentar com o atraso do relaxamento, mas encurtar quando as pressões de enchimento estão muito aumentadas. Velocidade de propagação do fluxo mitral (Vp) A velocidade de propagação do fluxo mitral (Vp) é avaliada. Quando surge disfunção diastólica, o atraso do relaxamento ventricular reduz a inclinação do Vp. Análise do fluxo nas veias pulmonares Pela análise do fluxo nas veias pulmonares podem ser obtidos múltiplos parâmetros, mas aquele que demonstrou ser mais fiável é a análise da diferença entre a duração da onda A reversa do fluxo nas veias pulmonares e a duração da onda A do fluxo transmitral. Velocidades a nível do anel mitral por Doppler tecidual e relação E/e’ O parâmetro ecocardiográfico mais utilizado para avaliação da função diastólica é o cálculo da relação E/e’, que quantifica a razão entre a velocidade da onda E do fluxo transmitral e a velocidade da onda e’ obtida por Doppler tecidual. Aplicando o Doppler pulsado tecidual, no lado septal ou no lado lateral do anel mitral, é possível avaliar a velocidade de deslocamento do anel mitral e calcular as velocidades das ondas sistólica (S), diastólica precoce (E’, e’ ou Ea) e diastólica tardia (A’, a’ ou Am). Foi demonstrado que a relação E/e’ se relaciona com as pressões de enchimento do VE, independentemente dos valores da fração de ejeção. Um valor E/e’ > 15, a nível da parede septal, indica pressões de enchimento aumentadas, enquanto um E/e’ < 8 se associa a pressões normais. De notar que quando o e’ é avaliado a nível da parede lateral, em vez da parede septal, deve ser usado um cut-off de E/e’ lat > 12 (em vez de 15) uma vez que as velocidades de deslocação são maiores a nível lateral. OM 44

E/A ratio can be useful in clinical practice to support the diagnosis of HFpEF. and give prognostic information, when a restrictive pattern is present. Isovolumic relaxation time (IVRT) This parameter, which assesses primarily the ventricular relaxation, measures the time interval between aortic valve closure and mitral valve opening. The normal value of IVRT is 70-90 msec, a value that increases with delayed relaxation, but shortens when filling pressures are markedly increased. Mitral flow propagation velocity (Vp) The mitral flow propagation velocity (Vp) is evaluated according. When ventricular relaxation is delayed, the Vp slope is reduced. Pulmonary vein flow velocity assessment The pulmonary vein flow assessment can provide several measurements for diastolic function evaluation. However, the most reliable parameter is the Ar pulm - Ad mitral, which is the time difference between the duration of reversed pulmonary vein flow during atrial systole (Ar pulm) and the duration of the mitral A wave flow; when the Ar pulm - Ad mitral difference is > 30 msec, LV filling pressures are increased. Tissue Doppler assessment at the mitral annulus and E/e’ ratio The most widely used echocardiographic parameter for diastolic function evaluation is the E/e’, which is the ratio of the E wave velocity from transmitral flow divided by the e’ wave velocity obtained by Doppler tissue at the mitral annulus level. By applying the pulsed tissue Doppler at the septal or lateral side of the mitral annulus, it is possible to evaluate the velocity of the mitral annulus displacement and calculate the velocity of the systolic wave (S wave), of the early diastolic wave (E’, e’ or Ea) and of the late diastolic wave (A’, a’ or Am). Several studies have shown that E/e’ ratio correlates closely with LV filling pressures, independently from ejection fraction values. When E/e’


CARDIOLOGIA Volume do átrio esquerdo O aumento do volume do átrio esquerdo (AE) é um marcador morfológico de pressões de enchimento diastólicas cronicamente aumentadas (não traduz as pressões no momento do exame) e é também um importante preditor de mortalidade. Uma vez que esse parâmetro pode também estar aumentado em situações como a fibrilação atrial ou doença mitral significativa, é importante integrá-lo com o estado clínico do doente e com os outros marcadores de avaliação da função diastólica. Análise da deformação miocárdica (Strain) A deformação miocárdica pode ser agora avaliada por ecocardiografia recorrendo a speckle-tracking, o que pode fornecer informações essenciais em relação à função diastólica, e ser mais fiável do que a relação E/e’. Teste de estresse diastólico Uma vez que muitos doentes com disfunção diastólica só desenvolvem sintomas com o exercício físico, é importante avaliar as pressões de enchimento do VE em resposta ao exercício, realizando um teste de estresse diastólico. Nessa prova é sobretudo avaliada a variação da relação E/e’ em resposta ao exercício físico, uma vez que, enquanto nos indivíduos com relaxamento normal as velocidades da onda E e e’ aumentam proporcionalmente (mantendo-se a relação E/e’), nos doentes com disfunção diastólica há um aumento progressivo da relação E/e’. Em conclusão, apesar de subsistirem ainda algumas limitações, uma avaliação integrada e passo a passo da função diastólica por ecocardiograma, iniciada com análise da relação E/e’, disponibiliza informação essencial para o diagnóstico, prognóstico e abordagem dos doentes com IC e particularmente daqueles com ICFEP. Equivoco 7: sabemos tratar a IC com FE preservada Provavelmente o maior equívoco na ICFEP é o de pensarmos que existem estratégias terapêuticas eficazes para a ICFEP e que esse tratamento poderá ser semelhante ao da IC sistólica. Em primeiro lugar, apesar da sua relevância clínica e epidemiológica o tratamento da ICFEP permanece largamente empírico e não baseado

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ratio at the septal side of the mitral annulus is > 15, LV filling pressures are increased, whereas an E/e’ value < 8 indicates normal filling pressures. However, when the e’ is evaluated at the lateral side of the mitral annulus, and not at the septal wall, a cut-off of E/e’ > 12 (instead of 15) should be used, because displacement velocities are greater at the lateral side. Left atrial volume Increased left atrial volume (LA) is a morphological marker of chronically increased diastolic filling pressures and is an important mortality predictor. LA volume can also be increased in atrial fibrillation or significant mitral valve disease, therefore it is important to combine this parameter with the patient’s clinical condition and with other echocardiographic markers of diastolic dysfunction. Myocardial strain analysis Myocardial strain can now be evaluated by echocardiography using speckle tracking, which can provide essential information regarding diastolic function, and may be a more reliable marker of diastolic dysfunction than the E/e’ ratio. Diastolic stress test A great number of patients with diastolic dysfunction only develop symptoms during exercise. Therefore, it is important to evaluate LV filling pressures in response to exercise, by conducting a diastolic stress test. This test can evaluate the E/e’ ratio variation in response to exercise. While in individuals with normal relaxation, both E and e’ velocities increase proportionally (keeping a normal E/e’ ratio), in patients with diastolic dysfunction there is a progressive increase of the E/e’ ratio with exercise. In conclusion, although some limitations still exist, diastolic function can be reliably assessed by echocardiography, using an integrated step-by-step approach, starting with E/e’ ratio evaluation. Moreover, diastolic dysfunction evaluation provides essential information for diagnosis, prognosis and management of patients with HF, particularly those with HFpEF. Misconception 7: there are effective strategies to treat HF with preserved EF

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na evidência uma vez que poucos foram os ensaios clínicos dirigidos especificamente a essa população de doentes. Em segundo lugar, os poucos ensaios clínicos realizados na ICFEP avaliaram apenas a eficácia dos inibidores do eixo renina-angiotensina. Em todos eles os resultados foram decepcionantes, dado que nenhum dos agentes testados evidenciou um benefício significativo em termos de aumento de sobrevida dos doentes. Desse modo, a utilização outros agentes na ICFEP só pode ser recomendada com base em argumentos teóricos ou em dados extraídos de estudos de caráter observacional. Finalmente, nas últimas décadas, o prognóstico da ICFEP tem-se mantido inalterado ao longo dos tempos, contrariamente ao observado na ICS, demonstrando que o tratamento e a abordagem desses doentes não estão a ser os mais corretos. Utilização de antagonistas do eixo renina-angiotensina Contrariamente ao que se observa na IC sistólica, na ICFEP o bloqueio do eixo renina-angiotensina é pouco útil em termos de redução dos eventos clínicos ou da mortalidade, como foi demonstrado nos estudos com perindopril (PEP-CHF), com irbesartan (I-PRESERVE) ou candesartan (CHARM-Preserved). Papel dos bloqueadores beta na ICFEP De um ponto de vista teórico, os bloqueadores beta (BB) têm benefícios potenciais no tratamento da ICFEP: i) ao reduzirem a frequência cardíaca aumentam a duração da diástole e o tempo de enchimento ventricular; ii) reduzem as necessidades de oxigênio do miocárdio; iii) diminuem a pressão arterial; iv) podem induzir regressão da HVE. Por outro lado, esses efeitos benéficos poderão ser parcialmente atenuados pelo fato de os BB atrasarem o relaxamento ventricular e reduzirem a contratilidade. Apesar de não existirem ensaios clínicos a avaliar especificamente os BB nesse grupo de doentes, é de esperar que a utilização de BB poderá ser potencialmente benéfica na ICFEP, sobretudo daqueles com ação vasodilatadora associada (por exemplo, nebivolol e carvedilol) pelo seu

Probably the biggest misconception in HFpEF management is to think that there are effective therapeutic strategies for HFpEF, or to believe that such treatment may be similar to that used in systolic HF. Firstly, despite its clinical and epidemiological significance, HFpEF treatment remains largely empirical and not evidence based. Unlike in SHF, few randomized clinical trials have been conducted in these patients. Secondly, the few clinical trials conducted in HFpEF patients, only evaluated the effectiveness of renin-angiotensin system inhibitors. In all such studies the results were disappointing, since there was no survival benefit by using such agents. Hence, the use of other therapeutic agents in HFpEF can only be recommended theoretically or based on data obtained from observational studies. Finally, in recent decades, the prognosis of HFpEF has remained unchanged over time, contrasting with the survival benefit observed in SHF patients. This observation also demonstrates that HFpEF management strategies are still not appropriate. Use of the renin-angiotensin system modulators Contrary to systolic HF, in HFpEF blocking the renin-angiotensin system is less useful in terms of clinical events reduction or survival benefit, as demonstrated using perindopril (PEP-CHF trial), irbesartan (I-PRESERVE) or candesartan (CHARM-Preserved). Role of beta blockers in HFpEF In theory, beta blockers (BB) have various potential benefits in HFpEF treatment: i) by reducing the heart rate they increase the duration of diastole and hence ventricular filling time; ii) they decrease myocardial oxygen requirements; iii) they lower blood pressure; and iv) they may induce regression of LVH. On the other hand, these beneficial effects may be partially mitigated

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CARDIOLOGIA efeito na redução da rigidez arterial. Relativamente à eficácia dos BB na ICFEP praticamente só dispomos de dados extraídos de estudos observacionais, que apontam para um benefício em termos de redução da mortalidade. Recentemente, numa subanálise do estudo SENIORS, observou-se que no subgrupo de doentes com uma FE > 35% os benefícios dos BB foram semelhantes, o que parece demonstrar que a eficácia deste BB é independente da fração de ejeção. Com tantas incertezas é urgente a realização de um ensaio clínico que teste a utilização dos BB na ICFEP. Os antagonistas da aldosterona na ICFEP A utilização dos antagonistas da aldosterona na ICFEP pode ser benéfica, pelo menos do ponto de vista teórico. A aldosterona atua sobre o miocárdio e sobre os vasos, induzindo hipertrofia miocitária, fibrose e deposição de colágeno, levando ao aumento da rigidez miocárdica e arterial e contribuindo para a fisiopatologia da ICFEP. Num pequeno ensaio clínico foi demonstrado que a espironolactona melhorou os índices ecocardiográficos de disfunção diastólica. Está atualmente em curso um ensaio clínico, designado TOPCAT, que avaliará o papel da espironolactona nos doentes com ICFEP. Outras estratégias terapêuticas Desse modo, perante tantas incertezas, apenas são recomendados alguns princípios gerais para o tratamento da ICFEP [1]: i) controle agressivo da pressão arterial, para a prevenção do aparecimento da ICFEP, para a redução do número de descompensações da IC, para a regressão da hipertrofia ventricular esquerda e melhoria do acoplamento ventrículo-arterial; ii) redução das pressões de enchimento ventricular, mediante a restrição da ingestão de sal e pela administração de diuréticos, uma vez que esses doentes são extremamente sensíveis a variações do volume e da pré-carga; iii) na manutenção do ritmo sinusal, para preservar a contração atrial; iv) no controle da frequência cardíaca, evitando a taquicardia, que encurta o tempo de duração da diástole; e v) no tratamento das comorbidades subjacentes, numa abordagem integrada e multidisciplinar.

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since BB delay ventricular relaxation and reduce contractility. Although there are no clinical trials assessing BB efficacy in HFpEF, it is expected that these agents can be potentially beneficial, especially those with a vasodilator effect (e.g. carvedilol and nebivolol), because they can also reduce arterial stiffness. Data from observational studies indicate that beta-blockers in HFPEF may reduce mortality. Recently, a subanalysis derived from the SENIORS trial showed that in the subgroup of patients with EF > 35%, the benefits of this BB were similar, which suggests that the effectiveness of BB is not depend on ejection fraction. With so many uncertainties, there is an urging need for a clinical trial to test the use of BB in HFpEF. Aldosterone antagonists in HFpEF The use of antagonists aldosterone in HFpEF can be beneficial, at least from a theoretical standpoint. Aldosterone acts both on the myocardium and vessels, promoting myocyte hypertrophy, fibrosis and collagen deposition, all of which may contribute to increased myocardial and arterial stiffness, contributing HFpEF progression. A small clinical trial demonstrated that spironolactone improved echocardiographic parameters of diastolic dysfunction. A randomized clinical trial - the TOPCAT study - is currently in progress aimed at assessing the role of aldosterone antagonists in HFPEF patients. Other therapeutic strategies Given so many uncertainties, only some general principles are recommended for HFpEF treatment: i) aggressive blood pressure control, to prevent the onset of HFpEF, to reduce the number of HF hospitalizations, to induce left ventricular hypertrophy regression and to improve ventricular-arterial coupling; ii) reduction of ventricular filling pressures, by restricting salt intake and administration of diuretics, which is particularly important since HFpEF patients are highly sensitive to changes in central volume and pre-load; iii) maintaining sinus rhythm, to preserve atrial contraction; iv) heart rate control, preventing tachycardia, which shortens diastole duration; and v) treatment of underlying comorbidities, using an integrated and multidisciplinary approach.

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Potenciais novos alvos terapêuticos na ICFEP O futuro do tratamento da ICFEP está dependente de uma melhor compreensão da sua fisiopatologia e da intervenção sobre os vários mecanismos fisiopatológicos subjacentes. Dada a heterogeneidade dos mecanismos causadores da ICFEP, o seu tratamento será sempre multifatorial e individualizado a cada doente. Assumindo que as alterações do relaxamento e o aumento da rigidez são a principal alteração fisiopatológica na ICFEP é necessário desenvolver estratégicas terapêuticas especificamente dirigidas. O alagebrium, ou ALT177, induz a quebra das ligações cruzadas dos produtos de glicosilação avançada, permitindo melhorar a função diastólica (pela redução da rigidez ventricular), a função vascular (pelo aumento da distensibilidade arterial) e, o acoplamento ventrículo-arterial, o que mostrou resultados promissores num pequeno ensaio clínico com doentes com ICFEP. Nos últimos anos, o nosso grupo de investigação tem também contribuído para o esclarecimento dos determinantes das propriedades passivas do ventrículo esquerdo, demonstrando que a rigidez ventricular não é apenas uma propriedade passiva, mas que pode ser ativamente modulada (e reduzida) por meio da manipulação neuro-hormonal (por exemplo do sistema renina-angiotensina ou da endotelina, entre outros), abrindo novos alvos terapêuticos para a redução da rigidez ventricular. NA ICFEP deverá também ser melhorado o relaxamento ventricular. Como foi abordado anteriormente, o relaxamento está dependente da recaptação de cálcio para o reticulo sarcoplasmático por ação da SERCA, que por sua vez é regulada pelo fosfolamban. Estudos animais demonstraram que a terapêutica de transferência genética da SERCA ou de fosfolamban modificado melhora a função ventricular diastólica. Atendendo aos efeitos benéficos do óxido nítrico (NO) sobre a função endotelial, sobre a função vascular e sobre a função miocárdica, os inibidores da fosfodiesterase tipo 5 (exemplo do sildenafil) poderão desempenhar um papel no tratamento da IC, incluindo na ICFEP, o que está a ser estudado num ensaio clínico em doentes com ICFEP.

Potential new therapeutic targets in HFpEF The future treatment for HFpEF is dependent on a better understanding of its pathophysiology and on multiple interventions on the various underlying physiopathological mechanisms. Due to the heterogeneous mechanisms that cause HFpEF, its treatment will always be multifactorial and individualized to each patient. Assuming that changes in relaxation and increased stiffness are the main pathophysiological alterations in HFpEF, it is necessary to develop new therapeutic strategies that specifically target these alterations. Alagebrium, or ALT-177, is a new drug that breaks the crosslinks that form between advanced glycosylation endproducts, thereby improving diastolic function (by reducing ventricular stiffness), vascular function (by improving arterial distensibility), and ventricular-arterial coupling. Small clinical trials have shown promising results in HFpEF. Given the importance of fibrosis in increasing ventricular stiffness, several studies are analyzing (with promising results) the antifibrotic effects of several growth factors, cytokines and signaling molecules. In recent years, our research group has also contributed to clarifying the determinants of left ventricular passive properties, demonstrating that ventricular stiffness is not just a passive property, but that it can be actively modulated (and reduced) using neuro-hormonal manipulation (e.g. renin-angiotensin system and endothelin, among others), opening new therapeutic targets for ventricular stiffness reduction. In HFpEF, ventricular relaxation should also be improved. As previously mentioned, relaxation is dependent on the uptake of calcium back into the sarcoplasmic reticulum by the action of SERCA, which in turn is regulated by phospholamban. Animal studies have shown that genetic transfer of SERCA or modified phospholamban improves ventricular diastolic function. Given the beneficial effects of nitric oxide (NO) on endothelial, vascular and myocardial functions, type 5 phosphodiesterase inhibitors (e.g. sildenafil) may have a role in HF treatment, including in HFpEF. A clinical trial is currently in progress to assess this possibility.

Ricardo Fontes Carvalho. Serviço de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Porto. Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, Portugal. Adelino Leite Moreira. Serviço de Fisiologia da Faculdade de Medicina do Porto. Centro de Cirurgia Torácica do Hospital de São João, Porto, Portugal.

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Obesidade materna em gestações de alto risco e complicações infecciosas no puerpério. estado nutricional é resultado do equilíbrio entre o consumo de nutrientes e o gasto energético do organismo para suprir as necessidades diárias. Sua investigação é baseada na medição de parâmetros físicos e na composição corporal global. Os parâmetros adotados para a vigilância nutricional em gestantes são: índice de massa corporal (IMC) e ganho de peso gestacional. As medidas de peso e estatura são as mais utilizadas e o IMC é indicador fundamental para o diagnóstico do estado nutricional materno. Esse índice permite identificar gestantes em risco nutricional, principalmente a obesidade materna, e, nessa condição, recomenda-se a orientação nutricional, visando a promoção da saúde materna, proporcionando melhores condições para o parto e adequado peso do recém-nascido. Em gestantes obesas, as complicações no puerpério são frequentes, principalmente as infecciosas. Alguns estudos demonstram que, independentemente da via de parto, é mais frequente a ocorrência de endometrites, infecção da ferida cirúrgica, lacerações da episiotomia, hemorragia pós-parto e tempo cirúrgico mais prolongado. Esses aspectos são preocupantes, tendo em vista que no Brasil o excesso de peso representa o problema

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Maternal obesity in high-risk pregnancies and postpartum infectious complications. A

Nutritional status results from the balance between nu.trient intake and energy expenditure in the body to meet daily needs. The nutritional status investigation is based on the measurement of physical parameters and on the overall body composition. The parameters adopted for nutritional surveillance in pregnant women are: body mass index (BMI) and gestational weight gain. Weight and height measurements are the most often used, and BMI is the key indicator for maternal nutritional status diagnosis. This index allows for the identification of pregnant women at nutritional risk, mainly regarding maternal obesity; in this condition, a nutritional guidance aiming to promote maternal health is recommended in order to provide a better condition for delivery and appropriate neonate weight. In obese pregnant women, postpartum complications are frequent, mainly infectious complications. A number of studies show that, regardless of the delivery route, endometritis, wound infection, episiotomy tears, postpartum bleeding, and prolonged surgery time are more frequent. These aspects are worrying, as excess weight in Brazil represents the most prevalent nutritional problem, found in 25% to 30% of preg49 OM


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nutricional de maior prevalência, pontuando de 25 a 30% das gestações, e a incidência da obesidade está aumentando entre as mulheres em idade fértil, segundo o Institute of Medicine (IOM) – órgão governamental que faz parte da Academia Nacional de Ciências dos EUA. Além disso, a obesidade, por si só, torna de alto risco a gestação pela reconhecida associação com pré-eclâmpsia, litus, macrossomia fetal, tromboembolismo venoso, aumento da incidência de cesáreas, distocias e complicações puerperais, influenciando o prognóstico da gravidez. Entretanto, ainda não são conhecidos os desfechos infecciosos do puerpério de mulheres obesas associadas a outras comorbidades. Para esclarecer essa lacuna, o presente estudo foi conduzido em gestações de alto risco, com o objetivo de verificar a influência do estado nutricional materno no final da gravidez e a ocorrência de complicações no puerpério. MÉTODOS Este estudo observacional prospectivo foi desenvolvido no período de agosto de 2009 a agosto de 2010. O protocolo de pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o nº 1233/07. Foram convidadas a participar da pesquisa 472 mulheres cujo parto foi realizado em hospital universitário de atendimento terciário adotando-se os seguintes critérios de inclusão: puérperas até o 5º dia cuja gestação foi caracterizada como de alto risco; idade materna maior ou igual a 18 anos; feto único e vivo no início do trabalho de parto; parto na instituição; peso materno aferido no dia do parto, mulheres que concordaram em participar do estudo. Foram caracterizadas como de alto risco as que apresentaram alguma intercorrência clínica ou obstétrica complicando a gravidez. Os critérios de exclusão adotados foram: não obtenção de contato telefônico após a alta hospitalar e prejuízo na capacidade de compreender a entrevista. Os dados foram coletados por meio de entrevista aplicada pela pesquisadora executante, utilizando-se protocolo previamente elaborado, contendo:

nancies6-8. The obesity incidence is growing among women of childbearing age, according to the Institute of Medicine (IOM) – a government agency that is part of the U.S. National Academy of Science. In addition, obesity in itself raises the pregnancy risk due to the acknowledged association with preeclampsia, diabetes mellitus, fetal macrostomia, venous thromboembolism, increased C-section incidence, dystocias, and postpartum complications, influencing pregnancy outcomes. However, the postpartum infectious outcomes in obese women with other comorbidities are not known. To fill this gap, the present study was conducted in high risk pregnancies aiming to find the influence of maternal nutritional status during late pregnancy on the occurrence of postpartum complications. METHODS This prospective observational study was performed from August 2009 through August 2010. The investigation protocol and the informed consent were approved by the Institutional Ethics Committee under the No. 1233/07. Were invited to participate in the study 472 women whose delivery was conducted in the University Hospital, a tertiary center. The following inclusion criteria were adopted: women up to the 5th postpartum day whose pregnancy was considered as high-risk; maternal age = 18 years; singleton pregnancy with live fetus at labor onset; delivery at the institution; maternal weight measured on the day of delivery; and agreement to participate in the study. Those who had any complicating clinical or obstetric event were considered as high-risk pregnancies. The exclusion criteria adopted were: no telephone contact obtained after hospital discharge, and impaired ability to understand the interview. Data were collected in an interview by the investigator with a previously designed protocol containing: patient’s data, hospitalization data, habits/addictions, obstetric events, clinical diagnoses, and delivery/neonate data. The following data regarding clinical and/or obstetric events were collected from the patient’s charts: delivery type

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dados da paciente, dados da internação, hábitos/vícios, intercorrências obstétricas, diagnósticos clínicos, dados do parto e do recém nascido. Foram pesquisadas nos prontuários da paciente: as informações referentes às intercorrências clínicas e/ou obstétricas; o tipo de parto (normal, fórcipe e cesárea); e as complicações no puerpério (infecção e/ou secreção de ferida cirúrgica, infecção urinária, infecção puerperal, febre, hospitalização, mastite, necessidade de antibioticoterapia). As complicações puerperais ocorridas até o 30º dia de puerpério também foram investigadas por meio de contato telefônico, efetuado pela pesquisadora, após a alta hospitalar. Foi considerada morbidade composta a ocorrência de uma ou mais complicações maternas no período puerperal. O estado nutricional materno no final da gravidez foi avaliado pelo índice de massa corporal (IMC), tendo como base altura e peso corporal da paciente, ambos aferidos no dia do parto. Foram utilizados os valores limites do IMC por semana gestacional da curva de Atalah et al. para classificação do estado nutricional materno em: baixo peso, adequado, sobrepeso e obesidade. A idade gestacional foi calculada a partir da data da última menstruação (DUM), quando era compatível com a idade gestacional estimada pela ultrassonografia realizada, no máximo, até a 20ª semana de gestação. Nos casos em que não foi observada tal concordância, a idade gestacional foi calculada pelos dados da primeira ultrassonografia. O peso do recém-nascido, em gramas, aferido na sala de parto, foi comparado à curva de normalidade de Alexander et al., de forma que foram classificados como pequenos para a idade gestacional (PIG) aqueles com o peso inferior ao 10º percentil da faixa correspondente, adequados (AIG) quando entre os percentis 10 e 90, e grandes (GIG) quando acima do percentil 90. Para o cálculo do tamanho amostral foi utilizado o programa MedCalc versão 11.5.1.0. Pelo fato de não existirem estudos prévios com gestantes de alto risco, foram utilizadas as proporções de complicações infecciosas pósparto relatadas no estudo de Bianco et al. em mulheres obesas e não obesas. Considerando-se erro tipo I (alfa) de 0,05 e erro tipo II (beta) de

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(vaginal, forceps-assisted, C-section) and postpartum complications (surgical wound infection and/or secretion, urinary infection, postpartum infection, fever, hospitalization, mastitis, need for antibiotic therapy). Postpartum complications that occurred up to the 30th postpartum day were also tracked with telephone interviews by the investigator, after hospital discharge. The occurrence of one or more postpartum maternal complications was considered composite morbidity. The maternal nutritional status in late pregnancy was assessed by the body mass index (BMI) based on the patient’s height and weight, both measured on the day of delivery. BMI range values per gestational week from the Atalah et al. curve were used to grade the maternal nutritional status: underweight, adequate weight, overweight, obese. Gestational age was calculated from the first day of the last menstrual period (LMP) when it was consistent with the gestational age estimated by an ultrasonography performed in the 20th gestational week at the latest. In cases when this concordance was not observed, gestational age was calculated from the first ultrasonography data. The neonate weight in grams, measured at the delivery room, was compared with the Alexander et al. normality curve as follows: those with a weight lower than the 10th percentile in the matching range were considered small for gestational age (SGA); those between the 10th and the 90th percentiles were considered adequate for gestational age (AGA), and those with a percentile higher than the 90th percentile were large for gestational age (LGA). The software Medcalc version 11.5.1.0 was used to calculate the sample size. As no prior studies with high-risk pregnant women are available, the postpartum infectious complications ratios from the study by Bianco et al. were used in obese and non-obese women. By considering a type I (alpha) error 0.05 and a type II (beta) error 0.10, the sample size required for the current investigation was calculated as 340 cases. In this study, 408 puerperal women were included; however, three patients had an impaired ability to understand the interview and 31 patients were lost to telephone contact after delivery. Thus, the overall study population consisted of 374 puerperal women 51 OM


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0,10, foi calculado o tamanho amostral necessário para a presente pesquisa de 340 casos. Foram incluídas na presente pesquisa 408 puérperas; entretanto, desse total, três apresentaram prejuízo na capacidade de compreensão da entrevista e não foi possível obter contato telefônico com 31 pacientes após o parto. Dessa forma, a população total do estudo foi constituída por 374 puérperas classificadas pelo IMC final em: baixo peso (n = 54, 14,4%); adequado (n = 126, 33,7%); sobrepeso (n = 105, 28,1%) e obesidade (n = 89, 23,8%). Os resultados foram analisados com o emprego do pro-grama MedCalc (MedCalc software bvba, versão 11.5.1.0). As variáveis categóricas foram analisadas descritivamente, calculando-se frequências absolutas e relativas. Para análise das variáveis contínuas os resultados foram expressos em médias e desvios-padrão. Para comparação entre proporções foi aplicado o teste de Qui-quadrado, e, quando pertinente, o teste exato de Fisher. Foi utilizado o teste ANOVA para comparação das médias entre os grupos, nas variáveis com distribuição normal, e o teste de Kruskal-Wallis para as variáveis de distribuição não normal. Foi utilizado o modelo de regressão logística múltipla para identificação das variáveis independentes associadas ao desfecho. Foi adotado como nível de significância o valor 0,05 (alfa = 5%). Com isso, níveis descritivos (p) inferiores a esse valor serão considerados significantes (p < 0,05). RESULTADOS A análise dos fatores associados ao estado nutricional materno no final

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classified by BMI as follows: underweight (n = 54, 14.4%); adequate weight (n = 126, 33.7%); overweight (n = 105, 28.1%); or obesity (n = 89, 23,8%). The results were analyzed with the software Medcalc (Medcalc software bvba, version 11.5.1.0). Categorical variables were descriptively analyzed, and absolute and relative frequencies were calculated. The results were expressed as means and standard-deviations in order to analyze continuous variables. The chi-squared test was applied to compare ratios, with the Fisher’s exact test being used when relevant. The ANOVA test was used to compare the means among groups for variables with a normal distribution, and the Kruskal-Wallis test was used for variables with non-normal distribution. The multiple logistic regression model was used to identify independent variables associated with the outcome. A p-value of 0.05 (alpha = 5%) was adopted as the significance level. Thus, descriptive levels (p) lower than that value were considered significant (p < 0.05). RESULTS The analysis of factors associated with maternal nutritional status in late pregnancy (Table 1) demonstrated a significantly higher ratio of nulliparous women in the underweight and adequate weight group (p = 0.004) and a significantly higher frequency of a previous C-section in the obese group (p = 0.035). Regarding the occurrence of clinical events, a higher frequency of arterial hypertension U/A, underweight or adequate weight; Ov, overweight; Ob, obesity; SD, standart deviation;


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HBP, high blood pressure; FGR, fetal growth restriction; PROM, premature rupture of membranes; fetal MF, fetal malformation; GA, gestational age; BW, birth weight; SGA, small for gestational age; AGA, adequate for gestational age; LGA, large for gestational age. As for heart disease and restricted fetal growth restriction, these events had a higher frequency in the underweight and adequate weight group (p = 0.014 and p = 0.019, respectively). This group also presented a significantly lower (p < 0.001) mean birth weight than the other groups. A higher number of SGA neonates and a lower number of AGA neonates (p = 0.002) were observed. By investigating postpartum maternal complications, obesity late in the pregnancy was observed to be significantly associated with the following results: surgical wound infection (p = 0.042), urinary infection (p = 0.004), antibiotic therapy need (p < 0.001), and composite morbidity (p = 0.016). Aiming to find the factors independently associated with the occurrence of composite maternal morbidity, a logistic regression model with backward elimination of factors was used. The confounding variables included in the model were: classification of the final maternal nutritional status, high blood pressure, diabetes, birth weight classification, and type of delivery. Maternal obesity in late pregnancy was independently associated with postpartum composite morbidity, with an odds ratio (OR) of 2.09. DISCUSSION da gravidez demonstrou proporção significativamente maior de gestantes nulíparas no grupo com estado nutricional classificado como baixo peso e adequado (p = 0,004), e frequência significativamente maior de cesárea anterior no grupo com obesidade (p = 0,035). Com relação à incidência de intercorrências clínicas constatou-se maior frequência de hipertensão arterial de obesas e de diabetes nos grupos com sobrepeso e obesidade (p < 0,001 e p = 0,005). Quanto aos diagnósticos de cardiopatia e restrição do crescimento fetal, essas intercorrências foram mais frequentes no grupo com baixo peso e adequado (p = 0,014 e p = 0,019). Esse grupo também apresentou média de peso do recém-nascido significativamente menor (p < 0,001) que os demais grupos. Observou-se ainda maior proporção de recém-nascidos PIG e menor proporção de AIG. Na pesquisa das complicações maternas no puerpério, observou-se que a obesidade no final da gravidez associou-se significativamente aos seguintes resultados: infecção de ferida cirúrgica (p = 0,042), infecção urinária (p = 0,004), necessidade de antibioticoterapia (p < 0,001) e morbidade composta (p = 0,016). Com o objetivo de verificar quais fatores associaram-se de forma independente à ocorrência da morbidade materna composta, foi utilizado o modelo de regressão logística com eliminação retrógrada de fatores. As variáveis de confusão incluídas no modelo foram: classificação do estado nutricional materno final, hipertensão arterial, diabetes, classificação do peso do recém-nascido e tipo de parto. A obesidade materna no final da gestação foi independentemente associada à morbidade composta no puerpério, com OR de 2,09 (IC 95% 1,15-3,80, p = 0,015).

This study found that obesity in late high-risk pregnancies is an independent factor for postpartum complications. This association has been indicated in population studies, but no studies focused on high-risk pregnant women are available, cases in which comorbidities and other factors can contribute to the occurrence of these outcomes.

DISCUSSÃO Esta pesquisa constatou que, em gestantes de alto risco, a obesidade no final da gravidez é fator independente para complicações no puerpério. Essa associação tem sido apontada em estudos populacionais, porém não há trabalhos focados em gestantes de alto risco, quando comorbidades 53 OM


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ou outros fatores podem contribuir para a ocorrência desses desfechos. No presente estudo, a obesidade materna pela classificação do estado nutricional final apresentou associação com intercorrências clínicas como hipertensão, diabetes e cardiopatia. Apesar de essas patologias poderem potencialmente interferir na ocorrência de complicações do parto, os resultados obtidos demonstraram que a obesidade é o fator relevante e independente. Nesse hospital universitário com elevada taxa de cesáreas, é essencial minimizar fatores que contribuam para a ocorrência de complicações. O aumento das taxas de cesárea no país é aspecto importante no manejo das gestações de alto risco. Qualquer fator que favoreça maior morbidade pós-operatória deve ser ponderado no momento da decisão pela via de parto. Sebire et al., em estudo populacional de coorte retrospectivo, relatam 10,9% de obesidade materna, avaliada pelo IMC pré-gestacional, com aumento do risco para eventos como: hemorragia pós-parto (OR: 1,39; IC 95%:1,32-1,46), infecção do trato genital (OR:1,30; IC 95%:1,07-1,56), infecção urinária (OR: 1,39; IC 95%:1,18-1,63) e infecção de parede (OR: 2,24; IC 95%:1,91-2,64). Não existem estudos em gestantes de alto risco que abordem a influência do peso materno nas complicações do parto. Além das diversas comorbidades que podem estar associadas, a obesidade revela-se fator importante na determinação dessas complicações. A presente casuística, que avaliou o IMC final em gestações de alto risco, também mostrou associação entre a obesidade e as complicações infecciosas no pós-parto, demonstrando a necessidade de melhor orientação pré-concepcional, para que as mulheres engravidem em melhores condições nutricionais, bem como a adoção de medidas preventivas para que não mudem a classificação nutricional com o transcorrer da gravidez. Outro aspecto relevante diz respeito às mulheres que migram da eutrofia para o sobrepeso ou obesidade. O ganho excessivo de peso materno deve ser alertado para a ocorrência de complicações no parto e puerpério, principalmente quando as mulheres atingem a faixa que caracteriza a obesidade. O controle do ganho de peso é importante tanto para a saúde materna e fetal, OM 54

In the present study, maternal obesity showed an association with clinical events, such as hypertension, diabetes, and heart disease by the nutritional status classification. Even though these diseases may interfere with the occurrence of delivery complications, the results demonstrated that obesity is the relevant and independent factor. In this university hospital with a high C-section rate, it is essential to minimize factors contributing to complications. The increased C-section rates in Brazil are an important aspect in the management of high-risk pregnancies. Any factor favoring a higher postoperative morbidity should be weighed when the delivery route is selected. Sebire et al., in a retrospective cohort population study, reported a rate of 10.9% maternal obesity, assessed by the pregestational BMI, with an increased risk for events such as postpartum bleeding (OR: 1.39; 95% CI: 1.32-1.46), genital tract infection (OR: 1.30; 95% CI: 1.07-1.56), urinary infection (OR: 1.39; 95% CI: 1.18-1.63), and abdominal wall infection (OR: 2.24; 95% CI: 1.91-2.64). No study in high-risk pregnant women addressing the influence of maternal weight on delivery complications is available. In addition to several comorbidities that could be associated, obesity is revealed as an important factor in determining these complications. The present cases assessed for final BMI in high-risk pregnancies have also shown an association between obesity and postpartum infectious complications, demonstrating the need for improved preconceptional guidance in order that women conceive in better nutritional conditions, as well as the adoption of preventive measures so that the nutritional classification does not change during the course of the pregnancy. Another relevant aspect refers to women who move from eutrophy to overweight or obesity. Excess maternal weight gain should alert to delivery and postpartum complications, especially when women reach the range characterizing obesity. Controlling the weight gain is important both for maternal and fetal health, and for the delivery outcome. Selig-


NUTRIÇÃO quanto para o resultado do parto. Seligman et al., em estudo nacional com gestantes de população geral, verificam que a obesidade pré-gestacional e o ganho de peso excessivo aumentam de forma independente o risco de cesárea e de resultados adversos durante o parto, no entanto não analisam o IMC materno final da gravidez. Mantakas et al. observam que o maior IMC implica maior risco para infecção puerperal em gestantes submetidas a cesarianas (OR: 2,41; IC 95%: 0,86-9,88). O presente estudo não mostrou associação entre a obesidade materna e o tipo de parto, pois a cesárea foi muito prevalente em todos os grupos analisados. Isso ocorreu, muito provavelmente, pelo fato deste estudo abordar especificamente gestantes de alto risco, nas quais as comorbidades clínicas e/ou obstétricas acabam por aumentar a taxa de cesáreas. No entanto, na análise multivariada, o parto normal permaneceu no modelo de regressão logística, sugerindo exercer efeito protetor para a morbidade composta, apesar de não atingir significância estatística. A própria obesidade materna predispõe mulheres a complicações gestacionais e aumenta a necessidade de intervenções obstétricas. Weiss et al. observam maior chance de hipertensão gestacional em obesas quando comparadas aos grupos com sobrepeso e baixo peso OR: 0,7; IC 95%: 0,6-0,8), respectivamente. A proporção de obesas em gestantes de alto risco foi de 24%, e a morbidade composta, que significou a ocorrência de pelo menos um dos eventos mórbidos investigados, ocorreu em 1/4 delas. Qualquer morbidade pós-operatória compromete o bem-estar materno, podendo trazer prejuízos no relacionamento entre mãe e recém-nascido. Por vezes, a necessidade do uso de antibióticos pode trazer preocupações para o aleitamento, até que se resolva a complicação que acometeu a mãe. As complicações fetais mais comuns associadas à obesidade materna são óbito fetal, doenças genéticas e macrossomia. O presente estudo também verificou maior média de peso do recém-nascido e maior proporção de GIG, nas gestantes classificadas como obesas pelo IMC final. Entretanto, apesar da variável recém-nascido GIG

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man et al., in a national study with pregnant women from the general population, found that pregestational obesity and excess weight gain independently increase the risk of a C-section and adverse outcomes at the delivery; however, they did not analyze maternal BMI at the end of the pregnancy. Mantakas et al. observed that a higher BMI implicates a higher risk for postpartum infection in pregnant women undergoing C-sections (OR: 2.41; 95% CI: 0.86-9.88). The present study did not show any association between maternal obesity and delivery route, as C-sections were prevalent in all analyzed groups. This likely occurred because the study specifically addresses high-risk pregnant women, in whom clinical comorbidities increase C-section rates. However, in multivariate analysis, vaginal delivery remained in the logistic regression model and it is suggested to exert a protective effect on composite morbidity, although statistical significance was not reached. Maternal obesity in itself predisposes women to gestational complications and increases the need for obstetric intervention. Weiss et al. observed a higher chance of pregnancy-induced hypertension in obese women compared with overweight and underweight groups (OR: 2.2, 95% CI: 2.1-2.6; OR: 1.5, 95% CI: 1.4-1.7; OR: 0.7, 95% CI: 0.6-0.8) respectively. The proportion of obesity in high-risk pregnant women was 24% and composite morbidity, meaning the occurrence of at least on morbid event investigated, was found in approximately 25% of them. Any postoperative morbidity impairs maternal well-being and may damage the relationship between the mother and her newborn child. At times, the need to use antibiotics can lead to concerns about breastfeeding until the complication affecting the mother is resolved. Fetal complications most commonly associated with maternal obesity are fetal death, genetic diseases, and macrostomia. The present study also found a higher mean birth weight and a higher LGA rate in pregnant women classified as obese after the final BMI. However, despite the 55 OM


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permanecer no modelo final da regressão logística, não atingiu significância estatística para a morbidade materna composta. As limitações deste estudo referem-se à impossibilidade de se obterem dados do acompanhamento do ganho de peso durante a gestação, para comparar os diferentes desfechos maternos e complicações do parto. O estudo de subgrupos com comorbidades específicas poderá identificar outros fatores associados às complicações pós-parto em trabalhos futuros. Além disso, as informações sobre as complicações pós-parto foram obtidas por contato telefônico, e casos foram excluídos pela impossibilidade de contato, o que pode ter contribuído para algum viés. CONCLUSÃO Em conclusão, este estudo permitiu constatar que, em gestações de alto risco, a obesidade materna final está associada de forma independente à ocorrência de complicações infecciosas no puerpério, tais como: infecção de ferida cirúrgica, infecção urinária, necessidade de antibioticoterapia, bem como à morbidade composta. Isso demonstra a necessidade de acompanhamento mais eficiente de ganho de peso materno nessas gestações, com o objetivo de minimizar as complicações no puerpério.

fact that the variable LGA neonate remained in the logistic regression final model, it did not reach statistical significance for the composite maternal morbidity. This study is limited by the impossibility to obtain follow-up data of weight gain over the pregnancy to compare different maternal outcomes and delivery complications. The study of subgroups with specific comorbidities can identify other factors associated with postpartum complications in further studies. In addition, the information on postpartum complications was obtained by phone calls and cases were excluded due to loss of contact, which could have contributed to some bias. CONCLUSION In conclusion, this study demonstrated that, in high-risk pregnancies, final maternal obesity is independently associated with postpartum infectious complication occurrence, such as surgical wound infection, urinary infection, antibiotic therapy need, as well as composite morbidity. This demonstrates that more effective maternal weight gain follow-up is needed to minimize postpartum complications.

*Letícia Vieira de Paiva. Nutricionista; Aluna de Pós-graduação da USP, São Paulo, SP, Brasil. *Letícia Vieira de Paiva. Nutritionist, Postgraduate Program Student, USP, São Paulo, SP, Brazil. *Maria Carolina Gonçalves Dias. Mestre em Nutrição Clínica; Nutricionista do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, SP, Brasil. *Maria Carolina Gonçalves Dias. MSc in Applied Human Nutrition, USP; Nutritionist, Central Institute, Clinical Hospital, Medical School, USP, São Paulo, SP, Brazil. *MarceLo Zugaib. Professor Titular da Faculdade de Medicina da USP, São Paulo, SP, Brasil. *MarceLo Zugaib. Full Professor, Medical School, USP, São Paulo, SP, Brazil. *RoseLi Mieko YaMamoto Nomura. Livre-docente; Professora-associada da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil. *Roseli Mieko Yamamoto Nomura. Associate Professor, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brazil.

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