maio | 2018
Tempo de migrar para o norte
TAG Comércio de Livros Ltda. Rua Câncio Gomes, 571 | Bairro Floresta Porto Alegre - RS | CEP: 90220-060 (51) 3092.0040 taglivros taglivros taglivros taglivros contato@taglivros.com.br www.taglivros.com.br REDAÇÃO Gustavo Lembert da Cunha Marina Brancher Marcio Coelho Maurício Lobo Nicolle Ortiz produto@taglivros.com.br REVISÃO Antônio Augusto da Cunha Ana Santos Maia IMPRESSÃO Impressos Portão PROJETO GRÁFICO Bruno Miguell M. Mesquita Gabriela Heberle Kalany Ballardin Paula Hentges design@taglivros.com.br CAPA Luciana Facchini luciana.facchini@gmail.com
Ao Leitor Em maio, retornamos ao universo da literatura árabe – e muito bem acompanhados: o curador deste mês é Milton Hatoum, sumidade dos romancistas brasileiros contemporâneos e habitual favorito ao prêmio Jabuti de melhor romance a cada lançamento. De origem libanesa, Hatoum guarda imenso carinho pela cultura oriental e indica uma pérola que foi considerada o romance árabe definitivo. Com um texto tão enxuto quanto complexo, o sudanês Tayeb Salih nos conduz às margens do rio Nilo para contar a história de Mustafa Said, árabe africano de intelecto notável – mas que carrega consigo um passado trágico, de loucura e morte. Censurado em seu país de origem, Tempo de migrar para o norte ganhou notoriedade mundial e já foi traduzido para mais de 30 idiomas. O mimo, um blend de chá inspirado nas especiarias da cultura sudanesa, lembra os bálsamos citados no livro. Como diz o narrador a respeito da tradição de compartilhar a degustação da infusão em família, “nosso hábito desde que nos conhecemos por gente”, os aromas podem remeter a elementos que compõem a história.
Equipe Tag
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M A indicação do mês
O curador Milton Hatoum
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Ecos da Leitura
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O que Mustafa Said tem a ver com Otelo?
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Leia depois de ler O difícil significado de casa Carol Bensimon
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Spoile
Sumário A INDICAÇÃO DO MÊS
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Entrevista com Milton Hatoum O livro indicado Tempo de migrar para o norte
ECOS DA LEITURA
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Tempo de migrar para o norte, por Mamede Jarouche
ESPAÇO DO ASSOCIADO
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Leituras em aquarela
A PRÓXIMA INDICAÇÃO
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A curadora de junho Eliane Brum
Fernanda Preto
M O curador Milton Hatoum
Em julho de 2017, mês de aniversário de 3 anos da TAG, os associados foram agraciados com uma coletânea inédita e exclusiva. Uns e outros – contos espelhados reuniu escritores clássicos e contemporâneos em dez narrativas consagradas e suas versões repaginadas. Entre os nomes ilustres do segundo grupo, figurou Milton Hatoum, que fez uma releitura do conto “Teoria do medalhão”, de Machado de Assis. Um acalorado debate entre pai e filho dá o tom de “O futuro político”, que, além de contrapor, constrói uma perspectiva contemporânea sobre o clássico machadiano. Aquele que foi o primeiro e promissor contato entre Milton Hatoum e TAG gera, agora, uma indicação que vem direto da sua lista de livros indispensáveis. Escritor, tradutor e professor, Milton Assi Hatoum, nascido em Manaus em 1952, é um dos mais célebres e premiados nomes da literatura brasileira contemporânea. Vencedor de prêmios Jabuti e inúmeros outros internacionais, tem livros traduzidos para doze idiomas e publicados em quatorze países. Apenas no Brasil, já vendeu mais de 200 mil cópias. Hatoum escreveu também ensaios e artigos sobre literatura brasileira e latino-americana para revistas e jornais de Brasil, Espanha, França e Itália.
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A INDICAÇÃO DO MÊS
Sua obra é geralmente direcionada à reconstrução de memórias e experiências pessoais, resgatando também a origem libanesa do autor. Os universos e personagens construídos por Hatoum costumam envolver-se em conflitos familiares e com os contextos socioeconômicos da Amazônia e do Oriente, havendo também espaço para críticas à esfera política – em especial à Ditadura Militar dos anos 1960 e 1970 no Brasil. É o caso de seu romance mais recente, A noite da espera (2017), primeiro volume da trilogia O lugar mais sombrio. A alusão ao período repressivo, no entanto, não deixa de traçar significativos paralelos com o momento atual da política brasileira – algo não planejado por Hatoum. “O Brasil parece ser sempre assim, caminha numa trajetória ascendente, com avanços sociais e, de repente, mergulha na desilusão, no desamparo”, comentou, em entrevista ao El País.
O fato de ser filho de um imigrante oriental e de uma brasileira com as mesmas origens, aliado ao convívio com índios durante a infância em Manaus e a absorção de diversas culturas e crenças, proporcionou ao autor uma visão mais inclusiva, colaborando para o posicionamento crítico revelado em seus escritos. Mas a infância foi apenas o prenúncio de sua jornada pessoal. Aos 15 anos de idade, em 1967, Hatoum partiu na companhia de dois amigos para a capital federal, onde estudou no Colégio de Aplicação da Universidade de Brasília. Guarda, entre suas memórias, o momento em que foi preso durante uma passeata em 1969, em pleno auge da repressão militar. Embora não fosse um militante engajado, era impossível ser jovem e não ter a rotina invadida pela política, por vezes violentamente. Hatoum foi
“O caminho escolhido por Hatoum traz preciosos tesouros guardados por suas desorientadas figuras – personagens perdidas, desnorteados narradores – a lembrar que o norte está na busca e não no encontro, a alegria do mistério muito mais no caminho do desvendamento, nos interditos, nos silêncios, do que na solução.” – Sylvia Telarolli, doutora em literatura 6
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embora de Brasília e sua formação teve continuidade em São Paulo, para onde se mudou em 1970 e estudou Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo. Quando saiu do Brasil, no fim de 1979, depois de lecionar e elaborar projetos arquitetônicos que hoje considera “medíocres”, Hatoum percebeu que não conseguiria trabalhar com habitação social, sua grande motivação na área. Contribuía para o abandono da profissão um desejo há muito adiado – ele, que em sua época de universitário escrevera poesia, queria concluir um romance. Cauteloso, procurou fazer leituras “quase estudadas” de todos os grandes livros que conhecia e admirava. Nove anos envolvendo manuscritos, revisões, viagens e uma dose de perfeccionismo foram necessários para Hatoum publicar seu primeiro romance. Relato de um certo Oriente (1989) traça a trajetória de uma mulher que retorna a Manaus para encontrar uma matriarca de família libanesa. Com narradores intercalados a cada capítulo, a obra remete à tradição oral do Oriente. Estreante no universo literário, com seu Relato Hatoum venceu o prêmio Jabuti de 1990 na categoria melhor romance, e a obra recebeu traduções em vários países da Europa. Sem pressa em atender às demandas de mercado, Hatoum passou mais de uma década escrevendo contos para revistas e jornais e só
publicou Dois irmãos, sua obra mais celebrada, em 2000. No romance, o mito bíblico de Esaú e Jacó é transferido para Manaus, onde é narrado o drama entre irmãos gêmeos e sua família. Além de outro Jabuti de melhor romance, Dois irmãos recebeu uma premiada adaptação para graphic novel assinada pela dupla de quadrinistas Fábio Moon e Gabriel Bá, além de uma peça teatral e uma minissérie televisiva. Milton Hatoum escreveu também os romances Cinzas do Norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008) - primeiro e segundo lugar na categoria de melhor romance do Jabuti de 2006 e 2009 -, o livro de contos A cidade ilhada e a seleção de crônicas Um solitário à espreita (2013). Sobre sua indicação para a TAG, Hatoum afirma que é um livro que representa um elemento canônico do bom romance: as indagações substituem respostas prontas. As pontas da obra estão soltas para que o leitor as amarre conforme sua interpretação. A complexidade da leitura advém justamente da ambiguidade. “Tempo de migrar para o norte explora os desencontros e as tensões de uma sociedade que vive entre o arcaico que resiste e o afã de modernizar – mas cuja proposta de modernização (similar ao que ocorre no Brasil) é algo para o usufruto de poucos. Não há rede de proteção nem sequer saídas mais ou menos redentoras, mas sim monolíticos e definitivos impasses”.
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M
Antonio Brasiliano
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Entrevista Milton Hatoum
TAG – Em Tempo de migrar para o norte, um dos principais temas desenvolvidos no livro é o do olhar do estrangeiro face ao exótico, diferente. Como você analisa o paralelo dessa questão nos seus livros e na narrativa de Tayeb Salih?
Milton – O exótico nos atrai e às vezes nos assombra. O narrador de uma ficção constrói um outro, que não se confunde com o autor ou autora. A construção desse outro passa pela experiência, imaginação, linguagem. Os “outros”, narradores dos meus dois primeiros romances, são uma mulher e um filho natural,
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mestiço. As personagens – indígenas, imigrantes da Europa, do Marrocos e do Oriente Médio - foram construídas a partir da minha vivência com pessoas que conheci na minha infância e juventude. De algum modo, eram exóticos, pois os mais velhos conversavam em árabe, e as empregadas indígenas mal falavam português. No romance de Salih, a relação com o outro – o britânico - faz uma inversão radical: é o olhar nativo face ao exótico, o estrangeiro. O narrador e Mustafa Said aprendem a língua do colonizador, e Mustafa usa essa língua para seduzir mulheres, dominá-
A INDICAÇÃO DO MÊS
-las, cometer atrocidades. Talvez a loucura da vingança faça parte desse jogo perverso e diabólico, um jogo em que há fortes implicações históricas e culturais. Sobre o romance do autor sudanês, a coexistência de duas culturas na identidade de um sujeito é um tópico relevante para a história. Em que medida você acredita que essa discussão poderia ser atualizada para nossa época? Milton – É uma discussão muito atual e relevante no mundo todo. Está latente no nosso cotidiano, na
nossa vida social e profissional. A coexistência de culturas diferentes é uma das grandes questões da era moderna. A alteridade é um tema de reflexão nos Ensaios de Montaigne, que é um precursor da antropologia. Mas essa coexistência, que é desejável e deve ser buscada, é sempre difícil. O que nos é muito diferente pode causar medo. Às vezes a repulsa e o horror a outras identidades são frutos de um extremismo ideológico, racista e xenófobo. No ano passado, em São Paulo, um grupelho de energúmenos agrediu os refugiados que participavam de uma manifestação. O
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líder do grupelho agressor é neto de imigrantes. Isso aconteceu também no Rio, onde um racista agrediu um refugiado sírio que vendia comida. Penso que esse tema pode ser discutido nas escolas, e a literatura é um dos modos de abordá-lo. Nós somos constituídos de várias identidades, e a própria identidade pode ser uma escolha. A supremacia racial talvez seja a tara mais perigosa do ser humano. O ódio e a aversão ao estrangeiro – imigrantes, refugiados, judeus, árabes, africanos – são modos de manipular uma sociedade em crise e alcançar o poder. Já fez milhões de vítimas. E ainda faz.
um romance, um poema e uma peça de teatro não devem ser panfletários nem diretos. O belo é oblíquo, escreveu Guimarães Rosa num conto. Os poemas de A rosa do povo têm um forte conteúdo político, mas são muito elaborados, e alguns são verdadeiras obras-primas.
Em uma entrevista ao Jornal Nexo, você diz que “um romance ideológico, que faz opções ideológicas, perde muito sua força”. Ainda existem romances ideológicos no Brasil? Se sim, como eles resistem?
Milton – É sempre difícil e trabalhoso escrever um romance, mas o primeiro é uma prova de fogo. Eu já não era tão jovem quando terminei o manuscrito do Relato de um certo Oriente. Tinha 35 anos e estava meio perdido, no autoexílio em Manaus, depois de ter vivido uns quatro anos entre a Espanha e a França. Os primeiros passos foram as primeiras leituras numa escola pública de Manaus. Li uma parte da obra de Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Machado, Jorge Amado. E li alguns livros da antiga Editora Globo (de Porto Alegre), romances brasileiros e estrangeiros que um dos meus tios comprava. Até aludi a isso numa cena do Cinzas do Norte: o personagem Ranulfo (tio Ran), deitado numa rede, lendo “livros que vinham do Sul”. Depois morei mais de dois anos em Brasília e nove anos em São Paulo, onde me
Milton – Será que os romances marcadamente ideológicos têm vida longa? A história e o destino de um livro dependem da recepção de leitores e críticos num tempo longo. Dependem do modo de ler, do gosto, da sensibilidade e da exigência dos leitores. Tudo isso tem uma relação direta com a linguagem e os conflitos humanos que a obra expressa. Um romance ostensivamente ideológico atenua ou subtrai a complexidade das personagens e do sentido histórico. Qualquer pessoa pode e deve manifestar-se politicamente, e a essa manifestação nunca é neutra. Mas
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Desde 1989, quando publicou seu primeiro livro, muitos leitores e prêmios o consolidaram como um dos maiores escritores da literatura brasileira. Conte-nos um pouco sobre os bastidores desse percurso. Como foi dar os primeiros passos em direção à escrita em um país com pouco incentivo para isso?
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formei em arquitetura na USP. Mas a literatura me possuía. Escrevi uns continhos e um pretenso romance, mas joguei tudo fora. Percebi que devia ler alguns clássicos antes de escrever o primeiro romance. Estudava cada livro, tentando aprender com os grandes autores. Depois do Relato demorei uma década para publicar o Dois irmãos. A autoexigência pode ser uma chatice, mas não magoa ninguém, só a gente mesmo. É quase uma autoflagelação. Mas tive um pouco de sorte: meus editores e alguns amigos leram os manuscritos e deram boas sugestões. São leitores exigentes, e quando as observações de vários leitores coincidem, é melhor esquecer a vaidade autoral, que não serve pra nada, e aceitar as críticas. Um outro lance de sorte foi a recepção do público leitor, incluindo uma parte da crítica e professores de escolas e universidades. O mais importante é conhecer os limites do que se pode escrever e inventar um universo ficcional que expressa uma profunda experiência de vida e leitura. Na literatura brasileira contemporânea, é possível perceber alguns escritores influenciados pela literatura árabe, como Raduan Nassar. De que forma você enxerga o panorama da cultura árabe por aqui e quais são os desafios para maior difusão da mesma? Milton – O maior desafio é descontruir e refutar os clichês e estereótipos dirigidos ao árabe, ao oriental, aos africanos, índios. Será
que a nossa sociedade, mestiça desde o século 17, pode ser considerada “ocidental”? No clássico ensaio Orientalismo, Edward Said reflete sobre esse tema: o olhar e o discurso de superioridade do Ocidente em relação ao Oriente. Ele analisa várias modalidades de discurso que tentam anular ou rebaixar a cultura do Oriente. Na verdade, o “oriental” é uma construção do Ocidente. As culturas, as artes e as ciências são tão entrelaçadas que não faz sentido separá-las em compartimentos estanques. Na obra de Marcel Proust, um dos maiores monumentos da literatura, há mais de cinquenta referências ao Livro das Mil e uma noites. Em vários contos, poemas e ensaios o escritor argentino Jorge Luis Borges cita a cabala, a mística judaica, filósofos e poetas árabes, judeus, chineses, persas. Já existem bons cursos de línguas orientais em algumas universidades brasileiras, e esses cursos formam professores, tradutores, ensaístas. Muitos livros de qualidade ainda são inéditos em português, mas posso citar pelo menos dois ou três que foram muito bem traduzidos: uma seleção da poesia do escritor sírio Adonis, traduzida por Michel Sleiman (Companhia das Letras). E dois romances de Elias Khoury, um dos maiores escritores libaneses: Porta do sol e Yalo (Record). Dentre os escritores sudaneses do século XX, Tayeb Salih é sem dúvida o mais reconhecido internacionalmente. O que você diria para os mais de 23.000 associados que es-
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tão prestes a ler Tempo de migrar para o norte pela primeira vez? Milton – Eu me surpreendi ao ler esse romance. Há pouco tempo, quando eu o reli, percebi outras relações simbólicas e históricas. A loucura da personagem está relacionada com a violência do processo histórico, mas não se limita a isto. De algum modo, o livro de Salih se espelha na ótima novela Coração das trevas de Joseph Conrad. Mas nesse espelhamento há uma imagem invertida, como se fosse uma crítica à visão redutora e cristalizada dos africanos em Coração das trevas. Conrad escreveu em inglês para um público europeu no auge do império britânico. A crítica ao império belga no Congo tenta redimir o colonialismo britânico e sua “devoção à eficiência”. Em 1900, Conrad dificilmente poderia criticar os britânicos, como criticou o rei da Bélgica e suas atrocidades cometidas na África. Salih escreveu mais de seis décadas depois, e sob uma outra perspectiva. Ele poderia ter escrito em inglês, como o nigeriano Chinua Achebe, outro grande escritor africano, que criticou duramente Conrad num ensaio famoso. Mas Salih preferiu escrever em árabe, uma de suas línguas maternas. Além disso, ele tinha uma experiência profunda da sociedade sudanesa e do mandato britânico no Sudão. Na novela conradiana, a inteligência brilhante de Kurtz simboliza a Europa, que se julga superior aos nativos, os “bárbaros”. No livro “Cultura e
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imperialismo”, Edward Said, ao comentar Tempo de migrar para o Norte, assinala que a personagem Mustafa, também uma inteligência brilhante, “desencadeia uma violência ritual sobre si mesmo, sobre as mulheres europeias, sobre a compreensão do narrador”.
Marcos Alves
Há passagens fortes sobre esses rituais, que expressam uma cisão, uma esquizofrenia de Mustafa Said. É notável a ambiguidade latente sobre os efeitos devastadores da colonização e os efeitos não menos devastadores das elites sudanesas (“os novos senhores da África”) no período pós-colonial.
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Os leitores do TAG certamente vão traçar paralelos entre o Sudão e o Brasil, ou entre a África pós-colonial e a América Latina. Há passagens sobre a política de educação e saúde que se ajustam ao contexto brasileiro, apesar das diferenças históricas e culturais entre o Sudão
romance explora os desencontros e as tensões entre essa sociedade arcaica e o élan modernizador, uma modernização que, à semelhança do que acontece aqui, é usufruída por uma minoria. Não há saída redentora, e sim impasse. Mas, diante do impasse, o narrador não
e o Brasil. Como ocorre com os bons romances, não há respostas, e sim indagações, que convidam o leitor à reflexão. É um romance que opera o tempo todo com a ambiguidade, daí a sua complexidade. Salih enfatiza a força da tradição numa sociedade tribal, simbolizada na figura do avô do narrador. O
capitula, ele prefere a vida à morte. E há, por fim, belas alusões à poesia clássica árabe, sobretudo ao misticismo sufi de Abu Nuwas, o poeta do êxtase, da embriaguez amorosa, do vinho como metáfora do enlevo e da perdição nessa viagem passional e trágica do Tempo de migrar para o Norte.
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A INDICAÇÃO DO MÊS
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T O livro indicado
Tempo de migrar para o norte
Te po d mi o o te
A imponência do rio Nilo, que percorre onze países africanos em uma corrente de mitologia e mistérios ancestrais, é parte da vida da população que se encontra às suas margens. Mais notavelmente adorado pelos egípcios, o rio era encarado como uma espécie de divindade, também, por tribos sudanesas. Memórias desse culto ao Nilo marcaram a infância e povoaram o universo literário do escritor Tayeb Salih, nascido em 1929, na vila de Karmakol, região norte do Sudão, banhada pelo rio. Salih é um dos mais aclamados escritores árabes do século XX. Sua produção literária retrata elementos da cultura e da identidade árabe e africana, em especial as ligadas aos anos 1960 – fim do colonialismo britânico e início da onda nacionalista no continente. Não economiza recursos para incutir ambiguidade em seu leitor ao abordar de maneira única as relações entre Ocidente e Oriente, além de descrever de forma complexa a estrutura antropológica sudanesa. Se comparada à literatura árabe contemporânea, a obra de Salih destaca-se por explorar a vida no campo, a religião e as dificuldades vividas pelas mulheres em sociedades conservadoras. Tais elementos, combinados, alçaram-no a um lugar no panteão dos grandes escritores do século XX.
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A INDICAÇÃO DO MÊS
Os primeiros estudos formais do escritor ocorreram em instituições islâmicas – ele se formou em Literatura pela Universidade de Cartum, capital do Sudão. Em 1952, pouco antes da independência sudanesa em 1956, deixou o país natal para estudar na Universidade de Londres e na Universidade de Exeter, tornando-se parte da primeira geração de sudaneses educados na Grã-Bretanha. Apesar de ter vivido a maior parte de sua vida fora do país de origem – o autor retornou em raras oportunidades –, Salih manteve-se fortemente conectado às raízes orientais.
destacam-se entre tantas outras narrativas – boa parte de seus textos nunca recebeu traduções do árabe. O destino do primeiro romance que escreveu, por outro lado, levaria a um inesperado escrutínio internacional.
“Inicialmente eu queria, na verdade, escrever um thriller. Essa era minha intenção. Uma história de assassinato bem direta.” Foi assim que Salih explicou, em uma entrevista de 1997, como ele imaginava o romance Tempo de migrar para o norte (1966), obra que chega às suas mãos neste mês. Durante seu processo criativo, foi notando uma Sua carreira transitou entre o madilatação engenhosa dos temas gistério – brevemente sobre os quais escrevia –, o jornalismo, a lite– a visão conflituosa ratura e cargos diplodo africano árabe soO autor máticos. Por mais de bre os resquícios do uma década, produziu colonialismo e da retextos nas redações lação com o europeu, do Majalla, periódico os aspectos sociais da voltado para questões cultura sudanesa – até do mundo árabe sechegar à conclusão de diado em Londres, no uma das mais impacqual experimentou ditantes obras da literaferentes estilos e temas literários. tura árabe do século XX. Trabalhou como broadcaster para o Serviço Árabe da BBC e, mais tarde, Em Tempo de migrar para o norte, como diretor no ministério da ino narrador é um intelectual suformação em Doha, no Catar, antes danês cujo nome o leitor fica sem de ir para a UNESCO, em Paris. saber. Após sete anos de estudos na Europa, ele volta a sua terra naSalih dedicou sua produção litetal, uma aldeia rural banhada pelas rária por anos aos contos e suas curvas do Nilo. Esse cenário, que versões estendidas. The doum tree remete a meados dos anos 1960 e of Wad Hamid (1960) e A handful provoca profunda nostalgia e bemof dates (1964), contos, e The we-estar ao narrador, também lhe é dding of Zein (1964), uma novela, profundamente singular. Aromas,
Tayeb Salih
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plantas, frutas, animais e aldeões evocam paisagens pontuadas em diferentes momentos ao longo do romance. Porém, assim como o rio, seu relato é sinuoso e desembocará em diversas outras frentes. O romance foca nos acontecimentos da vida de duas pessoas: além do homem que nos conta a história, temos um protagonista, outro sudanês de trajetória semelhante, porém, recheada de eventos muito mais dramáticos – seu nome é Mustafa Said. Após passar sete anos preso e vagar pelo mundo, Mustafa volta ao Sudão para se estabelecer no vilarejo de origem do narrador, aonde chega como um desconhecido, casa-se e estabelece uma família. A partir do encontro dos dois homens, a história de Said vai sendo revelada – primeiramente, a partir de relatos do forasteiro; mais tarde, após seu desaparecimento sem explicação, por meio da angustiada busca por respostas realizada pelo narrador. Órfão de pai, Mustafa Said descobre em si, precocemente, inteligência e capacidade de raciocínio incomuns – além de uma estranha fluência para a língua inglesa – e abandona a mãe para estudar no exterior. Logo, ele chega à Inglaterra, terra dos colonizadores e onde colonizados são vistos como uma sorte de animal exótico. Negro, estrangeiro e indesvendável, Mustafa Said não apenas chama atenção pela genialidade, mas também por sua aura de homem do Sul, que causa tanto estranhamento e fas-
Carl Van Vechten
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cínio nos europeus. O incômodo do protagonista se transforma num jogo teatral em que assimila os estereótipos e transforma-se em uma caricatura de si mesmo – para certas mulheres inglesas, um forte poder de sedução. Aos poucos, o leitor vai desvendando os aspectos mais sombrios da alma de Said, cujas conquistas e aventuras sexuais com mulheres europeias se assemelham a vinganças de raízes profundas – a ambiguidade e a forte carga poética da escrita de Salih, no entanto, não entregarão respostas nem interpretações únicas. Embora o conflito entre Ocidente e Oriente esteja explícito ao longo de toda a narrativa, como nos diálogos entre os moradores do pequeno vilarejo, o romance não se encerra em uma crítica unilateral ao “outro”. Em diversas passagens, personagens e o próprio narrador constatam as inevitáveis semelhanças e dramas universais que, por fim, jogam luz sobre a interminável jornada da tragédia humana. Tayeb Salih, ainda que desperto para uma grande sensibilidade, sentia-se perturbado na época em que escreveu a obra: “[havia] o conflito entre o mundo árabe e muçulmano e o Ocidente, em função da luta da Argélia para conquistar independência da França. Naquele momento, [o Ocidente] era o grande mal para nós. E aí ocorreu a revolução egípcia e a intervenção dos britânicos, franceses
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e israelenses. E então aconteceu, e ainda acontece, o conflito Palestina-Israel. Todas essas coisas exercitaram nossa imaginação. A França é um país que eu amo, com sua cultura e poetas e tudo mais. Se eu estivesse escrevendo [o romance] em Paris eu teria diminuído minha raiva. Mas não poderia ter escrito de outra forma além da que eu escrevi”, disse Salih à apresentadora Eleanor Wachtel, em sua casa em Londres, em 2002. Tempo de migrar para o norte foi eleito “o mais importante romance árabe do século XX” pela Academia da Literatura Árabe de Damasco, em 2001, e já foi traduzido para mais de trinta idiomas. No ano seguinte, a obra foi listada entre as 100 melhores obras de ficção mundial, de acordo com os votos de grandes escritores de 54 países, em evento organizado pelo Clube do Livro Norueguês. No artigo intitulado “Where did these people come from?”, publicado nos anos 1990, Salih fez uma crítica veemente ao regime islâmico em Cartum, que, segundo ele, relegava a cultura sudanesa em nome do Islã e da “salvação nacional”. Por volta do mesmo período, Tempo de migrar para o norte foi censurado no país sob a alegação de conter cenas sexualmente explícitas – embora não oficialmente. No entanto, acredita-se que a insatisfação do governo com a obra decorra da desconfortável representação das realidades po-
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líticas e culturais do Sudão que, não apenas nesse como em outros escritos, Salih fazia questão de expor para o resto do mundo. Um pequeno número de escritos de Salih, subsequentes a Tempo de migrar para o norte, viria a repercutir internacionalmente. Em 1969, foi publicada a coletânea The wedding of Zein & other Stories; o romance Bandarshah, dividido em dois volumes, foi lançado em 1971 e 1976. The wedding of Zein ganhou uma adaptação cinematográfica dirigida por Khalid Al Siddiq, premiada no festival de Cannes de 1976.
O escritor faleceu em 2009, em Londres, aos 80 anos de idade, vítima de falência renal, e nunca chegou a desfrutar de grande prestígio no continente americano. Raras edições de seus romances foram lançadas nos Estados Unidos e, no Brasil, somente Tempo de migrar para o norte recebeu uma tradução, em 2004 – que agora chega para você, em extraordinário trabalho de Safa Abou-Chahla Jubran. Com a indicação de Milton Hatoum, o Brasil poderá saborear mais uma vez – e, com sorte, dar o devido valor – a obra de um dos mais proeminentes escritores africanos do século XX.
Tempo de migrar para o norte é um brilhante retrato em miniatura da condição dos árabes e africanos sem conexão com o passado e que ainda não foram incorporados a um futuro viável. Veloz e surpreendente em sua prosa, esse romance é mais instrutivo que um grande número de livros acadêmicos. - The New York Times
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ECOS DA LEITURA
o que Mustafa Said tem a ver com otelo? 21
ECOS DA LEITURA
a língua ÁRABE... É falada por cerca de
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maior espaço geolinguístico do mundo.
313 milhões
de habitantes ao redor do mundo, segundo o site Ethnologue, organizado pela Sociedade Internacional de Linguística.
É a língua oficial de
25 países.
Reúne uma organização política e regional, a Liga Árabe, formada por 22 países membros e 5 observadores, sendo o Brasil um deles.
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Encontra-se em uma importante situação linguística de diglossia, ou seja, cada falante conhece dois registros – um dialeto da sua região e outro padrão, ensinado na escola. Um egípcio e um sudanês conversando, por exemplo, podem alternar entre os dois registros em uma mesma frase.
MAIS de 200 substantivos na língua portuguesa são de origem árabe, como café, arroz e açúcar, segundo o dicionário Houaiss.
LITERATURA ÁRABE
Naguib Mahfouz
Ali Ahmad Saïd Esber
Elias Khoury
Principal escritor da língua árabe, Naguib Mahfouz nasceu no Cairo, Egito, em 1911. Noites das mil e uma noites (Companhia das Letras) foi publicado em 1988, sete anos após ter sido o primeiro autor árabe a vencer o Prêmio Nobel de Literatura.
Adonis é o pseudônimo do poeta e crítico literário sírio Ali Ahmad Saïd Esber, nascido em 1930. Sua primeira antologia, Poemas (Companhia das Letras), foi publicada no Brasil em 2012.
Dramaturgo, romancista e crítico libanês, Elias Khoury nasceu em 1948, em Beirute. Yalo (2012, Editora Record), um dos seus principais livros, narra a tortura envolvida nas condenações do sistema judicial libanês, e também foi mencionado por Milton Hatoum como um dos seus livros favoritos.
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traduzida
Alaa Al Aswany
Salwa Al-Neimi
Youssef Ziednan
Alaa Al Aswany, escritor egípcio nascido em 1957, publicou O edifício Yacubian (2002, Companhia das Letras), que se tornou um best-seller da literatura árabe e foi adaptado para o cinema pelo diretor Marwan Hamed.
Salwa Al-Neimi é uma autora e jornalista síria. Em 2007, publicou o polêmico livro A prova do mel (Objetiva), que discute abertamente questões sobre a sexualidade feminina, questionando as convenções islâmicas.
Especialista em manuscritos árabes, Youssef Ziednan nasceu em 1958, no Egito, e é autor de mais de cinquenta livros. Em 2009, publicou Azazel (Editora Record), finalista do Prêmio Internacional de Ficção Árabe.
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ECOS DA LEITURA
Intertextualidade Julia Kristeva
Marcel Proust
Em latim, a palavra “textus” tem o sentido de tecido entrelaçado, indicando que todo texto é uma trama de fios. Essa técnica narrativa chama-se intertextualidade e foi debatida pela teórica Julia Kristeva na década de 1960. A relação transtextual pode acontecer de várias maneiras e, ao longo da história da literatura, muitos autores brincaram com o conceito. Marcel Proust foi um dos principais escritores a realizar o pastiche, um tipo de intertextualidade em que se imita o estilo de algum autor ou obra. Em 1908, Proust publicou nove artigos no jornal francês Le Figaro, recontando o caso de Henri Lemoine, condenado à prisão por estelionato. Os textos foram inspirados no estilo literário de autores como Balzac e Flaubert. Flaubert, por sua vez, faz em Madame Bovary (1857), uma alusão a Dom Quixote (1615), de Miguel de Cervantes, que por sua vez faz paródia das novelas de cavalaria, comuns à época.
Gustave Flaubert
?
E O que Mustafa Said tem a ver com Otelo, afinal?
Em Tempo de migrar para o norte, Mustafa Said compara-se a Otelo, protagonista da tragédia shakespeariana homônima de 1604, fazendo referência às experiências europeias que os dois personagens vivenciaram. Outros exemplos de intertextualidade do livro são as citações à obra poética do iraniano Abu-Nuwás, assim como a presença de Cherazade, de O livro das mil e uma noites. 25
ECOS DA LEITURA
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e todas as regiões que se arabizaram com a expansão muçulmana levada a cabo a partir do século VII d.C., o Sudão talvez seja aquela na qual as marcas dessa arabização evidenciam uma relação desde sempre colonialista, mesmo que avant la lettre. As demais invasões, culminando com a ocupação inglesa no século XIX, só fazem confirmar essa posição, que é uma das marcas de sua singularidade. Situado na África negra, sub-saariana, a ambiguidade da condição árabe/negra do Sudão foi sendo reposta ao longo dos tempos por seus intelectuais, escritores e poetas, refletindo-se até os dias de hoje, o que o torna, também, o cenário ideal para as modernas discussões a respeito do colonialismo, da invasão cultural e da imposição de valores externos por meio da força e do prestígio. Com efeito, o próprio nome do país diz bem pouco: Sudão, do árabe sudán, significa simplesmente “negros”, e a locução árabe bilád assudán, “terra dos negros”, indicava, nos textos antigos, não somente a área atualmente ocupada por esse país, mas toda e qualquer região africana habitada por negros. A denominação “Sudão” é obra do colonialismo inglês. Como se lamenta o próprio Tayeb Salih numa crônica da década de setenta, “Egito é Egito, Iraque é Iraque, Líbano é Líbano... Mas e Sudão? Esse nome nada significa para nós!”
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TEMPO DE MIGRAR PARA O NORTE,
Entre outros temas, discute essa relação entre colonizado e colonizador. Não à toa, o romance era um dos preferidos do crítico Edward Said, que nele percebeu, com agudez, a inversão operada relativamente à obra de Joseph Conrad: de fato, na narrativa sobre a vida de Mustafa Said, o coração das trevas torna-se a própria Europa. Não se veja aí, contudo, nenhum maniqueísmo: nem a Europa é constituída no romance como o mal, nem a aldeia sudanesa da qual sai a voz do narrador consiste num ponto de origem exemplar. Numa crônica contemporânea ao romance, Tayeb Salih afirmou ter aprendido justamente na Europa, em especial na Inglaterra, onde estudara, a relativizar as noções de bem e mal, ou, nas suas palavras, “que nem todo bem é bem, e nem todo mal é mal”. Grande apreciador da cultura ocidental, leitor onívoro de seus
ECOS DA LEITURA
O narrador de Tempo de migrar para o norte não é seu personagem principal, Mustafa Said, que nele é matéria narrada e objeto das reflexões do narrador, um jovem em quem esse personagem produz sentimentos contraditórios que o conduzem ao paroxismo e ao esgarçamento. A grande força do romance situa-se na tensão entre a (enganosa) placidez do lugar de origem e retorno, o meio rural de uma pequena aldeia sudanesa, e a vida no coração das trevas, a cidade grande, concupiscente produtora de apetites sem fim. A questão fundamental é: o que degradou a alma de Mustafa Said? À primeira vista, foi sua estada na Europa. Mas a narrativa, feita por um terceiro cujos sentimentos em relação ao protagonista são ambíguos e obsessivos, deixa em aberto a possibilidade de que, em germe, o crime já estivesse inscrito na alma do personagem em sua cultura de origem, e mais do que o lugar propriamente dito, o tráfego intercultural é que teria sido o responsável pela violência desmedida que se desencadeia, tanto na Inglaterra
como na aldeia sudanesa – inclusive a violência da narrativa, feita por um doutor em literatura inglesa, e que garante aos seus conterrâneos: “com pequenas diferenças, os europeus são exatamente iguais a nós”. Esse narrador constitui a igualdade no plano meramente funcional, furtando-se a outros níveis de comparação, que se entreveem, contudo, no contraste entre o mundo europeu, um mundo de abastança, e o sudanês, um mundo onde os homens, tal como os espinhos, “vencem a morte porque não pedem muito à vida”. De entremeio, problematizam-se temas caros à nossa contemporaneidade, como as relações entre os sexos, entre progresso e atraso, entre tradição e revolução. Estamos sem dúvida diante de uma obra poderosa, que deixa várias questões em aberto, diluindo, nas entrelinhas, muitas das positividades presentes na narrativa. Quantos leitores o livro tiver, tantas serão as interpretações que ele receberá.
POR MAMEDE JAROUCHE
romancistas e poetas mais importantes, Tayeb Salih jamais se desapegou de sua terra. Aliás, como muitos intelectuais sudaneses (e numa inesperada similaridade com certos discursos aqui no Brasil), ele era ufanista: considerava o Sudão um grande país, dotado pela natureza dos maiores recursos, e que um futuro radiante e um grande progresso dependiam apenas de uma boa e racional administração.
Mamede Jarouche é tradutor, professor universitário e um dos maiores pesquisadores brasileiros de literatura árabe. Sua tradução para o português d’As Mil e Uma Noites recebeu o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), o Prêmio Paulo Rónai da Biblioteca Nacional e o Prêmio Jabuti de Melhor Tradução em 2006.
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ESPAÇO DO ASSOCIADO
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Leituras em aquarela
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ESPAÇO DO ASSOCIADO
A associada Eloisa Bido, de São Miguel do Oeste – SC, compartilhou no aplicativo do clube alguns dos extraordinários quadros que pintou em homenagem às obras enviadas pela TAG. Acima, seguem imagens da postagem original e as obras que ilus-
tram Quase memória (agosto), As alegrias da maternidade (outubro), As três Marias (novembro) e O alforje (fevereiro). Estamos no aguardo de outros associados artistas que gostem de entrelaçar suas criações com o mundo da literatura!
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LEIA DEPOIS DE LER
Este espaço foi pensado para você retornar à leitura da revista depois de ter terminado o livro. Aqui, mensalmente, um dos colunistas do nosso blog - taglivros.com.br/blog - irá produzir um texto especialmente para você analisar de forma mais complexa a obra.
O difícil significado de casa Depois de sete anos na Europa, um sudanês retorna à sua aldeia de origem, à curva do Nilo. Está feliz em reencontrar seus familiares e a paisagem da África do Norte. Carregado de lembranças afetivas, aquele lugar reconforta o narrador como nenhum outro. Ao menos é essa a impressão que temos no início do romance: “Olhei para a palmeira do nosso quintal e constatei que a vida continua boa. Contemplando o tronco forte, as raízes fincadas na terra e a copa de folhas verdes, senti-me tranquilo. Não tenho mais a sensação de ser uma pena ao vento. Sou como aquela palmeira, uma criatura que tem origem, raiz e objetivo.” Ao comparar-se com a palmeira (a palmeira representando o lugar de origem é uma imagem que deve aparecer com alguma frequência), o narrador se mostra apaziguado com sua terra natal. É uma sensação, no entanto, que não deve du-
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rar. Por ter experimentado a vida do Ocidente, o jovem sudanês do romance de Salih encontra-se agora entre dois mundos: se a velha aldeia representa o acolhimento familiar, o lugar é também regido por incômodos valores arcaicos e por uma rígida religiosidade. Como para toda a pessoa que parte, a volta para casa passa a ser, igualmente, o retorno a um país estranho. Não à toa, o narrador não nomeado vai se interessar por um personagem que representa essa cisão de maneira ainda mais radical, Mustafa Said, o que acaba colocando Tempo de migrar para o norte na categoria dos livros de narradores-testemunha; quem conta a história não é tão importante quanto sobre quem se fala na história. Tal qual um Grande Gatsby do oriente, Mustafa Said é um personagem ambíguo e cheio de mistérios, tendo inclusive no currículo o assassinato brutal de uma de suas amantes, aos
LEIA DEPOIS DE LER
poucos revelado ao leitor. O crime, aliás, está envolto em uma atmosfera erótica, motivo pelo qual Tempo de migrar para o norte foi banido no Sudão por décadas. Ao abordar sexo e religião na mesma obra, Tayeb Salih mexeu em um vespeiro. Como acontece em As alegrias da maternidade, livro enviado aos associados da TAG em outubro do ano passado, temos aqui o retrato de uma sociedade arcaica debatendo-se com as influências e os valores de um novo tempo. No caso do romance de Emecheta, o embate era entre a Nigéria rural e a Nigéria urbana representada por Lagos. Aquele era, também, um embate geracional. Algo muito parecido ocorre no romance de Salih; não se trata de uma simples oposição entre o Sudão e os países colonizadores, mas de uma crise de identidade de um lugar que já não pode ser como antes: “É preciso que não haja contradição entre o que o aluno aprende na escola e a realidade do povo [declara um ministro que discursa em um prédio público luxuoso, cuja tribuna é de mármore vermelho, o mesmo que cobre o túmulo de Napoleão no Invalides]. Quem aprende hoje quer se sentar a uma mesa confortável, embaixo de um ventilador, quer morar numa casa rodeada por um jardim
e com ar-condicionado, quer andar num carro americano da largura da rua. Se não cortamos esse mal pela raiz, estaremos contribuindo para a formação de uma classe burguesa que não tem nenhuma relação com a realidade de nossa vida e ela será mais danosa para o futuro da África do que o colonialismo em si.” Como estancar essas influências? Como esperar que os sudaneses não olhem para o que o Ocidente oferece e, com isso, acabem matando sua própria identidade? Mustafa Said viajou pelo mundo inteiro. De maneira hipócrita, um dia diz ao narrador, futuro tutor de seus filhos, que não os deixe seguir o mesmo caminho. É interessante perceber que esse trânsito entre os dois mundos foi para ele uma benção e, ao mesmo tempo, uma maldição. Said aproveita-se, por exemplo, do seu “exotismo” para fazer suas vítimas sexuais. Ele representa o papel, decora a casa em Londres com elementos clichês da cultura oriental, torna-se uma caricatura. Em sua biblioteca na Inglaterra, tem apenas livros em árabe. Na biblioteca do vilarejo, apenas livros em inglês. Será essa cisão que o levará à tragédia final?
Carol Bensimon
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A PRÓXIMA INDICAÇÃO
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A curadora de junho Eliane Brum
Lilo Clareto
Mais de quarenta prêmios nacionais e internacionais fazem de Eliane Brum a jornalista mais condecorada da história do Brasil. Sua trajetória de repórter e escritora contabiliza milhares de quilômetros do solo brasileiro percorridos para contar as histórias dos marginalizados pela sociedade – e, por outras vezes, para questionar as versões oficiais dos fatos. Documentarista, repórter, escritora, mas, principal-
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“Seus personagens corrompem e se deixam corromper. Nessa obra, a passagem pelo maelstrom (turbilhão), que significa a entrega aos sentidos, pelo caminho do sexo e do desejo, não deixa marcas no corpo, mas na alma.”
mente, “escutadeira”, Eliane Brum é a curadora de junho. Sua indicação traça a história de uma mulher que leva uma vida tediosa com seu marido ingênuo e dependente. Durante uma de suas aulas de arte, descobre a existência de uma jovem sedutora, que levará a protagonista a afundar, pouco a pouco, em um jogo de seduções, mentiras e traições.
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“O homem é um animal social que detesta seus semelhantes.” – Eugène Delacroix