COLECÇÃO SUI GENERIS
AMARGO AMARGAR
COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro SONHO?... LOGO, EXISTO! – Lucinda Maria
ISIDRO SOUSA
AMARGO AMARGAR
EDIÇÕES SUI GENERIS EUEDITO | PORTUGAL
TEXTOS © 2016 ISIDRO SOUSA
Título: Amargo Amargar Autor: Isidro Sousa Prefácio: Suzete Fraga Revisão: Ricardo Solano Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Fotografias do autor: Dado Goes Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Outubro 2016 ISBN: 978-989-8856-08-1 Depósito Legal: 418611/16 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis
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«O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos.» FERNANDO PESSOA
«Durante a noite, no meu leito, busquei aquele que a minha alma ama; procurei-o mas não o achei. Levantei-me e percorri a cidade, as ruas e as praças, em busca daquele a quem a minha alma ama; procurei-o e não o achei..» CÂNTICO DOS CÂNTICOS 3, 1-2
«Espiava-o e tentava desesperadamente imprimir o rosto dele no seu cérebro. Havia os olhos, o nariz, a boca, as assombrosas asas brancas no cabelo preto, o corpo longo e rijo que conservava a esbeltez e a tensão da mocidade, embora estivesse um pouco mais duro, menos elástico. E de súbito ele voltava-se e surpreendia-a a observá-lo, com uma expressão de pesar acossado, um olhar condenado.» COLLEEN McCULLOUGH
ÍNDICE
Prefácio ............................................................................................................. 9 A angústia de Manuela .................................................................................. 13 O dilema de Beatriz ....................................................................................... 31 A emoção de Celina ...................................................................................... 49 Os olhos de Helena ....................................................................................... 67 O susto de Matilde ........................................................................................ 93 O casamento de Eulália .............................................................................. 111 O autor .......................................................................................................... 147 Edições Sui Generis .................................................................................... 153
PREFÁCIO
O gosto pela escrita levou-me a conhecer pessoas fantásticas no meio literário, uma dessas pessoas é o meu caro amigo Isidro Sousa. A simpatia e o seu espírito de entreajuda cativaram-me logo. Com o tempo, fuilhe detetando outras qualidades como a lealdade, humildade, perseverança, persistência e uma dose de perfecionismo que, garanto, roça a obsessão extrema, coisa rara de se encontrar, e, verdade se diga, muito tem contribuído para enriquecer a minha (modesta) bagagem de conhecimentos. Quando me endereçou o convite para fazer o prefácio do seu primeiro livro fui acometida por um sentimento de orgulho e felicidade tal que nem pensei duas vezes para aceitar semelhante honra e privilégio. A vaidade que se apossou de mim ofuscou, momentaneamente, a grande responsabilidade que me recaía sobre os ombros. Depois, quando desci à Terra, o pânico apoderou-se dos meus dedos. Porque as minhas capacidades estão muito aquém de produzir o prefácio que o Isidro merece. Prefaciar «Amargo Amargar» é, portanto, uma tarefa hercúlea que me deixa estarrecida e petrificada. Da sua leitura já não posso dizer o mesmo... foi um deleite para a vista e para a alma! Fui abalroada com um cuidado extremo na escolha das palavras, um vocabulário rico e diversificado, enredos alucinantes e um incansável trabalho de pesquisa. Como se não bastasse, com esta obra o autor proporciona ao leitor ingressos para cenários distintos, descritos com uma mestria capaz de atordoar o maior descrente. Ao ler «A Angústia de Manuela» e «O Casamento de Eulália» tem como destino um plano de ação ambientado no início do século XX, 9
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convertendo-se, indubitavelmente, num intruso viciado nos usos e costumes da época, nos palacetes, bailes, casamentos e até nos momentos políticos mais conturbados da nossa História, muito bem corroborados com referências ao Regicídio e às revoltas entre monárquicos e republicanos. Para os restantes contos o autor recorreu à memória dos seus tempos de meninice e adolescência. Muitos plantaram e arrancaram batatas, ceifaram feno e centeio, colheram e desfolharam milho, cavaram terra, enterraram os pés descalços na água enquanto regavam hortas, batatais e morangais, muitos guardaram cabras e ovelhas nas encostas serris, como o Isidro, mas poucos descrevem a beleza bucólica de forma tão sentida e avassaladora. As narrações pormenorizadas fazem acreditar numa Serra Mourisca verídica e querer visitar as suas imediações: Vila Rica, o Rio Luzio, a Quinta do Mocho, a Igreja Matriz de Vila Rica ou o Parque Arqueológico da Mourisca. “Deus não é ciumento, pois não?” é uma questão que surge em «O Dilema de Beatriz». Ela, uma rocha lapidada na forja madrasta da vida, “sentiu vontade de vomitar o seu infortúnio numa raiva incontrolada...” porque “Até as rochas mais duras agradecem a suave carícia do mar.” Relatos quase fotográficos dão a conhecer o plano arquitetónico da Igreja Matriz de Vila Rica. É neste cenário religioso que: “Um longo silêncio tumular imperava na sua mente absorta em pensamentos que se emaranhavam entre o bem e o mal...” E se com estes excertos a curiosidade já fervilha freneticamente, espere para ler as peripécias em que a pobre viúva Matilde andou metida em «O Susto de Matilde». Mas, antes disso, assista ao romance que tem tanto de arrebatador como de surpreendente. Imperdível o final de João Carlos que “Desfrutou de todas, mas não amou uma única, e nenhuma decerto o amou...” Terá o sentimento que Celina nutria por este jovem aspirante a médico outro nome que não amor? E será mesmo verdade que este jovem não amou uma única mulher? Descubra a resposta em «A Emoção de Celina». Por esta altura, o coração palpitará, sem dúvida, descompassado com tantas emoções, mas terá de manter-se forte para descobrir o fado de Matias. O cenário agridoce, vou chamar-lhe assim, mexe com o espírito 10
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de quem vivencia esta história apaixonante entre Helena e Matias. Inicialmente, reina o silêncio sepulcral, típico dos cemitérios, apenas interrompido pelo piar duma coruja. Depois, com o desenrolar da trama, a morbidez tumular vai desaparecendo para dar lugar a ambientes idílicos e refrescantes. É este conto «Os Olhos de Helena» que o vai fazer implorar por um feitiço que transforme a ficção em realidade, tal é o utopismo empregue. Poderia romper o teclado com infinitas apreciações sobre este «Amargo Amargar». Ou deixar no ar mais pistas sobre os enredos de «A Angústia de Manuela» ou «O Casamento de Eulália» (distinguido com o segundo prémio no 5º Concurso Literário da Papel D’Arroz), no entanto, esta é uma leitura que peca por tardia; não me parece justo privar os leitores desta obra maravilhosa com mais delongas. Para finalizar, só uma curiosidade: dou este prefácio por concluído exatamente à mesma hora em que Portugal é aclamado campeão europeu. Se isto não é um bom prenúncio não sei o que o será. Em ambos os casos, foi uma luta incansável contra ventos e marés. Venceu quem mais lutou e deixou tudo em campo. Também no caso do Isidro Sousa o único desfecho possível só pode ser o sucesso. Estou certa de que esta será a primeira de muitas vitórias. Eu serei das primeiras na fila para o desejado autógrafo. Parabéns, Isidro! Suzete Fraga
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A ANGÚSTIA DE MANUELA
Se um homem for surpreendido a dormir com uma mulher casada, ambos deverão morrer; o homem que teve relações com a mulher e também a mulher. (Deuteronómio 22, 22)
Uma jovem senhora entrou a correr na mansão onde residia e refugiou-se nos seus aposentos. Que fizera, santo Deus! Olhou estarrecida para as mãos trémulas e viu, então, o vestido salpicado de sangue. A vítima atracara-se, tentando arrancar-lhe o punhal das mãos, mas ela, dominada por uma força demoníaca, conseguira atingi-la com um golpe certeiro. Os olhos verdes, naquele instante, reflectiam a tempestade emotiva que lhe bramia na alma. A sensação de enterrar o punhal no peito formoso da rival não a largava. Já se desfizera da arma do crime, atirando-a para um poço, todavia, era necessário eliminar ainda os últimos vestígios que a denunciavam. Teria sido reconhecida por alguém? Algum criado desconfiara dela? Livrou-se do vestido ensanguentado, escondeuo; no dia seguinte, atirá-lo-ia no rio. Olhou-se no espelho, agitada. O rosto apresentava-se macilento, sem cor. Precisava evitar suspeitas, principalmente do seu marido perspicaz. Não duvidava de que Tomásia Monforte perecera; tinha como certo tê-la atingido no coração. Qual seria a atitude de Daniel, ao descobrir o assassinato da amante? Sentou-se numa poltrona sem encontrar posição nem tranquilidade. Arrepios nervosos percorriam-lhe o corpo bem feito; tentava desviar os pensamentos, mas repetia-se-lhe automaticamente na mente a cena brutal em que Tomásia tombara, fixando-a com ódio, as 13
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mãos tentando estancar o sangue que saía às golfadas abundantes. Um princípio de arrependimento surgia-lhe no coração. Jamais se levantara para ferir ou prejudicar alguém. Porque é que aquela mulher ultrajara o seu lar, roubando-lhe o amor do marido? Casara com Daniel Valente por amor. A personalidade envolvente e a figura atraente daquele jovem aristocrata haviam-lhe despertado uma ardente paixão que, para sua felicidade, foi correspondida. O casamento de ambos fora um dos maiores acontecimentos sociais porque ela provinha de excelente linhagem e possuía tradição de família. Para coroar a alegria do casal, três crianças enriqueceram-lhes o lar. No início, Manuela não percebera as atenções e os meneios daquela mulher para conquistar Daniel. Doravante, foi sentindo que o marido desinteressava-se dela, relegando-a para segundo plano. Após a terceira gravidez, passaram a dormir em quartos separados e ele, ultimamente, não a procurava nos seus aposentos; tratava-a como se não existisse. Intrigada com esse comportamento, investigou a causa e descobriu os encontros clandestinos com a viúva do embaixador José Monforte. Seguindo-o disfarçada, nos misteriosos passeios que ele fazia durante certas tardes a cavalo, verificou que rumava a uma casa isolada no bosque, perto do rio. Daniel entrou lá e, logo depois, entrou Tomásia Monforte. Com cautela, acercou-se de uma janela e viu-os abraçados! Dominou-a uma emoção tão violenta que precisou de alguns minutos para poder raciocinar outra vez. Não teve coragem de entrar. Afastou-se, ruminando como deveria agir. A fisionomia do marido expressando amor àquela viúva libertina não lhe saía da mente atordoada. Sentiu-se revoltada. Trocá-la por uma mulher mais velha, viúva de um dos seus melhores amigos! Fez de tudo para apartá-los. Daniel negou ter com Tomásia outra relação que não a de amizade que unia as duas famílias, porém, a viúva tinha a fama de devassa e vivia rodeada de admiradores. Manuela encontrou-a num evento social e implorou-lhe que deixasse Daniel em paz. Tomásia manejou a ironia como arma; afirmou que não se interessava por ele e incitou-a a reconquistar o marido, insinuando que, se conseguisse atraí-lo de novo, talvez Daniel a procurasse como dantes. Manuela detestou a vaidade da rival. Usara humildade, franqueza, suplicara com o coração e ela humi14
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lhara-a, ferira-a, açoitara-a com palavras duras de vencedora, sem respeitar a sua dor. Foi nesse momento que jurou vingar-se. Planeou tudo com cuidado: a arma sem brasão, o bilhete sem assinatura, a adesão do cocheiro pago a bom dinheiro; usara trajes escuros, um véu espesso sobre o rosto e a carruagem secreta, que o marido utilizava quando pretendia sair incógnito. Contudo, agora que se vingara, não se sentia tranquila. A criada chamou-a para o jantar. Fez um tremendo esforço para dominar-se. Mirou-se no espelho. Ostentava olheiras profundas; sentia as pernas trémulas, as mãos imersas em suor. Estou nervosa, pensou, buscando um calmante no toucador. Adentrou no salão, procurando encobrir o seu frenesim. Daniel já a esperava, lendo um livro preciosamente encadernado. Saudou-a cortesmente; o olhar dele não se demorou no rosto macerado da esposa. Essa indiferença, que tanto a feria, foi-lhe providencial nessa noite; ainda assim, não pôde deixar de atingi-la. Pensa nela. Não sabe que está morta! Durante a refeição, mal tocou nos alimentos, mas Daniel, na outra ponta da mesa, não o notou. Após o jantar, ele retornou ao salão onde, recostado na poltrona, retomou a leitura. Dirigiu-se ao piano, mas sentiuse sem ânimo. Se tocasse, a emoção transbordaria. Preferiu fingir que bordava. Quando o relógio deu dez badaladas, resolveu recolher-se. Temendo a solidão, tinha ímpetos de chorar, confessar tudo, dividir com Daniel a sua mágoa, o temor. Precisava tanto de conforto! Quase lhe pediu que fosse ao seu quarto. Coragem não teve; o medo de ser desprezada conteve-a. Despediu-se e foi para os seus aposentos onde, insone e infeliz, começou a enfrentar na consciência as consequências do seu crime. Pobre Manuela! Como se iludira julgando que salvaria o casamento da influência daninha daquela libertina! Movida pelo ciúme e pelo ódio, cometera um crime que a mergulhava, cada vez mais, em profundo sofrimento. Esse tormento, que apenas tinha iniciado, recrudesceria nos dias subsequentes, sem que pudesse atenuar-se. A cada ruído, Manuela esperava a notícia da morte da Senhora Monforte; a cada momento, ansiava e temia conhecer a extensão do seu crime. No entanto, tudo continuava na mesma; nada conseguia descortinar do que realmente 15
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sucedera. Os dias transcorriam nessa angústia constante. Mal se alimentava, os pesadelos povoavam as noites mal dormidas, a sua saúde arruinava-se... *** Naquela tarde em que se dirigia à residência dos Monforte, Carlota deparou com os portões abertos e entrou, sem se preocupar com os serviçais que a fitavam assustados. Mal chegou ao quarto da irmã, viu-a inanimada no chão, envolta numa poça de sangue. Aflita, não pôde reprimir o grito doloroso e atirou-se-lhe sobre o corpo exangue bradando: – «Socorro! Chamem alguém! Não a deixem morrer! Tomásia encontrava-se entre a vida e a morte, todavia, ao cabo de uma semana deu sinais de ligeiras melhoras... Acontecimentos inusitados! Interrogados os criados, nada se deslindou. Só se apurou que Tomásia recebera uma mulher misteriosa e ficou nervosa com essa visita. Sentada numa cadeira ao lado do leito, Carlota meditava. Uma mulher! Parecia-lhe estranho que alguém quisesse matar a sua irmã mais velha. Inveja? Ciúme? Roubo? Não fora constatada falta de nenhuma jóia. Afastada estava a última hipótese; as outras, porém, prevaleciam. Perpassou o olhar pelo quarto. Vasculhara diversas vezes as gavetas procurando uma pista, o bilhete que Tomásia deveria ter recebido. Onde estaria? Examinou novamente as gavetas. Nada. Revirando a arca das roupas, revistava bolsos com perseverança até que um envelope lhe caiu nas mãos. Leu o bilhete que continha: «Sei de tudo. Preciso vê-la hoje às 14 horas. Vamos acertar tudo de uma vez!» Não trazia endereço nem assinatura, mas era evidente que se tratava de uma ameaça. Que fazer? Com as mãos trémulas, arrumou as roupas na arca e rumou à sala contígua. – Augusta, vais dizer tudo agora – exigiu, fechando a porta com cuidado. – Não sei mais nada, minha senhora – protestou a criada. – Já contei tudo quanto sabia. – Não acredito! Estavas com ela quando recebeu este bilhete! Estavas 16
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também com ela quando a visitante chegou! Augusta não pôde negar que estivera presente até à chegada da estranha mulher e que, por ordem da patroa, se retirou logo após. – Ou falas o que sabes ou mostrarei este bilhete! – Por piedade, Senhora Dona Carlota! Nada sei, juro... – Escolhe! Ou contas tudo e o caso fica entre nós ou serás acusada de cumplicidade no crime. – Não faça isso, Senhora Dona Carlota! Pelo amor de Deus! Sou fiel à minha senhora até à morte. Sempre guardei segredo dos problemas da Senhora Dona Tomásia... não posso revelá-los sem trair a confiança dela. – Queres ajudá-la encobrindo uma criminosa? – prosseguiu Carlota, impiedosa, sacudindo-a pelos ombros. – Não sabes que aquela mulher, quando souber que o crime não se consumou, tentará voltar? Não vês que a vida da Dona Tomásia corre perigo com essa assassina à solta, sem que possamos saber quem é? – Senhora... – sussurrou Augusta com a voz trémula – acredita que ela volte? – Aquela mulher odeia a minha irmã! Se não puder matá-la, mandará alguém... armará uma cilada! – Tem razão, Senhora Dona Carlota; contarei o que sei – anuiu a criada, a tremer. – Ela chegou disfarçada, com o rosto coberto. Entrou no quarto e eu espiei pela porta. Vi-a tirar o véu. Era a Senhora Dona Manuela Valente; estava exaltada. Discutiram. A Senhora Dona Tomásia respondia com calma, mas ela, de repente, sacou de um punhal e investiu contra a minha senhora. Corri, mas não tive tempo de impedi-la... – Porque discutiam? – inquiriu Carlota, assustada. – Não sei bem. Acho que ela sentia ciúme da minha senhora. – Ciúme?! – estranhou Carlota. – Ciúme? Porquê? – Do Sr. Daniel Valente. Um vivo rubor tingiu as faces da jovem senhora. Que horror! A minha irmã e o Sr. Daniel Valente? Que absurdo!, pensou. Manuela Valente era muito bonita e mais nova do que Tomásia Monforte; deveria estar transtornada! Regressou ao quarto da irmã e tornou a ler o bilhete: «Sei tudo». Tudo 17
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o quê? Felizmente, Tomásia melhorava; logo poderia esclarecer o assunto. A oportunidade surgiu no dia seguinte, quando Tomásia, mais refeita, tomava uma refeição leve. Sentada ao lado da cama, Carlota esperou que ela terminasse. – Minha irmã, preciso falar-te – disse, com carinho. – Sentes-te melhor? – Sim, Carlota. Sinto-me melhor – suspirou a bela viúva com um certo alívio. – Deste-nos um susto! – continuou Carlota, emocionada. – Já passou. A infeliz não conseguiu atingir-me o coração como queria. Desviei-me a tempo. Carlota notou que a voz da irmã registava um indisfarçável rancor. Aproveitou a deixa e murmurou: – Jamais pensei que a Dona Manuela chegasse a esse ponto. Intrigame a causa do seu proceder. Tomásia sobressaltou-se. Os olhos aflitos perscrutaram-lhe a fisionomia com preocupação. – Porque achas que foi ela? Que sabes? – Nada, ou quase nada – respondeu Carlota. Receava prosseguir perguntando, todavia, recordou a carruagem desgovernada que vira na rua e, para não denunciar a criada, acrescentou: – No dia em que te encontrei ferida, vi a carruagem dos Valente lá fora. Deduzi que era ela que se escondia lá dentro. – Preferia que ninguém soubesse – balbuciou Tomásia, serena, após meditar durante alguns instantes. – Podes ficar tranquila. Não contei a ninguém. Aguardava a tua palavra esclarecedora. – Fizeste bem – assentiu Tomásia, visivelmente aliviada. – O Daniel Valente é muito amigo dos Monforte. Não gostaria de envolvê-lo numa intriga. Deixemos tudo no esquecimento. – Porquê? Essa mulher é perigosa! Vai continuar a frequentar a nossa casa depois do que fez? – Minha irmã, esquece o que houve – pediu Tomásia, acariciando-lhe a mão. – Tenho motivos para recear pela sanidade da Manuela Valente. 18
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Ultimamente, ela tem-se portado de maneira estranha. O próprio Daniel teme que esteja a caminho da loucura; confidenciou-me que tenciona interná-la. Pedir-lhe-ei que a interne e então tudo estará em paz, sem que o escândalo possa abalar o bom nome das duas famílias. Carlota concordou que só a demência podia justificar aquela agressão. A irmã tinha razão: o melhor seria guardar discrição e cuidar que a agressora fosse internada onde não pudesse ferir mais alguém. – Orgulho-me de ti. És uma boa irmã – ciciou Tomásia. – Agora, vai embora; deixa-me descansar. Porém, assim que Carlota saiu, levantou-se e procurou o bilhete de Manuela. Não o achou. Preocupada, escreveu num papel «Preciso ver-te. Se não vieres, será tarde demais». Lacrou a missiva num envelope sem timbre, remetente ou destinatário, chamou Augusta e ordenou: – Entrega esta carta. Sabes onde encontrá-lo. Se ele não estiver, basta deixá-la no lugar de sempre. *** Ao receber o bilhete, Daniel regozijou-se com a oportunidade de rever Tomásia. Ao lado dela, sentia-se dominado por uma inesgotável paixão avassaladora que o consumia cada vez mais. Selou o cavalo, partiu a galope. A amante estava doente; era amigo da casa, podia visitá-la sem protocolo. – Perdoe a ousadia de apresentar-me em hora tão imprópria, Dona Carlota – sussurrou à anfitriã, que o recebeu com cortesia. – Soube que a sua irmã está enferma... – Muita gentileza, Sr. Daniel. A Tomásia sofreu um atentado. Só não morreu pela graça de Deus. Daniel empalideceu. – Um atentado?! Quem ousaria fazer semelhante coisa? – Não sabemos ainda – afirmou Carlota, pondo-o, em poucas palavras, a par do sucedido, ocultando a autoria do crime; ele revoltou-se. – As investigações prosseguem... mas nada se apurou, por enquanto. – A Senhora Tomásia pode receber-me? Gostaria de vê-la. 19
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– Espere aqui. Verei se ela pode recebê-lo. Embora confiasse na honra da sua irmã, Carlota teve ímpetos de impedir que ele entrasse no quarto dela. Todavia, encontrou Tomásia bemdisposta que, afectando um ar de encantadora ingenuidade, sorriu ao dizer: – Minha querida, o Sr. Daniel Valente pode entrar. Pedirei que trate da sanidade mental da Manuela. Ele é muito afeiçoado à esposa... vai receber um rude golpe, mas é necessário desferi-lo para evitar um mal maior. Deixa-nos a sós, por favor. Vendo-a serena, Carlota convidou Daniel a entrar no aposento e retirou-se. Mal a porta se fechou, ele pegou na mão delicada da amante, levou-a aos lábios e suspirou: – Agradeço a Deus ter-te poupado a vida! Lisonjeada, ela baixou o olhar meigo, aparentando um certo embaraço. Num arroubo de paixão, ele ajoelhou-se ao lado dela. Cobria-lhe de beijos as mãos, o rosto, os lábios. – Nem quero pensar na dor de perder-te... – Por pouco, a mão assassina não me destruiu – disse a enferma, abandonando-se languidamente aos afagos até que, com uma voz sumida, recomendou: – Por favor, Daniel, peço-te calma. – Estou calmo, minha querida – retorquiu o amante, procurando conter-se. – Se a Carlota te surpreender, compromete-me. Vamos conversar. – Revolta-me saber que alguém tentou roubar a tua vida. Reivindico o direito de vingar-te! Um brilho de satisfação fulgurou fugitivamente no olhar de Tomásia. Tentou ocultá-lo, cerrando os olhos, enquanto ele se sentava novamente na cadeira ao lado da cama. – Comove-me a tua dedicação. No entanto, temo dar-te um desgosto. – Tu sabes quem foi? – sobressaltou-se Daniel, levantando-se da cadeira. – Sabes quem ousou... – Não, Daniel. Não sei. Foi só um instante de fraqueza. Não devo falar... – Não confias em mim? Conta-me! Saberei ajudar-te – insistiu Daniel. 20
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– Tremo só em pensar que esse braço assassino pode tentar de novo! – Amo-te, Daniel. – Meneando a cabeça, Tomásia levou as mãos aos olhos deixando escapar um soluço angustiado. – Quero poupar-te... – Diz-me a verdade! Sou um homem de honra. Justiça será feita, doa a quem doer. – Está bem, meu amor. Contar-te-ei. Este segredo sufoca-me – declarou Tomásia, olhando-o de frente, com firmeza. – Foi a tua esposa quem me quis matar. Ele cerrou os olhos, vencido pela forte emoção. Manuela ousara! Chegara a tanto! Como pudera? Deixou-se cair na poltrona, desalentado. Sentia-se culpado por não ter pressentido a tragédia. Exigindo que a amante lhe revelasse tudo, ouviu, petrificado, as palavras de Tomásia Monforte, que fez a sua narrativa com uma voz compungida. Após alguns minutos de silêncio, falou com a voz entrecortada: – Como poderei recompensar-te por todo este sofrimento? Como apagar a ofensa que suportaste? Perdoa-me, Tomásia! Perdoa-me pelo mal que te causei. – Nada tenho a perdoar de quem recebi tanto amor – volveu ela, com um enfado imperceptível reflectindo-se-lhe no rosto. Não obstante, dominou-se, aparentando resignação. – Mas tenho sofrido. À noite, mal posso dormir. Temo que ela volte para atingir-me de novo. Vejo-a por toda a parte, brandindo a arma assassina. Vivo assombrada. Oh, Daniel! Como vencer esta ameaça que me tira o sossego? Daniel estava estarrecido. Era verdade. Manuela podia armar outra cilada. – Não te preocupes, Tomásia. Colocarei guardas no quarto dela e de lá não poderá sair. Vigiá-la-ei – decidiu, sacudindo a cabeça com determinação. – Sossega, minha querida. Não correrás mais perigo. Ela aparentou calma. Depois de alguns instantes de silêncio, disse com a voz persuasiva: – Sinto-me confortada por poder partilhar contigo este terrível segredo. Se calei, foi para poupar-te. Lamento dar-te este desgosto, Daniel. Mas sentir-me-ia mais segura se ela fosse encerrada nalgum lugar de onde não pudesse sair. Aos criados pode-se iludir com dinheiro e promessas, e 21
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o perigo continuaria. Quem não hesita em cometer um crime deve ser encerrado num lugar de onde jamais possa sair e não represente perigo para ninguém. Só assim ficarei tranquila. A Manuela está desequilibrada. Depois do que fez, é justo que arque com as consequências. – Encerrá-la? – titubeou Daniel, confuso. – Talvez tenhas razão. – Eu sabia que podia confiar na tua dedicação. – E, envolvendo-o com olhos languidos, frisou: – Agora, sinto-me protegida. E não precisas contar a ninguém a verdade. Tu és o meu defensor. Ele sentia-se comovido. Como Tomásia era nobre perdoando a sua agressora! Quanta generosidade não querendo denunciar Manuela! Prometeu tudo quanto ela desejava obter e retirou-se da residência dos Monforte. Não vislumbrou o brilho vitorioso que se lhe reflectiu no olhar modificado, nem Carlota o percebeu quando ela lhe comunicou que Daniel Valente, um homem justo e bom, por amar profundamente a sua mulher, assegurou que a conduziria a um local onde pudesse ser tratada convenientemente, para que se recuperasse. *** Escurecia quando Daniel retornou à sua mansão. A ideia de que a esposa praticasse um crime tão hediondo obscurecia-lhe a razão. E se Tomásia morresse? Um arrepio de horror percorria-lhe o corpo. Doravante, como evitar uma nova tragédia? Como defender Tomásia do ciúme de Manuela? A necessidade de enclausurá-la era evidente. Contudo, e a sociedade? Como explicar? Haveria de dar um jeito em tudo. Afinal, Manuela era uma criminosa. Precisava pagar. Pagaria! Ao vê-lo entrar no aposento da patroa, a criada retirou-se. Daniel fechou a porta, correndo o ferrolho. Pressentindo que ele já sabia de tudo, Manuela foi dominada por uma forte perturbação. Aqueles dias de incerteza e de insónia haviam-lhe marcado o belo rosto. Os olhos reflectiam uma certa agitação e as mãos eram incapazes de segurar entre os dedos o lenço de linho que caiu ao chão. – Precisamos conversar. Senta-te! – ordenou Daniel, permanecendo em pé. Parado na frente dela, interrogou: – Porque atentaste contra a 22
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vida da Senhora Monforte? Embora esperasse pela pergunta, Manuela estremeceu. Devia negar? Confessar? Até que ponto ele conhecia a verdade? Vendo a sua indecisão, Daniel aproximou-se mais e acusou: – Foste tu... Foste tu, Manuela! Assassina! Assassina! A voz feminina extinguiu-se na garganta como que estrangulada. Manuela levantou as mãos, como se quisesse afastar de si uma visão de horror. Implacável, Daniel quase encostou o seu rosto no rosto dela. – Alma negra! Mulher perversa! Assassina! – continuou, cheio de ódio. – A tua vida não valeria nada neste momento se ela tivesse morrido! Transfigurada, Manuela sentiu tudo girar ao redor, o rosto contraindo-se em rito doloroso. Caiu redondamente no chão. O marido assustou-se. Ordenou que buscassem um médico. Enquanto a criada saía esbaforida, estendeu o corpo hirto na cama. Manchas negras tingiam-lhe as faces alvas e uma espuma viscosa saía-lhe da boca. O corpo permanecia lívido, os lábios escuros, manchas roxas alastrando ao pescoço, a boca cerrada sem expressão de vida; somente o peito arfando fracamente demonstrava que ainda vivia. Daniel sentou-se ao lado dela, com a ansiedade estampada no rosto. – Manuela!... Manuela!... Acorda, por favor! – implorava, mas a esposa não lhe ouvia as palavras entrecortadas. A criada regressou com um conceituado médico já de idade avançada que cuidava das famílias mais ilustres da região. Ao rever o velho amigo, Daniel sentiu-se amparado. Sem nada indagar, o médico examinou, cuidadosamente, a enferma. – A Dona Manuela sofreu uma emoção violentíssima – prognosticou, explicando que a paciente estava presa de comoção, que agindo no seu cérebro provocara a paralisação do comando orgânico. – Há risco? – inquiriu Daniel, agastado. – Pode morrer? – Aguardemos que a crise passe – respondeu o médico, com a voz suave, bondosa. – Quando ela recobrar os sentidos, saberemos a extensão do mal. O ancião estimava Daniel, apesar de lhe conhecer o carácter leviano e 23
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extravagante. Receava, há muito, que o drama do casal Valente se agravasse e temia um desfecho pior. Há dias, viera ver Manuela e notou-lhe o abatimento, a depressão nervosa. Ela confessara o desapego do marido; agora, apresentava-se gravemente doente. Algo sucedera que ele desconhecia. Não podia definir se Manuela sobreviveria, ou não. E durante muitas horas a situação não melhorou. Já despontavam os primeiros raios de Sol e Daniel Valente não sabia se o novo dia lhe traria a força da vida ou o peso da morte. Ante o sofrimento da esposa e vendo-lhe o rosto transmudado pela dor, lutando para sobreviver, Daniel rememorou o namoro e o casamento, com as emoções dulcíssimas do amor correspondido. Como ela era linda! Como a amara! A seguir, o nascimento dos filhos. Depois, o tédio, a inquietação, o fascínio dos salões e a figura bela e experimentada da viúva do seu amigo José Monforte, que lhe penetrara no coração como uma labareda ardente, queimando cada vez mais, tornando-se imperiosa. Acossado pelo ardor das reminiscências, percebeu quão culpado fora nos eventos dolorosos que lhe envolveram a vida. A tentativa de homicídio, a doença grave e as horas de angústia contribuíram para modificar o seu carácter. Sentia que se Manuela morresse a culpa seria dele porque, além de traí-la, impulsionara-a ao crime e quase lhe causara a morte com crueldade e incompreensão. Certa noite, velando a enferma, o médico notou-lhe o pulso enfraquecido. O rosto inundado em suores e alguns gemidos surdos revelavam que o momento era extremo. Daniel temeu o pior. – Manuela, não me deixes – pediu, emocionado. Os olhos dela abriram-se, fixando-lhe o semblante contraído. Comovido, suplicou: – Perdoa-me! Fica comigo! Não me deixes! Ela evidenciava aflição nos olhos mortiços. Mexeu os lábios com esforço, para falar; não conseguindo, desfaleceu. Apavorado, Daniel caiu de joelhos no paroxismo da angústia e da dor. Exclamou: – Está morta, doutor! A Manuela morreu... – Não posso negar que esteja muito mal – volveu o médico, perscrutando o pulso da paciente. – O senhor crê em Deus? Apanhado de surpresa, Daniel estremeceu. Sabia o médico religioso, 24
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mas esse era um assunto de que não se ocupava. – Creio que sim – foi a resposta evasiva. – Então, reze! Apavorou-se. Que fazer? Orar? Na infância, frequentou a igreja, mas assistira às missas contrafeito e indiferente; nunca aprendeu a rezar. Pela sua mente, perpassavam algumas ideias religiosas de que esporadicamente tomara conhecimento, sem que o pudessem reconfortar. Envergonhado, balbuciou: – Doutor, eu não consigo... não sei rezar... – Para falar com Deus através da oração – disse o médico, pondo-lhe uma mão no ombro – não precisa de fórmulas. Deixe que o pensamento fale e Deus, que tudo vê e tudo sabe, saberá ouvi-lo. Um arrepio de terror fustigou-lhe o coração assustado. Deus teria visto tudo o que ele fizera? Saberia que ele era o culpado do estado da esposa? Não teve ânimo para pensar em Deus. Incomodava-o a ideia de que alguém pudesse saber tudo o que havia feito e, principalmente, o que planeara em relação à reclusão de Manuela. Baixou o olhar, confuso, simulando um recolhimento que estava longe de sentir. O medo e o remorso já o atormentavam. Teve então, mais do que nunca, consciência da sua culpa. De joelhos, pela primeira vez na vida, voltou o pensamento para Deus com sinceridade. – Senhor Deus, eu sou o único culpado! Deixe-a viver para que eu possa resgatar a minha culpa – implorou, sentindo que o pranto lhe descia pelas faces cansadas. – Dê-me a oportunidade de ser para ela o que devia ter sido e não fui. – Falava com tanta veemência que parecia colocar a própria alma em cada palavra. – Senhor! Conserve-lhe a vida e eu prometo dedicar-me totalmente a redimir o meu erro. – Deus ouviu as suas palavras – alertou o médico. – A Dona Manuela vive; está apenas adormecida. Daniel ergueu-se, ainda inseguro. Quando conseguiu compreender o que se passava, foi acometido de grande alívio. Sabia que Manuela continuava em perigo; mesmo assim, considerou-se ouvido por Deus nas suas rogativas. E a partir desse dia modificou, aos poucos, a sua vida por completo. 25
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As conversas, cada vez mais frequentes, com o médico produziam um efeito salutar no seu espírito deprimido; tinham o poder de fortalecer-lhe a coragem ameaçada. Inspirado pelos sábios conselhos do velho médico e movido pelo sentimento de culpa, remeteu-se aos seus domínios. Deixou de aparecer nos salões aristocráticos. Se as circunstâncias o exigiam, a sua presença era protocolar e rápida, restringindo-se ao indispensável. O seu rosto perdera o ar alegre de sempre, os olhos mostravam tristeza e determinação. Foi em vão que os convites sociais lhe buscaram a figura nobre. Pretextando a falta de saúde da esposa e a necessidade da sua presença ao lado dela, foi-se esquivando ao bulício dos salões e não tornou a abrir os seus portões para recepções; os amigos de outrora, que lhe acorriam aos eventos festivos, desambientaram-se, rareando as visitas. Não encontrava mais prazer nas reuniões frívolas da sociedade. Agora, concentrava a sua atenção na família; esmerava-se na educação dos três filhos ainda pequenos e dedicava-se, exclusivamente, à recuperação da esposa e à gestão dos seus negócios. Tomásia Monforte também procurou, de todas as maneiras, atraí-lo na mesma sedução de outrora, mas ele estava muito mudado; o seu remorso era real, sincero. Sacudido pela dolorosa realidade, Daniel percebeu que a sua paixão por Tomásia fora apenas uma atracção tão avassaladora quão passageira. Não querendo ser descortês com uma dama, foi ao encontro dela ainda uma vez. Achava útil um entendimento franco com ela. Devia-lhe uma explicação. Quando se viram frente a frente, olharam-se com curiosidade. Ela, arrumada com esmero, tinha nos olhos o brilho de uma paixão imperiosa. Ele, buscando não magoá-la, desejava ser compreendido na sua nova disposição. Após a abordagem inicial, Tomásia não lhe notou a chama ardente de outros tempos. Ele, mantendo uma atitude sóbria e correcta, procurou fazê-la entender que nada mais seria possível entre os dois e era tempo de evitarem um mal maior do que aquele que acontecera. Tomásia, decepcionada e temerosa, não esperava vê-lo tão diferente. A atitude de Daniel, para ela, representava um sinal inequívoco de que já não possuía o mesmo fascínio sobre os homens. Resolveu utilizar todos os recursos de mulher experimentada para reconquistá-lo. Demonstrou que o com26
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preendia e chorou desconsolada, dizendo-se também culpada pela tragédia de Manuela. Noutra época, ele comovia-se diante das lágrimas daquela bela mulher. Mas agora não se rendia, surpreendendo-se por não encontrar naquele rosto bem cuidado a chama de outrora. Imune aos seus encantos, vislumbrou-lhe um brilho pernicioso que, instintivamente, o colocou de sobreaviso; foi um fulgor rápido, porém, revelador. Achando-a calculista e superficial, admirava-se por ter perdido a cabeça e prejudicado o seu lar por causa dela. Com alívio e certa pressa, despediu-se e retirou-se, tornando mais sombria a fisionomia de Tomásia cujo coração vibrou de ódio. – Nunca sofri tamanha afronta – sussurrou ela, entredentes, levantando o punho ameaçador. – Pagarás caro por isto, Daniel Valente. Juro que me vingarei! Totalmente refeita do atentado, continuou a ser a mesma mulher festejada e bela. A irmã procurou, também, esquecer as dolorosas reminiscências, considerando a enfermidade de Manuela uma punição do seu crime. Como Daniel deixou de visitar Tomásia, Carlota entendeu que, certamente, nada ocorrera entre eles. Quanto a Manuela, jamais recuperaria da crise sofrida. Vivia apavorada, em permanente angústia, sem sair do quarto. Por vezes, esquecia-se até do próprio nome; noutras ocasiões, acometida de depressão, recusava alimentar-se com obstinação. O seu olhar só abrandava quando lhe levavam os filhos adorados, cujas presenças tinham o condão de serenar-lhe o semblante infeliz. Desde que adoecera, Carlota não tornou a vê-la, mas informava-se da sua saúde amiudadas vezes, pelos criados. Soube que ela, após demorado tratamento, andava com bastante dificuldade, quase se arrastando; sabia também que a sua beleza fanara-se na magreza extrema e na palidez constante e que Daniel Valente desvelava-se em atenções para com a esposa enferma. *** O Inverno vestiu a paisagem de cinzento e as geadas contínuas pelas madrugadas anunciavam que, em breve, a neve cairia. Apesar disso, Carlota dirigiu-se, naquela tarde friorenta, à residência da família Valente. 27
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Sabendo que Manuela definhava, resolvera visitá-la, num impulso do seu carácter generoso. Pretendia, com a sua presença, dar-lhe a entender que o atentado que vitimara a sua irmã fora olvidado. Horrorizava-se a pensar que, se estivesse no lugar dela, não poderia desertar da vida sem o consolo do perdão. Queria que a pobre senhora tão infeliz, que arrastara as penas do seu crime com tanto martírio, pudesse partir em paz. Revivendo mentalmente as cenas do passado, concluiu, com alívio, que restava apenas muita piedade por aquela criatura. Quanta dor! Quanto remorso devia guardar no coração! Daniel recebeu-a com cortesia. Fixando-lhe o semblante abatido e entristecido, Carlota captou um vislumbre de alegria e acomodou-se numa elegante poltrona. – Soube que o estado da sua esposa tem-se agravado – anunciou, delicada. Pelo rosto contraído de Daniel perpassou uma onda de tristeza. – Vim saber da sua saúde e desejar-lhe rápidas melhoras. – Infelizmente, está mal, mas agradeço a gentileza. Temos lutado muito para devolver-lhe a saúde e chegámos a alimentar esperanças. No entanto, surgiu a recaída e agora sentimos que tudo está perdido. – A voz morreu-lhe na garganta como que a disfarçar um soluço e a jovem senhora sentiu-se tocada pelo seu sofrimento. Como ele deve amar a sua mulher!, pensou, sensibilizada, acreditando, mais do que nunca, que o suposto romance dele com Tomásia não passara de um mal-entendido. – Coragem, Sr. Daniel – murmurou, buscando confortá-lo. – Coragem! Ele fixou-lhe o rosto sincero cujos olhos, puros e brilhantes, num desejo ardente de suavizar-lhe a alma, fizeram-lhe grande bem. Uma sensação de serenidade envolveu-o, distendendo-lhe a fisionomia angustiada, que voltava a recompor-se. Num gesto espontâneo, pousou a sua mão sobre a dela e disse: – É muito bondosa, Dona Carlota. A sua presença balsamiza um pouco a nossa dor. – Se não incomodar, gostaria de cumprimentar a Senhora Manuela. – Ela está nas brumas da inconsciência; talvez nem note a sua presença – preveniu Daniel, erguendo-se. – Aos amigos que nos têm visitado, 28
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não lhes tenho permitido a entrada no quarto. Mas um motivo especial leva-me a pedir que não vá embora antes de vê-la. Peço que me acompanhe, por favor. – Um motivo especial? – repetiu Carlota, curiosa, levantando-se. – Lamento tocar num assunto desagradável que a vossa grandeza de coração não desejou mencionar: a tentativa de assassinato contra a sua irmã, e que ambas tão generosamente ocultaram. – Carlota baixou a cabeça, evitando fixar-lhe o rosto; pressentia-lhe a dificuldade e o sofrimento na menção de um tema tão doloroso que todos desejariam esquecer. – Gostaria que visse a Manuela no seu leito de dor, e a perdoasse. Várias vezes, no seu delírio, pronuncia o nome da Senhora Tomásia, entre o pavor e a angústia. Já pensei em enviar um portador à vossa casa solicitando a presença dela, rogando perdão para a minha pobre Manuela. Mas deteve-me o receio de perturbá-la com a recordação de tão terrível momento e reconheço que, depois de tudo, não temos esse direito. – Carlota ouvia de cabeça baixa a voz grave de Daniel, que se esforçava para aparentar serenidade. – A Manuela arrependeu-se imenso do erro que cometeu e tem padecido muito. Eu sou mais culpado do que ela, por não lhe ter dado o afecto que merecia, mas isso agora não importa. Peçolhe, como irmã da Dona Tomásia e conhecedora da verdade, tendo sofrido também as consequências do crime, que tranquilize uma alma agonizante com o conforto do perdão. Nisto, calou-se. Não teve coragem de revelar que, por duas vezes, solicitara a presença de Tomásia Monforte naquelas horas difíceis, sem que ela concordasse em aquiescer o pedido. O lacónico bilhete que lhe devolveu, recusando perdoar Manuela, fora mais uma angústia acrescida ao seu coração atormentado de remorsos. Por essa mulher fútil e má, havia destruído o amor, a paz, a felicidade do seu lar, dos seus filhos e da sua esposa. A presença espontânea de Carlota causou-lhe, por isso, grande bem. Já à porta do quarto, ao colocar a mão na maçaneta, olhou-a com olhos suplicantes. – Também me preocupava o passado e não me compete julgar ninguém porque isso só a Deus diz respeito – sibilou Carlota levantando o 29
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rosto onde se reflectia compreensão e firmeza. – A Senhora Manuela deve saber, se Deus o permitir, que tudo já foi esquecido, e perdoado. Por isso vim, Sr. Daniel. Para dizer-lhe o que sinto. Tenho certeza de que a minha irmã diria o mesmo. Emocionado, Daniel abriu a porta e Carlota entrou na alcova sombria de Manuela Valente. Viu-a imóvel, no meio do leito guarnecido de cortinas encarnadas. O médico, sentado ao lado da enferma, alegrou-se ao vêla. Levantou-se e pegou-lhe numa mão, conduzindo-a à cabeceira da moribunda. – Está morta? – assustou-se Carlota, fitando o rosto cadavérico, sem cor, de Manuela. – Não ainda – respondeu o ancião – mas falta pouco, Dona Carlota. A respiração de Manuela era tão imperceptível que mal se notava. A gravidade do seu estado tocou ainda mais o generoso coração da jovem senhora que a visitava. – Cheguei muito tarde? Não poderá ouvir-me? – Penso que não, Dona Carlota. Mas... às vezes, tem tido algumas reacções de consciência que nos faz suspeitar de que há momentos em que nos pode ouvir. Observando o rosto amortecido, Carlota reparou que ela abriu os olhos, fixando-a com lucidez. – Manuela, vim trazer-te a amizade e a paz – balbuciou com carinho, fitando-lhe o olhar profundo. – Rogo a Deus que te abençoe e que te encaminhe para as suas moradas de luz. O passado está esquecido. Perdoa-me se alguma vez não te soube compreender. Parte em paz, minha amiga. O peito cansado de Manuela arfou num suspiro, duas lágrimas silenciosas deslizaram-lhe pelas faces, os olhos fecharam-se. Enquanto o médico procurava constatar-lhe as batidas do coração, Daniel ajoelharase ao lado da cama, curvado pela dor, e Carlota rezava, comovida. Manuela estava morta! Reconfortada pelas derradeiras palavras de Carlota, pôde adormecer para sempre... partindo, redimida pelo sofrimento suportado com paciência e pelo remorso que lhe amargurara os dias sem cessar. 30
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