COLECÇÃO SUI GENERIS
SALOIOS & CAIPIRAS CONTOS, CAUSOS, LENDAS E POESIAS
COLECÇÃO SUI GENERIS Obras colectivas: A BÍBLIA DOS PECADORES – Do Génesis ao Apocalipse O BEIJO DO VAMPIRO – Antologia de Contos Vampirescos VENDAVAL DE EMOÇÕES – Antologia de Poesia Lusófona GRAÇAS A DEUS! – Antologia de Natal NINGUÉM LEVA A MAL – Antologia de Estórias Carnavalescas TORRENTE DE PAIXÕES – Antologia de Poesia Lusófona SEXTA-FEIRA 13 – Antologia de Contos Assombrosos SALOIOS & CAIPIRAS – Contos, Causos, Lendas e Poesias FÚRIA DE VIVER – Um Hino à Vida Obras individuais: AMARGO AMARGAR – Isidro Sousa ALMAS FERIDAS – Suzete Fraga MAR EM MIM – Rosa Marques O PRANTO DO CISNE – Isidro Sousa DECIFRA-ME... OU DEVORO-TE! – Guadalupe Navarro
31 AUTORES
SALOIOS & CAIPIRAS CONTOS, CAUSOS, LENDAS E POESIAS Organização ISIDRO SOUSA Coordenação MARCELLA REIS
EDIÇÕES SUI GENERIS EDITORA EUEDITO PORTUGAL
TEXTOS © 2017 SUI GENERIS E AUTORES
Título: Saloios & Caipiras Subtítulo: Contos, Causos, Lendas e Poesias Autor: Vários Autores Organização: Isidro Sousa Coordenação: Marcella Reis Revisão e Paginação: Isidro Sousa Capa (design): Ricardo Solano Editores: Isidro Sousa e Paulo Lobo 1ª Edição – Abril 2017 ISBN: 978-989-8856-41-8 Depósito Legal: 425238/17 EDIÇÕES SUI GENERIS letras.suigeneris@gmail.com www.euedito.com/suigeneris http://letras-suigeneris.blogspot.pt https://issuu.com/sui.generis EDITORA EUEDITO geral@euedito.com www.euedito.com Impressão Print On Demand Liberis A cópia ilegal viola os direitos dos autores. Os prejudicados somos todos nós. Direitos reservados pelo Organizador e pelos Autores. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, por quaisquer meios e em qualquer forma, sem a autorização prévia e escrita dos Editores ou do Organizador. Exceptua-se a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Os Autores podem utilizar livremente os seus textos. A utilização, ou não, do actual Acordo Ortográfico foi deixada ao critério de cada Autor.
Sei de uma camponesa Sem campo sem quintal Que canta debruçada Ao sol da seara O trigo na cara De suor tão debulhada (Rui Veloso)
Na porta do rancho eu me sento à tardinha A mente se alinha por outros caminhos Acendo um cigarro gostoso palheiro Olhando o terreiro e as aves nos ninhos (Ronaldo Viola e João Carvalho)
Menina que mora no mato, Não tem medo de assombração. Anda sozinha na estrada, Levando sombrinha na mão. Deixa o cabelo no rosto, Brinca com quem quer brincar. Dá um sorriso pra gente E continua a caminhar... (Ruy Maurity)
De que me adianta viver na cidade Se a felicidade não me acompanhar Adeus paulistinha do meu coração Lá pró meu sertão eu quero voltar Ver a madrugada quando a passarada Fazendo alvorada começa a cantar Com satisfação arreio o burrão Cortando estradão saio a galopar E vou escutando o gado berrando Sabiá cantando no jequitibá (Tonico e Tinoco)
Ela saiu da aldeia foi viver para a cidade pintou o cabelo ficou sem idade alugou um apartamento na baixa de Lisboa ela tem no corpo sangue de saloia ela é portuguesa e tem dentro da alma estranha beleza a mulher saloia chegou à cidade conquistou o mundo com sua verdade a mulher saloia tem estranha beleza ela arranjou emprego num décimo andar, anda com o patrão já sabe mandar vai a todas as festas da alta sociedade ela agora é mulher da cidade já mudou o sotaque já cheira cocaína ela agora é uma mulher fina ela é portuguesa e tem dentro da alma estranha beleza a mulher saloia chegou à cidade conquistou o mundo com sua verdade a mulher saloia tem estranha beleza a mulher saloia tem estranha beleza... (Jorge Vadio)
ÍNDICE
Prefácio ........................................................................................................... A aldeia, Fernanda Kruz .................................................................................. A alvorada no campo, Aldir Donizeti Vieira ............................................... A beleza dos lírios, Rosa Marques ................................................................. A branquinha, Teresa Morais ......................................................................... A casa de Bastet, Luís Altério ....................................................................... A colheita de Morrígan, Sara Timóteo .......................................................... A raça humana perfeita, Tânia Tonelli ......................................................... A saloia Maria Rosa e o caipira Zé Pé de Boi, Estêvão de Sousa .............. A vida na roça, Cadu Lima Santos ................................................................ Adeus ao major, Hélverton Baiano ................................................................. Ai que sodade, Cadu Lima Santos ................................................................. Borboletas, Hélverton Baiano .......................................................................... Carneiro assado, Luiz Carlos Rodrigues ........................................................ Casa de cobras, Luiz Carlos Rodrigues .......................................................... Cascalhos de Goiás, Marcella Reis ................................................................ Cheiro de terra, Jorge Manuel Ramos ............................................................. Chico – O violeiro sonhador, Eloy Rondon ................................................ Dias iguais, Fernanda Kruz ............................................................................. Doce saudade, Rafa Goudard ........................................................................
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Fora da redoma, Suzete Fraga ....................................................................... 74 Gosto trigueiro, Paulo Galheto Miguel .......................................................... 81 Je(suis) du cér, Marcella Reis .......................................................................... 82 Mãos que sofrem, Paulo Galheto Miguel ....................................................... 84 Maria Vida Fria, Tito Lívio ............................................................................ 85 Montês, Manuel Amaro Mendonça ................................................................. 87 Na fazenda, Rafa Goudard ........................................................................... 100 Não somos feitos de nada, Paulo Galheto Miguel ...................................... 101 Natar na roça, Cadu Lima Santos ................................................................ 102 Negrinha agarrada, Marcella Reis ................................................................ 103 O fim do mundo, Carla Santos Ramada ..................................................... 105 O meu primo lenhador, Apolo ................................................................... 109 O minerim legítimu, Letícia Álvares ........................................................... 113 O segredo de Leonardo, Isidro Sousa ......................................................... 116 Ouro goiano, Marcella Reis .......................................................................... 142 Outros tempos, Angelina Violante .............................................................. 144 Papoila celeste, Paulo Galheto Miguel .......................................................... 145 Pelo Nordeste encontrei, Jonnata Henrique ............................................... 146 Pessoas de bem, Rosa Marques ................................................................... 153 Piquenique idílico, Diamantino Bártolo ....................................................... 163 Quando eu ia, Hélverton Baiano ................................................................... 166 Que saudades!, Rosa Marques ...................................................................... 168 Regresso em glória, Diamantino Bártolo ..................................................... 169 Riacho, Guadalupe Navarro .......................................................................... 173 Rio abaixo, rio arriba, Antônio Guedes Alcoforado ...................................... 181 Rosinha e Januário, Carmen Jara ................................................................ 186 Saloios, Angelina Violante ............................................................................ 188 Saloios que fizeram o seu mundo, Carlos Arinto ..................................... 189 Ser tão Goiás, Hélverton Baiano ................................................................... 196 Sui generis, Espedita China .......................................................................... 198
Tempos que já lá vão, Angelina Violante ................................................... Terra, Fernanda Kruz .................................................................................... Glossário ....................................................................................................... Os autores ..................................................................................................... Edições Sui Generis ....................................................................................
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PREFÁCIO
«Como o campo é grande e o amor pequeno!» (Alberto Caeiro) O sonho desse projecto começou nessa simples e profunda frase do heterónimo mais descomplicado e campesino de Fernando Pessoa, que afirmava: «Pensar é estar doente dos olhos.» Saloios & Caipiras é uma antologia de textos inéditos de grandes autores seleccionados pelo Organizador Isidro Sousa e pela Coordenadora Marcella Reis subordinados ao tema da Vida Rural e Campesina nos dois lados do Atlântico: Brasil e Portugal. É “tale e quale” como o título da mesma sugere: uma Antologia Luso-Brasileira de Contos, Lendas, Causos e Poesias (integrada na Colecção Sui Generis, fundada e dirigida por Isidro Sousa e editada com a chancela da EuEdito). A vida rural é sinónimo de prazer, simplicidade, alegria, fartura e, paradoxalmente, de muita luta, tristeza, complexidade, pobreza e “fartura” do verbo faltar (termo bastante utilizado pelas pessoas interioranas no Brasil ao trocar o “L” pelo “R”, como calça = carça, valsa = varsa, “faltura” = fartura). Por causa dessa linguagem incomum, popular e informal, falada por Saloios e Caipiras, com imensas palavras desconhecidas e até inventadas, é que há um Glossário no apêndice dessa ilustre Antologia. Ah! O campo... O campo e o interior já inspiraram poetas portugueses como Cesário Verde, que versava o contraste entre o campo e a cidade, Alberto Caeiro já acima referido, o mais simples heterónimo de Pessoa e mestre de todos os outros heterónimos, a poetisa e prosista brasileira Cora Coralina, que cantava em versos e contava em causos estórias de seu Goiás Velho querido e a vida simples do caipira no meio de suas panelas de doces e mãos temperadas de pimentas novas, frescas e cheirosas, e de seu velho “Goyáz”. 11
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Toda esta vida interiorana, sertaneja e rural, foi também retratada em obras renomadas como Grande Sertão Veredas (Guimarães Rosa), Rosinha Minha Canoa, Chuva Crioula e Meu Pé de Laranja Lima (Zé Mauro de Vasconcelos) e em tantas outras obras portuguesas e brasileiras! E... Foi mesmo por isso que nós desafiámos, afiámos e desafiámos todos os Autores Brasileiros e Portugueses, interessados em participar neste projecto, a criarem Poesia ou um texto sob a forma de Conto e o resultado para essa temática, SALOIOS & CAIPIRAS, teve uma palavra como protagonista: EMOÇÃO em letras garrafais. Foi essa emoção grande, como que vista pelo fundo duma garrafa, que eu senti ao ler cada texto e poesia dos autores seleccionados. Aqui estão plantadas nesse livro que é terra fértil: momentos de comédia, pequenas histórias com grandes romances e laços de amizade que nos fazem render o joelho ao chão e agradecer pelos animais e pela MãeNatureza, mininovelas, lendas, dramas familiares e de vínculos muito profundos, intrigas, preces, cânticos em forma de pura homenagem. Homenagem esta onde nomes de artistas e autores estão presentes através do seu trabalho feito de coração, para representar e enaltecer o campo, os seus habitantes e visitantes. Saloios & Caipiras é uma Antologia gostosa de ler como o biscoito feito pelas mãos enrugadas de uma pessoa que sabe o que vem do escuro da terra. Cada texto e poesia tem o sabor do biscoito das prateleiras dos velhos armários das grandes quintas e fazendas... Tem o sabor das risadas dadas nas rodas em volta do fogão de lenha ou da fogueira. Tem o gosto rude da enxada e da foice e o doce do suor lavado quando se acaba a lida do trabalho do peão... Dos trabalhadores campesinos! Esse livro tem o cheiro das pedras dos rios que correm em cima delas, do sol quarando a roupa, das bananas bravas, das mandiocas sendo paridas da terra, dos amores nos milharais, das pamonhas, das papas de milho, dos pequis, jabuticabas, uvas do Douro, do Minho. Ahhh! Saboreiem, pois, cada gota das palavras que aqui se fazem presentes. Elas cheiram à moça com vestido de chita e trança Maria Chiquinha, elas cheiram ao luar estrelado do interior, cheiram a criança pequena, “bacuri”... Esse livro cheira-nos a terra molhada! Pois que: «O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria, se aprende é com a vida e com os humildes.» (Cora Coralina) Ou... «Coração é terra que ninguém vê», como dizia a poeta Cora Co12
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ralina. Posso dizer-vos com alegria de que todos nós escavamos essa terra e, através da semente das palavras plantadas, fizemos brotar o nosso coração do solo e que ele seja sempre... transparente como a água que rega a vida na sua simplicidade! Todos os Autores Luso-Brasileiros (e de outros Países Lusófonos) foram aqui muito bem acolhidos e colhidos no cesto da admiração, do reconhecimento e o resultado é este: de abundância! De facto vocês nos surpreenderam e sempre que eu sentir saudades do campo voltarei a tirar umas férias nele. Marcella Reis
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A ALDEIA Fernanda Kruz
O rio desce alegremente Por entre colinas verdejantes Abençoando a aldeia E todos os seus habitantes O casario de pedra As ruelas enegrecidas São o orgulho de quem lá vive E que tratam com mestria São gentes simples e humildes Que dia após dia Vão trabalhando com afinco Sempre em alegre cantoria Das grandes cidades Pouco ou nada sabem O mar nunca o viram E das gentes de lá não querem que lhes falem A aldeia é o seu mundo Vivem nela de alma e coração O sol, a lua e as estrelas cintilantes Lhes fazem companhia Em plenos dia de verão No inverno rigoroso Lareiras acesas, casas quentinhas O café sempre pronto Desde manhã até à noitinha.
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A ALVORADA NO CAMPO Aldir Donizeti Vieira
Cantam os pássaros na alvorada, Acordam toda a bicharada, Retorna a vida ao romper d’alva Acenando um novo dia que nasce!... A alvorada chega... Após uma noite interminável De espetáculos e maravilhas mil Sob os céus cintilantes de estrelas douradas, Estendidas no imenso tapete bordado a ouro Em via láctea, sóis distantes e fontes do infinito!... A alvorada surge irradiante E as estrelas desaparecem à luz que se aproxima, Como pérolas soltas na imensidão Desfazendo em átomos no etéreo!... Na terra, Os horizontes desvendam as colinas, Num vaporoso véu de sonhos e neblinas, Clareando os lagos, os montes e outeiros... E numa grande vibração... a vida passa a cantar! Tudo transparece... Tudo é luz! Tudo é som! Tudo é cor! A natureza num murmúrio se refaz. A semente lentamente se prepara 16
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Para despertar do seio da terra! O aroma fresco exala por todos os ares e lugares... A coruja deixa o seu lugar-sentinela! Os primeiros raios de luz avançam lentamente Por entre a relva molhada de orvalho... Numa só voz os seres se levantam Em uma prece de eterna comunhão Com hinos sonoros de ilimitada gratidão... E o céu responde pelo criador: Haja mais luz, mais vida e mais cor!... A alvorada se desponta, Numa gigantesca epopeia do universo. O céu se recobre num grande lago azul!... E o aconchego do sol abrange, Em calor, todas as vidas Dos corpos, micro a macro, Da semente à árvore frondosa E dos campos às cidades, Trazendo o despertar da vida, na aurora radiante!... Vem a alvorada, chega de mansinho... Num ritmo desvelado. Murmura o rio em cascata, Cortando as matas, ciclones de verdura! O sol se aquece, corta em meio as folhas Com seus raios multicores, Onde a arara, o papagaio e o sabiá, Soberanos pássaros das folhagens, Misturam-se à úmida relva Num interminável festejar!... Alvorada!... Alvorada!... O botão abre-se em ternas pétalas E exala seu odor perfumado... Brotos se transformam em folhas E flores em frutos!... 17
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Alvorada!... Contínuo despertar... Como se o celestial Jardineiro, em seu Jardim Retornasse a cultivar!... Alvorada! Quem poderá impedir o sol de raiar?! Ou a natureza de se manifestar... Sob teu clarão de luz que se aproxima?!!! E a alvorada responde serenamente Molhada na fronte pelo orvalho: Faça-se a luz!!! E a vida resplandece em cores!...
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A BELEZA DOS LÍRIOS Rosa Marques
Através da cortina transparente vislumbro o mundo lá fora. Apenas a beleza dos lírios desfaz a tristeza da manhã! Preciso sair e chove, olho à volta, vejo, sinto o conforto da casa. Até mim chega o calor da lareira acesa, um brilho ilumina a sala de jantar, é meu desejo ficar ali para sempre! Lá fora os lírios brancos, os lilases, tremem de frio... A chuva fustiga suas frágeis pétalas mas eles resistem, continuam belos! Álgida a brisa toca meu rosto na lúgubre manhã fria, onde nem um pipilar de passarinho se ouve nesta manhã de Inverno e nostalgia! Porém, ao passar junto à ribeira ouço o coaxar das rãs... E o murmúrio doce das canas verdes ciciando segredos ao vento!
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CONTOS, CAUSOS, LENDAS E POESIAS
E esta presença faz-me sentir acompanhada! A fonte com seu pequeno jardim está hoje desabitada... Mas a beleza dos lírios... Ah, a beleza dos lírios acompanha-me para sempre!
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A BRANQUINHA Teresa Morais
Era apenas a Branquinha, sem um sobrenome a completar-lhe a identidade, e a sua presença semanal fez parte da minha infância e adolescência. Era uma mulher simples, de idade indefinida para a minha curta compreensão infantil, com o cabelo ralo apanhado num carrapito, preso por ganchos de metal. Por trás dos óculos de lentes grossas, brilhavam uns olhinhos míopes, sempre um tanto lacrimejantes, e que ela limpava continuamente com um lenço de mão imaculadamente branco. A Branquinha ganhava a vida a trabalhar como costureira em casas de famílias da cidade. Só descansava ao domingo – para ir à terra, de vez em quando, visitar a mãe e realizar alguns trabalhos agrícolas no terreno que possuía junto à pequena casa rural. E eu adivinhava os domingos em que ela revisitava a sua aldeia natal, porque voltava com o rosto mais rosado, um sorriso mais aberto e um cheiro a fumeiro entranhado na roupa e na pele. Às oito horas de terça-feira, a campainha tocava, sem surpresa. Sabíamos quem era. Depois de um cumprimento rápido, encaminhava-se resolutamente para o quarto de costura e enfiava a velha Singer, enquanto aguardava instruções da minha mãe. A rotina cumpriu-se anos a fio, alterando até a identificação do nosso calendário semanal: entre a segunda e a quarta-feira, havia simplesmente “o dia da Branquinha”. A ementa gastronómica de terça-feira também se repetia inexoravelmente – ensopado de carne com batatas e ervilhas, que rapidamente foi baptizado como “a comida da Branquinha”. Eu ficava a ver a costureira a partir a carne em minúsculos pedaços e a esmagar com o garfo as batatas e as ervilhas, após o que pousava definitivamente a faca, comendo apenas com o garfo, bem seguro na mão direita, um sorriso a bailar-lhe nos lábios, como se do melhor manjar se tratasse. 21
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Sempre que me era possível, eu sentava-me ao lado da Branquinha, a vê-la costurar roupa para três crianças em fase de crescimento (num tempo em que o “pronto-a-vestir” ainda não fazia parte do nosso dicionário nem do nosso quotidiano), ou a fazer arranjos em vestidos rasgados e a colocar joelheiras em calças esburacadas. E lá me ia metendo na mão um paninho, uma sobra de tecido, iniciando-me na arte de fazer bainhas, pespontar ou chulear. Sem abrandar o ritmo de trabalho, ao som do matraquear da velha Singer, ia desfiando histórias pessoais antigas, enquadradas na sua aldeia natal, lá para as bandas de Amarante, e cujo nome a memória me apagou. Até porque raramente referia o nome da localidade. As histórias eram sempre introduzidas por um “lá na minha terra...”. Ignorando a minha tenra idade, aterrorizava-me, por vezes, com histórias de bruxas e almas penadas, invariavelmente localizadas “lá na sua terra” e tão verdadeiras como a sua profunda convicção. E pelo meio das empolgantes narrativas, ia introduzindo uns “Ai, Jajus, menina!”, que eu tendia a repetir, para embaraço da minha mãe, que me arregalava, disfarçadamente, os olhos pela minha falta de respeito pela pronúncia da Branquinha, repleta de “jes”. Também fazia parte da minha rotina da época chegar um pouco atrasada ao colégio, no início da tarde, porque me deixava ficar a ouvir, com a costureira, a radionovela transmitida, em curtos episódios, pela Emissora Nacional. Ambas nos emocionávamos com as contínuas desventuras da protagonista, bondosa mas sacrificada e infeliz e, constrangida, eu percebia o lacrimejar mais intenso daqueles olhinhos míopes. Há muitos anos que a Branquinha vivia na cidade, mas o seu coração ficara no campo. Por isso, sempre que as necessidades de costura abrandavam, calçava alegremente umas velhas galochas e mudava de actividade: cavava a nossa horta e arrancava as ervas daninhas do jardim, sem demonstrar cansaço e com um sorriso nostálgico a bailar-lhe no rosto afogueado. Estava, igualmente, incumbida de matar e depenar galinhas, bem como de matar e esfolar coelhos, a cuja vida breve punha termo com uma paulada certeira no cachaço. Eu ficava intrigada, até chocada, por ver aquela mulher bondosa matar, sem dó nem piedade, as inocentes criaturas. Um domingo de Verão, o nosso Volkswagen rumou à terra da Branquinha, que fizera questão que conhecêssemos o lugar onde tinha o coração. Ela partira de véspera a fim de preparar a recepção. Em Amarante, o meu pai abandonou a estrada nacional e conduziu 22
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encosta acima por uma estradinha sinuosa de paralelepípedos, sem hesitação, seguindo as instruções previamente fornecidas. Os meus olhos de criança citadina enchiam-se com aquele verde ondular de colinas e montes, já nos contrafortes da Serra do Marão, pontilhados de ovelhas e cabras, uma ou outra vaca a ruminar paulatinamente debaixo do Sol forte. Recordo as velhas casas de granito, arrumadas ao lado da estrada por onde seguíamos, com o fumo a sair por chaminés escuras e por pequenas falhas no encaixe das pedras. Eu sentia intensamente o cheiro a fumeiro a pairar no ar, aquele que a Branquinha sempre levava consigo para a cidade. Na entrada da pequena aldeia do nosso objectivo, erguia-se uma graciosa igreja românica em granito escuro, com uma torre sineira separada do edifício principal, talvez pela inépcia ou esquecimento do “arquitecto” em a incluir no edifício principal. Em breve, os terrenos de cultivo e de vinha cediam lugar a um amontoado de pequenas casas e, na entrada de uma delas, a Branquinha acenava-nos freneticamente, enquanto a figura escura e mirrada da velha mãe espreitava, curiosa, os recém-chegados, esticando-se por cima do ombro da filha. Deliciei-me com o almoço, simples mas genuíno: sopa de feijão e couve-galega, feita na lareira numa panela de três pernas, fêveras grelhadas na brasa, acompanhadas por um arroz malandro de hortos. Tudo me soube a festim real! Também não faltou o delicioso pão de Padronelo e até as maçãs assadas se transformaram na melhor das iguarias. E tudo regado com um verde de Amarante para os adultos e laranjada para as crianças. Repentinamente, ouvi-me dizer: – Branquinha, deixa-me passar as férias na tua casa! E logo ela: – Jajus, menina, como se ia entreter neste fim de mundo? Não insisti, rendida à veemência da pergunta. *** O tempo levou-me a Branquinha, regressada à aldeia para tratar da velha mãe. E, se inicialmente chegava uma ou outra carta, também o tempo se encarregou de as varrer. Anos mais tarde, ao abrir a caixa do correio, fui assaltada por um perfume a violetas, que percebi oriundo de um envelope também decorado com violetas. Reconheci a letra infantil da Branquinha, que nos anunciava o seu casamento tardio, ocorrido, 23
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algum tempo atrás, com um “brasileiro”, o Nabais. De novo, o Volkswagen rumou a um destino já conhecido. Não entrou na aldeia, já que a recém-casada vivia com o marido numa casa nova, imitação da dos “brasileiros de torna-viagem” do século anterior, regressados endinheirados à pátria que tinham abandonado muitos anos antes, com uma trouxa na mão e a esperança e o sonho no coração. Sabíamos que a casa ficava um pouco isolada das restantes e humildes habitações. Era uma vivenda ampla, com um torreão lateral e terraço no tecto, no qual se destacava, em cada canto, uma estátua simbólica das quatro estações do ano. O portão de ferro era guardado por dois cães de faiança, que exibiam ferozmente a dentição, numa ingénua tentativa de desencorajarem aproximações mal-intencionadas. Para meu espanto, destacava-se da fachada amarela um painel de azulejo com uma inscrição: “Vivenda Branca Amélia Cruz”. Afinal, a Branquinha tinha um sobrenome e mesmo um nome do meio! Mal a reconheci: o carrapito tinha dado lugar a uma ondulação larga e cuidada, e os óculos de lentes grossas tinham sido substituídos por uns de estilo americano dos anos cinquenta, com armação de tartaruga. E percebi que já não lacrimejava, certamente pela melhor adequação dos novos óculos. Mas mantinha a simplicidade no trato, apenas se constrangendo um pouco com as formas de tratamento do marido, que oscilavam entre um “meu bem” e “meu docinho de coco”. Pelo meio da conversa, ia dando instruções a uma jovem criada, preocupada com o andamento da assadura do cabrito de leite, menu mais consentâneo com a sua actual condição de esposa de “brasileiro” abastado. Apercebi-me de que se respirava uma pacata felicidade naquela casa quase luxuosa; porém, praticamente certa da resposta, não consegui coibir-me de lhe segredar: – És feliz, Branquinha? – Ai, Jajus, menina, se sou!
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A CASA DE BASTET Luís Altério
O meu dono, velho companheiro das lides da terra, para garantir o arrimo de mantimentos da sua família, fez-me bom uso, usou e abusou, e eu sempre obediente. Ora de charrua ora de carroça ora de outras alfaias, tivera a vida toda presa ao arreio de couro encardido. Ainda me lembro do tempo atrasado, havia muito tempo atrás que o usara pela primeira vez, ao arreio. Lindo de se ver! Usara-o pela primeira vez para puxar a carroça cheia de estrume para as oliveiras. A carroça já era usada pela minha mãe, uma bela égua. Ao meu pai nunca o conheci, dizem que era um belo burro de outra aldeia vizinha. Dizem, que eu cá não sei, sempre fui uma besta de carga! Já estou cansada! Faço de tudo para que o meu dono não desconfie! Desceu mais um dia, um frio chato de sustentar e não queria trabalhar. Estou cansada de trabalhar. Mas já sinto o meu dono, lá em cima, na casa dele. Vive sozinho. Os filhos lançaram-se para fora de casa, suponho que fazem os seus sustentos sem o nosso trabalho escravo, que é mesmo assim, aqui entre nós que ninguém nos ouve. A mulher morrera há uns anos. Acabou de descer, o velho dono, e está a pôr-me o arreio, como sempre, e atrela-me à velhinha carroça cheia de remendos de madeira aqui e ali, e carrega a charrua para a carroça. Os varais fazem peso, retesando os cabedais. Estou cansada! Apetece-me desistir. O dono dá-me um beliscão forte, outro e mais outro. Maroto! É um ingrato! Dei-lhe tanto do meu suor! Tanto, tanto suor e esforço, tantas vezes com as cangalhas cheias, a descer e subir morros íngremes sempre ao seu ritmo, ou ao ritmo do seu filho mais velho, ou ao do filho a seguir, ou ao do mais novo (ainda têm uma irmã, mais velha que o caçula logo a seguir), sempre neste festim de despotismo. Estou cansada. O dono puxou as rédeas e comecei o trote, sem antes ornear umas 25
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três vezes por aversão. Mas claro, o dono indiferente, como sempre, continuou, e lá marcámos pelas ruas da aldeia. Os meus amigos malcontentes despertando. Na pocilga roncam os recos nervosos, nos estábulos o bezerro muge de fome, o boi também, o burro a dois currais à frente relincha, além duas cabras e um cabrito num casebre fazem aquele balir inquietante, o perdigueiro excitado ladra na nossa presença, um coelho foge-nos a chiar, um grupo de rafeiros pulguentos latem desesperados de fome, um gatinho dorme num muro e ronrona imperceptível, e deixamos a aldeia, descendo a estrada que leva ao cemitério da aldeia. Cruzamos o cemitério dos humanos e o orvalho da rama tão sedutor e cobiçado, a contas com a minha sede. Estou cansada! Mas mantenho o trote. Ouve-se um uivar, seria um lobo? O dono estaca. Acautela o ouvido, já o conheço de ginja! Do silêncio, ele estica as rédeas e continuamos. Na sua leira, prepara-me a charrua. E a manhã foi toda ela para a lavra, revolver a terra. O meu vigor é cada vez mais debilitado. Eu sentia o desânimo do dono, a cada varejado no lombo! Eu relinchava desesperada, mas ele agulhava mais o suplício, e eu via-lhe a angústia desesperante, ambos velhos e acabados. Mas ele não queria saber, a sua insolência era antinatural! Eu, como sempre, obediente, puxava com as réstias de forças a charrua a rasgar a terra para sustento do dono. Era essa a minha natureza. Fazer o quê? Tinha que me resignar. Só muito tarde concluímos o trabalho que antes era em menos tempo. Eu estava deveras cansada. O corpo dorido. As dores lancinantes das vergastas. Voltámos para casa tarde. Desatrelou-me e foi embora. Mais um dia e uma noite sem comer e beber. Nem palha! Já uns três dias sem ver feno! Sem ver água para saciar a sede que me revolve as entranhas! No curral a palha já decomposta em estrume me dava desconforto. Teria que dormir, mais uma vez, de pé. Na manhã seguinte, pela mesma hora, pôs-me as rédeas. Só, só as rédeas, nem a velha albarda! Quando não me punha albarda no lombo, eu ficava feliz pois significava aquele dia de descanso. O dono me levava ao lameiro de erva fresca! Um banquete! Então, descíamos para a baixa, onde passavam várias línguas de água fresca que davam aquela vivacidade verde ao campo. E sempre me prendia a uma estaca com corda na pata de maneira a comer erva fresca na mesma porção de lameiro. E me deixava ali o dia todo até ao cair da noite. Depois, ele voltava todo janota naquelas vestes deles, e regressávamos a casa. Mas o intervalo entre esses dias em que eu era realmente feliz, era de seis dias de trabalho, havia exceções é certo. Talvez fosse o caso, mas algo me dizia que não. Que a 26
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coisa era outra. Mas obedeci, como sempre, fiel companheira até ao fim! Levou-me então para outra direção, contrária à do lameiro das ervas frescas e suculentas. Ah, como a fome aperta! E a sede! Que sede essa que me assola! E cansaço! Ah, estou cansada! Fomos direitinhos às margens do rio. Descemos a custo uma ribanceira de apertada trilha quase engolida por giestas e ramas. No fundo, um naco de terra dura com um pinheiro, e ali à frente, a margem do rio com a sua corrente suave e tranquila. Ah, que sede danada! Relinchei, inquieta, mas o dono prendeu-me no pé do pinheiro e tirou-me as rédeas. Olhou-me firme e pareceu-me ver-lhe uma tristeza pesada. Mas não tenho a certeza. Virou-me as costas e sumiu pela velha trilha. Eu fui em direção ao rio, mas presa pela pata era-me impossível beber. Ah, que sede diabólica! Esticava a corda, o cansaço, a dor da pata afrouxada pelo nó não me impedia de tentar... Tentar libertar-me... Ah, que sede infinita! Vejo um felino branco a beber na margem do rio. Vira-se, a lamber o focinho saciado. Era uma gata branca! – Estás preso? – Perguntou-me num miar satisfeito. – Presa! Sou uma mula, e tenho uma sede que nem queiras saber! – Sim, pois... Como fazer? Tenta esticar a corda... Tenta, tenta, amiga... E assim foi. Horas depois, lá consegui que a corda cedesse, sempre acompanhada pela gata branca. Bebi que me fartei... Oh!... Que saudades de beber! – Caramba! Estavas mesmo com sede! – Miou a minha amiga. Levantei o focinho e fomos para debaixo do pinheiro. Conversámos longamente. – Não, não sou daqui, e nem nenhum dono me abandonou. Nunca tive dono! Embora tivesse amigos humanos. Mas tivemos um acidente e eles morreram. E eu continuei a jornada. Só falta descer a península, e ao descer essas montanhas, já será fácil dirigir-me para sul. O extremo sul da península é a minha meta agora. O meu destino, que era o nosso destino para ser preciso, é o Delta do Nilo. Mais precisamente uma cidadezinha dos humanos onde existem Templos para treinar gatas para a devoção à Deusa Bastet. – És importante! – Como? Tens que falar mais alto! Sou surda! – És uma deusa, rainha...? – Relincho vigorosa. – Não, nada disso! – Mia concentrada, enquanto limpa os pêlos com a língua. – Vou ser treinada para viver no Templo. Os meus amigos hu27
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manos ficaram de incumbir-se de levar-me ao extremo sul. Dali, pegaria um desses paus grandes que flutuam na água e atravessaria o estreito do mar. E espero conseguir, mesmo sem os amigos humanos. Sou a reencarnação de Bastet. Eu e outras gatas que lá vivem. – Bom, boa viagem. Eu vou para a casa. O dono espera-me! – O teu dono? Vocês os domésticos desiludem-me sempre! É a vossa natureza! É pena. Esse dono abandonou-te! Acorda, evolui! E relincha mais alto, senão não dá! – Estás enganada! Somos parceiros de anos e anos, eu e o dono! – Respondi aumentando a voz, ofendida. – Parceiros? Sugou-te até ao fim! E a paga é essa! A lealdade é essa! Abandonou-te! Virei-lhe as costas e segui pelo trilho da ribanceira, magoada e triste. O trote era lento. Eu tinha que me resignar, estou velha e cansada! O meu dono também! Ele deve ter-se esquecido de mim. Só pode! Mais à frente ouvi um latido lancinante. Repetitivo e desesperante. Desviei o caminho e fui atrás dos latidos. Numa velha cerca um cão estava preso com a coleira mesmo rente à estaca. Não podia mover o pescoço de tal forma apertaram o nó! Ele debatia-se desesperadamente! Era um molosso das montanhas! No pescoço curto e forte notava-se o aperto feroz da coleira, ou pedaço de corda, não sei bem, via-se a carne lacerada, o sangue escorria sujando a coleira e os pêlos tão densos. Fiquei com pena! Teria de fazer alguma coisa! Aproximei-me e reparei na gata branca rondando o rafeiro. Estaria também a tentar ajudar? Com vários coices acabei por derrubar a velha cerca. O rafeiro libertou-se da coleira... Não, não era coleira, era um pedaço de corda. A corda cedeu e o rafeiro já respirava melhor. Ali ficámos a ver o molosso recuperar. Ladrava que era das terras baixas do sul, e que descendia dos rafeiros que moviam o gado dos seus donos, das montanhas do norte às planícies das terras mais a sul. Os seus donos haviam sido cruéis com ele. E que estava grato por nós! A gata branca, com a sua revolta, insistia nas nossas condições de domésticos. – É a vossa natureza, eu sei – insistia a Branca. Eu, como que confusa, decidi seguir o meu caminho. Mas eles quiseram acompanhar-me. E logo o molosso quis vincar a sua lealdade às amigas, eu e a gata branca, que o salvaram de uma morte certa. – Depois eu e a Branca seguimos para sul. Devo-vos isso, e não digam que não. Estou farto dos humanos. A minha natureza é ajudar a guiar, como os meus antepassados. – Virou-se para a Branca: – Vamos 28
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ajudar a mula e depois seguimos para sul. – Rosnou o molosso à gata. E os dois seguiram-me. – Tens a certeza de que queres voltar para o teu dono? – Miou-me a Branca. – Pensa bem. Se voltas para ele, vai-te eliminar. Não vês que ele te abandonou a uma morte certa? – Isso é ofensivo! Não preciso de vocês. Adeus e boa viagem! E continuei o meu trote. Eu não queria reconhecer o óbvio. Haviam sido anos e anos e anos, sei lá, muitos anos de dedicação. Estou velha e cansada. Vou para onde? E depois há a esperança de eles estarem errados. Quem sabe, o meu dono se esquecera. Eu fingia que não os via, mas eles me acompanhavam, vigiando-me, enquanto comia ervas pelo caminho, demorando-me aqui e ali. Quase ao fim do dia, cheguei a casa. Relinchei vigorosa e feliz, e empurrei com o focinho a velha e saudosa porta do meu curral. De repente, o dono na varanda. A chamar-me pelo nome. – «Russa?» Pareceu-me que lhe vira umas lágrimas nos olhos e a voz pouco usual, mais alquebrada, mais emotiva. Seriam as saudades? Desceu as escadas e levou-me ao curral, e mal entrara fechou-me logo as portas. Sem feno e sem água. Estranho? Os meus amigos ali ficaram. À espera do outro lado da porta. Conversando e descansando. A dada altura, a Branca contou-nos que estivera em terras mais a norte. E conhecera um cavalo valente. Os donos usavam-no para corridas de cavalo. – Um dia, nessas corridas repetidas – treinos, como os donos diziam – para melhorar a corrida, o cavalo pulara mal uma das traves que os donos põem no trajeto, para pularem, e desequilibrara de maneira a que o seu peso fosse para uma pata, estatelando-se no chão. Com as dores lancinantes, puseram termo à vida. Foi triste. Moldaram o triste cavalo para satisfazer um prazer humano, de ver a correr e competir entre eles. Tinha-me confidenciado, o cavalo, que o castraram. E acabou até por me confessar que era virgem. Embora não lhe faltasse comida, ração, feno e mais uns alimentos que eles transformavam e que servia para o fortalecer. Mas, no fundo, moldaram-no para servir os caprichos humanos. Parece que lhe enfiaram umas três ou quatro picadas e lhe administraram um líquido no pescoço. Primeiro ficou atordoado, para tombar no chão. Depois adormeceu, e já na última picada com aquela geringonça, foi para parar o coração. E morreu finalmente. Diziam que a fractura da perna era irrecuperável. Enfim. Vocês deveriam se revoltar! Já chega de tanto 29
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uso e abuso. Por isso estou ansiosa para chegar a Bubástis, localidade onde ergueram os Templos a Bastet. Vamos juntar os gatos todos do mundo, em nome de Bastet, e derrubar os humanos! Já chega dessa raça! – Eu vou contigo – acrescentou o molosso, com aquele ladrar manso. E assim passámos a noite. Cansada, assim fiquei de pé, já sem dar sentido ao que falavam. Logo de manhã, o dono abriu a porta. E entrou um homem. Sim, conheço-o. Um dos amigos do dono. Também tem animais a trabalhar para ele. É dono de um belíssimo cavalo. Pegara-me pelas rédeas postas pelo meu dono. Já na rua, o dono de semblante triste afagara-me o lombo por uns segundos. Virara a cara, e o amigo dele puxou-me. O molosso começou a ladrar com a Branca ao seu lado. O meu guia chutou-o violentamente e seguiu o caminho. Os meus amigos seguiam muito lá atrás. Por caminhos e montes nunca de antes passados. Uma viagem sem retorno? Será que os meus amigos tinham razão? De repente, paramos numa pequena ribanceira íngreme. No fundo, um intenso tufo de silvas. Tirou-me as rédeas. Puxou de um ferro metálico. Penso que uma daquelas armas dos humanos. Apontou na minha cabeça, entre os olhos. O molosso ladrou, a Branca miou, revoltados, e de repente um silvo ensurdecedor saiu daquele metal, e algo entrou entre os olhos e foi o fim.
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